Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 607/2023-T
Data da decisão: 2024-05-06  Selo  
Valor do pedido: € 172.966,24
Tema: Operação de cash pooling; Imposto de Selo.
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SUMÁRIO

I - O afastamento da aplicação da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS prevista no n.º 2 do mesmo artigo, quando o devedor não tem sede ou direcção efectiva em Portugal, mas a tem num Estado Membro da União Europeia, constitui uma restrição injustificada à liberdade de movimentos de capitais garantida pelo artigo 63.º do TFUE.

II – O sistema juridico português impede, face ao estabelecido no artigo 8º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, a aplicação desta limitação, pois desta norma resulta que a jurisprudência e as normas do Direito Europeu têm carácter vinculativo para os Tribunais Nacionais.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros, Prof.ª Doutora Regina de Almeida Monteiro (Presidente), Dra. Ana Pinto Moraes e Dr. João Marques Pinto (Árbitros Adjuntos) designados, em 16.10.2023, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 06.11.2023, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

A..., S.A., com sede social na ..., nº ..., ..., ...-... Lisboa, matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o numero único de matricula e de identificação fiscal ..., doravante identificada apenas por “Requerente”, veio, no dia 30 de Agosto de 2023, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 2º e no artigo 10º do Decreto-Lei 10/2011 de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante identificado apenas pelas iniciais RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral com designação dos Árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, para Pronuncia Arbitral contra o acto de indeferimento expresso da reclamação graciosa a que foi dado o nº ...2023..., que tinha sido deduzida contra os actos de autoliquidação de Imposto do Selo respeitantes aos meses de Fevereiro, Março, Abril e maio de 2022, efectuados através das Declarações Mensais de Imposto com os nºs ..., ..., ... e..., respectivamente, no montante global de € 172.966,24 (cento e setenta e dois mil, novecentos e sessenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos)

O Requerente veio solicitar ao Tribunal Arbitral que julgue o pedido procedente e, em concreto, que:

  1. Anular a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa com o nº ...2023...
  2. Anular as liquidações de Imposto do Selo referentes aos meses de Fevereiro, Março, Abril e Maio de 2022, efectuados através das Declarações Mensais de Imposto com os nºs..., ..., ... e ...
  3.  Ordene o reembolso o montante de Imposto do Selo indevidamente pago
  4.  Ordene o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrem devidos nos termos dos artigos 43º da LGT, 61º do CPPT e 24º nº 5 do RJAT

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante, quando for caso, identificada também pelas iniciais AT).

A Requerente optou por não designar Árbitros.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida em 30.08.2023.

Em 31.08.2023, a AT, a entidade Requerida foi notificada da apresentação do pedido.

Em 16.10.2023, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto n

os nºs 1 e 7 do Artigo 11º do RJAT.

Desta forma, em face do disposto no nº 8 do artigo 11º do RJAT, decorrido o prazo estabelecido no nº 11, do mesmo artigo 11º, e sem que as Partes se pronunciassem, o Tribunal ficou devida e formalmente constituído em 06.11.2023, tendo, na mesma data, sido emitido despacho a notificar a Requerida para apresentar resposta ao pedido formulado pela Requerente e juntar aos autos o processo administrativo.

A AT apresentou a sua resposta em 10.12.2023, requerendo em concreto, a improcedência do pedido formulado pela Requerente, com as devidas e legais consequências.

Em 11.12.2023, foi proferido despacho arbitral com o seguinte teor a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

 

1.2. Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. 

O processo não enferma de nulidades.

 

1.3. Factos considerados provados:

 

- A Requerente, é uma sociedade anónima de direito português, com sede e direcção efectiva em Portugal, sendo considerada residente, para efeitos fiscais, neste território e aqui sujeita a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC).

2º - No âmbito da sua actividade, o Grupo B... implementou um acordo de gestão de tesouraria, integrando diversas subsidiárias residentes e sediadas em diferentes jurisdições, nele tendo sido incluida a ora Requerente, através da celebração de um acordo, datado 4 de Fevereiro de 2022, a que foi dada a denominação de “Inter-Company Facility Agreement” (contratos, em regra, designados acordo de “cash pooling”).

3º -  A entidade responsável pelo controlo dos fluxos de tesouraria dentro do Grupo B... é a C... Limited, sociedade residente, para efeitos fiscais, na República da Irlanda.

4º - De acordo com o organigrama indicado no documento nº 6 anexo ao pedido de pronúncia, esta sociedade –C... Limited – detém a totalidade do capital social da ora Requerente, sendo, em ultima instância, ambas detidas pela sociedade D... Plc.

5º - De acordo com a cláusula 2ª deste acordo, o sistema de gestão baseia-se no princípio do saldo nulo, ou seja, o saldo da conta bancária da Requerente, sempre que esteja positivo, deverá ser automaticamente transferido para a conta bancária da C... Limited.

- Nos periodos a que se referem os actos de autoliquidação da Requerente, ora em crise, o respectivo saldo bancário esteve sempre numa situação de excesso de tesouraria, o que levou a transferencias desse saldo para a C... Limited.

