Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1050/2023-T
Data da decisão: 2024-05-08  IRS  
Valor do pedido: € 39.491,03
Tema: Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS). Inutilidade superveniente da lide.
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SUMÁRIO:

Se, após a constituição do Tribunal Arbitral, a Requerida anular administrativamente o ato de liquidação impugnado, satisfazendo o pedido da Requerente, conforme é reconhecido por esta, encontram-se verificados os pressupostos da inutilidade superveniente da lide e consequente extinção da instância.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

           

  1. Relatório
  1. A..., contribuinte nº ..., residente em..., ..., ... ..., na Suíça (doravante “Requerente”), veio, ao abrigo do artigo 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral.
  2. A Requerente pretende a revogação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa nº ...2022... de 20-12-2022, contra a liquidação de IRS 2021 nº 2022... de 29-06-2023, e a anulação desta liquidação, com o valor a pagar de €39.491,03, bem como a condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios à Requerente desde a data de pagamento do imposto até à data de emissão da nota de crédito a favor da Requerente.
  3. A Requerente sustenta o pedido de pronúncia arbitral, em síntese, no facto de ter o seu domicílio fiscal na Suíça desde 1 de março de 2020, razão pela qual entende que os rendimentos do trabalho dependente auferidos na Suíça em 2021 só nesse país poderiam ser tributados.
  4. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
  5. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 28-12-2023 e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT, em 29-12-2023.
  6. Dado que a Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, foi o signatário designado como árbitro, pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do RJAT, tendo a nomeação sido aceite no prazo e termos legalmente previstos.
  7. Em 14-02-2024, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
  8. O Tribunal Arbitral foi constituído em 05-03-2024, conforme comunicação do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, ao abrigo do artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.
  9. Na mesma data, a Requerida foi notificada para apresentar resposta e remeter ao tribunal cópia do processo administrativo.
  10. Em 12-04-2024 a Requerida remeteu ao tribunal cópia do processo administrativo.
  11. Em 16-04-2024 a Requerida veio informar os autos da anulação administrativa da liquidação de IRS impugnada e da rejeição do pagamento de juros indemnizatórios, juntando cópia da Informação dos Serviços da Requerida na qual foi exarado o despacho de anulação administrativa, datado de 12-04-2024.
  12. Em 20-04-2024, este Tribunal proferiu despacho arbitral através do qual determinou a notificação da Requerente para, no prazo de 10 dias, querendo, se pronunciar sobre o requerimento apresentado pela Requerida informando os autos da “revogação do ato impugnado”.
  13. A Requerente pronunciou-se em 24-04-2024, informando os autos que “face à revogação do ato tributário pela ATA, obteve aquilo que pretendia com a apresentação do pedido de pronúncia arbitral”.
  14. Em 29-04-2024 este Tribunal proferiu despacho determinando a dispensa da realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e a dispensa da produção de alegações.

 

  1. Saneamento
  1. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cfr. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).
  2. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
  3. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

 

  1. Fundamentação

 

III.1. Matéria de Facto

§1.  Factos provados

  1. Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos, que se dão como provados:
  1. A Requerente é médica, tendo-se coletado como trabalhadora independente em 4 de julho de 2017;
  2. Ao mesmo tempo desenvolvia a sua atividade como trabalhadora por conta de outrem no Hospital ...;
  3. Em 2020 a Requerente foi residir e trabalhar para a Suíça, tendo celebrado, com início em 1 de março de 2020, um contrato de trabalho por tempo indeterminado com a B..., para exercício da atividade de neurorradiologista e assistente de investigação;
  4. O local principal de trabalho da Requerente, desde essa data, passou a ser nas instalações da entidade patronal em Basileia;
  5. A partir de 1 de março de 2020, a Requerente só trabalhou e viveu na Suíça, tendo residido nesse ano apenas 59 dias em Portugal;
  6. No ano de 2021 a Requerente não residiu durante qualquer período em Portugal;
  7. Apesar de não residir em Portugal e de ter contrato de trabalho com uma empresa com sede em Basileia, na Suíça, continuou a prestar alguns serviços para Portugal, tendo emitido, em 2021, 30 recibos referentes a trabalho por conta própria prestado à empresa C..., SA.
  8. Em 2021 a Requerente não tinha qualquer estabelecimento em Portugal;
  9. Só em 8 de agosto de 2022 a Requerente procedeu à alteração do seu domicílio fiscal para a Suíça;
  10. Na declaração de IRS referente a 2021, submetida em 27-6-2022, foram declarados pela Requerente rendimentos do trabalho dependente auferidos na Suíça no montante de € 132.1236,61 e rendimentos do trabalho por contra própria correspondentes aos recibos emitidos nesse ano, todos eles auferidos enquanto residia na Suíça;
  11. Essa declaração deu origem à liquidação de IRS 2021 nº. 2022... de 29-06-2022 com valor a pagar de 39.491,03€ (nota de acerto de contas).
  12. A Requerente procedeu ao pagamento do montante correspondente à referida liquidação de IRS em 29-08-2022;
  13. Em 15-09-2022 a Requerente apresentou declaração de substituição;
  14. A Requerente apresentou reclamação graciosa em 20-10-2022, com o n.º ...2022..., contra a liquidação de IRS 2021 nº. 2022...;
  15. A reclamação graciosa foi indeferida pela Requerida em 05-12-2023, tendo a Requerente sido notificada através do Ofício n.º ...-..., de 06-12-2023.
  16. Em 26-12-2023 a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem aos presentes autos.
  17. Em 12-04-2024, a Requerida anulou o ato de liquidação de IRS 2021 n.º 2022... de 29-06-2023 com valor a pagar de 39.491,03€ (nota de acerto de contas) e a rejeitou o pagamento de juros indemnizatórios, tendo informado os autos dessa anulação em 16-04-2024.
  18. Tendo tido oportunidade de se pronunciar sobre a anulação administrativa do ato impugnado, a Requerente declarou que “obteve aquilo que pretendia com a apresentação do pedido de pronúncia arbitral”.

