Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 620/2023-T
Data da decisão: 2024-05-08  IRC  
Valor do pedido: € 206.667,35
Tema: IRC – Despesas não documentadas – Tributação autónoma.
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Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Filipa Barros e Marisa Isabel Almeida Araújo, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A..., LDA., NIPC..., com sede na Rua..., ..., ...-... ..., veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2º, nº 1, alínea a), e 10º, nº 1, também alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), de 20 de janeiro, apresentar  PEDIDO DE CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL E PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA tendo por objeto imediato a impugnação do Despacho do sr. Diretor-Adjunto de Finanças do Porto de 30-03-2023 proferido ao abrigo de delegação de competências (Doc. n.º 7) que indeferiu a Reclamação Graciosa n.º ...2022... apresentada contra a Liquidação n.º 2021 ... de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), respeitante ao exercício de 2020, no valor de €206.725,49 e valor a pagar de €206.667,35, o qual já inclui os juros compensatórios e outros acertos no montante global de €2.094,58, Liquidação que constitui o objeto mediato da presente ação (Doc. n.º 1).

É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 4 de setembro de 2023.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, mesmo considerando a renúncia de um dos árbitros, cuja justificação foi aceite juntamente com substituição, tendo sido notificadas as partes em 24 de outubro de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O TAC encontra-se, desde 14 de novembro de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 18 de dezembro de 2023.

Por despacho de 22 de fevereiro de 2024, o TAC proferiu o seguinte despacho:

“1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito e a prova produzida é meramente documental.

2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença. 

3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, até a data limite da prolação da decisão final.

4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1      Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

  1. Como claramente se extrai do RIT, a liquidação impugnada tem na sua origem o valor que a contabilidade expressa, à data de 29/02/2020, contabilizado pela Requerente na conta “11 – Caixa”, no montante de €409.468,01.
  2. Sendo que as diligências para determinar os valores em existência de numerário foram realizadas em 28/02/2020 e concluídas às 9 horas e 10 minutos, com a conclusão de que o montante global ascendia a €322,48.
  3. De facto, a AT, entendendo não poder operar com o saldo que a conta “11 – Caixa” apresentava no final do exercício de 2019, €419.732,73, dada a existência de movimentos de entrada e saída de disponibilidades no período que decorreu desde o início de 2020 e até à data da contagem (28/02/2020), entendeu solicitar o balancete da contabilidade reportado ao final do mês de fevereiro de 2020 e servir-se do valor que o mesmo expressava, sendo óbvio que os movimentos registados incluíam valores respeitantes aos dias 28 e 29 desse mês.
  4. Desprezando esse desfasamento entre a data dos registos contabilísticos e a data da verificação física da existência de numerário, a AT concluiu que a inexistência física de numerário no exato montante evidenciado pelo saldo da conta “11 – Caixa”, à data de 29/02/2020, configurava que o desfasamento encontrado tinha a natureza de despesas não documentadas, a ser tributado autonomamente à taxa de 50%, nos termos da alínea a) do art.° 88° do código do IRC.
  5. Independentemente das justificações que o Requerente apresentou e irá apresentar relativamente às disponibilidades em causa, importa, em primeira linha, saber se as circunstâncias invocadas pela AT comprovam, ou não, a ocorrência de despesas não documentadas.
  6.  Torna-se, pois, evidente que, face à dimensão do desfasamento encontrado, há que confessar que a contabilidade, atentos os excessivos saldos que a conta “11 – Caixa” sistematicamente vinha espelhando, não relevou corretamente os movimentos financeiros ocorridos ao longo dos anos e, daí, a necessidade de, agora, se ter de apresentar as devidas justificações.
  7. Mas, para que ocorra a tributação autónoma de uma despesa como não documentada, não se pode prescindir de que seja demonstrada a efetiva ocorrência de uma despesa/gasto.
  8.  Deste modo, deveria a AT, na fundamentação formal do ato de liquidação, ter invocado o preenchimento dos pressupostos legais de que depende o seu direito à liquidação, através de elementos de prova claros, seguros e suficientes.
  9. E não ter-se servido de meros indícios que entendeu serem bastantes para gerar a convicção de que existiram movimentos financeiros subtraídos à contabilidade mas que nada provam quanto à sua efetiva existência, ao seu exato montante e ao exercício fiscal em que possam ter ocorrido.
  10. É que, de facto, a aplicação do artigo 88º n.º 1 do CIRC pressupõe a demonstração de que:
  • ocorreram despesas não documentadas
  • num determinado exercício e
  • num determinado montante.
  1. Ora, mesmo que se admitisse que está comprovada a existência de despesas não documentadas, o que não se concede e menos ainda em face das justificações que foram e que irão ser apresentadas, é manifesto que a AT não demonstrou cabalmente a respetiva quantificação, nem que as mesmas se verificaram no exercício a que se reporta a liquidação impugnada, ou seja, 2020.
  2. Na tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, mas, não obstante esta característica da tributação autónoma, está a mesma sujeita aos princípios próprios daquele tributo, designadamente, os relativos à especialização dos exercícios e à periodização do lucro tributável, conforme estabelecido nos art.ºs 8º e 18.º do CIRC.
  3. Não se compadecendo, igualmente, com uma quantificação efetuada por recurso a estimativas para encontrar, por aproximação, a base de incidência da taxa de imposto, já que se terá de enquadrar como uma forma direta de tributação.
  4. Ora, nos termos do artigo 74.º da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos do direito a liquidar recai sobre a entidade que o invoca, isto é, a AT.
  5. O que sempre implicaria que a AT tivesse demonstrado, cabalmente, que em 2020 ocorreram despesas indocumentadas, bem como o respetivo montante, o que não aconteceu.
  6. Ainda que assim não se considerasse, recorde-se que o sujeito passivo tem a seu favor o normativo previsto no art. 100º do CPPT, nos termos do qual sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado, pelo que também à luz deste normativo a Decisão em crise de indeferimento da Reclamação Graciosa padece de ilegalidade e deverá ser anulada.
  7. De facto, no que respeita ao momento da ocorrência das supostas despesas, a AT não se socorreu de nenhum concreto movimento contabilístico que comprovasse a existência de despesas pagas e não suportadas documentalmente.
  8. Isto é, a AT não identificou a transferência de disponibilidades patrimoniais do Requerente para terceiros, mas, tão só, a existência de um saldo contabilístico da conta “11 – Caixa”, o qual ela faz pressupor que em dados momentos poderiam ter sido realizadas despesas que não foram contabilizadas.
  9. Momentos esses que poderiam referir-se a 2020 ou, como se infere pelo elevado montante que está em causa e pelo histórico dos saldos anormais que a conta “11 – Caixa” vinha evidenciando ao longo dos anos, a qualquer exercício anterior.
  10. Há, pois, que concluir à AT não era possível determinar, com base no mero saldo contabilístico da conta “11 – Caixa” e na falta de quaisquer movimentos financeiros concretos, o momento em que as supostas despesas indiciadas ocorreram, pelo menos sem realizar investigação que não quis realizar.
  11. Ou, dito de outro modo, no justo exercício de 2020, não era possível concluir, para lá de qualquer dúvida razoável, que ocorreram despesas correspondentes ao valor assumido pela AT como base para a liquidação da tributação autónoma, aqui impugnada.
  12. É evidente que, na falta de documentação que ateste a realização de movimentos financeiros de que terceiros pudessem beneficiar, impunha-se à AT a demonstração de que a totalidade do montante considerado para a liquidação autónoma corresponde a despesas efetivamente ocorridas dentro de um determinado período temporal.
  13. Período que a AT definiu, sem qualquer sustentação, como sendo o exercício de 2020, eventualmente, ao intervalo temporal que decorreu entre 01/01/2020 e a data da contagem física, 28/02/2020; portanto, supostos exfluxos financeiros em numerário de €409.145,53 num hiato temporal de nem sequer dois meses completos.
  14. Para assim concluir, a AT considera que a contabilidade não enferma de quaisquer erros ou omissões, pois que atribui inteira credibilidade aos saldos da conta “11 – Caixa” que a mesma evidencia às datas de 31/12/2019 e de 29/02/2020.
  15. Na verdade, basta considerar que o saldo contabilístico daquela conta apresentado como correspondente ao final de 2019 de €419.732,73 se apresenta empolado artificialmente, para concluir que o saldo que a contabilidade evidencia no final de fevereiro de 2020 de €409.468,01, e que do mesmo decorre, também enferma do mesmo excesso – cfr. MAPAS 1 e 2 do ANEXO 4 da Reclamação Graciosa que se junta como Doc. n.º 3 bem como o Doc. n.º 4.
  16. Os MAPAS 1 e 2 do ANEXO 4 da Reclamação Graciosa (Doc. n.º 3) foram construídos pelo Requerente com base nas suas declarações fiscais e contabilidade, sendo aqui de salientar que somente após 2014 a IES passou a segregar o saldo Bancário do saldo de Caixa, pelo que, como documentos de suporte a estes MAPAS, em anexo juntam-se (elementos oficiais e de que a AT sempre pôde dispor) para os anos de 2012 e 2013 os BALANCETES GERAIS e de 2014 em diante as IES (Doc. n.º 4).
  17. Ora, é manifesto que a evolução dos saldos da conta “11 – Caixa” do Requerente, em geral, sumariada no MAPA 1 do ANEXO 4 do Doc. n.º 3, e do contabilizado em 29/02/2020, em particular, indiciam fortemente a falta de credibilidade de tais inscrições, dada a sua anormalidade e falta de adesão à realidade de qualquer empresa, como se pode constatar pelos seguintes valores:

- 2013 ---------------------- € 116.354,80;

- 2014 ---------------------- € 137.372,66;

- 2015 ---------------------- € 111.865,64;

- 2016 ---------------------- € 267.495,71;

- 2017 ---------------------- € 370.289,36;

- 2018 ---------------------- € 433.291,46;

- 2019 ---------------------- € 419.732,73.

(cfr. MAPA 1 do ANEXO 4 da Reclamação Graciosa que se junta como Doc. n.º 3 bem como o Doc. n.º 4)

  1. A AT, no percurso da sua fundamentação, apoia-se na atribuição de total credibilidade da contabilidade, designadamente dos sucessivos saldos da conta “11 – Caixa”, com especial relevância para os que se reportam a 31/12/2019 e 29/02/2020, para depois concluir que, em face dos dados da contagem de numerário, tal credibilidade afinal não existe.
  2. E, se é correto concluir-se que a contabilidade enferma de erro por manifesto excesso do registo das disponibilidades financeiras à data do final de fevereiro de 2020, quais as razões para a AT concluir, mesmo perante um montante absurdo, que o saldo de €419.732,73, respeitante a 31/12/2019, correspondia à realidade do numerário guardado na empresa? E o mesmo nos anos anteriores?
  3. Obviamente, nenhumas razões existem e, como tal, não são referidas no RIT, subsistindo, apenas, a vontade de arrastar a tributação para o exercício de 2020.
  4. A fundamentação da AT recorre, unicamente, aos dados da contabilidade, quando o Requerente demonstrou estarem errados e explicou o porquê e a própria AT constatou que existem sobejos indícios de que esta não é credível, pelo que não era lícito à AT, sem justificação, considerar que, até determinado momento, a contabilidade do Requerente era digna da presunção de verdade, e que, a partir de outro, a mesma não era fiável, sendo evidente que houve uma errada contabilização na Conta Caixa ao longo dos anos, sendo aqui de relembrar que o saldo contabilístico da conta de “Caixa” já era anormalmente excessivo quando os sócios atuais tomaram conta da empresa, pois o mesmo já não correspondia, nessa data, à existência efetiva de disponibilidades, pelo que os lançamentos na conta CAIXA ao longo dos anos, já desde os anos que antecederam a compra da empresa pelos atuais sócios-gerentes, não tiveram em consideração factos reais que devessem ter sido relevados contabilisticamente mas sim erros de lançamentos contabilísticos.
  5. A AT não chega a concretizar o preciso período em que as despesas não documentadas poderiam ter ocorrido, se no próprio dia da contagem, se no período que decorreu entre 01/01/2020 e esse dia da contagem.
  6. Mas, quer se admita uma ou outra coisa, sempre seria absurdo e inverosímil, à falta de quaisquer factos ou indícios adicionais, que, por um lado, o Requerente guardasse, durante um tão largo período, verbas tão avultadas sem recorrer à segurança do depósito em instituição bancária e, por outro, que concretizasse despesas de €409.145,53 no dia da contagem ou no curto período de dois meses desse ano de 2020.
  7. Veja-se, para dar o devido realce ao absurdo de imputar despesas indocumentadas daquele valor a dois meses de 2020, que o Requerente, em todo este exercício, realizou e contabilizou despesas (compras, gastos com pessoal e despesas diversas) no total de €397.164,66 e concretizou vendas e prestações de serviços de €454.193,43, conforme o saldo final da classe 6 e totais do Grupo 71 e Grupo 72 do balancete geral de 2020 (ANEXO 6 da Reclamação Graciosa junta como Doc. n.º 3).
  8.  Aliás, a terem sido realizadas as despesas que se dizem não documentadas, o resultado do exercício de 2020 configuraria um prejuízo de cerca de € 350.000,00, valor absurdo face à dimensão da empresa e que, com toda a segurança, teria colocado em causa a sua continuidade e teria conduzido à sua insolvência.
  9. Será caso para se dizer que, se a AT tivesse realizado a operação de contagem em 2018 ou 2019, iria afirmar, com idênticos fundamentos, que existiram despesas indocumentadas, de montante equivalente, num ou noutro destes exercícios, o que é a prova de que a AT se limita a presumir o momento a que resolve imputar a realização das despesas sujeitas à tributação autónoma ao invés de investigar os concretos factos tributários das supostas despesas (que a AT sabe não terem existido).
  10. A conclusão de que as despesas não documentadas ocorreram em 2020 baseou-se, pois, numa presunção de correspondência à realidade dos sucessivos saldos da contabilidade, designadamente da conta “11 – Caixa”, presunção que adiante se demonstrará ser de ilidir com base na justificação, ainda que em parte (atendendo às limitações que na matéria têm os atuais sócios-gerentes), do destino concreto que, em anos anteriores, foi conferido às disponibilidades financeiras,
  11. sendo que, quanto à restante parte, o caso não é o de uma prática de não contabilização de saídas que deveriam ter sido abatidas na conta Caixa mas sim o de inexistência real de entradas e saídas financeiras de dinheiro na empresa contabilizadas na Conta Caixa, com exceção do alegado infra em “II.1) Do destino (de parte) das verbas havidas como despesas não documentadas:” em que as saídas e as correspondentes entradas foram reais,
  12. portanto – e com exceção do alegado infra em “II.1) - de erro nos valores sucessivamente lançados como entradas e saídas nessa conta Caixa, porquanto tais lançamentos não tinham razão de ser e o próprio Contribuinte fundadamente os repudiou e demonstrou o seu absurdo e inverosimilhança,
  13. mas nem por isso a AT curou de saber quais os concretos lançamentos de influxos e exfluxos na Conta Caixa nem investigou a adequação desses (errados) lançamentos na Conta Caixa, na certeza de que somente a demonstração de que esses lançamentos de entrada e de saída na Conta Caixa foram reais permitiria à AT concluir pela ocorrência de saídas de numerário, sem contrapartida e sem suporte documental e, consequentemente, concluir que tais fluxos existiram e que constituem despesas não documentadas ou despesas confidenciais.
  14. À laia de conclusão, dir-se-á que a AT, quer quanto à própria existência quer quanto ao momento em que se verificou o facto tributário, não fundamentou, como legalmente se lhe exige, que as despesas indocumentadas efetivamente ocorreram e que ocorreram em 2020.
  15. Vejamos, agora, se, quanto ao montante, a fundamentação da AT deve prevalecer ou não.
  16. Desde logo, toda a argumentação antes aduzida quanto ao momento em que as despesas não documentadas poderiam ter ocorrido, será igualmente válida quanto ao montante, cuja conclusão deveria ser o resultado da investigação da AT quanto à soma dos concretos lançamentos de influxos e exfluxos na Conta Caixa,
  17. pois que, se o montante não se conhece em concreto, nem se conhecem as datas e valores parcelares que compõem o saldo do Caixa em cada exercício, ficará sempre em dúvida o montante que deve competir ao exercício de 2020, se parte ou mesmo nenhum,
  18. ao ponto de jamais poder ocorrer uma caducidade do direito à liquidação se legítimo fosse considerar que o facto tributário ocorre no momento da contagem física do Caixa, independentemente da vetustez dos influxos e exfluxos que a detalham e compõem.
  19. Mas, para além desse facto, há que atentar que a AT, demonstrando a sua arbitrariedade e o reduzido respeito pelo rigor que uma quantificação objetiva deve merecer, entendeu servir-se do saldo da conta “11 – Caixa” à data do final de fevereiro de 2020, o que comporta todos os movimentos registados nos dias 28 e 29 desse mês, para comparar com o valor da contagem física que foi realizada às 9 horas e 10 minutos do dia 28/02/2020 (e que, portanto, não contaria com os influxos e exfluxos dos dias 28 e 29).
  20. Ou seja, conscientemente desprezou todos os movimentos daqueles dois dias, alegando, conforme nota inserida na página 6/9 do RIT, que o desfasamento resultante não era “pertinente” mas a realidade é que o é numa tributação direta (e não por métodos indiretos) do ponto de vista da fundamentação do acto tributário.
  21. Assim, reconhecendo que os movimentos ao longo do mês foram todos lançados com data de 28 ou 29 de fevereiro, demonstrou não querer fazer o esforço investigatório de destrinçar os movimentos em função das datas, assumindo que a determinação do valor a sujeitar a tributação autónoma poderia ser obtido grosseiramente e por mera aproximação.
  22. Acresce que a AT, quando confrontada com a existência de dois estabelecimentos comerciais distintos explorados pelo Requerente, limitou-se a fazer a contagem no correspondente à sede do Requerente, tendo considerado, relativamente ao estabelecimento de Coimbra, o valor recebido por contacto telefónico com a funcionária presente no mesmo, quando é certo que esta apenas tem acesso às verbas respeitantes ao fundo de maneio para pequenas despesas.
  23. Não será despiciendo referir que a contagem realizada configura uma diligência investigatória em que a Autoridade ordena e o contribuinte limita-se a colaborar, não tendo este sequer noção do alcance da diligência nem das conclusões que da mesma a AT irá extrair, sendo os sócios-gerentes do Requerente pessoas simples, marido e mulher, cujo know-how é a reparação de electrodomésticos e não propriamente a gestão financeira ou a fiscalidade.
  24. O que se passou foi que a AT ordenou a contagem do numerário da Sede e da loja de Coimbra;
  25. jamais questionou os sócios-gerentes do Requerente se havia mais algum valor de numerário da empresa que estivesse noutro local, conforme decorre das fls. 5/9 e 6/9 do RIT, donde consta a descrição da diligência feita e que, após a mesma, foi notificado o Requerente para juntar os elementos descritos a fls. 6/9, entre nos quais manifestamente não consta a declaração de outros valores detidos pela empresa em numerário que respeitassem à Conta Caixa!
  26. Portanto, a AT não poderia concluir a contrario sensu que não haveria mais algum valor de numerário noutro local nem o Requerente adivinhava que o deveria apresentar quando tal não lhe foi ordenado nem questionado!
  27. Fica, assim, demonstrado que também a fundamentação da quantificação encerra vício insanável, porquanto o valor encontrado pela AT, sobre a qual impende o ónus de prova, não se encontra objetivamente determinado e comprovado, quando, face às normas legais aplicáveis, inerentes a uma forma de tributação direta, não se mostra possível o seu apuramento por aproximação em resultado de estimativas.