- A Requerente e a sociedade irlandesa identificada no ponto 4º supra, estão, desta forma, em relação de grupo, porque, como se referiu, o capital social da Requerente é detido integralmente pela C... Limited.

8º - Não foi contraida qualquer divida bancária que tenha originado os excessos de tesouraria da Requerente que foram objecto de transferencia para a sociedade irlandesa.

- Os fluxos financeiros relativos ao periodo em questão consistiram em operações de curto prazo, comprazos inferiores a 1 (um) ano.

10º - A Requerente, competindo-lhe a entrega do imposto ao Estado Português, autoliquidou, à data, Imposto do Selo, a uma taxa mensal de 0.04% (conforme verba 17.1.4 da Tabela Geral do Código do Imposto do Selo – CIS), através das Declarações mensais de Imposto do Selo com os nºs ..., ..., ... e..., no valor global de €172.966,24 (cento e setenta e dois mil, novecentos e sessenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos).

11º - Relativamente à declaração do mês de Fevereiro de 2022 (com o nº ...), verificou-se um lapso na indicação da entidade beneficiária, tendo, por isso, a Requerente efectuado a devida correcção, entregando a correspondente declaração de substituição (neste caso, no valor de € 10.305,36).

12º - Apesar de ter procedido à autoliquidação e ao pagamento do Imposto do Selo, a Requerente não concordando com a mesma, deduziu reclamação graciosa dessas autoliquidações, reclamação a que foi dado o nº ...2023... .

13º - Esta reclamação foi objecto de indeferimento expresso pela AT, tendo essa decisão sido notificada à Requerente em 30 de Maio de 2023.

 

1.4. Fundamentação da decisão sobre matéria de facto

Motivação da matéria de facto

O juiz (ou o árbitro) não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria de facto alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa à decisão, tendo em conta a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo autor, e decidir se a considera provada ou não provada (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT).

Por outro lado, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal deve basear a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição inicial e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a Resposta.

Assim, e tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, o como prevê o artigo 110.º do CPPT, a prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

1.5. Factos não provados

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

2. Matéria de Direito

 

2.1. Fundamentos das posições das Partes

De uma forma resumida, as Partes vêm, no pedido de pronuncia e nas subsequentes alegações (neste caso, apensa da Requerente), e na resposta (a Requerida), sustentar as suas posições nos seguintes argumentos:

 

2.1.1. Posição do Requerente

Na perspectiva do Requerente, as operações financeiras efectuadas entre ela e a sua casa-mãe na Irlanda, devem beneficiar de isenção de Imposto do Selo pelas seguintes razões:

  1. A criação da isenção de Imposto do Selo em apreciação, visa, essencialmente, desonerar a tributação sobre operações de transferências efectuadas entre empresas do mesmo grupo (transferências “intra-grupo”);
  2. A redução da isenção às situações em que o devedor é residente em território português, por oposição à necessidade de o credor ser residente num Estado membro da União Europeia ou num país que tenha celebrado uma convenção para evitar a dupla tributação com Portugal, não é justificável;
  3.  O artigo 7º nº 2 do CIS não é consentâneo com o propósito de se flexibilizar, em termos tributários, a adopção de um instrumento de gestão centralizada de tesouraria, modalidade cada vez mais utilizada por grupos económicos que operam em território nacional;
  4.  O tratamento decorrente do referido artigo 7º nº 2 do CIS é discriminatório à luz dos princípios que regem o funcionamento da União Europeia, pois representa uma restrição injustificada à livre circulação de capitais prevista e consagrada no artigo 63º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE);
  5. O sistema jurídico português impede, face ao disposto no artigo 8º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP), a aplicação desta restrição, pois desta norma constitucional resulta que a jurisprudência e as normas do Direito Europeu devem ter carácter vinculativo para os Tribunais Nacionais;
  6. A limitação estabelecida por uma aplicação literal da norma conduz a um tratamento discriminatório das entidades não residentes em Portugal, em comparação com o regime aplicável às entidades aqui residentes;
  7. Verifica-se uma incompatibilidade entre a citada norma do CIS e as disposições do TFUE referentes à livre circulação de capitais, da qual resulta a ilegalidade dos actos de autoliquidação de IS que são objecto do pedido de pronuncia arbitral apresentado;
  8. Efectivamente, numa situação em que está em causa a aplicação do mencionado nº 2 do artigo 7º do CIS, o afastamento da isenção quando o devedor tenha sede ou direcção num Estado Membro da União Europeia, constitui uma restrição clara aos movimentos de capitais referidos no artigo 63º nº 1 do TFUE;
  9.  Este entendimento tem sido, de acordo com a Requerente, sufragado em jurisprudência diversa proferida por parte do CAAD;
  10. Não é aplicável à situação em apreço, o regime previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 65º do TFUE que permite aos Estados Membros “aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre os contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido”, na medida em que esta norma deve ser objecto de uma interpretação restrita;
  11.  Assim, socorrendo-se da doutrina resultante do Acórdão proferido pelo CAAD no Proc. 277/2020-T, deve concluir-se que “Existindo comparibilidade das situações entre residentes e não residentes, resulta claro que (...) a atribuição de uma vantagem fiscal aos devedores residentes em Portugal que é recusada aos devedores não residentes constitui (...) uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes, que é de qualificar como discriminação, na aceção do Tratado, por não existir qualquer diferença objectiva de situação suscetível de justificar tratamento diferenciado.”;
  12. Donde a alínea a) e o nº 3 do TFUE não sustentam o regime consubstanciado nas referidas normas do CIS, na medida em que a diferença de tratamento não é justificada por uma diferença de situação objectiva;
  13. Ou seja, como resulta da referida decisão arbitral, “não existe qualquer razão de interesse geral que possa justificar a referida discriminação”;
  14. Em face de tudo o exposto, conclui a Requerente, no artigo 91º do pedido de pronuncia arbitral que os actos que são objecto deste pedido são ilegais, pois foram emitidos ao abrigo de uma disposição legal incompatível com o direito da União Europeia;
  15. Considera a Requerente que deve ainda ser salientada a nova redacção dada pela Lei 12/2022 de 27 de Junho, ao nº 2 do artigo 7º do CIS, que veio igualar o tratamento fiscal aplicável aos sujeitos passivos independentemente da sua residência fiscal, dela resultando, assim, a exclusão expressa da restrição que a anterior redacção impunha, pondo, dessa forma, termo às divergências de interpretação que a anterior redacção suscitava;
  16. Por fim, considera a Requerente que, padecendo os actos de autoliquidação de erro de direito da exclusiva responsabilidade da Requerida, serão devidos juros indemnizatórios contados desde a data dos pagamentos indevidos do imposto até à data do processamento do respectivo reembolso.

