SUMÁRIO:
1) O n.º 8 do art.º 52.º do CIRC consagra uma cláusula especial anti-abuso, e do preenchimento da respectiva previsão decorre a sua estatuição, a saber, a não dedutibilidade de prejuízos fiscais (PFs);
2) A previsão do n.º 8 comporta as situações em que à data do termo do período em que se pretende efectuar a dedução, e em relação àquele em que foram apurados os prejuízos, se verifica ter havido alteração da titularidade de mais de 50% do capital social do sujeito passivo (SP) ou da maioria dos direitos de voto;
3) Na redacção do art.º 52.º em vigor em 2019 o legislador abria a possibilidade de afastamento da dita regra/limitação mediante autorização, em casos de reconhecido interesse económico e mediante requerimento, do membro do Governo responsável pela área das finanças, cfr. n.º 12; 4) A competência para a emissão da autorização em questão cabia ao Governo no âmbito da sua margem de discricionariedade técnica;
5) São conformes à lei as correcções e subsequente liquidação pelas quais se desconsiderou a dedução de PFs gerados em exercícios anteriores a uma alteração subsumível no n.º 8 do art.º 52.º e pretendidos deduzir em exercício posterior à mesma, 2019, se o SP não apresentou requerimento de pedido de autorização para afastamento daquela limitação conforme previsto pelo legislador no n.º 12.
DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
A..., S.A., nipc..., com sede na Rua..., ..., ..., doravante designada por “Requerente”, “Sujeito Passivo”, ou simplesmente “SP”, veio, nos termos dos art.ºs 2.º, n.º 1 al. a), 3.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro), doravante “RJAT”, submeter ao CAAD pedido de constituição de Tribunal Arbitral.
Peticiona, assim, a declaração de ilegalidade de acto de liquidação de IRC reportado ao exercício de 2019, e da correspectiva liquidação de juros compensatórios (em conjunto doravante também “a Liquidação”).
Da Liquidação resultou um montante total a pagar de € 235.537,87 (imposto de € 216.700,02 mais juros compensatórios de € 18.837,85). E da demonstração de acerto de contas um valor a pagar de € 209.390,50.
A Liquidação foi emitida na sequência de acção de inspecção à Requerente, no âmbito da qual foram propostas correcções em matéria de dedução de prejuízos fiscais, e de gastos com financiamentos. A Requerente procedeu à regularização destas últimas, mas não se conforma com as correcções referentes a prejuízos fiscais (PF). Que foram mantidas no RIT, e originaram a Liquidação ora em crise.
Os SIT fundamentaram a correcção em questão, expõe, no facto de ter havido alteração da titularidade do seu capital social (CS) no período de 2016, em termos que se subsumem ao disposto no n.º 8 do art.º 52.º do CIRC, excluindo-se por essa via o direito à dedução dos PFs gerados em períodos de tributação anteriores à referida alteração. E uma vez que a Requerente não efectuou o pedido a que se refere o n.º 12 do mesmo art.º 52.º (CIRC).
Expõe a Requerente que os SIT sustentaram que, uma vez que a titularidade do seu CS sofreu alterações em 2016, tendo 47% do capital e 60% dos respectivos direitos de voto passado a ser detidos por uma nova entidade, se preenche o n.º 8 do art.º 52.º e que, assim, fica excluída a possibilidade de deduzir, em períodos posteriores ao da alteração, “prejuízos fiscais gerados em períodos anteriores a essa alteração de capital, ou seja, gerados anteriormente a 2016”.
E conclui, de seguida, que a interpretação e aplicação da referida norma “como propugnada pelos SIT” não pode ser aceite no caso. Com a consequente ilegalidade da Liquidação, alega.
Refere que se trata de uma norma anti-abuso, o n.º 8 do art.º 52.º. E que os SIT não se pronunciaram sobre as exclusões previstas, no n.º 9, a esse regime, operando a correcção “única e exclusivamente porque não foi efetuado o pedido previsto no artigo 52.º, n.º 12, do CIRC”. Não evidenciando ou sequer invocando “que a operação de entrada de um novo sócio no seu capital tenha tido como objetivo principal ou secundário o aproveitamento dos prejuízos fiscais”.
Mais que, se os SIT entendiam ter havido finalidade de aproveitamento de PFs podiam ter-se socorrido da cláusula geral anti-abuso prevista no art.º 38.º da LGT.
Reconhece que não apresentou o pedido previsto no n.º 12 do mesmo art.º 52.º. E, bem assim, que esta norma faz depender a aceitação dos PFs de um pedido a efectuar por si. Contudo, refere, “comunicou, de facto, a entrada da B... (...) S.A. no seu capital através da IES do ano de 2016”.
Alega que foi demonstrado o interesse económico da entrada da nova sócia no seu capital pois apresentou na inspecção as actas das quais consta o contexto, e objectivos, de tal entrada. Facultou essa informação à Autoridade Tributária no âmbito da inspecção.
Acrescenta que se encontrava então em delicada situação financeira, que aquela entrada visou manter a actividade e liquidar empréstimos, que assim o provou na inspecção, e que assim vem provado nestes autos.
Embora não tenha apresentado o pedido de autorização ao membro do Governo responsável para que fosse reconhecido o interesse económico cfr. n.º 12 do art.º 52.º, e para que assim não fosse aplicada a limitação do n.º 8, “o sentido útil da norma anti-abuso foi cumprido”, alega.
O art.º 52.º, n.º 12, então em vigor, na interpretação propugnada pela Administração Tributária, “ou seja, a interpretação de que a manutenção dos prejuízos fiscais estava dependente da apresentação de um pedido previsto naquela disposição legal”, viola “os princípios da tributação pelo lucro real e da capacidade contributiva do art.º 104.º, n.º 2, da CRP”, alega.
Conclui que o art.º 52.º, n.º 12, “ao fazer depender a manutenção dos prejuízos fiscais da apresentação de um pedido dirigido ao membro do Governo responsável pela área das finanças e impedindo a posterior demonstração dessas razões válidas”, pedido esse a apresentar pela Requerente, “viola o princípio da prevalência da substância sobre a forma” e “viola, de forma flagrante, o princípio da tributação pelo lucro real e da capacidade contributiva, constitucionalmente consagrados”.
Requer, assim, seja (i) declarada a ilegalidade e anulada a Liquidação, e (ii) a Requerida condenada a restituir-lhe os montantes pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD a 03.07.2023 e notificado à AT.
Nos termos do disposto na al. b) do n.º 2 do art.º 6.º e no art.º 11.º, n.º 2 do RJAT, o SP designou o árbitro. E como disposto no n.º 3 do mesmo art.º 11.º, por despacho da dirigente máxima do serviço a Requerida designou a árbitro. Ao abrigo do disposto no art.º 6.º, n.º 2, al. b), do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a Presidente do Tribunal Arbitral.
