DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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A, contribuinte fiscal n.º … e B, contribuinte fiscal n.º …, casados entre si, residentes na …, em Lisboa (…), apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1/a) e 10º nº 1/a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2014 …, de 04.01.2014, na demonstração de liquidação de juros n.º 2014 … e na demonstração de acerto de contas n.º 2014 …, ambas de 08.01.2014, respeitante ao ano de 2010.
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O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado a 19-05-2014 e aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira, em 29-04-2014.
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Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 08-07-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
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Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 23-07-2014.
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Notificada para o efeito, a Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, por impugnação, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.
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Os requerentes, na sequência de notificação para o efeito, prescindiram da produção de prova por declaração de parte, arrolada no seu Requerimento inicial.
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Na sequência do requerido pela AT, foi disponibilizado a esta, nas instalações do CAAD, a consulta do original do documento junto pelos Requerentes ao processo em 22/09/2014.
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Atenta a circunstância de, no caso, não se verificar qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada.
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Notificadas ambas as partes para o efeito, apresentaram alegações, reiterando e desenvolvendo o teor das posições anteriormente assumidas.
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O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
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Assim, uma vez que, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), e o processo não enferma de nulidades, cumpre proferir
III. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1-Os Requerentes entregaram a sua declaração de rendimentos modelo 3, referente a IRS de 2010, na qualidade de sujeitos passivos residentes, com domicílio fiscal no continente e estado civil de casados, a 31/05/2011 (declaração …).
2-Na referida declaração os Requerentes fizeram constar, no anexo J, rendimentos ilíquidos obtidos no estrangeiro, os quais foram sujeitos a englobamento, tendo o imposto aí referido sido considerado para efeitos do artigo 81.º do ClRS, originando a liquidação n.º 2011…., com imposto a pagar no montante de € 35.801,40.
3-Este valor resultou da inscrição, pelos Requerentes, no anexo J da declaração modelo 3, do valor de € 43.100,87, como sendo o de imposto suportado em Espanha (€76,59) e no Peru (€43.024,28), daí resultando o crédito de imposto correspondente.
4-No âmbito do controlo aos rendimentos auferidos e imposto pago no estrangeiro, para efeitos do artigo 81.º do CIRS, os Requerentes foram notificados, por ofícios n.º …, de 13/09/2013, e n° …, de 25/09/2013, da Divisão de Liquidação do Imposto sobre Rendimento e Despesa, da Direcção de Finanças de Lisboa, para apresentar documentos originais ou cópias autenticadas respeitantes a:
a. Declaração emitida ou autenticada pela autoridade fiscal do respectivo Estado, contendo a discriminação da natureza e dos montantes ilíquidos aí obtidos, bem como do montante de imposto total e final pago para o ano em causa, ou, em alternativa;
b. Liquidação final do imposto bem como, sendo o caso, prova do reembolso recebido/imposto pago relativo a essa liquidação final:
5-Em resposta àquela notificação, os Requerentes entregaram, por requerimento de 13/05/2013, documentos particulares emitidos pelas entidades pagadoras dos rendimentos.
6-No que respeita aos rendimentos de capitais obtidos em Espanha, os Requerentes, por um lado, apresentaram as declarações emitidas pelo Banco C, das quais consta o total dos rendimentos de capitais obtidos e o imposto retido em Espanha, e, por outro lado, declararam que não apresentaram qualquer declaração de imposto em Espanha, visto não serem aí residentes, pelo que não dispunham de qualquer liquidação de imposto emitida a final.
7-No que se refere aos rendimentos de trabalho dependente obtidos no Peru, os ora Requerentes declararam que a administração fiscal peruana não emite a declaração solicitada, pelo que procederam à junção da declaração emitida pela sociedade Grupo D.
8-Os documentos entregues foram remetidos à Divisão de Administração da Direcção de Serviços de Relações Internacionais, que concluiu o seguinte:
a. Os documentos apresentados não foram emitidos pelas autoridades fiscais dos países onde os rendimentos foram auferidos;
b. Trata-se de declarações emitidas por entidade bancária espanhola (Banco C) referente a rendimentos de capitais e declaração de entidade patronal (Grupo D) do Requerente marido no Peru por rendimentos de trabalho dependente;
c. Não foi apresentada qualquer prova de que não exista ou não deva existir uma liquidação final de imposto nesses Estados.