 

2.1.2. Posição da Requerida

 

Na sua resposta ao pedido de pronuncia arbitral, a Requerida veio pugnar pela manutenção, na ordem jurídica, dos actos de autoliquidação, reproduzindo os fundamentos constantes do acto de indeferimento da reclamação graciosa, e que foram basicamente os seguintes:

 

  1. Os fluxos da conta bancária da Requerente para a conta bancária da entidade centralizadora, ou em sentido inverso, constituem operações financeiras, tendo, por isso, enquadramento no âmbito de incidência do IS, em face do disposto no artigo 1º .. do CIS;
  2. Não há dúvidas quanto à identificação do sujeito passivo do imposto neste tipo de operações financeiras, que é a entidade concedente do crédito, considerando-se, por isso, as operações como realizadas em território nacional, ainda que a sociedade credora não seja residente em território português;
  3. Desta forma, é competência da Requerente a liquidação, cobrança e entrega do imposto nos cofres do Estado;
  4. Por seu lado, o encargo do imposto é suportado pela entidade utilizadora dos fundos transferidos, devendo, por isso, a Requerente efectuar a repercussão do imposto por ela (Requerente) liquidado e pago;
  5. A Requerente não juntou um organigrama do Grupo pelo que não fez prova da relação societária estabelecida entre ela e a C... Limited, sendo que a norma exige, para que possa ser aplicada, que os empréstimos de curto prazo sejam concedidos a uma entidade com a qual esteja em relação de domínio ou de grupo;
  6.    Não foi feita prova quanto à realização dos empréstimos e ao respectivo reembolso, ou reembolsos;
  7. Os valores que são objecto de transferência para a C... Limited devem provir de excedentes de liquidez gerados na Requerente, não podendo, por isso, ter origem em financiamentos externos, não tendo a Requerente feito prova dessa origem nos autos, o que lhe competia fazer, nos termos previstos no artigo 74º da Lei Geral Tributária;
  8. Considerando os nºs 1 h), 2 e 8 do artigo 7º do CIS e fazendo uma leitura integrada da sua redacção, conclui-se que a isenção da alínea h) não será aplicável à situação em apreço, em virtude de um dos intervenientes (nomeadamente o devedor/beneficiário dos empréstimos) não ser residente em território nacional e de ser a Requerente a surgir como entidade credora;
  9.     Acresce o facto de a Requerente não ter qualquer participação na entidade centralizadora, o que retira o carácter de suprimentos efectuados por sócios à sociedade sua participada, afastando, dessa forma, a aplicação da isenção prevista na alínea i) do nº 1 do citado artigo 7º do CIS;
  10. O imposto declarado na DMIS ... (no valor de € 10.305,36) não deve ser considerado no pedido pois respeita a uma relação jurídica com pessoa distinta da sociedade com quem foi celebrado o contrato de “cash pooling”, ou seja, a entidade beneficiária ai indicada não é C... Limited;
  11. Deve este Tribunal seguir o sentido da decisão proferida no âmbito do Processo nº 279/2020-T de 03.11.2020;
  12. Entende a Requerida que a medida constante do  nº 2 do artigo 7º do CIS não constitui uma restrição à liberdade de circulação de capitais e uma discriminação arbitrária entre residentes e não residentes, porquanto a limitação ai prevista só se aplica aos Imposto do Selo que incide sobre empréstimos realizados entre sociedades;
  13. Segundo a AT, só se estaria perante uma situação susceptivel de constituir uma violação do princípio da livre circulação de capitais, se o IS devido em Portugal pela obtenção de crédito, pudesse ser neutralizado pela entidade mutuária (C... Limited) ao abrigo da lei irlandesa;
  14. Nesse sentido, deveria a Requerente ter feito prova, o que não aconteceu, que o IS repercutido à A... pela utilização do crédito em Portugal, não era dedutível ao abrigo das leis fiscais irlandesas, em concreto, das leis que regulam o imposto sobre as sociedades (ou seja, o imposto equivalente ao nosso “IRC”);
  15. Sendo que a situação em apreço, impunha à Requerente a demonstração, em concreto, que a C... Limited não pode deduzir o Imposto do Selo que, de acordo com as regras do CIS, lhe foi legalmente repercutido, de forma a concluir que se verifica uma restrição à livre circulação de capitais e que a regra constante do nº 2 do artigo 7º é efectivamente, discriminatória em função da residência;
  16. Desta forma, entende a Requerida que inexiste qualquer desconformidade entre o nº 2 do artigo 7º do CIS e o princípio da livre circulação de capitais previsto no TFUE, fazendo cair, consequentemente, qualquer invocação de uma ilegalidade decorrente, na situação em concreto, da violação, pela referida norma, do primado do direito europeu;
  17. Finalmente, quanto ao pedido formulado pela Requerente de pagamento de juros indemnizatórios, entendeu a Requerida que esse pagamento não é devido, pois não estão verificados os pressupostos previstos na lei para que se constitua a obrigação desse pagamento, na medida em que o imposto foi declarado pelo próprio sujeito passivo e as correspondentes liquidações feitas de acordo com a lei aplicável.