Todos os árbitros aceitaram atempadamente o encargo. O SP foi notificado da designação da árbitro-vogal e as Partes foram informadas da designação da árbitro-presidente, cfr. art.º 11º, n.º s 5 e 7 do RJAT, não tendo sido manifestada oposição.
Nos termos do disposto no n.º 8 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 25.10.2023.
Notificada para o efeito, a AT juntou o PA e apresentou Resposta, pugnando pela total improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) e consequente manutenção da Liquidação na Ordem Jurídica.
A Requerida dá por reproduzida a factualidade constante do RIT, daí destacando alguns factos.
Entre o mais, o facto, apurado pelos SIT, de o CS da Requerente ter sido alterado no período de 2016, passando 47% do mesmo e 60% dos respectivos direitos de voto a ser detidos por uma nova entidade. Bem como o de a Requerente não ter apresentado requerimento a solicitar que não lhe fosse aplicada a limitação constante do n.º 8 do art.º 52.º do CIRC, cfr. n.º 12 da mesma disposição legal (na redacção da Lei n.º 2/2014, de 16.01).
No Direito, por sua vez, faz referência à alteração na titularidade do CS da Requerente face ao disposto no n.º 8 do art.º 52.º, cfr. também no RIT, e a estar cumprido, em consequência, o requisito previsto na mesma norma, para a exclusão do direito à dedução dos PFs.
Defende ter sido correcto o entendimento dos SIT de que os PFs declarados pela Requerente em 2014 e 2015 foram indevidamente utilizados para apuramento do lucro tributável em 2019. A decisão de desconsideração parcial da dedução de PFs, no montante de € 870.280,14, cumpre, defende, com o disposto nos n.ºs 1 e 8 do art.º 52.º do CIRC.
Salienta que a correcção que originou a Liquidação tem por fundamento a alteração no CS da Requerente em 2016, que foi o que determinou a aplicação, pelos SIT, do n.º 8 do art.º 52.º. E, ainda, que a Requerente aceita que a situação recai na referida norma.
Deixa claro, neste contexto, (i) ser essa a fundamentação do acto em crise; (ii) não ter a Requerida que lançar mão do art.º 38.º, n.º 2 da LGT; (iii) não caber retirar ilacções sobre se os SIT verificaram ou não certa matéria que não é fundamento da correcção só por tal não vir mencionado no RIT - in casu, as exclusões previstas no n.º 9 do art.º 52.º; (iv) caber à Requerente participar na decisão, exercendo o direito de audição, se pretendesse demonstrar que a situação recaía em alguma das excepções do n.º 9 (que não fez, e não o faz também neste processo - nota sem conceder).
Nota, entre o mais, que não havia que provar a alteração do CS ter tido ou não por objectivo o “aproveitamento abusivo dos prejuízos fiscais”. Pois que a Liquidação resulta, tão só, da aplicação do n.º 8 do art.º 52.º, norma anti-abuso específica. E cabia à Requerente, que pretendia afastar a limitação, lançar mão do procedimento especificamente consagrado pelo legislador para o efeito, formulando o pedido de autorização previsto no n.º 12 do art.º 52.º - o mecanismo legal que permitia afastar a limitação consagrada no n.º 8.
Este n.º 12 do art.º 52.º regula um procedimento próprio, que é despoletado pela apresentação de um requerimento pelo próprio SP, dentro de um determinado prazo, definido na lei, e a acompanhar com os elementos previstos no n.º 13 do mesmo artigo, e cfr. também Portaria n.º 273/2014, de 24.12, expõe.
Ainda quanto à posição defendida pela Requerente refere que esta reconhece a necessidade de apresentação do requerimento e a competência para a autorização ser de membro do Governo responsável pela área das finanças, e ao mesmo tempo sustenta a inutilidade do procedimento.
Rebate (sem conceder) o argumento da Requerente de que teria demonstrado os pressupostos exigidos pelo n.º 12 ao ter submetido a IES e ao, em sede de inspecção, ter junto actas.
Conclui que a argumentação da Requerente não tem suporte legal nem de prova.
E, por fim, que não se vislumbra como a sua interpretação, do n.º 12, viole os princípios que a Requerente invoca. A apresentação do pedido está expressamente prevista na lei e não pode a Requerida, e nem o Tribunal, como melhor desenvolve, deixar de cumprir a lei.
As correcções devem manter-se, defende, e a Requerida ser absolvida dos pedidos.
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Por despacho de 04.12.2023, atentos os elementos nos autos e por não vir requerida prova adicional tida por relevante pelo Tribunal, as Partes foram da dispensa da reunião prevista no art.º 18.º do RJAT e para apresentarem alegações escritas facultativas.
Ambas apresentaram alegações.
A Requerente vem, nas suas, reiterar o expendido no PPA, que começa por enquadrar, na linha do ali já vertido (após referir o sustentado pelos SIT - a titularidade do CS ter sofrido alterações e estar preenchido o requisito do n.º 8 do art.º 52.º), assim: “Contudo, a interpretação e aplicação do artigo 52.º do CIRC propugnada pelos Serviços de Inspeção Tributária no procedimento de inspeção relativo ao ano de 2019 é ilegal, pelo que se impõe a conclusão de que as liquidações (...) são ilegais ao serem tributárias das correções apuradas no procedimento de inspeção ao ano de 2019, devendo ser determinada a sua anulação” (...) “ou seja, a interpretação de que a manutenção dos prejuízos fiscais estava dependente da apresentação de um pedido previsto naquela disposição legal” (n.º 12). E quanto à norma (n.º 12), assim: “ao fazer depender a manutenção dos prejuízos fiscais de um pedido (...) viola (...) o princípio da tributação pelo lucro real e da capacidade contributiva (...)”.
A Requerida, de seu lado, nas alegações finais, mantém a posição exposta na Resposta, para aí remetendo, dando ênfase a alguns pontos. Entre o mais, refere que os princípios que a Requerente alega terem sido violados sê-lo-iam sim se lhe fosse permitido beneficiar de um procedimento legal que optou por não utilizar e à revelia dos requisitos exigidos pelo legislador. E que se o Tribunal, ao decidir, não atender à redacção das normas vigente à data dos factos incorre em interpretação normativa inconstitucional – o que suscita.
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O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é competente e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, legitimidade e estão devidamente representadas (cfr. art.s 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Por despacho de 24.04.2024 foi prorrogado por dois meses o prazo do art.º 21.º, n.º 1 do RJAT, nos termos do respectivo n.º 2, pelas razões aí indicadas.