- Do destino (de parte) das verbas havidas como despesas não documentadas:

  1. Aqui chegados, importa apresentar os factos que ocorreram ao longo dos anos e demonstrar o destino que as verbas havidas como despesas não documentadas, no todo ou em parte, tiveram.
  2. Note-se que todo este argumentário e respetiva prova documental consta da RECLAMAÇÃO GRACIOSA e respetivos 6 ANEXOS (tudo junto como Doc. n.º 3) e a AT nem refutou os factos nem impugnou a genuinidade desses documentos (um deles Documento Autenticado – ANEXO 3), pelo que deverão os mesmos ter-se por assentes.
  3. Assim, e reiterando o alegado na RECLAMAÇÃO GRACIOSA, começa-se por referir que os atuais sócios e gerentes passaram a deter o capital da empresa por aquisição das respetivas quotas em 01/07/2013.
  4. O respetivo contrato de cessão de quotas (ANEXO 1 do Doc. n.º 3), sujeito a registo comercial e por isso tornado público, foi celebrado pelo valor de €10.000,00, valor que se apresenta desproporcionado face ao valor da empresa e aos capitais próprios acumulados.
  5. Assim, com vista a compensar os sócios vendedores do justo valor da empresa, foi celebrado um acordo complementar, vertido em documento próprio (ANEXO 2 do Doc. n.º 3), no qual os intervenientes reconhecem:
  6. O direito dos sócios vendedores aos lucros acumulados até à data da venda, num total de € 200.000,00, sendo que a verba de €184.417,77 respeita ao total constante do balanço de 31/12/2012 e os restantes €15.582,23, sem prejuízo de revisão por acordo, foram fixados pelas partes, como respeitando ao período de 2013;
  7. Que os sócios vendedores, com referência aos lucros acumulados até 31/12/2012, já se tinham apropriado da verba de €60.000,00.
  8. Tal acordo pressupunha um pagamento complementar de €40.000,00, a realizar até ao fim de julho de 2013, e 16 prestações mensais, a iniciar em setembro de 2013 e a decorrer até ao final de 2015, no valor de €6.250,00 cada, de modo a possibilitar aos sócios vendedores a total perceção do valor dos lucros acumulados de €200.000,00 -cfr. ANEXO 2 do Doc. n.º 3.
  9. Todavia, em novembro de 2013, mostrando-se paga unicamente a verba de €40.000,00 e estando já em incumprimento 3 das prestações acordadas, os sócios vendedores exigiram, como forma de garantia e para ficarem dotados de título executivo, quer contra o Requerente A... LDA, quer contra os sócios compradores, a elaboração de CONFISSÃO DE DÍVIDA (ANEXO 3 do Doc. n.º 3), na qual estes figuravam como fiadores do Requerente A... LDA.
  10. Esta CONFISSÃO DE DÍVIDA foi feita através de documento particular autenticado por Solicitador, cujo conteúdo foi confirmado pelas partes perante tal profissional cuja competência decorre do artº 38 do DL 76-A/2006 de 29 de março e que, por força do art.35.º/3 do Código do Notariado e do art. 363.º/3) do Código Civil, tal documento possui a qualificada força probatória dos documentos autênticos conforme arts. 376.º e 377.º do Código Civil.
  11. No documento autenticado de confissão de dívida, tal como se admitia no acordo complementar ao contrato de cessão de quotas, foi retificado - em resultado do conhecimento mais exato, nessa data, dos custos e proveitos respeitantes ao período que decorreu até à venda das quotas - o valor total dos lucros do Requerente que os sócios vendedores tinham direito a receber, estabelecendo que o seu valor total seria de €210.000,00 – cfr. ANEXO 3 do Doc. n.º 3.
  12. Este novo acordo e confissão de dívida permitiu aos sócios compradores ganhar tempo e assim renegociar o prazo de pagamento no sentido de que os €110.000,00 fossem pagos pelo Requerente até ao final de 2016, o que veio a acontecer, em função dos excedentes financeiros gerados na empresa no decurso desse ano.
  13. Não obstante estarmos em presença de pagamentos efetivos, quer dos €100.000,00 que antecederam a celebração da confissão de dívida em 21/11/2013, quer dos €110.000,00 verificados em 2016, não se deu conhecimento destes factos ao contabilista, pelo que os mesmos não mereceram qualquer relevação contabilística e, deste modo, acabaram figurando artificialmente na conta “11 – Caixa”, a qual, à data de 31/12/2016, evidenciava um saldo de €267.495,71 que, obviamente, não correspondia à realidade.
  14. Considera-se, face ao exposto e prova junta (já desde a Reclamação Graciosa), um deles Documento Autenticado e que por isso tem força probatória plena, que se encontra demonstrado o destino que foi dado ao montante de €210.000,00, em razão do que deveria ter sido afastada a sua computação no total de €409.145,53 que a AT considerou como despesas não documentadas.
  15. Para além destes movimentos financeiros relativos a distribuição de lucros aos sócios vendedores, há que referir que o atual sócio B... procedeu a levantamentos, no total de €200.000,00, para lhe permitir fazer face aos encargos com a empresa que detinha em nome individual.
  16. Tais levantamentos, não obstante a inexistência de contrato escrito celebrado entre o Requerente e aquele sócio, por se ter entendido, em razão da sociedade ser detida por marido e mulher, tratar-se de formalismo desnecessário, sempre foram assumidos como configurando um efetivo mútuo e, como tal, a ser objeto de devolução à empresa.
  17. Verdade que, tendo sido as retiradas do sócio realizadas em numerário, fica por impossível demonstrar a data em que as mesmas foram ocorrendo.
  18. Todavia, manda a mais simples lógica e o senso comum que as mesmas se tenham verificado em função dos excedentes financeiros evidenciados pelo Requerente.
  19. Ora, tais excedentes são evidenciados, grosso modo, pelos acréscimos artificiais da conta de “11 – Caixa” que se vinham verificando em cada um dos exercícios até 31/12/2019, conforme consta de mapa junto com a Reclamação Graciosa sob ANEXO 4 (Doc. n.º 3), construído com base nos balanços de cada um dos exercícios e em que se reflete já o efeito da distribuição de lucros aos antigos sócios, no valor de €210.000,00, bem como das verbas mutuadas ao sócio B..., no montante de €200.000,00.
  20. Comprovando a efetiva natureza de mútuo que foi conferida aos valores retirados pelo atual sócio B..., os quais se computaram em €200.000,00, veio este, em 26/07/2022, a proceder à devolução ao Requerente desse exato montante, conforme documento bancário que se juntou como ANEXO 5 da Reclamação Graciosa (Doc. n.º 3), aqui se juntando como Doc. n.º 4, para que dúvidas não subsistam (MAS nem a AT o questionou), comprovativo de titularidade de IBAN que demonstra o IBAN de destino que consta do ANEXO 5 da Reclamação Graciosa é titulado pelo requerente “A..., LDA.”.