 

2.1.3 Alegações da Requerente

 

Na sequência do despacho proferido pelo Tribunal, a Requerente apresentou as suas Alegações, sendo de destacar, relativamente a esta peça processual, o seguinte:

 

  1. A Requerida ignorou, inexplicavelmente, a prova documental produzida no pedido de pronuncia arbitral, nomeadamente, oa documentos com os nºs 5, 6, 7 e 8 que se referiam ao acordo de “cash pooling”, ao organigrama do grupo e aos balancetes e demonstrações financeiras relativos ao exercício de 2021 e aos extractos contabilísticos relativos ao exercício de 2021, respectivamente;
  2. A Requerida ignorou a entrega de uma declaração de substituição que veio corrigir o erro constante da declaração com o nº DMIS ..., conforme demonstra o Documento com o nº 1 anexado ao pedido inicial de pronuncia;
  3.  Os factos supervenientes invocados pela Requerente nestas alegações, devem ser admitidos pelo Tribunal porque contribuem para uma decisão final util, justa e efectiva;
  4. Assim, quanto à questão da territorialidade suscitada pela Requerida na sua resposta, entende a Requerente que, sendo a recepção dos fundos pela C... Limited e a sua subsequente utilização efectuada fora do território nacional, não se mostra preenchido um dos requisitos essenciais para a sujeição a Imposto do Selo, por falta evidente de um elemento de conexão;
  5. Até porque o legislador, neste caso, elegeu para a constituição do facto gerador de IS, não o local da celebração do acordo, mas sim o local da utilização dos fundos;
  6.  Neste sentido, entende a Requerente que não se verificam os pressupostos de incidência do IS em resultado da aplicação da regra da territorialidade, pois o crédito por ela concedido à C... Limited tem plena utilização apenas fora do território nacional;
  7. Pelo que se deve determinar a anulação das liquidações em crise, em virtude da aplicação das regras da territorialidade;
  8. No mais, os restantes fundamentos invocados nas alegações apresentadas pela Requerente, nomeadamente nas suas conclusões, são uma reprodução dos argumentos deduzidos no pedido de pronuncia arbitral e, já indicados, anteriormente, na presente decisão.

 

  1. Apreciação da questão

 

3.1.  A questão da territorialidade do imposto

 

Como se referiu no capítulo relativo à posição das Partes, a Requerida sustentou que o contrato de “cash pooling” estava sujeito a IS na medida em que o sujeito passivo neste tipo de operações financeiras é a entidade concedente do crédito, devendo considerar-se, por isso, as operações como realizadas em território nacional, mesmo quando a sociedade credora não seja aqui residente.

Pelo contrário, no âmbito da resposta a esta questão suscitada pela Requerida na sua contestação, a Requerente sustentou que o facto gerador do imposto é, não a concessão do crédito, mas sim a sua utilização, pelo que, sendo a entidade “utilizadora” desse crédito, residente fora do território português, mais concretamente na Irlanda, o facto gerador nunca chegou a ocorrer, pelo que a operação de concessão de crédito em questão não deverá estar sujeita a IS.