O PPA é tempestivo, apresentado dentro do prazo legal de 90 dias – v. al.s k) e m) do probatório, infra, e art.º 10.º, n.º 1, al. a), primeira parte, do RJAT (v. art.º 102.º, n.º 1, al. a) do CPPT).
O Processo não enferma de nulidades, e a Requerida não invoca matéria de excepção.
Cumpre apreciar e decidir.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os factos que seguem:
a) A Requerente é uma sociedade comercial, constituída sob o tipo de sociedade anónima ao abrigo da lei portuguesa, tem por objecto social “Sistemas de engenharia, produção, aplicação, venda, aluguer, montagem, e projeto de sistemas, materiais, equipamentos, produtos e serviços para os sectores da construção civil, das obras públicas, da reparação, da reabilitação, da indústria e dos eventos”, e está registada com o CAE 43992 - “Outras atividades especializadas Construções Diversas, n.e.”; (cfr. doc. 4 junto pelo SP)
b) A Requerente está enquadrada em IRC no regime geral de tributação; (cfr. PA)
c) Na declaração Modelo 22 reportada ao exercício de 2019 a Requerente deduziu, ao lucro tributável apurado, 70% do respectivo valor, ou seja € 908.558,95, correspondentes ao saldo de prejuízos fiscais a reportar de exercícios anteriores ao de 2019, a saber, prejuízos fiscais de 2014, de 2015 e de 2017; (cfr. PA)
d) O capital social da Requerente sofreu alterações no exercício de 2016, tendo 47% do mesmo e 60% dos respectivos direitos de voto passado a ser detidos por uma nova entidade, a B... S.A.; (cfr. PA, e cfr. aceite pelo SP nos articulados)
e) A Requerente não apresentou qualquer requerimento para efeitos de autorização de não aplicação da limitação prevista no art.º 52.º, n.º 8 do CIRC à dedução de prejuízos fiscais; (cfr. RIT, e cfr. aceite pelo SP nos articulados)
f) A Requerente foi alvo de uma acção de inspecção a coberto da Ordem de Serviço n.º OI2022..., de 13.05.2022, de âmbito parcial em IRC e IVA, referente ao exercício de 2019; (cfr. PA)
g) A Requerente foi notificada, pela plataforma ViaCTT, a 26.11.2022, do Projecto de RIT e para exercício do direito de audição; (cfr. PA)
h) No Projecto de RIT são propostas correcções relativas (i) a gastos suportados com encargos financeiros e (ii) a prejuízos fiscais (PFs) no valor de € 870.280,14, estas últimas correspondentes à desconsideração, para efeitos de dedução no exercício de 2019, dos PFs apurados pela Requerente nos exercícios de 2014 e 2015; (cfr PA)
i) Quanto às correcções propostas pelos SIT em matéria de gastos suportados com encargos financeiros a Requerente submeteu declaração de regularização, e quanto às correcções em matéria de prejuízos fiscais, não exerceu o direito de audição; (cfr PA)
j) No RIT lê-se, entre o mais e tudo se dando por reproduzido, como segue:
“(...) Relativamente ao diferencial das correções propostas à Matéria Coletável de IRC, no montante de € 870.280,14, o sujeito passivo não exerceu o direito de audição, nem no prazo para o efeito, nem até ao momento, convertendo-se as mesmas em definitivas.”
“(...) o sujeito passivo procedeu à dedução ao lucro tributável apurado de 70% do seu valor, correspondente ao saldo de prejuízos fiscais acumulados em períodos anteriores, como previsto no artigo 52.º do CIRC, e que totalizou € 908.558,95.
(...) Face à legislação citada, o n.º 8 vem limitar a dedução de prejuízos, a qual deixará de ser aplicável quando se verificar, à data do termo do período de tributação em que é efetuada a dedução, que foi alterada a titularidade de, pelo menos, 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto. /(...)
Assim, face à alteração dos titulares do capital social do sujeito passivo, designadamente, da entrada de novo acionista que passa a deter 60% dos direitos de voto, está cumprido o requisito previsto no n.º 8 do citado articulado para a exclusão do direito à dedução dos prejuízos fiscais gerados em períodos de tributação anteriores a esta alteração de capital, ou seja, gerados anteriormente a 2016 e deduzidos nos períodos seguintes.
Questionado o representante do sujeito passivo este confirmou que não foi efetuado o pedido a que se refere o n.º 12 do citado artigo 52.º do CIRC, para a não aplicação da limitação prevista no n.º 8 do mesmo articulado.
Da análise em concreto dos prejuízos fiscais, resulta: / (...)
Tal como referido e como prevê a legislação citada, os prejuízos fiscais apurados nos períodos de tributação de 2014 e de 2015 não são dedutíveis aos lucros tributáveis apurados após 2016, ou seja, em 2018 e 2019. Antes, apenas o prejuízo fiscal gerado em 2017 é dedutível nos períodos de tributação seguintes.
Face ao exposto, no período de 2019 em análise, e tomando em consideração o valor do lucro tributável proposto, apenas é dedutível a título de prejuízos fiscais o montante de € 38.278,81, como se demonstra: / (...)
Estes ajustamentos em obediência ao estipulado no n.º 8 do artigo 52.º do CIRC, implicam uma correção ao montante de prejuízos fiscais dedutíveis no período de tributação em análise de € 870.280,14, que resulta de: / (...)
X. Direito de Audição / (...)
Quanto às restantes correções propostas (...) e referentes a prejuízos fiscais não dedutíveis (...) não tendo o sujeito passivo apresentado contestação, as mesmas convertem-se em definitivas, como se resume: / (...)”
k) Em resultado da acção inspectiva foi emitida a liquidação com o n.º 2023..., de 08.02.2023, valor a pagar € 216.700,02 (a Liquidação), e a Demonstração de acerto de contas, de 13.02.2023, valor a pagar € 209.390,50 e data limite de pagamento 03.04.2023; (cfr. doc.s 1, 2 e 3 juntos pela Req.te, e PA); (cfr. docs. 1, 2 e 3 juntos pelo SP)
l) A 16.03.2023 a Requerente procedeu ao pagamento da demonstração de acerto de contas (v. al. anterior); (cfr doc 5 junto pelo SP)
m) A 30.06.2023 a Requerente interpôs o Pedido de Pronúncia Arbitral.
2.2. Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa inexistem factos não provados.
2.3. Fundamentação da matéria de facto
Os factos dados como provados foram-no com base nos documentos juntos aos autos concretamente os juntos com o PPA e os que integram o PA (todos se dando por integralmente reproduzidos) e, bem assim, factos não controvertidos, tudo concatenado e criticamente apreciado (e cfr. indicado supra por referência a cada facto).