Isto posto:

  1. Não se diga que o Requerente não demonstrou quaisquer erros no lançamento das suas disponibilidades monetárias a débito na conta 11-Caixa, passíveis de abalar a credibilidade dos correspondentes registos contabilísticos!
  2. Conforme decorre do ANEXO 4 da RECLAMAÇÃO GRACIOSA (Doc. n.º 3), o Requerente inclusivamente construiu dois MAPAS com base nas suas declarações fiscais e contabilidade, sendo aqui de salientar que somente após 2014 a IES passou a segregar o saldo bancário do saldo de Caixa, pelo que, como documentos de suporte a estes MAPAS, em anexo juntam-se como Doc. n.º 4 (elementos oficiais e de que a AT sempre pôde dispor) para os anos de 2012 e 2013 os BALANCETES GERAIS e de 2014 em diante as IES.
  3. Com base nestes elementos foi construído o MAPA 1 desse ANEXO 4 do Doc. n.º 3 e Doc. n.º 4):

 

cuja linha central a cinzento evidencia o “SALDO FINAL CONTABILÍSTICO” da Conta do Caixa ao longo dos anos de 2013 a 2020:

 

(Anexo 4 do Doc. n.º 3 e Doc. n.º 4)

 

  1. No final do MAPA 1, na linha “TOTAL SAÍDAS NÃO CONTABILIZADAS”, o Requerente resumiu, face às explicações dadas, quais os valores anuais que não foram contabilizados na Conta Caixa mas que o deveriam ter sido, assim demonstrando o erro da sua contabilidade:

 

(Anexo 4 do Doc. n.º 3 e Doc. n.º 4)

  1. erro o qual explicou nas linhas acima desse Mapa como saídas para os sócios nos anos ali indicados de 2013, 2016, 2017 e 2018:

 

 

  1. No MAPA 2 desse ANEXO 4, o Requerente refez a Conta Caixa levando em consideração as “SAÍDAS NÃO CONTABILIZADAS”, apurando então o SALDO FINAL REAL da Conta Caixa ao longo dos anos 2013-2020:

 

(Anexo 4 do Doc. n.º 3 e Doc. n.º 4)

  1. Portanto, o Requerente devidamente explicou e demonstrou, com suporte documental (um deles Documento Autenticado), os erros de contabilização da Conta Caixa, argumentação que a AT não refutou e documentação que a AT não impugnou no Despacho em crise que indeferiu a Reclamação Graciosa.
  2. Termos em que, a Reclamação Graciosa foi indevidamente indeferida e, consequentemente, não poderia a Decisão em crise assumir que os valores chegaram a ingressar via Conta Caixa na esfera patrimonial, posto que os dispêndios ocorridos e não registados na contabilidade do Requerente, devidamente explicados e demonstrados documentalmente, sumariados no ANEXO 4 da Reclamação Graciosa (Doc. n.º 3), manifestamente não configuram, como já afirmado, despesas não documentadas, enquadráveis no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC.
  3. A Decisão impugnada não poderia assim presumir verdadeiros todos os registos contabilísticos na conta “Caixa” apesar de ser reconhecida a divergência entre o saldo contabilístico e a existência física do mesmo, pois as explicadas e demonstradas omissões/erros contabilísticos invalidaram a presunção de veracidade da Escrita e declarações do contribuinte.
  4. Portanto, mais do que haver fundada dúvida acerca de que em que dias, naquele exercício de 2020, hajam ocorrido despesas correspondentes ao valor assumido pela AT como base para a liquidação de tributações autónomas, o Requerente foi mais longe e demonstrou e provou quais os concretos erros contabilísticos que infirmam os pressupostos de facto e de direito para a aplicação do regime da tributação autónoma das despesas indocumentadas.
  5. Assim, ao abrigo do disposto no artigo 100.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, quer porque in casu não foram utilizados métodos indirectos quando da prova produzida resultava, no mínimo, a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário (decisões dos Processo n.º 7/2011-T, Processo nº 54/2013-T e Processo nº 59/2019-T do CAAD), quer por violação do Princípio da Verdade Material (art. 6º do RCPITA)/Princípio da Investigação ou do inquisitório (art.º 58º da LGT), deverá ser anulada a decisão e a liquidação impugnadas, com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto e em vício procedimental (omissão de diligências não consideradas desnecessárias), nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
  6. Em todo o caso, e sem prescindir, a Liquidação em crise padece de erro de facto e de Direito, pelo que deverá ser anulada.
  7. Nestes termos, considerando que o ato tributário encerra vício legal, porquanto não se apresenta devidamente fundamentado quanto aos pressupostos de facto, designadamente por não estar provado que o Requerente, em 2020, incorreu em despesas não documentadas no montante de € 409.145,53, requer a total anulação da Decisão e da Liquidação impugnadas.

 

II.2. Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

 

  1. Em causa nos presentes autos está a tributação autónoma efetuada ao abrigo do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC relativa a uma divergência de caixa no montante de €409.145,53 sem justificação documental. Esta divergência foi qualificada como uma despesa não documentada, tributada autonomamente à taxa de 50%, dando origem a um imposto em falta de €204.572,76.
  2. Quanto aos factos com interesse para a boa decisão da causa, atento o alegado pelas partes e a prova documental junta, será de considerar assente no probatório o teor do processo inspetivo cujas conclusões e correções propostas constituem o fundamento da liquidação controvertida, as quais resultaram, em síntese, do seguinte:
    1. Na sequência da constatação de que a Requerente apresentava saldos de caixa elevados, foi emitido o despacho DI2020..., com o objetivo analisar a conta caixa o que foi efetuado da seguinte forma:

- Visita ao estabelecimento, em 2020-02-28, às 9:30 horas, onde foram inventariados os meios Financeiros existentes e escriturado o correspondente Termo de Contagem Física de Valores Existentes no “Caixa”, nos termos prescritos no art.º 55.º e art.º 56.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA).

- Concluíram os SIT que a Requerente tinha em caixa, naquela data, o valor de €322,48, correspondente ao somatório do valor existente na sede (€172.48) e na loja de Coimbra (€150,00).

  1. Na altura, a A... foi notificada na pessoa do sócio gerente para, no prazo de 15 dias, apresentar na DF Porto outros elementos complementares para análise do comportamento do saldo de “Caixa”, designadamente:

•Balancete analítico reportado a 2019-12-31;

•Balancete analítico o mais recente possível;

•Folhas de caixa relativas ao período de tempo que medeia entre a data do balancete mais recente e a data da contagem do saldo de Caixa, relativas às lojas da Maia e de Coimbra;

•Extratos contabilísticos das contas de Caixa (11) e Depósitos à ordem (12) de 2019-01-01 até à data do balancete mais recente;

•Extratos bancários de todas as contas de depósitos à ordem ou outras, que reflitam os movimentos financeiros da empresa, desde 2019-01-01 até à data da contagem;

•Cópias das atas de todas as deliberações em assembleia geral da sociedade desde 2019-01-01.

  1. Da análise aos elementos disponibilizados pela Requerente em resposta à notificação, designadamente aos movimentos da conta 111 – Caixa (única), em conformidade com os registos contabilísticos efetuados no respetivo Diário de Caixa, verificaram os SIT que a2020-02-29 a conta “Caixa” revelava um saldo devedor de €409.468,01.
  2. Assim, apurou-se uma divergência de €409.145,53, entre a contagem do caixa efetuada em 2020-02-28 (€322,48) e o saldo contabilístico evidenciado em 2020-02-29 (€409.468,01).
  3. Os argumentos apresentados pela Requerente, após notificação para prestar justificação dos factos detetados, não foram aceites tendo em conta as seguintes evidências:

- Na Informação Empresarial Simplificada (IES) do período de tributação de 2020, entregue em 2021-06-24, foi declarado um saldo inicial de caixa de €419.732,73, o qual se mostra coincidente com o saldo inicial do extrato da conta 111 – Caixa (única) disponibilizado pela Requerente;

-Na mesma IES, o saldo final de caixa (reportado a 2020-12-31) é de €441.576,58, revelando que a Requerente não efetuou nenhuma operação para corrigir a situação detetada pelos SIT na contagem de caixa efetuada em 2020-02-28.