A presente questão já foi tratada pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), no Acórdão proferido em 28.11.2018, no âmbito do Processo 06/11.4BENSNT 0436/16, em que decidiu sobre a questão de saber se o crédito sob a forma de conta corrente, concedido por uma entidade, com sede em território português, a uma entidade residente noutro Estado, onde esse crédito é objecto de utilização, está sujeita a IS em Portugal, face ao disposto no artigo 4º nº 1 do CIS.

À luz desta decisão do STA, deverá entender-se que o facto de apenas haver lugar a tributação quando o crédito concedido for utilizado, conforme resulta da verba 17.1 da TGIS, não obsta ao entendimento, segundo o citado Acórdão, que as operações que se pretendem tributar são as de concessão de um crédito que apenas se consideram concretizadas no momento em que o crédito é utilizado.

Ou seja, considera-se, na referida decisão do STA, que o facto gerador de imposto é constituído pela “utilização do crédito em virtude da concessão desse crédito” a que se refere a verba 17.1., subjacente à verba 17.1.4. (sublinhado nosso).

A concessão de crédito é, assim, a operação financeira que o legislador pretende tributar, ou como refere a AT, o imposto incide sobre uma utilização de crédito em resultado de uma operação de concessão desse crédito, sendo esta última operação – concessão de crédito – a que é objecto de incidência no âmbito das diferentes situações indicadas na verba 17 da TGIS. (sublinhado nosso).

Semelhante entendimento resulta, também de outro Acórdão do STA, este datado de 14.03.2018, e proferido no Processo nº 0800/177, do qual se destaca o ponto II do respectivo sumário cuja redacção se transcreve:

“II – O facto tributário eleito para tributação em imposto de selo é, sempre, a concessão de crédito – prestação de valores monetários de uma parte a outra obrigando-se esta última a restituir aquele montante (em singelo ou acrescido de valor convencionado) no futuro.”

Deve, pois, concluir-se, como fez o Tribunal Arbitral na decisão proferida no âmbito do Processo 277/2020-T que “Sendo assim, a conexão relevante para aferir a incidência territorial do Imposto de Selo é o local da concessão do crédito, que determina o dever de liquidar do concedente.”

Apesar de não se tratar de uma decisão consensual (atente-se, por exemplo, a decisão do CAAD proferida no Proc. 61/2019-T), é entendimento deste Tribunal que havendo, pelo menos, duas decisões proferidas pelo STA, sobre esta mesma matéria, tomadas ambas por unanimidade, deverá ser seguida, nesta Instância, a posição resultante desses Acórdãos.

 

  1. Questão da isenção constante da alinea h) do nº 1 e do nº 2 do artigo 7º do CIS

 

Dispõe a alínea h) do artigo 7ºdo CIS, na redacção vigente no início de 2022 (data a que se reportam os actos tributários de autoliquidação em análise), o seguinte:

“1 - São também isentos do imposto:

h) Os empréstimos incluindo os respectivos juros, por prazo não superior a um ano quando concedida por sociedades, no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesourari, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo.”

No nº 2 do mesmo artigo foi estabelecido que:

“2 - O disposto nas alíneas g) e h) do n.º 1 não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva no território nacional, com exceção das situações em que o credor ou o devedor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional.

A questão, ou questões aqui subjacentes e suscitadas pela Requerente no seu pedido de pronuncia arbitral, já foram apreciadas em diversos processos que correram no CAAD, sendo de destacar, neste particular, a doutrina constante do Acórdão proferido no Proc. 277/2022-T (já acima citado) onde, na apreciação de uma situação em tudo idêntica à que foi submetida a este Tribunal, apesar de versar, em concreto sobre a isenção da alínea g) do nº 1 do artigo 7º do CIS, se entendeu que:

“3.2.2.1. O regime legal previsto no artigo 7.º do CIS

Nas alíneas g), h) e i) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, nas redacções vigentes em 2018, prevêem-se isenções de Imposto do Selo.

No caso em apreço, constata-se que o capital social da Requerente era detido pelas sociedades do mesmo Grupo de empresas, B..., S.A., e C..., S.A., ambas com sede em França [alínea B) da matéria de facto fixada], pelo que está afastada a possibilidade de aplicação da isenção prevista naquela alínea h), que prevê operações «realizadas por detentores de capital social a entidades nas quais detenham directamente uma participação...». Neste caso, é a sociedade detida que realiza as operações de concessão de crédito à sociedade que detém parte do seu capital.

Também está afastada a aplicabilidade da isenção prevista na alínea i), pois os empréstimos não têm características de suprimentos, como refere a Administração Tributária e não é controvertido. 

Assim, só é potencialmente aplicável à situação em apreço a isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, que abrange «as operações financeiras, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, desde que exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria ... efetuadas em benefício de sociedade com a qual se encontre em relação de domínio ou de grupo».