9-Notificados para exercer o competente direito de audição prévia, pelos ofícios n.º … de 13/09/2013 e n.º …, de 25/09/2013, os Requerentes nada disseram.
10- Os Requerentes foram notificados da decisão final, por ofício n° …, de 19/11/2013.
11- Foi emitida liquidação adicional de imposto, corrigindo o crédito de imposto por dupla tributação internacional indevidamente atribuído, originando a liquidação n.º 2014…, com imposto a pagar no montante de €78.887,68, acrescido de juros compensatórios no montante de € 3.933,23, tudo num total de €82.820,91.
12- Em 18-08-2014, os Requerentes tinham procedido já ao pagamento voluntário da totalidade do imposto apurado, referido no ponto anterior.
13- Os Requerentes são cidadãos de nacionalidade espanhola.
14- No ano de 2010, os Requerentes foram considerados residentes, para efeitos fiscais, em Portugal.
15- Nesse mesmo ano, entre Janeiro e Abril, o Requerente exerceu funções junto da sociedade Grupo D (D) [atualmente designada por Grupo E (E)], no Peru.
16- Do exercício daquelas funções, o Requerente obteve rendimentos de trabalho dependente, no montante total €152.570,29 (571.886,38 PEN).
17- Com referência às remunerações pagas entre Janeiro e Abril de 2010, a sociedade Grupo D. reteve e entregou à Administração fiscal peruana o montante total de €43.024,28 (161.269,92 PEN).
18- Ainda no ano de 2010, os Requerentes obtiveram rendimentos de capital em Espanha [juros (€ 10,03), dividendos (€ 364,95) e rendimento de plano de pensões (€ 33,41)].
19- No que respeita ao imposto retido em Espanha com referência a esses rendimentos, ascendeu o mesmo a €76,59.
20- Em 14/05/2013, através de requerimento apresentado pelos ora Requerentes, a Superintendencia Nacional de Aduanas y de Administración Tributaria (SUNAT), administração fiscal peruana, certificou uma cópia das declarações de retenções na fonte efetuadas pela sociedade D e do extrato de retenções na fonte.
A.2. Factos dados como não provados
1- A única entidade com idoneidade para declarar qual o imposto recebido pelo Estado espanhol com referência aos rendimentos aí obtidos pelos Requerente é a autoridade fiscal desse país.
2- Enquanto entidade devedora de rendimentos de trabalho dependente, a sociedade Grupo D estava obrigada a reter na fonte o imposto sobre as remunerações pagas ao Requerente.
3- Os Requerentes diligenciaram junto da administração tributária no sentido de proceder à junção dos documentos certificados pela autoridade fiscal peruana, referidos supra no ponto 20 dos factos provados.
4- No entanto, no seguimento das diligências efetuadas, foram os Requerentes informados de que aqueles documentos, apesar de devidamente carimbados pela administração fiscal peruana, não configuravam prova suficiente do pagamento do imposto no Peru.
5- Por esta razão, os Requerentes não procederam à sua apresentação junto da administração tributária.
Com relevo para a decisão, não existem outros factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto consensualmente reconhecidos e aceites pelas partes.
Os factos dados como não provados nos pontos 1 e 2, reportados, respectivamente, aos ordenamentos jurídicos espanhol e peruano (já que, relativamente ao ordenamento jurídico português integram matéria de direito, analisada infra), resultam da ausência de prova do direito estrangeiro, nos termos do 348.º/1 do Código Civil[1], sendo que ao Tribunal não foi possível obtê-lo.
Os restantes factos dados como não provados devem-se à ausência de prova a seu respeito.
Não se deu como provado ou não provado o facto constante do ponto I.k) das alegações dos Requerentes, porquanto o mesmo não havia sido alegado no Requerimento inicial.
B. DO DIREITO
Em causa nos presentes autos está, exclusivamente, dar resposta à questão de saber se a liquidação adicional de IRS do ano de 2010 dos Requerentes, que desconsiderou o crédito de imposto por dupla tributação internacional, previsto no artigo 81.º do CIRS vigente à data, é, ou não, legal.
Vejamos então.