Ao Tribunal cabe seleccionar, de entre os alegados pelas Partes, os factos que importam à apreciação e decisão da causa, perspectivando as hipotéticas soluções plausíveis das questões de direito (v. art.º 16.º, al. e) e art.º 19.º do RJAT e, ainda, art.º 123.º, n.º 2 do CPPT e art.º 596.º do CPC[1]).
Não se deram como provadas ou não provadas alegações das Partes apresentadas como factos mas consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja validade será de aferir em face da matéria de facto considerada assente.
3. Matéria de Direito
Recapitulando. A Requerente entende que, não obstante ter alterado, em 2016, o seu capital social em termos que se subsumem à previsão constante do n.º 8 do art.º 52.º do CIRC, e não obstante, também, não ter apresentado o requerimento de autorização previsto no n.º 12 do mesmo art.º 52.º, os prejuízos fiscais que apurou em exercícios anteriores à alteração do capital social devem ser deduzidos ao seu lucro tributável do exercício de 2019.
A Requerida, por sua vez, defende que estando preenchida a referida norma, do n.º 8 do art.º 52.º, e não tendo a Requerente apresentado o requerimento de autorização para afastamento da limitação à dedução desses prejuízos fiscais, como previsto no n.º 12 do mesmo art.º 52.º, não podem os mesmos ser deduzidos ao lucro tributável do exercício de 2019.
E assim vem fundamentado o acto em crise.
No facto de - tendo a Requerente alterado o CS em moldes que se subsumem ao disposto no n.º 8 do art.º 52.º (o que vem assente), e pretendendo deduzir, num exercício posterior àquela alteração, PFs que apurou em exercícios anteriores à mesma (factualidade que também não se discute nos autos), e não tendo, por outro lado, nas circunstâncias, apresentado o requerimento de autorização previsto pelo legislador no n.º 12 do mesmo art.º 52.º - ser devida a aplicação do n.º 8 do art.º 52.º.
3.1. Questões a decidir
As questões a decidir prendem-se, assim, com a legalidade da aplicação, no caso, da norma constante do n.º 8 do art.º 52.º do CIRC. Ou seja, com a legalidade da aplicação, à Requerente, no exercício de 2019, da limitação à dedução de PFs que o legislador determinou nessa norma.
Em mais detalhe, cabe responder à essencial questão seguinte:
É ou não de aplicar à Requerente, para apuramento do lucro tributável no seu exercício de 2019, a limitação à dedução de PFs determinada pelo legislador no n.º 8 do art.º 52.º do CIRC, sendo que (i) no exercício de 2016 o seu CS sofreu alterações e uma nova accionista passou a deter 60% dos direitos de voto, (ii) a Requerente não apresentou o requerimento de autorização, previsto no n.º 12 do art.º 52.º, para a não aplicação daquela limitação, e (iii) a Requerente pretende deduzir no exercício de 2019 prejuízos fiscais que apurou em 2014 e em 2015 (antes, pois, daquela alteração).
Poderá, ainda, haver que conhecer da alegada (pela Requerente) violação da Constituição, a saber, do seu art.º 104.º, n.º 2, na interpretação do art.º 52.º, n.º 12 do CIRC seguida pela Requerida nas correcções em crise.
Bem assim, caso se venha a decidir pela não aplicação da norma constante do n.º 12 do art.º 52.º do CIRC, poderá ainda haver que conhecer da alegada (pela Requerida) violação da Constituição, a saber dos seus art.ºs 103.º, 165.º e 202.º.
Por fim, caso se decida pela anulação da Liquidação, haverá ainda que conhecer dos pedidos de devolução das quantias pagas e juros indemnizatórios.
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3.2. Quanto à invocada dedutibilidade dos prejuízos fiscais gerados em 2014 e 2015 ao lucro tributável apurado pela Requerente no exercício de 2019
É ou não de aplicar à Requerente, para apuramento do lucro tributável no seu exercício de 2019, a limitação à dedução de PFs determinada pelo legislador no n.º 8 do art.º 52.º do CIRC?
Como vimos, vêm assentes os factos subsumíveis à norma em questão, preenchendo-se a sua previsão – a saber, se “(...) se verificar, à data do termo do período de tributação em que é efetuada a dedução, que, em relação àquele a que respeitam os prejuízos, se verificou a alteração (...) da maioria dos direitos de voto”.
Pois que no termo do exercício de 2019 se verifica ter ocorrido - em relação aos períodos de 2014 e 2015 (a que respeitam os PFs pretendidos deduzir) - alteração da maioria dos direitos de voto. A Requerente teve (como o reconhece também), em 2016, uma alteração na composição do seu CS, tendo uma nova entidade (B... S.A.) passado a deter 47% do CS e 60% dos respectivos direitos de voto (v. também probatório, al. d)).
E a Requerente pretende deduzir - no exercício de 2019 - PFs que apurou em 2014 e 2015.
Mais reconhece e aceita que não apresentou o requerimento de autorização, para afastar a limitação à dedução, previsto pelo legislador no n.º 12 do mesmo artigo 52.º.
Defende porém, não obstante aceitar a previsão do n.º 8 do art.º 52.º estar preenchida, que esta norma não deve ser aplicada. Assim, que a limitação à dedução deve ficar arredada.
Pois bem.
Antes de avançarmos, comecemos por atentar nas normas convocadas (cfr. redacção vigente à data dos factos, conferida pela Lei n.º 2/2014, de 16.01), inseridas no art.º 52.º do CIRC. Artigo que rege sobre a dedutibilidade de PFs ao lucro tributável, e que dita no seu n.º 1 que “os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação (...) são deduzidos aos lucros tributáveis (...) períodos de tributação posteriores (...)”.
Artigo 52.º - Dedução de prejuízos fiscais
“1. Sem prejuízo do disposto no número seguinte, os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação, nos termos das disposições anteriores, são deduzidos aos lucros tributáveis, havendo-os, de um ou mais dos cinco períodos de tributação posteriores.
(...)
8. O previsto no n.º 1 deixa de ser aplicável quando se verificar, à data do termo do período de tributação em que é efetuada a dedução, que, em relação àquele a que respeitam os prejuízos, se verificou a alteração da titularidade de mais de 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto.
(...)
12. O membro do Governo responsável pela área das finanças pode autorizar, em casos de reconhecido interesse económico e mediante requerimento a apresentar à Autoridade Tributária e Aduaneira, que não seja aplicada a limitação prevista no n.º 8.
13. Os elementos que devem instruir o requerimento de pedido de autorização previsto no número anterior, a apresentar pela sociedade no prazo de 30 dias a contar da data da ocorrência da alteração referida no n.º 8, são definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.