Estes requisitos verificam-se no caso em apreço, mas o n.º 2 do artigo 7.º do CIS restringe o âmbito de aplicação daquela isenção, estabelecendo a regra de que o disposto aquela alínea g) «não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direcção efectiva no território nacional». Neste caso, a B... tem sede em França, pelo que esta regra afasta, em princípio, a aplicação da isenção.

Esta regra de afastamento da isenção tem, porém, uma excepção para as «situações em que o credor tenha sede ou direcção efectiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção», e não tiver previamente realizado os financiamentos através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional.

No caso dos autos, um dos intervenientes na operação de cash pooling não tinha sede ou direcção efectiva no território nacional (a B...), pelo que, à face da regra do n.º 2 do artigo 7.º, estará, em princípio, afastada a aplicação da isenção, havendo lugar a tributação em Imposto do Selo.

Por outro lado, não se verifica a excepção a este afastamento da isenção, pois este n.º 2 do artigo 7.º só prevê que o direito à isenção subsista quando o credor tenha sede ou direcção efectiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal.

Neste caso, o credor é a Requerente, com sede em Portugal, pelo que não se enquadra nesta situação de subsistência da isenção.

À face deste regime legal, tem de se concluir que não se prevê isenção de Imposto do Selo para as situações de cash pooling em que o credor tem sede ou direcção efectiva em Portugal e o devedor reside num Estado Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação com Portugal.

Assim, só por imposição de normas de hierarquia superior poderá este regime ser afastado, o que é propugnado pela Requerente.

3.2.2.2. Questão da incompatibilidade do regime do artigo 7.º do CIS com o Direito da União Europeia

A Requerente defende que deve ser aplicada a isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, por, em suma, o afastamento da sua aplicação nas situações em que o devedor tem sede ou direcção efectiva num Estado Membro da União Europeia não poder ser aplicado, por ser incompatível com os artigos 63.º e 65.º do Tribunal de Justiça da União Europeia (TFUE) e ser discriminatório.

O artigo 8.º, n.º 4, da CRP estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

Desta norma decorre a primazia do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, quando não está em causa os princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (   ).

Os artigos 63.º e 65.º do TJUE estabelecem o seguinte:

Artigo 63.º

(ex-artigo 56.º TCE)

 1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

Artigo 65.º

(ex-artigo 58.º TCE)

 1.  O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:

 a)  Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;

b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.

 2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.

 3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.

4. Na ausência de medidas ao abrigo do n.º 3 do artigo 64.º, a Comissão, ou, na ausência de decisão da Comissão no prazo de três meses a contar da data do pedido do Estado-Membro em causa, o Conselho, pode adotar uma decisão segundo a qual as medidas fiscais restritivas tomadas por um Estado-Membro em relação a um ou mais países terceiros são consideradas compatíveis com os Tratados, desde que sejam justificadas por um dos objetivos da União e compatíveis com o bom funcionamento do mercado interno. O Conselho delibera por unanimidade, a pedido de um Estado-Membro.

  Os empréstimos de curto prazo são movimentos de capitais, como resulta da Directiva n.º 88/361/CEE, do Conselho de 24-06-1988, o que não é objecto de controvérsia.

O TJUE, no acórdão 14-10-1999, proferido no processo n.º C-439/97, Sandoz GmbH, o seguinte (com actualização dos números dos artigos), em suma:

– a proibição do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE (anteriores artigo 73.º-B, n.º 1, e 56.º do Tratado CE) abrange quaisquer restrições aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros e entre os Estados-Membros e países terceiros (n.º 18);

–  uma legislação que priva os residentes num Estado-Membro da possibilidade de beneficiarem de uma eventual não tributação dos mútuos contraídos fora do território nacional, é um medida de molde a dissuadi-los de contraírem mútuos com pessoas estabelecidas noutros Estados-Membros (n.º 19 daquele acórdão, citando o acórdão de 14 de Novembro de 1995, Svensson e Gustavsson, C-484/93, Colect., p. I-3955, n.º 10).

– tal legislação constitui por isso uma restrição aos movimentos de capitais no sentido do artigo 63.º, n.º 1 do TFUE (anteriores artigos 73.º-B, e 56.º) (n.º 20).

É precisamente uma situação deste tipo que gera o afastamento da isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS.

Na verdade, à face deste regime, os residentes num Estado-Membro (França, neste caso) são privados da possibilidade de beneficiarem de uma eventual não tributação dos mútuos contraídos fora do seu território nacional.

O facto de o sujeito passivo do imposto ser o credor (a Requerente) e não o devedor (B...) não afasta esta conclusão.