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Dispõe o artigo 81.º/1 referido:
“1 - Os titulares de rendimentos das diferentes categorias obtidos no estrangeiro têm direito a um crédito de imposto por dupla tributação internacional, dedutível até à concorrência da parte da coleta proporcional a esses rendimentos líquidos, considerados nos termos da alínea b) do no 6 do artigo 22º, que corresponderá à menor das seguintes importâncias:
a) Imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;
b) Fração da coleta do IRS, calculada antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos das deduções específicas previstas neste Código.
2 - Quando existir convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a dedução a efetuar nos termos do número anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela convenção.”
Conforme admitem expressamente os Requerentes, “nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), o ónus da prova no caso sub judice recai sobre os Requerentes, ou seja, são pois os Requerentes que têm o ónus de demonstrar o direito a deduzir à coleta o montante do imposto pago no estrangeiro.”[2].
A prova a realizar pelos requerentes, inexistindo – e nem sendo, sequer, invocada – qualquer norma que imponha uma prova legal, poderá ser feita por qualquer meio de prova admitido em direito.
Ora, e desde logo, entre tais meios, como se escrevia já no Ac. do STJ de 31-03-1987, proferido no processo 074462[3], “figura a prova por presunção”.
Nos termos do artigo 75.º/1 da LGT:
“Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.”.
Resulta dos factos dados como provados que na sua declaração para efeitos de IRS, oportunamente apresentada, os Requerentes fizeram constar, devidamente e no local próprio, o crédito de imposto ora em litígio.
Assim, devendo presumir-se verdadeira tal declaração, da mesma (facto conhecido), por presunção, em obediência ao referido artigo 78.º/1 da LGT, dever-se-á ter como provado o facto (desconhecido) relativo pagamento de imposto no estrangeiro.
Efectivamente, não tendo sido demonstrado – ou, sequer, alegado – qualquer das circunstâncias descritas nas diversas alíneas do n.º 2 daquele artigo 78.º, a presunção em questão terá plena aplicação, sendo certo, de resto, que quanto ao montante de rendimentos auferidos, a AT não duvida da veracidade da declaração em questão[4].
Mesmo que assim se entendesse, o certo é que sempre se deverá considerar como suficiente a documentação apresentada pelos Requerentes.
Com efeito, estes, no cumprimento do seu dever de colaboração (cujo incumprimento, de resto, poderia legitimar o afastamento da presunção acima referida, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 78.º da LGT), apresentaram declarações de duas empresas multinacionais – uma, europeia e do sector financeiro, sujeita, como tal, a apertada supervisão, e outra do sector petrolífero – notoriamente enquadradas, para além do mais, em estritos padrões contabilísticos, a discriminar quer os rendimentos auferidos, quer o imposto retido aos Requerentes.
Note-se, que a AT não coloca em causa nem a autenticidade nem a veracidade daqueles documentos, aceitando-os como bons no que concerne ao montante de rendimentos pagos ao Requerente, e não duvidando, fundadamente, de que a retenção declarada haja sido, efectivamente, feita.
Essencialmente, o que a AT questiona, e aí radica o fundamento do acto tributário impugnado, é se as retenções em questão operaram a título definitivo, ou, antes, se as mesmas foram meras retenções por conta, sujeitas a um qualquer acerto, com reembolso a favor dos contribuintes.
Ora, o que se passa desde logo, em suma e no fundo, é que a AT não duvida, fundadamente, que os rendimentos auferidos e declarados pelos Requerentes foram sujeitos a imposto no estrangeiro. Entendeu, isso sim, a AT duvidar (justificadamente, ou não, adiante se verá) unicamente se o montante de imposto suportado foi aquele declarado pelos Requerentes, ou, antes, um outro, menor.
Ora, no processo 91-2012-T do CAAD[5], escreveu-se:
“No caso em apreço, tendo a administração tributária concluído que não se podia apurar que serviços foram efectuados e sua quantificação, adoptou um entendimento que se reconduz a que nenhum dos serviços prestados, que desconhecia, era necessário para realização dos rendimentos ou manutenção da fonte produtora.
Este entendimento não tem correspondência com a realidade, pois foram prestados alguns serviços, como resulta da matéria de facto fixada, pelo que os actos de liquidação relativos aos anos de 2007 e 2008, na parte em que assentaram nas correcções relativas aos «Management fees», enfermam de erro nos pressupostos de facto.”