(...).” (sublinhados e negritos nossos[2])
E no Preâmbulo da Portaria para que somos remetidos (cfr. n.º 13) - Portaria n.º 273/2014, de 24.12 - lê-se, entre o mais:
“Os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação podem ser deduzidos aos lucros tributáveis, havendo-os, de (…) períodos de tributação posteriores, nos termos e condições previstas nos n.s 2 a 7 do artigo 52.º do Código do IRC.
Não obstante, nos termos do n.º 8 do artigo 52.º do Código do IRC, esse direito deixa de ser aplicável quando se verificar que (...).
No entanto, nos termos do n.º 12 do artigo 52.º do Código do IRC, o membro do Governo responsável pela área das finanças pode autorizar, em casos de reconhecido interesse económico, que não seja aplicada a limitação prevista no n.º 8 do mesmo artigo, devendo para o efeito ser apresentado à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos e prazos referidos nos n.ºs 13 e 14 do artigo 52.º daquele Código, requerimento instruído com os elementos definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças. (...)”.
Após o que se dispõe:
“Artigo único
1. Sem prejuízo de a Autoridade Tributária e Aduaneira poder solicitar informações e elementos adicionais quando tal se mostre necessário à comprovação dos factos invocados, o pedido de autorização a que se refere o n.º 12 do artigo 52.º do Código do IRC deve ser instruído com os seguintes elementos: a) Descrição pormenorizada (…); / b) Certidão atualizada (…); / c) Previsão do volume de negócios, investimento e lucros tributáveis para os três períodos de tributação seguintes (…); d) Número de postos de trabalho nos últimos (…) e respetiva estimativa para os (…); / e) Identificação da existência de relações especiais (…); / f) Contraprestação e data da (…) e, no caso de a operação já se ter realizado, o respetivo documento comprovativo. (…).”
Vejamos.
Peticiona a Requerente a anulação do acto de liquidação adicional de IRC (“a Liquidação”) no qual a Requerida desconsiderou a dedução de prejuízos fiscais apurados em 2014 e 2015 e efectuada pela Requerente no exercício de 2019.
Desconsideração essa feita pela Requerida com fundamento (i) no art.º 52.º, n.º 8 do CIRC, por preenchida a respectiva previsão (alteração da maioria dos direitos de voto) e, concomitantemente, (ii) em não ter a Requerente solicitado a autorização prevista pelo legislador no art.º 52.º, n.º 12.
A Requerente entende, na defesa da posição por que pugna, que muito embora a previsão do n.º 8 estivesse preenchida, o facto de não ter accionado o procedimento previsto no n.º 12 (o que também não vem controvertido, vimos) não obsta (não deve obstar) a que seja afastada aquela limitação legal à dedução. Que apesar de não ter apresentado tal requerimento, de autorização para a não aplicação da limitação, a limitação deve ser, em qualquer caso, afastada.
Alega ainda, na defesa da posição por que pugna:
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Que a Requerida não teve em conta o disposto no n.º 9 do art.º 52.º,
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Que a Requerida não evidenciou ou invocou que a entrada da nova sócia no CS tenha tido por objectivo aproveitar os PFs,
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Que caso a Requerida entendesse ter havido essa finalidade (em B)) - poderia ter lançado mão da CGAA (art.º 38.º da LGT).
E conclui não restarem dúvidas de que:
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a norma - art.º 52.º, n.º 12 - faz depender a aceitação dos prejuízos de um pedido da Requerente, que tem que demonstrar “através do cumprimento daquela formalidade” a operação ter reconhecido interesse económico, e
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o incumprimento da norma não prejudicou o seu efeito útil e ratio (alega ter ficado demonstrado, no procedimento inspectivo e nestes autos, o interesse económico da operação, e ter comunicado a entrada da sócia pela submissão da IES), e, assim,
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a dedução dos PF deve ser aceite.
Fundamentando o peticionado, refere:
A norma constante do n.º 12, na interpretação propugnada pela Requerida, “ou seja, a interpretação de que a manutenção dos prejuízos fiscais estava dependente [da] apresentação de um pedido previsto naquela disposição legal”, viola “os princípios da tributação pelo lucro real e da capacidade contributiva”.
A referida norma “ao fazer depender a manutenção dos PF da apresentação de um pedido dirigido ao membro do Governo responsável pela área das finanças e impedindo a posterior demonstração dessas razões válidas” viola “o princípio da tributação pelo lucro real e da capacidade contributiva” e “o princípio da prevalência da substância sobre a forma”.
Defende, pois, que, ainda que a interpretação da norma (o n.º 12) tal como seguida na Liquidação sendo a devida, a norma (n.º 12) é violadora dos princípios da “tributação pelo lucro real”, capacidade contributiva, e prevalência da substância sobre a forma.
Apreciando. E regressando aos factos.
A Requerente deduziu ao lucro tributável de 2019 prejuízos fiscais que ainda não utilizara para apuramento da matéria colectável de exercícios anteriores. E que havia apurado nos exercícios de 2014 e 2015.
Em 2016 o Capital Social da Requerente foi alterado, e uma nova entidade passou a ser titular de 46% do mesmo e a deter 60% dos direitos de voto.
Por assim ser (facto provado, e que nem vinha controvertido), e, assim, por estar preenchida quanto aos PF originados em 2014 e 2015 a norma constante do n.º 8 do art.º 52.º, e não tendo sido apresentado pela Requerente o requerimento de autorização a que se refere o n.º 12 do mesmo artigo (facto igualmente provado, e que nem vinha controvertido), a Requerida desconsiderou, dos PFs que a Requerente deduziu em 2019, os originados em 2014 e 2015. Assim, não aceitou a dedução dos PFs em causa, por aplicação do n.º 8 (supra), procedeu às consequentes correcções, e emitiu a liquidação que vem colocada em crise.
Numa súmula, nos factos: (i) os PF cuja dedução se discute tiveram origem nos exercícios de 2014 e 2015; (ii) a Requerente alterou a composição do seu CS em 2016, passando uma nova entidade a ser titular de 46% do mesmo e a deter 60% dos direitos de voto; (iii) a Requerente não apresentou o requerimento de autorização previsto pelo legislador no n.º 12 do art.º 52.º do CIRC; (iv) o exercício em que a Requerente pretende admissível a dedução é o de 2019. Tudo como aceite pela Requerente, e v. probatório, supra.
De quanto vem de percorrer-se se conclui que estão assentes os factos essenciais constitutivos do direito invocado pela Requerida à tributação/correcção.
Ainda assim, se dúvidas houvesse, e tendo em consideração a argumentação expendida pela Requerente, vejamos.