 

§2. Factos não provados

  1. Com relevo para a decisão, não existem factos essenciais não provados.

 

§3. Motivação quanto à matéria de facto

  1. Cabe ao Tribunal selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada [artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].
  2. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
  3. Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo por base a prova documental junta aos autos, e considerando as posições assumidas pelas partes, e não contestadas, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT.

 

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

§1. Inutilidade superveniente da lide quanto aos pedidos de anulação

  1. O n.º 1 do artigo 13.º do RJAT prevê o seguinte:

Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º”.

 

  1. À luz da terminologia do atual Código do Procedimento Administrativo (CPA), a destruição de atos com fundamento em invalidade não configura uma “revogação”, mas sim uma “anulação administrativa”, conforme resulta do artigo 165.º do CPA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT:

Artigo 165.º

Revogação e anulação administrativas

            1 - A revogação é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade.

            2 - A anulação administrativa é o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade.”

 

  1. A anulação administrativa produz efeitos retroativos, nos termos do artigo 163.º, n.º 2, do CPA.
  2. Findo o prazo definido no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, a AT fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos (n.º 3 do artigo 13.º do RJAT).
  3. No caso sub judice, o ato tributário que constitui o objeto mediato do litígio – a liquidação de IRS referente a 2021 – foi objeto de anulação administrativa pela Requerida em momento posterior à constituição deste Tribunal, como se pode constatar da matéria de facto fixada.
  4. Não é posta em causa pela Requerente a tributação por aplicação da taxa liberatória de 25%, prevista no artigo 71.º, n.º 4, alínea a), do CIRS, dos rendimentos auferidos pelo trabalho por conta própria, em virtude de não ter sido feita a prova referida no nº 2 do art.º 101º-C do CIRS.
  5. Está, assim, satisfeita a pretensão formulada pela Requerente quanto à anulação do ato de liquidação de IRS de 2021, como a própria reconhece, bem como quanto à anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, pois não pode ser praticado novo ato.
  6. Conforme referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da proveniência pretendida. Num e noutro caso, a proveniência deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele ter sido atingido por outros meios” (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Almedina, Coimbra, 4ª edição, reimpressão 2021, página 561).
  7. A inutilidade superveniente da lide configura uma exceção dilatória, a qual é causa de extinção da instância e implica a absolvição da Requerida da instância, nos termos dos artigos 277.º, alínea e), e 278.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

§2. Do pedido de juros indemnizatórios

  1. O artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
  2. O n.º 1 do artigo 19.º da LGT estabelece que “[o] domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário: a) Para as pessoas singulares, o local da residência habitual; […]”.
  3. E os n.ºs 3 a 6 do artigo 19.º da LGT determinam o seguinte:

3 - É obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.

4 - É ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.

5 - Sempre que se altere o estatuto de residência de um sujeito passivo, este deve comunicar, no prazo de 60 dias, tal alteração à administração tributária.

6 - Os sujeitos passivos residentes no estrangeiro, bem como os que, embora residentes no território nacional, se ausentem deste por período superior a seis meses, bem como as pessoas colectivas e outras entidades legalmente equiparadas que cessem a actividade, devem, para efeitos tributários, designar um representante com residência em território nacional.”.

  1. No caso sub judice, a Requerente reconhece que deveria ter comunicado à AT a alteração do seu domicílio fiscal para a Suíça, por força do disposto no artigo 19.º da LGT, o que só veio a suceder em 08 de agosto de 2022, ou seja, em data posterior à da liquidação contestada.
  2. A liquidação de IRS contestada nos autos foi emitida com base na informação de que no ano em causa a contribuinte era residente fiscal em Portugal, em conformidade com a informação que constava, à data, do cadastro fiscal da AT.
  3. Não pode, consequentemente, considerar-se que houve erro imputável aos serviços, para efeitos do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, pelo que não se reconhece o direito da Requerente a juros indemnizatórios.

 

  1.  Decisão

Termos em que decide este Tribunal Arbitral declarar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, e absolver a Requerida da instância, na parte referente ao pedido de anulação dos atos objeto do pedido de pronúncia arbitral, e indeferir o pedido da Requerente de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

  1. Valor do processo

Fixa-se ao processo o valor de € 39.491,03, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

  1. Custas

O n.º 4 do artigo 22.º do RJAT determina que “[d]a decisão arbitral proferida pelo tribunal arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas directamente resultantes do processo arbitral, quando o tribunal tenha sido constituído nos termos previstos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º”.

No caso em apreço, a causa de extinção da instância quanto aos pedidos de anulação é imputável à Requerida, pois o ato de anulação administrativa é posterior à data de constituição do Tribunal Arbitral.

O n.º 1 do artigo 527.º do Código de Processo Civil estabelece que «[a] decisão […] condena em custas a parte que a elas houver dado causa …».

No caso em apreço, a causa de extinção da instância é imputável à Requerida, pelo que, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 536.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29º, n.º 1, alínea e) do RJAT, lhe é imputável a responsabilidade pelas custas do presente processo.

 

Assim, nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.836,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 08 de maio de 2024

 

 

O árbitro,

 

 

 

Paulo Nogueira da Costa