Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 585/2023-T
Data da decisão: 2024-05-02  IUC  
Valor do pedido: € 4.236,62
Tema: IUC. Incidência subjetiva. Registo de propriedade
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SUMÁRIO:

 

  1. A norma de incidência subjetiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, tem de ser lida à luz das finalidades e regras do registo automóvel e constitui mera presunção juris tantum de propriedade.
  2. As faturas e os contratos de locação permitem no final dos mesmos (dos contratos), concluir pela transmissão dos veículos, sendo meios idóneos para ilidir a presunção;
  3. Sendo julgado procedente um pedido de pronúncia arbitral, e estando o imposto pago, são devidos juros indemnizatórios, mas apenas a partir da data em que se perfizer 1 (um) ano sobre a data da apresentação do pedido de revisão oficiosa.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro singular, Professor Doutor Rui Miguel Zeferino Ferreira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa – CAAD para formar Tribunal Arbitral Singular, constituído em 8 de novembro de 2023, decide o seguinte:

 

I.     RELATÓRIO

 

  1. A..., S.A, doravante designada “Requerente”, NIPC..., com sede na Rua ..., ...–..., ...-... ..., na sequência da notificação do ato de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa n.º ...2023..., através do ofício n.º .../2023, de 28.04.2023, referente a 70 (setenta) atos de liquidação de imposto único de circulação (“IUC”) [referente a 67 (sessenta e sete) veículos automóveis], no valor de € 4.263,62 (quatro mil duzentos e sessenta e três euros e sessenta e dois cêntimos), que juntou como Anexo A, não se conformando com o mesmo, veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos nos 1 e 2 do artigo 10.º, ambos, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT”), com vista à declaração de ilegalidade do ato de indeferimento do identificado pedido de revisão oficiosa, bem como dos atos de liquidação de IUC a que se refere, com o correspondente reembolso do montante de € 4.263,62 (quatro mil duzentos e sessenta e três euros e sessenta e dois cêntimos), relativo ao imposto indevidamente pago pela Requerente e, bem assim, o pagamento dos respetivos juros indemnizatórios.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Singular foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 14 de agosto de 2023.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral Singular o aqui signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 20 de outubro de 2023 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 8 de novembro de 2023.

 

  1. Em suporte das suas pretensões alega a Requerente, em síntese:

 

  1. Que se trata de uma instituição de crédito, com uma atividade muito preponderante no financiamento ao setor automóvel, na área dos bens de consumo, cartões de crédito, co branded e empréstimos pessoais.

 

  1. Que parte substancial da sua atividade se reconduz à celebração de contratos de locação financeira ou contratos de aluguer de longa duração, destinados à aquisição de veículos automóveis, por parte de empresas e particulares.

 

  1. Que os veículos automóveis constantes do Anexo A foram todos dados em contratos de aluguer de longa duração (“ALD”) ou de locação financeira (“LSG”) pela Requerente [cfr. Documentos 1 a 67], mas, no entanto, os referidos contratos encontram-se em incumprimento por parte dos locatários, decorrente de terem deixado de pagar as prestações mensais.

 

  1. Que, apesar desse incumprimento, os locatários detinham a posse dos veículos, o que implicava a existência de uma relação entre a Requerente e os respetivos locatários, nomeadamente, em processos de cobrança coerciva para recuperação dos respetivos veículos.

 

  1. Que nos casos das viaturas com as matrículas ..., ... e ..., existiu uma cedência da respetiva posição contratual, bem como no caso da viatura com a matrícula ... existiu uma renegociação contratual, e com a viatura com a matrícula … existiu um sinistro com salvado para a seguradora.

 

  1. Que em todos estes casos, apesar do incumprimento, os locatários detinham ainda os veículos, pelo que a utilização dos respetivos veículos automóveis esteve sempre a cargo dos locatários e não da Requerente.

 

  1. Que a propriedade jurídica embora pertencesse à Requerente, esta nunca usufruiu dos veículos, que estiveram, desde o momento da sua aquisição, a ser utilizados pelos locatários.

 

  1. Que, ainda assim, a Requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC.

 

  1. Que nos anos a que se reportam os atos tributários os veículos automóveis já tinham saído da posse da Requerente, encontrando-se esta em pessoa jurídica diversa, pelo que já não era locadora nem proprietária e, por isso, não podia assumir a qualidade de sujeito passivo dos impostos que lhe foram erroneamente liquidados.

 

  1. Que, nos contratos de locação, embora as partes tivessem estabelecido que os mesmos teriam o seu termo numa certa data, a verdade é que, por razões de política comercial, maior eficiência e racionalização de custos, a Requerente aceitou prorrogar tacitamente os termos dos contratos, com vista a garantir maiores hipóteses de cumprimento das rendas em atraso.

 

  1. Que o registo, ou a falta dele, não pode ser em momento algum considerado elemento decisivo da responsabilidade tributária da Requerente, pelo que o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa padece de ilegalidade, tal como os atos de liquidação de IUC que lhe estão subjacentes.