- A inventariação dos meios financeiros da Requerente realizada em 2020-02-28, revelaram que a Requerente possuía em caixa, naquela data, a importância de €322,48.

  1. Assim, os SIT concluíram que a saída de meios monetários ocorreu no período compreendido entre 2020-01-01 e 2020-02-28, e que o montante contabilizado em caixa de €409.145,53 efetivamente não existe, representando exfluxos financeiros, para os quais não foi dada justificação por parte da Requerente.
  2. Uma vez que não foi apresentado qualquer documento de suporte que justifique estas saídas de caixa, desconhecendo-se a natureza, origem ou finalidade das operações subjacentes, as mesmas, configuram despesas não documentadas, estão sujeitas a tributação autónoma, à taxa de 50%, por força do n.º1 do art.º 88.º do CIRC.
  3. Face ao exposto, foi apurado imposto em falta no montante de €204.572,77, correspondente a 50% da divergência de saldo de caixa detetada.
  4. Não se conformando com a liquidação adicional de IRC resultante das conclusões alcançadas pelos SIT, a Requerente presentou reclamação graciosa, a qual foi indeferida por Despacho de 2023-03-30, da Diretora Finanças Adjunta, da Direção de Finanças do Porto, por delegação de competências, tendo esta decisão sido devidamente notificada à Requerente.
  5. Da informação que serviu de fundamento ao indeferimento da reclamação graciosa destaca-se o seguinte, que se transcreve:

A Requerente colocou em causa a razoabilidade das conclusões da AT, tendo em atenção a prova de que se socorreu, bem como dos indicadores revelados pelos elementos contabilísticos invocando desfasamento entre a data da contagem física das disponibilidades na sua sede e a data do saldo contabilístico utilizado para comparação, bem como a forma como foi obtido o montante respeitante ao estabelecimento de Coimbra;

Reconheceu a existência de verbas que constavam como integrando o saldo contabilístico, mas que não tinham existência efetiva nos cofres da empresa, justificando-se com (i) a cessão de quotas (condições do contrato de cessão de quotas e respetivo acordo complementar, condições de confissão de dívida e inadequada relevação contabilística) e (2) com encargos de sócio, isto é, verbas levantadas pelo sócio B... para lhe permitir fazer face aos encargos com a empresa que detinha em nome individual (tais verbas configurariam um efetivo mútuo da ora Requerente ao sócio, e como tal, seriam objeto de devolução à empresa).

Expõe-se em seguida os fundamentos que sustentam o indeferimento da reclamação graciosa:

1-Todas as operações, sejam de recebimentos ou de pagamentos, materialmente relevantes, devem ser movimentadas por contas bancárias, por contrapartida das respetivas contas a receber e a pagar (de terceiros).

2-A conta caixa é debitada por todas as entradas de dinheiro (recebimentos), consubstanciadas em notas e moedas recebidas e, bem assim, cheques emitidos por terceiros, e creditada pelas saídas (pagamentos) em contrapartida das contas correspondentes às operações que originaram os recebimentos ou os pagamentos. Esta conta apenas deve conter os meios líquidos de tesouraria, como sejam as notas de banco e moedas metálicas em curso legal, cheques recebidos e vales postais.

3-Nos termos do n.º1 do art.º 63.º-C da LGT, os sujeitos passivos de IRC e de IRS com contabilidade organizada estão obrigados a possuir, pelo menos, uma conta bancária através da qual devem ser, exclusivamente, movimentados os pagamentos e recebimentos respeitantes à atividade empresarial desenvolvida. Conforme refere o n.º2 do citado artigo devem, ainda, ser efetuados através da conta bancária “todos os movimentos relativos a suprimentos, outras formas de empréstimos e adiantamentos de sócios, bem como quaisquer outros movimentos de ou a favor dos sujeitos passivos”.

4- Conforme indicado no RIT, o processo de inventariação e contagem teve a colaboração do sócio e gerente B..., sendo que a informação do montante constante em caixa na loja de Coimbra foi fornecida por ele, tendo inclusive assinado o “Termo de Declarações/contagem”.

5-Desta forma não colhe a alegação de que o montante apurado não se encontra determinado e comprovado.

6- Quanto à diferença entre a data da contagem física das disponibilidades e a data do saldo contabilístico utilizado para comparação, no RIT está explicada essa diferença. A Requerente não apresentou quaisquer documentos que comprovem que o valor apurado seria diferente.

7- No que diz respeito à cessão de quotas, nada no contrato refere que o valor a pagar aos vendedores seria proveniente da conta SNC 11 – Caixa. (…)

8. Quanto ao levantamento de montantes por parte do sócio B..., de referir que os empréstimos entre pessoas, coletivas ou singulares, designadamente entre a sociedade e o sócio, enquadram-se legalmente como contratos de mútuo, conforme definido pelo art.º 1142.º do Código Civil: “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.

9- Não obstante, a concretização deste tipo de contratos necessita de ter por base razões devidamente justificadas, plausíveis e enquadradas no interesse social, razões estas que, por sua vez, devem constar obrigatoriamente do acordo escrito entre as partes. Sob pena de estarmos perante um negócio inválido e/ou simulado que visa apenas suprir dificuldades económico-financeiras do sócio sem qualquer interesse para a sociedade.

10- Para além da finalidade de realização do contrato de empréstimo, devem igualmente encontrar-se especificadas várias informações como, por exemplo, o valor mutuado, a completa identificação das partes, a duração do contrato e os juros, sob pena de estar em causa questões de substância, de validade e de transparência. Ao contrato de mútuo pode (e deve) ser exigida forma legal especial.

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

  1. A liquidação ora impugnada (Doc. n.º 1) teve origem nas conclusões retiradas pela Autoridade Tributária (AT), em procedimento de inspeção, pelo que os respetivos fundamentos têm de ser colhidos no correspondente Relatório de Inspeção Tributária (RIT – Doc. n.º 2).
  2. Aí se constata que a AT concluiu que o valor de €409.145,53 corresponderia a despesas não documentadas e, como tal, sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%, por aplicação do disposto no art.º 88º, nº 1, do Código do IRC, conduzindo ao imposto liquidado, reclamado graciosamente e agora impugnado, no valor de €204.572,77.
  3. Para concluir pela sujeição à referida tributação autónoma, a AT apresenta, como fundamento, o facto de ter realizado, à data de 28/02/2020, operação de contagem das disponibilidades financeiras existentes nos estabelecimentos do requerente/impugnante, tendo apurado que estas perfaziam o montante de €322,48, o qual, quando confrontado com o saldo contabilístico da conta de “11 – Caixa” que atribuiu àquela data (€409.468,01), conduz a uma divergência de €409.145,53.
  4. Entende a AT que tal divergência corresponde a saídas de meios monetários da empresa no período compreendido entre 01/01/2020 e 28/02/2020, os quais, não existindo qualquer documento que comprove a natureza dos movimentos que considera omitidos à contabilidade, serão de enquadrar como despesas não documentadas.
  5. Não se conformando com a liquidação em causa, veio o Requerente a apresentar reclamação graciosa da mesma (Doc. n.º 3), a qual foi objeto de projeto de indeferimento (Doc. n.º 6) e seguidamente de despacho de indeferimento na sua totalidade (Doc. n.º 7).

 

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

IV. 2.A. Enquadramento Geral

Dispõe o atual artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC nos seguintes moldes[2]:

Artigo 88.º

Taxas de tributação autónoma

1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.

[…]”

 

Esta disciplina teve como antecedente a tributação das então denominadas “despesas confidenciais ou não documentadas”, que foi iniciada pelo artigo 4.º do Decreto-lei n.º 192/90, de 9 de junho, à taxa autónoma de 10%, incrementada para 25% pelo artigo 29.º da Lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado – “LOE” – para 1995).

 

O artigo 6.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, aditou ao Código do IRC o artigo 69.º-A que, sob a epígrafe “Taxas de tributação autónoma”, passou a integrar esta matéria neste código, determinando a respetiva tributação à taxa agravada de 50%, ao abrigo do seu n.º 1. Foi simultaneamente revogada, pelo artigo 7.º, nº 11 daquela Lei (n.º 30-G/2000), a norma avulsa constante do artigo 4.º do citado Decreto-lei n.º 192/90.