Sumariamente, deve dizer-se desde já, por referência aos pontos da Req.te supra pág. 16, que:
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Além de que não vem assente, contrariamente ao alegado, que a Requerida não tenha apreciado da verificação das situações previstas nas al.s a) a e) do n.º 9 do art.º 52.º, a Requerente nada aportou, seja no procedimento inspectivo, seja nestes autos, para efeitos de produzir prova a esse respeito; mais, em relação à matéria dos PFs (à Liquidação, portanto) a Requerente não exerceu o seu direito de audição, onde lhe era dada oportunidade para, querendo, invocar o preenchimento de alguma das situações do n.º 9; mais, parte das al.s do n.º 9 fica também dependente de autorização de membro do Governo para afastar a subsunção ao n.º 8 (v. n.º 10); e mais, a Requerente aceita que a sua situação se subsume ao n.º 8 (v. probatório supra)
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A aplicação da norma constante do n.º 8 do art.º 52.º não depende de verificar-se existir um objectivo de aproveitamento de PFs; com efeito, trata-se de norma anti-abuso especial, em vigor ao tempo dos factos, com uma previsão (identificando as situações que aí recaem) de cujo preenchimento decorre, como aí consagrada, uma estatuição (a não dedutibilidade dos PFs).
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A Requerida aplicou o n.º 8 do art.º 52.º, e não o art.º 38.º da LGT, e é sobre o acto com a sua fundamentação que cabe ao Tribunal apreciar e decidir.
Mais que: na verdade,
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a norma do n.º 12 faz depender a dedutibilidade daqueles PFs (que recaem, à partida, na norma do n.º 8) de uma autorização, que o legislador determinou ser da competência de membro do Governo, e que deve ser solicitada pelo interessado mediante requerimento próprio, a instruir em determinados termos e prazos, conforme legislado e regulamentado; (v. supra n.ºs 12 e 13 e Portaria)
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não tendo sido emitida a autorização a que se refere o procedimento constante do n.º 12 (e 13) do art.º 52.º, a qual - a ser emitida - permitiria afastar a aplicação do n.º 8, este dispositivo é devido aplicar;
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Não podendo, assim, ser aceite a dedução dos PFs.
Como mais desenvolvidamente segue.
3.2.1. Da alegada ilegalidade
Os dispositivos legais aplicados pela Requerida para proceder às correcções em questão determinam a intransmissibilidade dos PF como regra para as situações que recaiam n.º 8 do art.º 52.º. Como vem assente ser o caso da situação nos autos. Recair naquela previsão.
E, por sua vez, como excepção à identificada regra, a possibilidade de dedução dos PFs, respeitadas que sejam as demais regras do art.º 52.º, e na condição de tal transmissibilidade/dedutibilidade ter sido (previamente) autorizada pelo Ministro da Finanças. Autorização essa que deverá ser solicitada pelo interessado mediante requerimento a apresentar à AT, o qual deverá ser instruído com os elementos identificados na Portaria aplicável (supra), sem prejuízo poderem ainda ser-lhe solicitados outros elementos de prova tidos por necessários.
O regime em apreço integra-se, pois, nas limitações fixadas pelo legislador ao direito à dedução de PFs. Visa-se obstar a que tal direito patrocine esquemas de planeamento fiscal menos legítimo, evitar o “comércio de prejuízos” ou evitar a prática de compra e venda de sociedades com prejuízos em dedução. O legislador consagrou, assim, pela introdução do regime em questão na Ordem Jurídica (v. Lei n.º 39-A/2005, de 29.07), através de uma clásula anti-abuso especial, o n.º 8, causas de exclusão do direito ao reporte de PFs. Passando a regra a ser, em tais situações (ali subsumíveis) a da intransmissibilidade/ não dedutibilidade.
Para afastar a regra (de intransmissibilidade, não dedutibilidade) o regime exigia, conforme vigente à data dos factos, a sujeição da situação à apreciação por membro do Governo, num determinado prazo após a realização da operação, e antes da pretendida dedução e, nesse contexto, a emissão de uma autorização para o efeito.
Dentro da margem de discricionariedade técnica que cabe ao Governo, era a este que competia, apreciando, decidir autorizar, ou não, o afastamento desta regra da não dedutibilidade dos PFs. Mediante procedimento próprio, previsto por lei, a ser despoletado pelo interessado. Sendo que a este último competia, no âmbito desse procedimento, reunir e disponibilizar os elementos necessários (cfr. Portaria) à apreciação da operação, tendo em vista a pretendida autorização que poderia, ou não, vir a ser concedida. Tudo cfr. art.º 52.º, n.ºs 8, 12 e 13.
Não será, assim, por a Requerente vir nos autos alegar que não ficou prejudicado o efeito útil/a ratio da norma que incumpriu (refere-se ao n.º 12) que a mesma, melhor, o regime legal em que também ela se integra, deixará de aplicar-se. Como bem se compreende. A ratio da norma impõe, precisamente, a não aceitação da dedutibilidade, num caso como o dos autos em que preenchido o n.º 8, ou seja, verificando-se alteração aí subsumível, não foi emitida a autorização prevista no n.º 12. Assim também se cumprindo o efeito útil da norma.
Para concluir diferentemente, a Requerente considera que, tendo submetido a IES, cumpriu com o seu dever de comunicação da operação à AT e assim supriu o visado pela norma (n.º 12). E que demonstrou, no procedimento inspectivo e nestes autos, o interesse económico da operação.
Deve dizer-se que nem a IES serve e/ou cumpre tais fins, de requerer, e submeter a decisão pelo Ministro das Finanças, uma autorização no âmbito de um procedimento em que será feita uma apreciação da situação para decidir afastar ou não a regra da não dedutibilidade de PFs em situações como a do caso. Nem, além do mais, o regime legal em questão se bastava com uma alegada prova (via junção de actas da AG) do interesse económico da entrada do novo sócio num momento posterior ao da dedução dos PFs. Como se viu, a autorização, condição do direito que a Requerente se arroga (e dependente da apreciação, por membro competente do Governo, de um conjunto de factores) é uma autorização a ser emitida em momento prévio ao da eventual dedução. Assim a legitimando (a ser esse o caso). Conforme regime ao tempo em vigor.
Acresce, sempre se diga e sem prejuízo do mais que se dirá, que não só não corresponde à verdade que tal prova (de alegado interesse económico) tenha sido feita pela Requerente (além do mais, a própria Requerente refere que o interesse económico estaria reconhecido na inspeção simplesmente pela razão de que aí apresentou as actas da AG) - v. 47.º- 48.º e ss do PPA. Como não corresponde à verdade que a Requerida o tenha considerado provado (a própria Requerente assim o reconhece também (não ter a AT considerado provado): “(...) não impedia que a AT tivesse validado, através da documentação apresentada pela Requerente, as razões económicas válidas” “(...) a análise formalista dos Serviços de Inspeção Tributária que ignorando os meios de prova se limitaram a invocar as regras legais” - v. 62.º- 63.º PPA.