 

  • Que os efeitos do registo automóvel e o princípio da equivalência não apontam para o estabelecimento de uma presunção de incidência subjetiva do imposto com base tão só no registo automóvel, e também porque essa proposta hermenêutica não se coaduna com os elementos gerais da interpretação das leis, nos termos dos artigos 11.º da LGT e 9.º do CC.

 

  1. Que o registo de propriedade automóvel não é condição de eficácia do contrato de compra e venda do veículo, mas tem apenas eficácia declarativa, pelo que a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de (novo) proprietário, visto que o mesmo não é condição de validade nem condição de produção do efeito translativo do mesmo, impedindo apenas a eficácia plena do contrato de compra e venda, mas não quanto a todas as entidades, como sucede com a AT, por não ter a qualidade de terceiro para efeitos de registo.

 

  • Que da interpretação teleológica decorre que o sujeito passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar.

 

  • Que a presunção derivada do registo automóvel não pode deixar de ser entendida como uma presunção ilidível, em especial por força do previsto no artigo 73.º da LGT, por admitir sempre prova em contrário.

 

  1. Que a conjugação do n.º 1 do artigo 3 com o n.º 1 do artigo 6.º, ambos do Código do IUC, nos termos da qual o facto gerador do imposto seria constituído pela propriedade do veículo automóvel, levada ao extremo, provocaria situações absurdas, sendo certo, também que o mesmo diploma legal contém normas que também apelam a realidades “não registadas”.

 

  1. Que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC configura uma presunção ilidível, que admite sempre prova em contrário, porquanto a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo automóvel e que, por essa razão é considerada – e bem – pela AT como sujeito passivo de IUC, pode, no entanto, apresentar elementos de prova com vista a demonstrar que o titular da propriedade é outrem, para quem a propriedade foi transferida antes do imposto se tornar exigível.

 

  1. Que as faturas se afiguram mais do que suficientes para comprovar as transmissões dos veículos automóveis em causa, gozando, aliás, e não poderia deixar de ser, da presunção de veracidade.

 

  1. Que a Requerente não era a real proprietária dos veículos automóveis a que respeitam os factos tributários postos mediatamente em crise e, por isso, não era o sujeito passivo dos IUC, por não estar verificada a incidência subjetiva do imposto, pelo que os mesmos estão inquinados de insanável ilegalidade, a qual contamina irremediavelmente o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, por padecer do mesmo vício e, em consequência, deve ser anulado.

 

  1. Que mesmo que se pudesse interpretar a (nova) redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, alterada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, como se de uma presunção inilidível se tratasse, não era possível, contudo, aplicar essa interpretação à situação vertente, que seria inconstitucional, ferindo o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, os atos de liquidação, com o apoio legal no artigo 13.º e 18.º, da CRP.

 

  1. Que deverá, além do reembolso das importâncias indevidamente pagas, ser reconhecido o direito a juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º, da LGT, e, bem assim, que a AT seja condenada em custas processuais

 

  1. Em 11 de dezembro de 2023, após notificação à Requerida para apresentação de resposta, a mesma apresentou-a, bem como juntou o respetivo processo administrativo, invocando em síntese:

 

  1. Que, com a entrada em vigor do CIUC, alterou-se de forma substancial o regime da tributação dos veículos, passando a propriedade, tal como atestada pelo registo, a ser o elemento definidor das regras de incidência, independentemente do uso ou fruição do veículo, pelo que o imposto passou a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietários dos veículos.

 

  1. Que o imposto passou a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietários dos veículos, em que o legislador quis expressa e intencionalmente, e no âmbito da sua liberdade de conformação legislativa, criar um imposto único de circulação, assente na tributação do proprietário do veículo, tal como constante do registo automóvel.

 

  1. Que o registo automóvel corresponde a um elemento determinante em todo o imposto, relacionando-se com o facto gerador, com a conexão fiscal, com o início do período de tributação e, bem assim, com todos os elementos essenciais e atinentes à liquidação do imposto.

 

  1. Que, no que se refere à matéria do registo automóvel, não se coloca em causa que este constitui uma presunção de que o direito registado, na amplitude e com o conteúdo em que o foi, existe na titularidade do sujeito que consta do registo e, bem assim, que essa presunção é ilidível, podendo o facto inscrito ser infirmado e ilidido mediante prova em contrário.

 

  1. Que essa presunção deve ser ilidida em sede própria, no âmbito do registo e, aí ilidida, terá consequências a jusante no domínio tributário, pelo que não é irrelevante à AT a presunção do registo nem a sua ilisão, mas que a mesma (a presunção) não contende direta e imediatamente com as normas de incidência subjetiva do imposto, ainda que, nela se repercutam os seus efeitos.

 

  1. Que a não atualização do registo automóvel, que é obrigatório, será imputável na esfera do sujeito passivo de IUC, e apenas nela, pelo que a leitura a fazer da disciplina do CIUC, terá de passar pelo entendimento de que o legislador tributário quis intencional e expressamente, que fossem considerados como sujeitos passivos, as pessoas em nome das quais [os veículos] se encontrem registados, ao invés, do consagrado nos anteriores diplomas.