Mais tarde, com a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (LOE para 2008), foi eliminada a referência a despesas confidenciais, passando o artigo 81.º (atual artigo 88.º) do Código do IRC a contemplar apenas as “despesas não documentadas”, mantendo-se a taxa de 50%.

A eliminação das despesas confidenciais do elenco dos factos sujeitos a tributação autónoma, mantendo-se, no entanto, o mesmo regime de tributação sob a categoria de despesas não documentadas, das quais as primeiras são um subconjunto, limitou-se a remover uma redundância, pois a despesa confidencial é também uma despesa não documentada, sendo “duvidoso que a distinção entre as duas figuras tenha tido alguma relevância no nosso regime fiscal enquanto existiu”, como bem assinala a decisão arbitral n.º 7/2011, de 20 de setembro de 2012 (ponto 12).

Acresce referir que o caráter secreto ou não divulgado do beneficiário da despesa, que se poderia invocar como requisito das despesas confidenciais (ainda que não fosse a única interpretação possível), não tem correspondência na categoria de despesas não documentadas. Afigura-se, assim, irrelevante para a qualificação de uma despesa como não documentada, à luz do atual artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, a ocultação, cognoscibilidade ou divulgação do seu beneficiário.

Aliás, mesmo na subcategoria anteriormente destacada de despesas confidenciais, a definição jurisprudencial constante do Acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), de 18 de fevereiro de 2009, no processo n.º 600/08, referia-se objetivamente ao caráter da despesa – “despesas confidenciais são despesas não especificadas ou identificadas quanto à sua natureza, origem e finalidade” – e não ao conhecimento ou desconhecimento do titular beneficiário da despesa. O anterior Acórdão do Pleno do STA, de 24 de outubro de 2007, proferido no processo n.º 488/07, afirmava em sentido consonante, no âmbito de um dos (muitos) processos relativos aos “cheques auto”,  que “sendo desconhecido o destino dado a esses cheques, eles devem ser considerados despesas confidenciais e/ou não documentadas”, apesar de se poder conhecer o seu  beneficiário desses cheques[1].

Neste âmbito, convém também notar, no que se refere aos requisitos da tributação autónoma, que esta incide sobre distintas tipologias de despesas, com diferentes objetivos.  

Como salienta o Acórdão do STA, de 27 de setembro de 2017, processo n.º 146/16, há que ter “presente o tipo de tributações autónomas em causa […], uma vez que, como veremos adiante, sob esta denominação cabem realidades com teleologia e finalidade distintas, a reclamarem tratamento diverso. Desde logo, porque a par das tributações autónomas sobre gastos, as mais frequentes, existem também tributações autónomas sobre rendimentos. Mas também, e essencialmente, porque há tributações autónomas que podem ser deduzidas para efeitos de determinação do lucro tributável e outras insuscetíveis de dedução” – em idêntico sentido vide o Acórdão do STA de 21 de março de 2012, processo n.º 830/11.

Neste contexto, as considerações a respeito de certo tipo de tributações autónomas, podem não ser pertinentes e válidas relativamente a outro tipo de tributações autónomas.

Refere ainda o aresto citado que as “tributações autónomas, inicialmente previstas como meio de combater a evasão e fraude fiscais, designadamente as despesas confidenciais e não documentadas, reportavam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis; ulteriormente, na prossecução da obtenção de receita fiscal, o seu âmbito foi progressivamente alargado a despesas cuja justificação do ponto de vista empresarial se revela duvidosa e a despesas que podem configurar uma atribuição de rendimentos não tributados a terceiros, relativamente às quais a dedutibilidade só era admitida se acompanhada pela tributação autónoma.” Continua ainda: “a ratio legis parece ser, não só a de obviar à erosão da base tributável e consequente redução da receita fiscal, mas também a de tributar (na esfera de quem os distribui) rendimentos que de outro modo não conseguiriam ser tributados na esfera jurídica dos seus beneficiários.

 

Deste modo, as despesas não documentadas não têm de ser despesas que em termos contabilísticos afetam o resultado do exercício diminuindo-o, em concreto por configurarem gastos dedutíveis. Existem, de facto, algumas situações em que a dedução fiscal do gasto é pressuposto da incidência de certas tipologias de tributações autónomas, mas no caso específico das despesas não documentadas tal não sucede. Aliás, pelo contrário, conforme referido no Acórdão do STA supra citado, as despesas não documentadas reportam-se a encargos fiscalmente não dedutíveis.

Interessa recordar que os conceitos de despesa e de gasto não são sinónimos, nem do ponto de vista contabilístico, nem na perspetiva fiscal que, para além da relação de dependência parcial do IRC relativamente à contabilidade expressa no artigo 17.º do Código deste imposto, confere aos gastos um tratamento específico, conforme resulta da análise dos seus artigos 23.º e 23.º-A.

As despesas são saídas de recursos financeiros ou dispêndios pecuniários de uma entidade ou organização e podem referir-se a gastos ou a outras realidades, como, por exemplo, a investimentos. Ou seja, há despesas que não são relativas a (ou qualificáveis como) gastos. E, por outro lado, se em regra os gastos supõem um desembolso financeiro, i.e., uma despesa, tal não significa que não existam múltiplos gastos que não têm associada qualquer despesa, pelo menos diretamente, como as depreciações e amortizações, as perdas por imparidade ou as provisões, entre muitas outras.

A hipótese de incidência constante do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC sujeita a tributação autónoma as “despesas” e não os “gastos”, sem prejuízo de o mesmo dispêndio poder preencher em simultâneo os dois conceitos, de despesa e de gasto. Como afirmado naquela norma, o facto de a despesa não ser considerada como gasto fiscalmente dedutível ao abrigo do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea b) do Código do IRC (que determina a não dedução, como componente negativa do lucro tributável, das despesas não documentadas) não prejudica a tributação autónoma.

 

   De referir, de igual modo, o entendimento sufragado no Acórdão do STA n.º 837/15, de 22 de fevereiro de 2017, no qual se discutiam encargos financeiros (juros) pagos a entidade bancária derivados de financiamento contraído pelo sujeito passivo. Apesar de estar identificada a natureza das despesas e, bem assim, o seu beneficiário (a instituição financeira), o STA considerou que, não tendo sido provada a origem e finalidade das mesmas [i.e., dos juros suportados] “elemento indispensável para afastar a sua qualificação como despesas confidenciais”, e cabendo ao sujeito passivo o ónus da “prova dos factos alegados que integram a causa de pedir (cf. artigo 74º, n.º 1 da Lei Geral Tributária e artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil)”, tais despesas estavam sujeitas a tributação autónoma.

Entende aquele Supremo Tribunal que a circunstância de o contribuinte ter pago certas quantias a um banco a título de juros e encargos de um empréstimo que contraiu junto deste, só pode relevar em termos tributários se esse empréstimo foi efetuado para prosseguir a atividade a que aquele se dedica. “Para tanto é preciso saber de que empréstimo se trata, quando foi obtido, em que foram utilizados os meios financeiros que o banco em cumprimento do contrato de empréstimo facultou”. Não é suficiente “que se saiba que tais despesas foram pagas ao banco e que tais despesas constem de um documento – o extrato bancário, porque continuamos sem saber nada da ligação da despesa à atividade prosseguida”.

A respeito da análise de uma questão de retroatividade no domínio fiscal (que não está em discussão nos presentes autos) também o Tribunal Constitucional se pronuncia sobre a tributação autónoma de despesas não documentadas, fazendo-o nos seguintes moldes:

“o artigo 81.º do mesmo Código [atual artigo 88.º do Código do IRC], considerando a redação anterior à Lei n.º 64/2008, estabelecia taxas de tributação autónoma, visando designadamente, por um lado, na situação prevista nos n.ºs 1 e 2, as despesas não documentadas, que são tributadas à taxa de 50 % (sem prejuízo da sua não consideração como custo nos termos do artigo 23.º) […].

No caso dos n.ºs 1 e 2, estamos perante despesas que são incluídas na contabilidade da empresa, e podem ter sido relevantes para a formação do rendimento, mas não estão documentadas e não podem ser consideradas como custos, e que, por isso, são penalizadas com uma tributação de 50%. A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal.”

Identicamente, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, de 13 de abril de 2016, afirma que “[a] introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa «zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial» e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407)”, considerando que “a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal […]” (sobre tributações autónomas pode ver-se ainda o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012, de 20 de junho de 2012.