Como, ademais (e sempre sem prejuízo do mais que se dirá), a Requerente não apresentou, no procedimento de inspecção, contestação/defesa quanto às correcções na origem da Liquidação. Não exerceu direito de audição relativamente às correcções propostas em matéria de prejuízos fiscais. Como poderia, e deveria, ter feito se pretendesse ali discutir/provar o alegado interesse económico a que ora apela, e invoca ter logrado ali provar. Submetendo-o assim, se o entendesse, à apreciação da Requerida[3]. V. al.s i) e j) do probatório. As correcções propostas em matéria de Prejuízos Fiscais foram convoladas em definitivas sem a Requerente sobre elas se ter pronunciado, como lhe era, e foi, dado poder fazer.
Como, por fim, e sempre determinante, apenas ao membro do Governo responsável pela área das finanças competia apreciar dos elementos que lhe tivessem sido facultados, em tempo para o efeito, conforme estabelecido pelo legislador, e decidir verificar-se, ou não, caso de especial interesse económico /interesse público na operação. No âmbito da margem de discricionariedade técnica que lhe assiste.
Sem prejuízo de tudo o que, e sob pena de violação do princípio da separação de poderes, não caberia ao Tribunal substituir-se a quem dispõe de competência para a emissão da autorização, e ir apreciar da reunião, ou não, das condições que seriam, ou não, tidas pelo Governo como de caso especial de reconhecido interesse económico e, assim, merecedoras da autorização pretendida.
A Requerida, como assim o Tribunal, aplicam a lei. Que ficou percorrida supra.
Não estavam, pois, preenchidos os requisitos legais do direito à dedução dos PFs no caso.
Pelo exposto, evidente se torna ainda que não foi violado, pelo acto tributário, o princípio da prevalência da substância sobre a forma, a que a Requerente a certo passo faz apelo. Desde logo, não estamos perante uma mera exigência de forma, contrariamente ao que parece defender. Por tudo o que se viu implicado para efeitos da submissão do requerimento de autorização.
E nem cabem dúvidas de que se está perante matéria da competência do Governo no âmbito da respectiva margem de discricionariedade técnica. Como unanimemente entendido na Doutrina e na Jurisprudência. Entre outros, pode ver-se o Acórdão do STA n.º 1003/05, de 12.07.2006, no qual se deixava claro que nem o juízo da Administração num tal contexto poderia ser fiscalizado pelos Tribunais (salvo erro grosseiro ou manifesta desadequação ao fim legal)[4].
As correcções na origem do acto em crise são, por tudo o que antecede, conformes à lei. E, assim, a Liquidação nelas originada.
3.3. Questões de constitucionalidade
Alega a Requerente que o n.º 12 do art.º 52.º na interpretação propugnada pela Requerida de que a manutenção dos prejuízos fiscais estava dependente da apresentação do pedido ali previsto viola “os princípios da tributação pelo lucro real e da capacidade contributiva do art.º 104.º, n.º 2, da CRP”.
Ora, a interpretação seguida pela Requerida é a que se impõe pela própria letra da norma, vigente na Ordem Jurídica à data dos factos e coerente com o espírito do legislador, ao consagrar a cláusula especial anti-abuso como vigente ao tempo.
Consequentemente, não se verifica a alegada violação do art.º 104.º, n.º 2 da Constituição.
Mais alega a Requerente que aquela norma “ao fazer depender a manutenção dos prejuízos fiscais da apresentação de um pedido dirigido ao membro do Governo responsável pela área das finanças e impedindo a posterior demonstração dessas razões válidas” “viola, de forma flagrante, o princípio da tributação pelo lucro real e da capacidade contributiva, constitucionalmente consagrados”.
Sem prejuízo do que se dirá de seguida, comece por referir-se que cabia à Requerente suscitar de modo processualmente adequado a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada, cfr. artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Em qualquer caso, refira-se que a norma vigorava, ao tempo, como tal na Ordem Jurídica, consagrada que foi pelo legislador no âmbito da sua margem de conformação infra-constitucional. Com interesse v., entre outros, o Douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 55/2022, de 20.01.2022, onde se lê, entre o mais: “(...) Este espaço de liberdade à iniciativa e modulação infraconstitucional é tanto mais vasto quando o reporte de prejuízos importa, sem nenhuma dúvida, intensa erosão da base de incidência tributária de IRC, o que assume decisiva relevância quando nos localizamos num domínio particularmente permeável a evasão e elisão fiscal (a fiscalidade empresarial). Sinaliza-se por isso a presença de outro valor constitucionalmente relevante no problema, este respeitante às necessidades financeiras do Estado a que o imposto atende (artigo 103.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) e que confere ao legislador ordinário grande espaço de manobra e dever de ponderação ao procurar equilibrar os interesses em confronto na fixação das condições para o trânsito de prejuízos fiscais entre exercícios. Está bom de ver, ainda que se possa entender materialmente mais justo, economicamente aconselhável e politicamente avisado (de manter presente o contexto de competitividade fiscal entre Estados que se acha instalado), não existe princípio constitucional que imponha a consagração legal do instituto de reporte de prejuízos fiscais entre exercícios, tanto menos que estabelecesse uma concreta fórmula para o efeito. (...) Concluímos, então, que a consagração, de uma parte, e a definição concreta, de outra, do regime legal de reporte de prejuízos fiscais não são produtos de imposições constitucionais, antes são consequência de preocupações sentidas pelo legislador ordinário em insuflar o IRC de maior equidade fiscal e em promover a avaliação da capacidade económica dos operadores de forma mais rigorosa, tudo no interior do perímetro de liberdade legislativa concedido pelo quadro constitucional e na presença (e sacrifício relativo) de outros valores constitucionais relevantes.”
Não ocorre, assim, em qualquer caso, a invocada violação da Constituição, não se violando seja o art.º 104.º, seja o 103.º ou o 13.º.
Quanto, por fim, ao invocado pela Requerida nesta sede, e tendo o Tribunal aplicado o n.º 12 do art.º 52.º, nada cabe apreciar.
4. Pedidos de devolução de quantias pagas e juros indemnizatórios
Por tudo o visto, a Liquidação é conforme à lei.
Ficam, assim, sem condições de procedência os pedidos aqui em referência, pois não sendo a Liquidação de anular, não houve pagamento indevido de quantias, que houvesse que devolver, nem serão, pela mesma razão, devidos juros indemnizatórios (v. art.º 43.º, n.º 1 da LGT).
5. Decisão
Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o PPA, e assim:
Absolver a Requerida do pedido de anulação da Liquidação de IRC melhor identificada supra, e manter a Liquidação na Ordem Jurídica.