 

  1. Que artigo 3.º, do CIUC,  passou a estabelecer que, “[s]ão sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos”.

 

  1. Que da redação dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 decorre, que o legislador procurou definitivamente afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito passivo do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados, o que na sua perspetiva pretendeu que o sujeito passivo do imposto fosse indiscutivelmente o proprietário constante do registo, independentemente de ser ou não o titular do direito real de propriedade sobre o veículo, de forma a serem ultrapassadas dificuldades de natureza interpretativa que até aí existiam.

 

  1. Que, com a nova redação dada ao art.º 3.º, do CIUC, pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, clarificou-se que o sujeito passivo do imposto é a pessoa em nome de quem está registado o veículo automóvel, pelo que foi afastada a presunção de propriedade do veículo decorrente do registo automóvel ou qualquer presunção de incidência subjetiva na determinação do sujeito passivo do IUC, sendo o registo de propriedade automóvel que define a incidência subjetiva do IUC e identifica o sujeito passivo, independentemente da identidade ou da pessoa que tem a propriedade efetiva.

 

  1. Que a jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais tem feito uma inequívoca distinção entre a redação originária do art.º 3.º n.º 1 do CIUC e aquela que decorreu da alteração operada pelo DL n.º 41/2016, de 1 de agosto, que, sem entrar na qualificação jurídica da nova redação, considera que a partir daquela data a lei não contempla nenhuma presunção, afastando de vez a questão de saber se foi ilidida ou não a presunção, pois ao retirar a parte “os proprietários dos veículos, considerando-se como tais”, a alteração operada visou, claramente, passar a incidência subjetiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu efetivo proprietário e/ou possuidor.

 

  1. Que do acórdão do STA, de 2020.06.03, Processo n.º 0467/14.0BEMDL 0356/18, se pode ler que “A alteração introduzida no artigo 3.º, n.º 1 do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, não tem natureza interpretativa”.

 

  • Que do acórdão do TCA-Norte, proferido no processo n.º 00611/13.4BEVIS, resulta que que “da redacção dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 conclui-se que veio o legislador afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados”.

 

  1. Que resulta do acórdão do TCA-Norte, proc.º 01271/14.0BEPNF, que “Com a norma interpretativa aprovada pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º (DL) 41/2016, de 1 de agosto, o IUC não é um imposto que incida sobra a propriedade ou posse do veículo, mas sobre a pessoa em nome de quem está registado um veículo automóvel”.

 

  • Que, quanto à incidência subjetiva do IUC, à data dos factos o art.º 3.º do CIUC previa que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, bem como que “São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”.

 

  • Que o art.º 169.º, alínea a), da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, autorizou o Governo a introduzir alterações no CIUC, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, com o seguinte sentido e extensão: “Definir, com carácter interpretativo, que são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito publico ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, no n.º 1 do artigo 3.º”, do qual resultou o Decreto-Lei 41/2016, de 1 de agosto, que estabeleceu que “São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos”.

 

  1. Que a referida norma não é verdadeiramente interpretativa, uma vez que não existem dúvidas de que a lei habilitante, a LOE, no seu artigo 169.º, classifica a alteração legal a efetivar quanto ao artigo 3.º do CIUC como tendo carácter meramente interpretativo.

 

  1. Que aquilo que o legislador fez foi afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito passivo do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados.

 

  1. Que no processo arbitral n.º 417/2020-T, do CAAD, resulta que “ao retirar a parte “os proprietários dos veículos, considerando-se como tais”, a alteração operada visa, claramente, passar a incidência subjetiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor.”, a qual “É uma alteração relevante que que faz toda a diferença no presente caso, dado que, sendo a liquidação posterior a 2016, a ela se aplica a nova redação e as suas consequências, ou seja, a atual redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC não contempla uma presunção e, consequentemente, também não se coloca aqui a questão de saber se a ilisão da presunção foi realizada - como pretendeu demonstrar a ora Requerente -, nem a questão de saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal desconsidera o elemento histórico e o elemento teleológico, como defendeu a Requerida na sua resposta.”.

 

  1. Que várias são as decisões arbitrais que têm seguido este entendimento de, manifestamente, considerar que, pelo menos face à redação dada ao art.º 3.º n.º 1 em 2016, o CIUC não contempla qualquer presunção, no que respeita à determinação da norma de incidência subjetiva.

 

  1. Que, por exemplo, a decisão do CAAD de 17 de novembro de 2022, proferida no processo n.º 148/2022-T, sobre uma ação interposta pelo ora Requerente, em que o pedido, a causa de pedir e a argumentação invocada é em tudo igual ao da presente ação, se decidiu que: “ 1. Com a nova redação aprovada pelo art.º 3.º do Decreto Lei n.º (DL) 41/2016, de 1 de agosto, o IUC não é um imposto que incida sobre a propriedade ou posse do veículo, mas sobre a pessoa em nome de quem está registado um veículo automóvel. 2. O sujeito passivo é a pessoa em nome de quem está registada a propriedade do veículo, independentemente de ser ou não o seu proprietário e/ou possuidor. 3. A incidência subjetiva basta-se com o mero registo do direito de propriedade em nome do sujeito passivo, sendo suficiente o nome da pessoa em que se encontra registada a propriedade do veículo, independentemente de ela ser ou não a proprietária e possuidora efetiva do veículo o ano a que respeita o IUC, designadamente no caso das situações de venda do veículo sem atualização do registo de propriedade”.