Resulta das considerações expostas que as tributações autónomas têm diversas finalidades para além da reditícia, destacando-se no caso das despesas não documentadas, a de prevenção da fraude e evasão fiscais (anti abuso) e a sancionatória ou penalizadora, associadas ao facto de provavelmente, ou na grande maioria dos casos, aquelas despesas terem conexão com a distribuição de proventos que não serão tributados na esfera dos beneficiários (embora devessem sê-lo), ou que escapam à tributação em IVA, presumindo-se o inerente prejuízo para a Fazenda Pública e a desigualdade na repartição dos encargos públicos, para além de, eventualmente, poderem respeitar a atuações ilícitas, designadamente práticas ilegais de corrupção.

 

 IV.2.B. Análise Concreta

 

A Requerente invoca que, nos termos do artigo 74.º da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos do direito a liquidar recai sobre a entidade que o invoca, isto é, a AT. O que sempre implicaria que a AT tivesse demonstrado, cabalmente, que em 2020 ocorreram despesas indocumentadas, bem como o respetivo montante, o que não aconteceu.

 

Refere também que, ainda que assim não se considerasse, recorde-se que o sujeito passivo tem a seu favor o normativo previsto no art. 100º do CPPT, nos termos do qual sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado, pelo que também à luz deste normativo a Decisão em crise de indeferimento da Reclamação Graciosa padece de ilegalidade e deverá ser anulada. De facto, no que respeita ao momento da ocorrência das supostas despesas, a AT não se socorreu de nenhum concreto movimento contabilístico que comprovasse a existência de despesas pagas e não suportadas documentalmente. 

Isto é, a AT não identificou a transferência de disponibilidades patrimoniais do Requerente para terceiros, mas, tão só, a existência de um saldo contabilístico da conta “11 – Caixa”, o qual ela faz pressupor que em dados momentos poderiam ter sido realizadas despesas que não foram contabilizadas.

Momentos esses que poderiam referir-se a 2020 ou, como se infere pelo elevado montante que está em causa e pelo histórico dos saldos anormais que a conta “11 – Caixa” vinha evidenciando ao longo dos anos, a qualquer exercício anterior.

Há, pois, que concluir, nos termos que a Requerente fundamenta, que à Requerida não era possível determinar, com base no mero saldo contabilístico da conta “11 – Caixa” e na falta de quaisquer movimentos financeiros concretos, o momento em que as supostas despesas indiciadas ocorreram, pelo menos sem realizar investigação que não quis realizar. Ou, dito de outro modo, no justo exercício de 2020, não era possível concluir, para lá de qualquer dúvida razoável, que ocorreram despesas correspondentes ao valor assumido pela AT como base para a liquidação da tributação autónoma, aqui impugnada.

É evidente que, na falta de documentação que ateste a realização de movimentos financeiros de que terceiros pudessem beneficiar, impunha-se à AT a demonstração de que a totalidade do montante considerado para a liquidação autónoma corresponde a despesas efetivamente ocorridas dentro de um determinado período temporal.  Período que a AT definiu, sem qualquer sustentação, como sendo o exercício de 2020, eventualmente, ao intervalo temporal que decorreu entre 01/01/2020 e a data da contagem física, 28/02/2020; portanto, supostos exfluxos financeiros em numerário de €409.145,53 num hiato temporal de nem sequer dois meses completos. Para assim concluir, a AT considera que a contabilidade não enferma de quaisquer erros ou omissões, pois que atribui inteira credibilidade aos saldos da conta “11 – Caixa” que a mesma evidencia às datas de 31/12/2019 e de 29/02/2020.

 

Senão vejamos.

É entendimento deste Tribunal que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita determinar a natureza da despesa ou o seu beneficiário.

Mas, para ocorrerem despesas, é necessário que se comprove que ocorreram essas saídas de meios financeiros da empresa.

 

O reconhecimento de «um débito por um valor que não corresponde à realidade financeira  e  económica,  não  possuindo  qualquer  documento  de  apoio  contabilístico,  cujo  valor  probatório  fosse  possível  delimitar  as  características  da  operação  económica  subjacente  aquele  registo contabilístico, designadamente, o quê, o porquê e o para quem», que a Autoridade Tributária e Aduaneira sublinha na sua Resposta como o facto relevante para tributação autónoma como despesa não documentada, não constitui, em si mesmo, qualquer despesa, pois, só por si, não altera a situação patrimonial da empresa.

Ora, quer a Requerente, quer a Requerida, acabam por concordar que a mera movimentação de contas do ativo (bancos e outros devedores) não implica a realização de qualquer «despesa», não afetando, só por si, o património da sociedade.

Aliás, refira-se que, conforme resulta do RIT:

  • a Requerente colocou em causa a razoabilidade das conclusões da AT, tendo em atenção a prova de que se socorreu, bem como dos indicadores revelados pelos elementos contabilísticos invocando desfasamento entre a data da contagem física das disponibilidades na sua sede e a data do saldo contabilístico utilizado para comparação, bem como a forma como foi obtido o montante respeitante ao estabelecimento de Coimbra
  • a Requerente reconheceu a existência de verbas que constavam como integrando o saldo contabilístico, mas que não tinham existência efetiva nos cofres da empresa, justificando-se com (i) a cessão de quotas (condições do contrato de cessão de quotas e respetivo acordo complementar, condições de confissão de dívida e inadequada relevação contabilística) e (2) com encargos de sócio, isto é, verbas levantadas pelo sócio B... para lhe permitir fazer face aos encargos com a empresa que detinha em nome individual (tais verbas configurariam um efetivo mútuo da ora Requerente ao sócio, e como tal, seriam objeto de devolução à empresa).

Porém, no Relatório da Inspeção, a Autoridade Tributária e Aduaneira não considerou que essa operação contabilística consubstanciasse, em si mesma, uma despesa, antes que houve pagamentos diversos, de acordo com os seguintes pressupostos:

  • Os SIT concluíram que a saída de meios monetários ocorreu no período compreendido entre 2020-01-01 e 2020-02-28, e que o montante contabilizado em caixa de €409.145,53 efetivamente não existe, representando exfluxos financeiros, para os quais não foi dada justificação por parte da Requerente;
  • Uma vez que não foi apresentado qualquer documento de suporte que justifique estas saídas de caixa, desconhecendo-se a natureza, origem ou finalidade das operações subjacentes, as mesmas, configuram despesas não documentadas, como tal sujeitas a tributação autónoma, à taxa de 50%, por força do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC.
  • Face ao exposto, foi apurado imposto em falta no montante de €204.572,77, correspondente a 50% da divergência de saldo de caixa detetada.

Assim, à face da fundamentação da liquidação impugnada, será essa “saída de meios monetários”, o suporte fáctico da tributação autónoma em causa.

Ora, é entendimento deste Tribunal que a falta de fiabilidade da escrita não permite concluir que estas omissões se traduzam necessariamente em “saída de meios monetários”, pois podem resultar de lapsos ou omissões.

Neste caso, a falta de credibilidade da escrita ressalta do facto de a Autoridade Tributária e Aduaneira não ter conseguido identificar nenhum  dos «movimentos a crédito da conta de disponibilidades» a que alude, apesar de se tratar de uma conta (Conta 12 do SNC) destinada  a registar os movimentos de valores depositados à ordem em instituições financeiras, que presumivelmente poderão ser identificados com exame da documentação bancária, a que a Autoridade Tributária e Aduaneira pode aceder, nos termos do artigo 63.º-B da LGT.

Ora, a tributação autónoma de despesas não documentadas pressupõe a demonstração da existência das operações que são tributadas subjacentes aos tais «movimentos a crédito da conta de disponibilidades» de que, no entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, resultou a diferença entre o saldo da conta 12 e os valores reais dos depósitos bancários.

Por outro lado, a conclusão retirada pela Autoridade Tributária e Aduaneira de que terá ocorrido “saída de meios monetários”, não permite identificar quais os exercícios em que esses invocados pagamentos possam ter ocorrido, nem presumir que os mesmos tenham sido realizados em 2020 apenas.

Aliás veja-se é manifesto que a evolução dos saldos da conta “11 – Caixa” do Requerente, em geral, sumariada no MAPA 1 do ANEXO 4 do Doc. n.º 3, e do contabilizado em 29/02/2020, em particular evidenciam essa falta de identificação, conforme a Requerente assim o menciona (cfr. MAPA 1 do ANEXO 4 da Reclamação Graciosa que se junta como Doc. n.º 3 bem como o Doc. n.º 4):

- 2013 ---------------------- € 116.354,80;

- 2014 ---------------------- € 137.372,66;

- 2015 ---------------------- € 111.865,64;

- 2016 ---------------------- € 267.495,71;

- 2017 ---------------------- € 370.289,36;

- 2018 ---------------------- € 433.291,46;

- 2019 ---------------------- € 419.732,73.