Na verdade, embora não se esteja perante uma situação de substituição tributária em sentido próprio (que se efectua através de retenção na fonte do imposto liquidado pelo substituto, nos termos do artigo 20.º da LGT), está-se perante situação em que se admite (e legalmente se pretende) a repercussão económica do imposto em relação ao titular do interesse económico, que é o utilizador do crédito, que deve suportar o encargo do imposto, nos termos dos n.ºs 1 e 3 alínea  f) do artigo 3.º do CIS. Aliás, no caso de não pagamento do imposto pelo sujeito passivo (credor), o imposto até poderá ser exigido directamente ao titular do interesse económico, designadamente nos casos de operações de cash pooling, como entendeu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 19-02-2020, proferido no processo n.º 2244/12.3BEPRT 0898/17. (   )

Assim, o afastamento da isenção nas situações em que devedor tenha sede ou direcção efectiva num Estado Membro constitui uma restrição aos movimentos de capitais no sentido do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, que só pode ser admitida nas situações previstas no artigo 65.º do mesmo diploma.

Na alínea a) do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE, permite-se aos Estados-Membros «aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido».

Na interpretação deste artigo 65.º o TJUE entendeu o seguinte, no acórdão de 22-11-2018, proferido no processo n.º C-575/17 - Sofina SA:

45. Esta disposição, na medida em que constitui uma derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, deve ser objeto de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar onde residam ou do Estado Membro onde invistam os seus capitais será automaticamente compatível com o Tratado. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n. o 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no n.º 3 desse mesmo artigo, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» (Acórdão de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C 10/14, C 14/14 e C 17/14, EU:C:2015:608, n.º 63).»

46. Assim, há que distinguir as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.º, n.º 3, TFUE. Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento que daí resulta respeite a situações não comparáveis objetivamente ou se justifique por uma razão imperativa de interesse geral (Acórdão de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C 10/14, C 14/14 e C 17/14, EU:C:2015:608, n.º 64).

3.2.2.2.1. Comparabilidade das situações

No caso em apreço, está-se perante um imposto de obrigação única, devido relativamente a cada acto de concessão de crédito, e os intervenientes num contrato de cash pooling encontram-se em situações idênticas, independentemente do local da sua residência  ou do local onde o capital é investido, havendo mesmo possibilidade de frequentes inversões das posições de credor e devedor no âmbito do mesmo contrato, em função das disponibilidades e necessidades de tesouraria de cada um dos intervenientes.

Assim, tem de se concluir pela comparabilidade das situações entre residentes e não residentes, para efeitos da isenção em causa, em contratos do tipo do dos autos. 

Neste contexto, a atribuição de uma vantagem fiscal aos devedores residentes em Portugal que é recusada aos devedores não residentes constitui, como defende a Requerente, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes, que é de qualificar como discriminação, na acepção do Tratado, por não existir qualquer diferença objectiva de situação susceptível de justificar tratamento diferenciado.

Assim, a alínea a) do n.º 1 e o n.º 3 do artigo 65.º do TFUE não permitem o regime consubstanciado nas referidas normas do CIS, pois a diferença de tratamento não é justificada por uma diferença de situação objetiva.

3.2.2.2.2. Razões imperiosas de interesse geral

 A alínea b) do n.º 1 deste artigo 65.º do TFUE admite que os Estrados Membros tomem «todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública».

Como se vê pelo n.º 46 do citado acórdão proferido no processo n.º C-575/17, o TJUE entende que, relativamente a situações comparáveis, a diferença de tratamento só pode ser justificada «por uma razão imperativa de interesse geral».

No caso em apreço, afigura-se ser manifesto que não existe qualquer razão de interesse geral que possa justificar a referida discriminação, o que nem sequer é aventado pela Administração Tributária.

Na verdade, está-se perante uma situação que não há dificuldades de eficaz controlo fiscal, pois há possibilidade de a Administração Tributária fazer uso das trocas de informações previstas na generalidade das Convenções para evitar Dupla Tributação (...).

Por outro lado, não se vislumbra qualquer outra razão de interesse público que possa justificar o tratamento discriminatório referido, designadamente uma hipotética intenção legislativa de evitar fraudes e abusos no âmbito das operações de tesouraria de curto prazo entre empresas do mesmo grupo, pois a intenção geral que está ínsita na atribuição dos benefícios fiscais previstos nas alíneas g) a i) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, não pode ser a de «impedir comportamentos que consistam em criar expedientes puramente artificiais, desprovidos de realidade económica, cujo objetivo é beneficiar indevidamente de uma vantagem fiscal», que podem justificam restrições à livre circulação de capitais (Acórdãos do TJUE de 05-07-2012, SIAT, processo C-318/16, EU:C:2017:415, n.º 40; de 07-09-2017, Eqiom e Enka, processo C-6/16, EU:C:2017:641, n.º 30; e de 20-09-2018, EV, processo C-685/16, n.º 95), mas, será, pelo contrário, de admitir ou mesmo incentivar esses comportamentos, concedendo benefícios fiscais.

Pelo exposto, conclui-se que o afastamento da aplicação da isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS que se prevê no n.º 2 do mesmo artigo, nas situações em que o devedor não tem sede ou direcção efectiva em Portugal, mas a tem num Estado Membro da União Europeia, constitui uma restrição injustificada à liberdade de movimentos de capitais garantida pelo artigo 63.º do TFUE, pelo que esta restrição não pode ser aplicada, por forma do preceituado no n.º 4 do artigo 8.º da CRP.”