 

  1. Que será de concluir que, a falta de registo em nome do novo adquirente faz com que a incidência subjetiva do IUC se mantenha no titular do direito de propriedade inscrito na Conservatória do Registo Automóvel e seja este o responsável pela liquidação e pagamento do IUC, independentemente da sua alienação.

 

  1. Que sendo o facto gerador do imposto constituído pela propriedade do veiculo, tal como atestado pela matrícula ou registo em território nacional, e estabelecendo o legislador de forma inequívoca e clara, que os sujeitos passivos são os proprietários dos veículos, em nome das quais os mesmos se encontram registados, conforme o disposto no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, não restava outra alternativa senão liquidar o imposto em causa, pois é na Requerente que se verifica o facto gerador do imposto e os elementos de incidência objetiva e subjetiva (artigos 2.º, 3.º e 6.º, n.º 1 do CIUC).

 

  1. Que não ocorre qualquer violação do princípio da equivalência, uma vez que estando o mesmo consagrado no artigo 1.º do CIUC, o mesmo não tem a amplitude que pretende a Requerente, pois trata-se de uma norma de carácter programático, sem carácter vinculativo.

 

  1. Que, no sentido de atribuir segurança e certeza jurídicas na relação jurídico-tributária, em conformidade com a realidade negocial, o artigo 3.º do CIUC estabelece, como pilar estrutural do IUC, que a incidência subjetiva se afere pela pessoa em nome de quem está registada a propriedade do veículo na CRA, sendo o registo obrigatório nos termos do Decreto-Lei n. 54/75, de 12 de fevereiro.

 

  1. Que esta regra em nada contende com o princípio da equivalência, na exata medida em que cumpridas pelas partes as obrigações de registo, tal princípio permanece incólume, pelo que sustenta que a Requerente faz uma análise enviesada da letra da lei, e uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado no Código do IUC e no sistema jurídico-fiscal.

 

  1. Que deverão as liquidações manter-se, uma vez que não enfermam de erro ou vício, pelo que conclui pela improcedência, total, da pretensão da Requerente, relativamente aos juros indemnizatórios, uma vez que não se mostram devidos.

 

  1. Por despacho de 11 de dezembro de 2023, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como se indeferiu a inquirição da prova testemunhal, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.

 

Nesse mesmo despacho foi concedido o prazo simultâneo de 10 dias para as Partes apresentarem, querendo, as suas alegações.

 

  1. A Requerida apresentou as suas alegações, em 18 de abril de 2024, mantendo a posição já expressa na resposta apresentada. A Requerente apresentou alegações em 29 de abril de 2024, mantendo o posicionamento evidenciado no pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. Em 29 de abril de 2024, a Requerente procedeu à junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça subsequente (pago a 15 de abril de 2024).

 

  1. SANEAMENTO

 

  1. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2 do RJAT e 1º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de Março).

 

  1. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido (art.º 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT).

 

  1. O processo não enferma de nulidades.

 

 

 

  1. QUESTÕES DECIDENDAS

 

Nos presentes autos há que decidir as seguintes questões de direito:

 

  1. A norma de incidência subjetiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, consubstancia uma ficção, insuscetível de demonstração em contrário, ou continua a ser suscetível de uma interpretação presuntiva;

 

  1. A prova documental junta ao processo pela Requerente é, ou não, um meio idóneo e apto para firmar a propriedade dos locatários no final dos contratos;

 

  1. No caso de procedência de uma decisão arbitral favorável à Requerente e encontrando-se a dívida de IUC já paga, atento o facto de ter sido indeferido o pedido de revisão oficiosa, com a sua anulação, são, ou não, devidos juros indemnizatórios.

 

 

 

  1. DA MATÉRIA DE FACTO

 

  1. FACTOS PROVADOS

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma instituição de crédito, assumindo especial relevância, na sua atividade comercial, o financiamento ao sector automóvel, designadamente através da celebração de contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração.

 

  1. Uma parte substancial da sua atividade reconduz-se à celebração de contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração, destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;

 

  1. Os contratos obedecem, de forma geral, a um guião comum, em que a Requerente, depois de contactada pelo cliente que, nessa fase, já escolheu o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características e preço, adquire o veículo ao fornecedor indicado pelo próprio cliente, e, de seguida, procede à sua entrega ao cliente, assumindo este a qualidade de locatário.

 

  1. Durante o período estipulado no contrato, o locatário restitui o financiamento em prestações mensais, na forma de rendas, tendo o direito, no final do contrato, de adquirir o veículo, mediante o pagamento de um valor residual, acrescido de despesas e IVA.

 

  1. A Requerente celebrou contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira para os veículos indicados em F), tendo os locatários, no final desses contratos e nos respetivos termos, adquirido os veículos;

 

  1. Com referência àqueles veículos, foram emitidas as liquidações de IUC relativas aos anos de 2020, 2021 e 2022, identificadas no quadro que se segue:

 

 

 

 

 

 

 

  1. À data do facto gerador daquelas liquidações, a Requerente já tinha transmitido a propriedade dos veículos automóveis em causa nos presentes autos.