 

Perante isto, a Requerente formula duas conclusões importantes, com extrema importância para a formação de convicção por parte deste Tribunal:

  • “A AT, no percurso da sua fundamentação, apoia-se na atribuição de total credibilidade da contabilidade, designadamente dos sucessivos saldos da conta “11 – Caixa”, com especial relevância para os que se reportam a 31/12/2019 e 29/02/2020, para depois concluir que, em face dos dados da contagem de numerário, tal credibilidade afinal não existe.
  • E, se é correto concluir-se que a contabilidade enferma de erro por manifesto excesso do registo das disponibilidades financeiras à data do final de fevereiro de 2020, quais as razões para a AT concluir, mesmo perante um montante absurdo, que o saldo de €419.732,73, respeitante a 31/12/2019, correspondia à realidade do numerário guardado na empresa? E o mesmo nos anos anteriores?”

 

 A ser assim, como defende a Requerente, não haverá fundamento para liquidar tributação autónoma com referência ao exercício de 2020, pois, em sede de IRC, inclusivamente quanto às tributações autónomas previstas no CIRC, vigora por força do princípio da anualidade que se enuncia no artigo 8.º do CIRC. Na verdade, as tributações autónomas em IRC são, tal como o imposto que incide sobre o lucro tributável, apuradas na declaração periódica anual, a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e 120.º do CIRC, pelo que no exercício de 2020 apenas poderão ser tributadas autonomamente despesas que tenham ocorrido nesse exercício.

De qualquer modo, mesmo que a Autoridade Tributária e Aduaneira, apesar do teor literal daquela expressão, estivesse a referir-se também ao exercício de 2020, é inequívoco que a conclusão que a Autoridade Tributária e Aduaneira retirou é a de que não terá sido apenas no exercício de 2020 que terão ocorrido as invocadas tributações autónomas, mas também numa pluralidade de exercícios anteriores não identificados, pelo que pelo menos nessa parte respeitantes a exercícios anteriores (não determinada) seria ilegal a liquidação no âmbito da liquidação adicional respeitante ao exercício de 2020.

Assim, não se tendo apurado qualquer saída de meios financeiros do património da empresa no exercício de 2020, fica-se numa situação de dúvida sobre os pressupostos fácticos em que assenta a liquidação de tributações autónomas respeitantes ao exercício de 2020 com fundamento em despesas não documentadas. Essa dúvida tem de ser processualmente valorada a favor da Requerente, em face da regra do ónus da prova do artigo 74.º, n.º 1, da LGT.

Pelo exposto, conclui-se que a liquidação impugnada enferma de vício de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, como defende a Requerente.

Este vício justifica a anulação da liquidação, por forma do disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras. 

 

IV.2.C. Juros Compensatórios   

A liquidação de juros compensatórios tem como pressuposto a liquidação de tributação autónoma, pelo que enferma dos mesmos vícios.

 

 

  1. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar totalmente procedente o presente pedido arbitral;
  2. Condenar a Requerida ao pagamento das custas.

 

  1. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 206.667,35, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

  1. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 4.284,00, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 8 de maio de 2024

 

Os Árbitros,

 

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

 

 

(Filipa Barros)

 

 

 

(Marisa Isabel de Almeida Araújo)


 

Declaração de voto de vencido

 

Votei de vencido, no essencial, pelas razões que exponho nesta declaração acompanhando-se aqui a posição perfilhada noutros processos, mormente no processo n.º 228/2020-T.

 

Sumariamente entendo que, face à matéria de facto em apreço nos autos, na senda daquela decisão, “[…] não pode deixar de concluir-se no sentido da verificação de uma saída de valores monetários da sociedade, que deve ser qualificada como dispêndio ou desembolso não documentado, atendendo à inexistência de qualquer de suporte documental e/ou registo contabilístico, que especifique (i) a natureza, (ii) a origem, (iii) a finalidade e volume de despesas incorridas e (iv) a identificação do respetivo beneficiário. É precisamente a inexistência de prova documental (que suporte a despesa) que determina a aplicação do conceito de “despesas não documentadas” e a consequente aplicação da taxa de tributação autónoma prevista no disposto no artigo 88.º do Código do IRC.

            Como refere a decisão arbitral n.º 235/2020-T numa situação similar, a ausência dos meios financeiros que a conta 11-Caixa evidenciava, conjugada com a não contabilização de qualquer saída, configura, para os efeitos da lei, uma despesa não documentada. Fundamenta este aresto arbitral, com o qual se concorda, nos seguintes moldes:

            “À face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 11-Caixa e na conta 21-Clientes deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.

            A Requerente aventa que a diferença entre os saldos em causa e a realidade dos meios financeiros existentes no património da empresa poderá dever-se a erros e irregularidades contabilísticas, mas não esboça sequer a respetiva prova, pelo que não há qualquer razão para afastar a presunção natural de aqueles meios financeiros existiam no património da empresa e foi-lhes dado destino desconhecido.

            Por outro lado, os valores elevados dos saldos de caixa mantidos e crescendo durante vários anos, atingindo mais de duas centenas de milhar de euros, não são compatíveis, em termos de razoabilidade e normalidade, com meros erros, incorreções ou irregularidades contabilísticas, pelo que a respetiva atribuição a erros e irregularidades não se afigura minimamente credível. De qualquer forma, o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente. De resto, é a Requerente que está em melhor posição probatória, dispondo ou devendo dispor dos elementos documentais e materiais necessários e suficientes para justificar as saídas de valores da empresa e evitar a incidência de tributação autónoma.

            Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada, de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.

Não tem aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas.

[…]

Acresce que, ao não contabilizar tais despesas – daí, o saldo elevado da conta 11-Caixa – a Requerente torna opacas as saídas de caixa, as quais podem ter tido lugar por mero esvaziamento dos meios monetários gerados pelas prestações de serviços de restauração, como torna opacas as datas em que tal ocorreu.

            Também na situação em causa nos autos, a Requerente não cumpriu, no meu entendimento, o ónus a que estava adstrita. Posto isto, os subsequentes dispêndios ocorridos e não registados na contabilidade da Requerente configuram, como já afirmado, “despesas não documentadas”, enquadráveis no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC.

[…]

            “[N]os termos do disposto no artigo 74.º da LGT, cabe o ónus da prova da efetiva ocorrência das despesas, incluindo o montante e momento em que a despesa foi incorrida. No que respeita a esta questão, de novo não se concorda com a posição defendida pela Requerente.

O artigo 74.º n.º 1 da LGT prevê que “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. Contudo, o disposto no artigo 74.º n.º 1 da LGT, que tem de ser lido em conjugação com a presunção do artigo 75.º da LGT, reflete, no domínio tributário, a regra geral do ónus da prova do artigo 342.º do Código Civil.

Nas palavras do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 10 de março de 2016 (processo n.º 12843/15): “II – O ónus da prova, que não se confunde com um dever de provar, é um instituto de direito material regulado nos artigos 342º ss do Código Civil atual, que pode ser definido como a regra de julgamento da causa segundo a qual, num contexto processual onde sobressaem os princípios do inquisitório (artigo 411º do Código de Processo Civil) e da aquisição processual (artigo 413º do Código de Processo Civil), a parte (autor ou réu) que invoque a seu favor uma situação jurídica tem contra si o risco de não serem adquiridos no processo os factos positivos ou negativos que, segundo a lei material, são idóneos a fazer nascer a situação jurídica favorável invocada, ficando, assim, essa parte processual sujeita à improcedência da sua pretensão no caso de insuficiência da aquisição processual dos factos fundamentadores da situação jurídica invocada”.

[…]

            “O que vem referido também é válido no que respeita à eventual aplicação do disposto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT. Secunda-se aqui a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo no sentido de que a dúvida fundada sobre a existência e quantificação do facto tributário, que determina a aplicação do disposto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT, tem de resultar da prova produzida nos autos pela parte onerada com o ónus da prova (que no caso concreto é a Requerente): “IV - Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado (artº 100º, nº 1 do CPPT).” – v. acórdão de 1 de junho de 2011, processo n.º 211/11”.

            Não tendo, para mim, sido produzida prova pela Requerente que permitisse suscitar a dúvida fundada.

            De harmonia com as razões sumariamente expostas, entendo que o pedido seria julgado totalmente improcedente, com as consequências legais.

 

 

 

(Marisa Almeida Araújo)

 

 

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[2] E seguindo de perto, quanto ao enquadramento legal, a decisão proferida no processo n.º 256/2018-T, disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPage=67&id=3863.