Este Tribunal concorda com a argumentação constante do citado e aqui, parcialmente, transcrito, Acórdão, nomeadamente com a conclusão vertida neste último parágrafo, pelo que, estando verificados os requisitos constantes da alínea h) do nº 1 do artigo 7º do CIS, se deve considerar que a regra constante deste preceito, constitui uma limitação injustificada, e, como tal, ilegal, à liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63º do TFUE.

Limitação esta que, como se viu, não pode ser aplicada, por força do consagrado no artigo 8º nº 4 da CRP.

 

3.3. Do pedido de juros indemnizatórios

O artigo 24.º, n.º 5 do RJAT determina que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que permite concluir pelo reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no âmbito de um processo arbitral.

O direito a juros indemnizatórios está regulado no artigo 43.º da LGT que determina o seguinte:

“Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas”.

Ora, no caso em apreço, tratando-se de actos de autoliquidação de imposto pelo sujeito passivo (a ora Requerente), o erro na liquidação não é susceptível de ser imputado à Requerida.

No entanto, o mesmo não sucede com a decisão da reclamação graciosa, pois deveria ter sido deferida a pretensão da Requerente e este erro é imputável a Autoridade Tributária.

Esta situação de a Requerida manter uma situação de ilegalidade, quando devia repô-la deverá ser enquadrada, por mera interpretação declarativa, no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, pois trata-se de uma situação em que há nexo de causalidade adequada entre um erro imputável aos serviços e a manutenção de um pagamento indevido e a omissão de reposição da legalidade quando se deveria praticar a acção que a reporia deve ser equiparada à acção.

Nos presentes autos, a reclamação graciosa foi apresentada em 23.01.2023 e a Requerente foi notificada do indeferimento em 30-05-2023 sendo que em 24-05-2023 se tinha formado o indeferimento silente (tácito) da reclamação graciosa, data que deve relevar para contagem dos juros indemnizatórios peticionados.

Neste sentido, ver o Acórdão do STA de 29-11-2023, proferido no Processo n.º 011/19.2BELRS: 

“I - Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T., sendo que o indeferimento tácito de reclamação graciosa deduzida opera ao fim de quatro meses, prazo esse que é contínuo e se deve contar nos termos do artº.279, do C. Civil (cfr.artº.57, nºs.1 e 3, da L.G.T.; artºs.20, nº.1, e 106, do C.P.P.T.).. II – In casu, tendo a reclamação graciosa dado entrada nos serviços da autoridade reclamada no dia 07.05.2015, nos termos da doutrina emanada daquele aresto do Pleno, temos que o indeferimento silente dessa pretensão se formou em 08.09.2015 (CC, art. 279.º., als. b) e c), ex vi LGT, art. 57.º, n.ºs 1 e 3). III - Tal indeferimento silente, portanto, é anterior ao indeferimento expresso da pretensão de devolução à Reclamante das quantias pagas, acrescidas dos juros indemnizatórios devidos, o qual ocorreu por decisão proferida em 26.09.2018. IV – Assim, relevando esse “indeferimento presumido” como termo inicial (dies a quo) da obrigação de contagem de juros indemnizatórios, quando ligada à existência do procedimento de reclamação graciosa, o dia a considerar para tal efeito é, precisamente, 08.09.2015, e não já o dia em que foi proferido o despacho de indeferimento, ou seja, 26.09.2018, como se julgou na sentença recorrida”.

Os juros indemnizatórios são devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e serão calculados com base na quantia de € 172.966,24 (cento e setenta e dois mil, novecentos e sessenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos), devendo ser contados desde 24.05.2023 até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

4. Decisão

Termos em que se decide, julgar, parcialmente, procedente o pedido arbitral, e em consequência:

  1. Anular o acto de indeferimento da reclamação graciosa com o nº ...2023...;

 

  1.  Anular os actos de autoliquidação de Imposto do Selo referentes aos meses de Fevereiro, Março, Abril e Maio de 2022, efectuados através das Declarações Mensais de Imposto com os nºs ..., ..., ... e ...;

 

  1. Condenar a Requerida a restituir ao Requerente o imposto pago em excesso, no montante de € 172.966,24 (cento e setenta e dois mil, novecentos e sessenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos);

 

  1. Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal em vigor, mas apenas desde a data de indeferimento tácito da reclamação graciosa nº ...2023..., ocorrido a 24.05.2023 até à data de processamento da nota de crédito referente ao reembolso do imposto indevidamente pago;

 

  1.  Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

5. Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 172.966,24 (cento e setenta e dois mil, novecentos e sessenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos), que não foi contestado pela Requerida, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

6. Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em 3 672.00 €, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 06 de Maio de 2024

 

Os Árbitros

 

 

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(Regina de Almeida Monteiro -Presidente)

 

 

__________________

(Ana Pinto Moraes - Adjunto)

 

 

 

 (João Marques Pinto -Adjunto)