 

  1. À data daquele facto gerador, todos os veículos automóveis se encontravam ainda registados no nome da Requerente.

 

  1. A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa daquelas liquidações de imposto a 27 de fevereiro de 2023.

 

  1. A Requerente pagou os montantes de imposto liquidados.

 

  1. A Requerente apresentou o presente pedido arbitral em 10 de Agosto de 2023.

 

 

  1. FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não foram julgados não provados quaisquer factos relevantes para a decisão da causa.

 

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA

 

Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artº 123º, nº 2 do CPPT e artigo 607º, nº 3, aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável ex vi artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110º, nº 7 do CPPT, bem como o processo administrativo e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.

 

 

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. DA INCIDÊNCIA SUBJETIVA DO IUC (ARTIGO 3.º, DO CIUC, NA REDAÇÃO DADA PELO DECRETO-LEI 41/2016, DE 1 DE AGOSTO

 

No presente processo, embora não se desconhecendo a existência de jurisprudência arbitral com distintos entendimentos, acompanhamos o decidido em alguns das mais recentes decisões do CAAD, nesta matéria, em particular as decisões proferidas nos processos n.ºs 154/2023-T e 584/2023-T.

 

A reforma da fiscalidade automóvel teve na sua génese os estudos efetuados por um Grupo de Trabalho, mandado constituir por Despacho Conjunto dos Ministros de Estado e das Finanças e do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (Despacho Conjunto n.º 290/2006, de 27 de marco, (2.ª série), em que se definiram um conjunto de orientações e princípios, designadamente, de eficiência, eficácia e simplicidade, e se recomendou, sempre que possível, o recurso a soluções eletrónicas e a busca de soluções integradas que permitissem segurança e eficácia nas liquidações e cobranças através do envolvimento em processos de transmissão eletrónica de dados e acesso à informação de entidades externas.

 

Os trabalhos desse Grupo de Trabalho suportaram a Proposta de Lei n.º 118/X, de 7 de março de 2007.

 

A versão inicial do referido artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, preceituava que:

 

“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados”.

 

A solução legislativa encontrada foi a de recolher as informações necessárias às operações de cobrança do IUC numa base de dados de uma entidade externa – o registo automóvel – por razões de eficácia e simplicidade e tendo em conta as finalidades e a natureza dos dados constantes do registo.

 

Esta redação é, de facto, diferente daquela que o Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de Dezembro adotava para o Imposto sobre Veículos, que estabelecia nos seguintes termos:

 

O imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados

 

Esta redação transitou sucessivamente para o Decreto-Lei n.º 782/74, de 31 de Dezembro, para o Decreto-Lei n.º 81/76, de 28 de Janeiro e finalmente para o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho, legalmente, designado por «Imposto Municipal sobre Veículos», aplicável aos automóveis ligeiros de passageiros e motociclos.

 

E é esta diferença que vem sustentando a posição da AT, de que, em sede de IUC se consagrou uma presunção inilidível, de que quem consta do registo como proprietário do veículo na data em que se verifica o facto tributário o é, para efeitos unicamente tributários e sem prejuízo das regras civis da transmissão da propriedade.

 

Em qualquer caso, a verdade é que, mesmo tendo-se substituído a expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se” e tendo-se eliminado a expressão “até prova em contrário”, a norma fiscal da incidência subjetiva esteve e está subordinada às regras do registo automóvel. Ora, o Código do Registo Automóvel preceitua que o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.

 

A propriedade de um veículo automóvel é facto obrigatoriamente sujeito a registo, nos termos daquele Código, sendo que quer o Código de Registo Automóvel quer o Regulamento do Registo Automóvel fixam prazos máximos para o registo dos atos a ele obrigatoriamente sujeitos, sob várias cominações, designadamente, de natureza financeira.

 

Nos casos de locação financeira ou ALD, atividade desenvolvida pela Requerente, o Código de Registo Automóvel prescreve que o registo é feito mediante requerimento subscrito pelo vendedor, na sequência do exercício do direito de propriedade ou de aluguer de longa duração registado, acompanhado da fatura correspondente à venda ou de documento de quitação.

 

O legislador fiscal, atentas as finalidades do registo, a mera presunção que ele gera e os prazos para ele estabelecidos, não podia desconhecer que, pese embora a expressão “considerando-se” que resolver utilizar, que a informação que obtinha do registo quanto ao proprietário do veículo automóvel constituía mera presunção, que o visado podia ilidir, mediante prova cabal do contrário.

 

O legislador converteu a base de dados dos registos de propriedade automóvel numa base de dados fiscal constituída por sujeitos passivos, abstraindo-se da formação da sua constituição e da respetiva natureza declarativa, pretendendo assim com esta mudança que as questões que se suscitavam com a titularidade da propriedade formal versus propriedade efetiva não levantassem dificuldades à liquidação e cobrança do imposto.