6. Valor do processo
Nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2 do CPC, fixa-se o valor do processo em € 209.390,50, que foi indicado pela Requerente.
Lisboa, 14 de Maio de 2024
Os Árbitros,
(Regina Almeida Monteiro - Presidente)
(Sofia Ricardo Borges - Adjunto)
(Tomás Cantista Tavares, Adjunto, com declaração de voto)
Voto de vencido (proc. 479/2023-T)
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Votei vencido, no essencial, por razões de fundo (sobre o tema material do processo) e por erros de julgamento em questões que impactam na análise da prova.
Quanto ao tema material
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A questão decidendi é muito simples: tendo sido adquirido mais de metade dos direitos de voto de sociedade com elevados prejuízos fiscais, que posteriormente passa a ser muito lucrativa, seguramente por intervenção do novo sócio, pode (ou não) a sociedade utilizar esses prejuízos, apesar de não o ter solicitado, nos termos e prazos do art. 52.º, n.º 12 e 13, do CIRC (na redação à época). Por outras palavras: o requerimento do nº 12 e 13 do art. 52.º do CIRC é requisito ad substanciam ou ad probationem?
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Para a Sentença, trata-se de requisito ad substanciam: se não requereu, no tempo e modo devido, perde-se os prejuízos fiscais, por efeito da mudança de mais de metade dos direitos de voto da Sociedade – numa leitura formalista do art. 52.º, n.º 8, 12 e 13 do CIRC.
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Advogo, porém, uma interpretação material destes preceitos: a) o requerente não solicitou a manutenção dos prejuízos fiscais, no prazo de 30 dias após a mudança da maioria de votos do capital da sociedade; b) mas não escondeu a mudança do capital (na IES); c) e esta operação de concentração preenche o conceito de “reconhecido interesse económico” – na inspeção, a AT nunca coloca isso em causa: a multinacional (compradora do capital) reduziu capital para cobrir prejuízos e injetou muito dinheiro, via aumento de capital, para sanear financeiramente a sociedade; forneceu o seu know-how e liquidou os passivos mais relevantes – para permitir a recuperação económica da sociedade. O que foi conseguido e, em 2019, a sociedade, já com elevados lucros, quer aproveitar os prejuízos anteriores.
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Se a requerente tivesse solicitado a manutenção dos prejuízos, no procedimento [e prazo] próprio – tal ser-lhe-ia concedido (o relatório de inspeção tributária [doravante RIT] nunca diz o oposto); logo, também deve ser concedido se preenche os requisitos materiais, apesar de não ter efetuado tal procedimento prévio.
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Esse procedimento não contém qualquer obrigação acessória, incompatível com a aceitação a posteriori, via RIT. Explico-me: se a lei (art. 52.º, n.º 12 e 13, do CIRC e Portaria 273/2014) condicionasse a manutenção dos prejuízos fiscais a certas obrigações acessórias especificas (permitir acesso a conta bancária, entrega de informação periódica especifica, com inversão do ónus da prova), não poderia então aceitar-se a transmissão, em sede do RIT, porque o pedido tinha função específica, não alcançada com a concessão a posteriori. Mas nada disso acontece, no caso concreto. O pedido atempado contém sobretudo informação de prognose da atividade da sociedade – do impacto do novo sócio maioritário na desejada evolução futura da sociedade.
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Aliás, a retórica da Sentença conduziria a resultados absurdos: permitir-se-ia a manutenção dos prejuízos fiscais, em pedido atempado e autorização Estatal, mas depois a performance futura fique aquém do projetado; e não se concede, apesar da performance futura ter sido espetacular – havendo “reconhecido interesse económico” – apenas por não se ter efetuado um pedido formal, num certo momento.
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Na interpretação legal que advogo, fica a questão: para que serve afinal o pedido em 30 dias de autorização de manutenção dos prejuízos fiscais? Tem grande importância prática, como garantia de segurança jurídica e tutela dos direitos do administrado. Se pedido e deferido – o contribuinte fica com a certeza de utilização de reporte anterior (e até podia condicionar o preço da compra a essa situação).
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Se o não fizer, no procedimento e prazo, fica numa situação de insegurança jurídica – mas, por prevalência da igualdade e capacidade contributiva, mantém os prejuízos fiscais porque a operação de concentração tem “reconhecido interesse económico”.
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Se o RIT não põe em causa o reconhecido interesse económico da operação – como é o caso – então o requerente tem direito à manutenção dos prejuízos, apesar de não os haver solicitado aquando da mudança do capital, por prevalência de razoes materiais sobre o formalismo. E não há qualquer abuso, mas a efetivação de razões económicas válidas – e cumpre-se a função de clausula específica anti abuso do art. 52.º, n.º 12 e 13, do CIRC.
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No estrito cumprimento da legalidade (art. 55.º da LGT), o RIT estava em condições de considerar verificados os elementos homólogos à informação que seria prestada via portaria 273/2014, nem que solicitasse decisão de superior hierárquico; como estaria habilitado a proceder a liquidação adicional de imposto, por recusa da manutenção dos prejuízos, se uma outra empresa não tivesse efetuado os investimentos (ou afinal tivessem baixa performance) que estiveram na base da concessão da manutenção dos prejuízos, solicitados atempadamente.
Quanto aos erros de julgamento
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A Sentença advoga que o requerente não fez prova de factos relevantes para a decisão da causa, mas, ao mesmo tempo, recusou a inquirição da testemunha arrolada no seu requerimento inicial, por considerar o seu depoimento irrelevante e desnecessário.
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A Sentença censura a atitude do requerente, ao nível da falta de prova e falta de cooperação com o processo, pelo facto de não ter exercido a audição prévia; mas a audição prévia é uma mera faculdade do contribuinte, que a pode ou não utilizar antes da emissão do ato tributário, e nenhum desvalor pode ser assacado ao seu silêncio. Uma coisa é a falta de cooperação na inspeção tributária, e o incumprimento desse dever por ter consequências funestas para o contribuinte, ao nível do imposto (e prova) e coimas; outra coisa, é o não exercício do direito de audição prévia, que não pode ter qualquer impacto na fundamentação do ato tributário, porque o sujeito nada incumpriu.
Porto, 14 de maio de 2024
Tomás Cantista Tavares
[1]Diplomas legais aplicáveis ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT (e assim sempre que para eles se remeter na presente Decisão).
[2] Como assim ao longo do Acórdão, salvo se indicado em contrário.
[3] (e o mesmo se diga caso pretendesse provar a sua situação recair afinal em alguma das elencadas no n.º 9, e contrariamente ao que vem por si também aceite pois que considera a situação recair no n.º 8)
[4] E a que adere Rui Duarte Morais in “Apontamentos ao Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas”, Almedina, 2009, pp 167-168.