 

Não pretendeu, porém, com isso subverter as finalidades do registo e criar uma presunção inilidível de propriedade, mas apenas facilitar a cobrança do imposto, transferindo para o sujeito passivo o ónus da prova, dotando a Administração Tributária de um mecanismo de fácil identificação dos sujeitos passivos deste imposto e socorrendo-se de uma presunção, ilidível, baseada nas regras e funções do registo automóvel.

 

Neste sentido, veja-se, também, a decisão arbitral, proferida no âmbito do processo n.º 695/2020-T, em que foi entendimento que:

 

(...) a questão de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço. Há que dizer que da exegese aos normativos legais que integram o nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível das presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada nos habilita a extrair a conclusão pretendida pela Requerida, por mera razão semântica, de que aquele normativo não encerra qualquer presunção, inclusive, na atual redação. […]

 

É fundamental realçar que o normativo do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC é uma norma de incidência – incidência subjetiva – e que o preceito legal do artigo 73.º da LGT estabelece que “[a]s presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”.

 

Também, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 02.03.2023, proferido no âmbito do processo n.º519/18.7BELRS, entendeu que:

 

“Decorre do exposto (…) que mesmo que se considerasse provado que os veículos em causa estavam entregues em regime de locação financeira (…) tal factualidade não era suscetível de fazer atuar a equiparação prevista no n.° 2 do artigo 3.° do CIUC. Isto porque, (…) o sujeito passivo do IUC não é aquele que tem a posse ou a mera detenção, nem o que utiliza ou circula com o veículo, mas antes aquele em nome do qual a propriedade se encontra registada ou, em alternativa, aquele possuidor de um dos outros direitos equiparados previstos no n.° 2 do artigo 3.° do CIUC. (…). (…) com efeito retira-se da norma ínsita no artigo 3.º do CIUC em vigor à data dos factos que a intenção do legislador foi a de fazer recair as regras de incidência do imposto nas pessoas (singulares ou coletivas de direito publico ou privado) que sejam considerados proprietários nos termos das regras do registo automóvel, o que significa que estamos na presença de uma presunção decorrente do registo, porém, ilidível nos termos gerais”

 

Assim sendo, não se pode deixar de ver a disposição legal em questão – artigo 3.º, n.º 1, do CIUC – como uma norma de incidência subjetiva, pelo que por força do artigo 73.º, da LGT, “[a]s presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, pelo que outra solução violaria o princípio da proporcionalidade e, bem assim, em bom rigor, o da capacidade contributiva.

 

Consequentemente, quanto a esta primeira questão, tal como decorre das decisões adotadas nos processos arbitrais n.ºs 154/2023-T e 584/2023-T, haverá que responder que a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, consubstancia uma mera presunção juris tantum, suscetível de demonstração em contrário, de propriedade do veículo.

 

 

  1. DA PROVA DOCUMENTAL PARA AFASTAR A PRESUNÇÃO ILIDÍVEL

 

A transmissão de veículos automóveis não é um negócio formal e o registo da propriedade automóvel tem subjacente uma mera declaração para registo, subscrita pelas partes.

 

Para a ilisão da presunção que decorre do registo, atenta a natureza não formal do negócio, não é necessária a declaração para registo, que se destina, como o próprio nome indica, ao registo automóvel. Na verdade, após alguma divergência decisória é atualmente mais ou menos pacífico, em nome de uma certa coerência e unidade do sistema fiscal, que as faturas que são emitidas no âmbito de impostos, como o IVA (artigo 29.º, n.º 1, alínea b), que no caso dos operadores económicos viabiliza a dedução do imposto e a sua contabilização como custo) e o IRC (artigos 23.º, n.º 6 e 123.º n.º 2), para efeitos de comprovar operações de venda e de prestação de serviços, originando, em regra, liquidações e cobranças subsequentes, não poderão deixar de ser meio idóneo para prova da alienação do veículo automóvel e ilisão da presunção de propriedade.

 

Com efeito, tem de se considerar possível que a Requerente possa, querendo, fazer prova de que não deverá ser sujeito ao imposto, por ter procedido à venda dos veículos automóveis ou, como ocorre no presente caso, por os mesmos estarem onerados por contrato de locação financeira, conforme decorre dos contratos juntos ao presente processo. Assim sendo, como temos de entender o artigo 3.º, do CIUC, como uma presunção ilidível, necessariamente a Requerida agiu incorretamente ao ignorar a prova produzida pela Requerente.

 

Tal como resultado da decisão arbitral, proferida no âmbito do processo n.º 283/2019-T, resulta que:

 

Para a apreciação da prova, deve começar por se firmar se o que está em causa é, apenas, a ilisão da presunção do art. 3.º, n. º1 do CIUC ou, pelo contrário, ilidir a presunção que resulta do registo automóvel (presunção, quer num caso quer noutro, de que a propriedade do veículo automóvel registado pertence ao titular do registo). Existindo já vasta jurisprudência sobre a matéria, cremos que maioritariamente ela se decide pela segunda solução apontada: do que se trata em casos como o dos autos, é de ilidir a presunção de titularidade que resulta do registo automóvel

 

Neste sentido, pode citar-se o Acórdão do STA, de 20.03.2019, proferido no âmbito do processo n.º 66/14.1.BEMDL), em que se diz:

 

“Dado que o registo do direito de propriedade sobre uma coisa móvel, cuja validade depende da regularidade do respectivo acto constitutivo apenas confere publicidade ao acto registado, sempre é possível ilidir a presunção de que o titular inscrito no registo coincide com o efectivo titular do registo registado. Assim, quando o titular do direito de propriedade inscrito no registo não coincidir com o titular do direito de propriedade é possível ilidir a presunção de que o titular registado é o titular do direito registado, em numerosas situações com repercussões ao nível do direito civil e comercial. Deverá admitir-se que o mesmo aconteça em sede de direito fiscal, com a consequente possibilidade de produzir a alteração em sede de incidência subjectiva de imposto dando prevalência ao acto constitutivo do direito sobre o acto registado”.

 

(...) no contexto das relações tributárias, e especificamente para efeitos de tributação em IUC, a exibição de faturas comerciais emitidas pelo sujeito passivo é suficiente para ilidir a presunção do art. 3.º, n.º 1 do CIUC, afastando a sua qualidade de proprietário dos veículos. E não há dúvida de que esta corrente jurisprudencial se tornou hoje não só maioritária, como sólida, pois assente numa doutrina consistente. Tudo isto visto, parece-nos dever concluir a questão particular de saber se as faturas comerciais emitidas pelo sujeito passivo provam a transmissão do veículo automóvel, sem mais, pede, hoje, uma relativização do princípio da livre apreciação das provas contido no art. 607.º, n. º5 do Código de Processo Civil. Nesta situação em particular, pela recorrência com que a mesma questão probatória é colocada, o julgamento da matéria de facto tem que ser conciliado com o princípio da certeza na aplicação do direito. E é por isso que aderimos à corrente exposta, que é dominante nos tribunais arbitrais mas é também, sem se poder dizer dominante, solidamente afirmada pelo Tribunal Central Administrativo Norte, sem que se encontre nos outros tribunais superiores uma posição que claramente se lhe oponha. E assim, adiantando o sentido da decisão, há que considerar que a Requerente logrou, através da prova apresentada, consistente em faturas/recibo relativas às vendas dos veículos, ilidir a presunção do art. 3.º, n.º 1 do CIUC, com o que as liquidações impugnadas devem ser julgadas ilegais”

 

            Cabe ainda referir que, na decisão arbitral, proferida no âmbito do processo n.º 598/2016-T, se chegou à seguinte conclusão:

 

Ainda que se alegue que a intenção do legislador foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo automóvel, é necessário ter presente que tal registo, em face do que foi dito anteriormente, gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada pela apresentação de prova em contrário.

(...)

Como bem salienta a Decisão Arbitral proferida no proc. 845/2015-T, “o artigo 72.º da Lei Geral Tributária permite a utilização «para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito».

(...)

Ademais, todas as facturas têm de ser elaboradas através de software certificado, conforme a Portaria n.º 22-A/2012, de 24 de Janeiro. Sendo que as mesmas são utilizadas para contabilização de IVA e IRC. Portanto, se para efeitos destes impostos as facturas são aceites pela Autoridade Tributário, não há qualquer razão para, in casu, não permitir a sua utilização como meio de prova, tendo como base especulações genéricas.”

(...)

Note-se, ainda, a respeito da força probatória das facturas, a Decisão Arbitral proferida no proc. n.º 27/2013-T, onde se salienta que “os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [dos] veículos […] referenciados, […] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT.”

 

Quanto à prova de venda de veículos, ela pode ser feita por qualquer meio, uma vez que a Lei não exige forma especifica, designadamente, escrita.” (...) (tendo sido também juntas cópias dos contratos) – dado que essa prova documental é decisiva para efeitos de aplicação do disposto no art. 3.º, n. º2, do CIUC

 

            No caso particular, em que estão juntos os contratos de locação financeira, importa referir que, na decisão arbitral, proferida no processo n.º 133/2018-T se referia que:

 

“(...) verifica-se, no caso aqui em análise, que a ilisão da referida presunção, mediante apresentação de prova em contrário (...), foi realizada, dado que foram apresentadas as facturas de venda, assim como os contratos de locação financeira.

 

Ainda que essas facturas não tenham sido acompanhadas de qualquer comprovativo de pagamento (mas também é certo que nenhum elemento foi apresentado nestes autos de modo a permitir duvidar, fundadamente, da veracidade das mesmas), a apresentação e a análise dos contratos de locação permite concluir – tal como sucedeu, por exemplo, na recente Decisão Arbitral de 24/11/2017, proferida no processo n.º 430/2017-T – que “tais contratos fazem supor a transferência da propriedade e uso dos veículos em causa» para os anteriores locatários logo após o término dos LSG ou ALD (ou para terceiros em casos pontuais).”

 

            A este propósito, na decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 258/2017-T, decidiu-se que: ” (...) Assim, embora não fazendo prova do pagamento efetivo do preço pelo mesmo comprador, constituem prova dessa mesma transação, ou seja, da compra e venda efetuada”.

 

            Acresce ainda referir, a decisão arbitral proferida no processo n.º 128/2019, que se decidiu que “muito embora [o Requerente seja, pelo registo,] o proprietário do veículo no período a que respeita a liquidação impugnada, não foi, nesse período, o seu possuidor ou fruidor, facto de que decorre a ilegalidade da mesma”.

 

            Em face dos documentos juntos aos autos, em particular dos contratos de locação, bem como, resulta do procedimento administrativo, que a Requerida não colocou em causa nem a celebração dos aludidos contratos, quer a transmissão da sua propriedade, atendendo à documentação anexada ao presente Pedido de Pronúncia Arbitral, haverá que concluir que a Requerente não era a real proprietária dos veículos automóveis e, por isso, não era o sujeito passivo dos IUC.

 

Pelo que também é positiva a resposta à segunda questão sub judice: a prova documental junta ao processo pela Requerente é meio idóneo e apta para firmar a propriedade dos locatários no final dos contratos.

 

 

  1. DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

O artigo 43.º, n.º 1 da LGT preceitua que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Por sua vez, o artigo 24.º, n.º 5 do RJAT estipula que é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.

 

A alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo estabelece como um dos efeitos da decisão arbitral o restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários, estando compatibilizado com o artigo 100.º da LGT, segundo o qual a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litigio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão.

 

Sendo anulados atos de liquidação e estando pago o imposto liquidado, a consequência da decisão anulatória é, portanto, o dever de reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

No presente caso, a Requerida, liquidou o imposto a quem na base de dados da CRA figurou como titular da propriedade do veículo, tendo-se limitado a, no exercício das respetivas competências e adstrita ao princípio da legalidade administrativa, liquidar imposto de acordo com a informação constante do registo, como lhe impõe a lei. Pelo que não tinha condições para saber quem era o sujeito passivo na data das liquidações de imposto, inexistindo, nessa data, qualquer erro ou ilegalidade que lhe seja imputável.

 

Todavia, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa, indeferido e, nessa via administrativa, deu conhecimento à AT da situação de facto existente em relação à titularidade dos veículos e juntou, como se concluiu, prova capaz de ilidir a presunção. A Requerida teve, portanto, oportunidade, a partir desse momento, de reponderar os pressupostos de facto que afetavam as liquidações, delas extraindo as respetivas consequências em termos de direito. Poderia e deveria, a partir desse momento, ter anulado as liquidações e reposto a legalidade.

 

Cumpre ainda referir que pedido de revisão do ato tributário é equiparável a reclamação graciosa quando é apresentado dentro do prazo da «reclamação administrativa», que se refere no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, como se refere nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12.07.2006, processo n.º 0402/06; de 14.11.2007, processo 0565/07; de 30.09.2009, processo n.º 0520/09; de 12.09.2012, processo n.º 0476/12, pelo que o direito a juros indemnizatórios é regulado pelo n. 1 do artigo 43.º da LGT.

 

Quando o pedido de revisão oficiosa é  apresentado após o termo do prazo da reclamação graciosa, os juros indemnizatórios não são regulados pelo n.º 1 do artigo 43.º da LGT, mas sim pela alínea c) do n.º 3 do mesmo artigo, só sendo devidos decorrido um ano após o pedido de promoção da revisão oficiosa e até à data da emissão das respetivas notas de crédito, como decidiu o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo no acórdão uniformizador n.º 4/2023, de 30.09.2020, proferido no processo n.º 040/19.6BALSB, publicado no Diário da República, I Série, de 16.01.2023.

 

O prazo da reclamação graciosa dos atos de liquidação é de 120 dias a contar do termo do prazo de pagamento voluntário. No caso em apreço, os atos de liquidação foram praticados em 2020, 2021 e 2022 e o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 27.02.2023, pelo que este foi apresentado fora do prazo da «reclamação administrativa» referido no artigo 78.º, n.º 1, da LGT.

 

Assim, tendo decorrido mais de um ano desde a data da apresentação do pedido de revisão oficiosa, tem de se concluir, aplicando a referida jurisprudência uniformizada, que o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, apenas desde 27 de fevereiro de 2024.

 

  1.  DECISÃO

 

Termos em que, com os fundamentos de facto e de direito que supra ficaram expostos, decide o Tribunal Arbitral Singular julgar:

  1. Procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular a decisão que incidiu sobre o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, bem como anular as liquidações de IUC;

 

  1. Condenar a Requerida no reembolso das quantias pagas pela Requerente, acrescidas de juros indemnizatórios contados, à taxa legal, decorrido o prazo de um ano desde a data da apresentação do pedido de revisão oficiosa (27.07.2023), isto é, desde 27 de fevereiro de 2024, até efetivo e integral reembolso.

 

 

  1. VALOR DO PROCESSO

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 4.236,62 (quatro mil duzentos e trinta e seis euros e sessenta e dois cêntimos), de acordo com o disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º- A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT.

 

 

  1. CUSTAS

 

            Custas no montante de 612,00 (seiscentos e doze euros), a cargo da Requerida, por ter sido total o seu decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

Porto, 2 de maio de 2024

 

O Árbitro

 

 

(Professor Doutor Rui Miguel Zeferino Ferreira)