Não sendo as situações em questão nos presentes autos, e naquele processo, directamente transponíveis, entende-se que o critério normativo subjacente àquela decisão é, esse sim, ora aplicável, considerando-se que nos casos em que a AT não tenha dúvidas, fundadas, da ocorrência de uma componente negativa (entendida amplamente) do rendimento tributável, mas, unicamente, da sua quantificação, não poderá, por força de princípios como o da capacidade contributiva, a nível substantivo, e do inquisitório, a nível procedimental, simplesmente desconsiderar na totalidade aquela mesma componente negativa.
Em todo o caso, e mesmo que assim não fosse, verifica-se que as dúvidas em que a AT laborou, assentam, conforme resulta quer do processo administrativo, quer das respectivas peças processuais destes autos, nos seguintes entendimentos:
- O comprovativo do imposto pago, a atender em sede do crédito fiscal que se discute, teria de ser necessariamente emitido pelas autoridades fiscais dos países onde os rendimentos foram auferidos; e
- Deveria ter sido apresentada prova de que não existiu, ou não devia existir, uma liquidação final de imposto nesses Estados.
Ora, ressalvado o respeito devido, julga-se que nenhum daqueles entendimentos tem cabimento legal.
Com efeito, e desde logo, inexiste qualquer norma que legitime aquilo que a AT sustenta, relativamente à limitação dos meios de prova do imposto pago no estrangeiro, como, de resto, se reconheceu no Acórdão do TCA-Norte de 14-04-2005, proferido no processo n.º 00107/03[6], citado pelos Requerentes. Aquele entendimento da AT, aliás, tem subjacente uma mundividência que pressupõe que todos os estados estrangeiros são organizados em quadros burocráticos e legais análogos ao nacional/europeu ocidental, o que, notoriamente, e sobretudo, mas não só, em países menos desenvolvidos não é o caso. Por outro lado, assume também que as administrações tributárias estrangeiras, a nível global, estão ao dispor de todos quantos aí auferem rendimentos, para emitir as declarações e certidões que a AT portuguesa entenda necessárias.
Por outro lado, e já no que diz respeito à possibilidade de uma eventual liquidação final, também esta assume um quadro legal – não demonstrado, todavia – análogo ao nacional, onde existem retenções na fonte liberatórias e por conta. Assim, e para que, no mínimo, se pudesse conceder algum fundamento à dúvida em causa suscitada pela AT, sempre seria necessário que a mesma demonstrasse que nos países-fonte do rendimento, o quadro legal previa a possibilidade de retenções por conta/liberatórios, e quais os concretos circunstancialismos que condicionassem a qualificação das retenções como de um ou outro tipo.
Por fim, e sem prejuízo de tudo quanto até aqui se referiu, sempre se entende que, face aos elementos documentais apresentados pelos Requerentes, também por via de uma presunção natural sempre se chegaria ao resultado da demonstração do imposto suportado pelos Requerentes no estrangeiro, em conformidade com o declarado.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-04-2009, proferido no processo 259/07.2PBSCR.L1 3ª Secção[7]:
“I.A presunção permite que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.
II. Na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.”
Com efeito, os Requerentes, contribuintes residentes em território português, declararam oportunamente os valores constantes das declarações emitidas por pessoas colectivas notoriamente conhecidas, quer no que diz respeito ao rendimento bruto, quer ao imposto retido e entregue aos estados estrangeiros.
Não há qualquer indício de fraude ou de fuga.
A AT aceita os valores declarados como rendimento bruto e não questiona a veracidade das retenções.
A única dúvida que a AT levanta relaciona-se com a possibilidade de o Requerentes terem obtido algum reembolso e, consequentemente estarem a ocultar rendimentos (na parte correspondente a esse suposto reembolso).
Ora, se assim fosse, ou seja se o propósito dos Requerentes fosse subtrair/ocultar, parte dos rendimentos efectivamente auferidos à AT portuguesa, o natural seria ocultarem a totalidade dos rendimentos auferidos no estrangeiro, e não declararem a maior parte, e ocultarem uma pequena porção, já que a AT teria, precisamente, a mesma facilidade ou dificuldade em detectar uma ou outra das situações.
Por outro lado, e no caso concreto, será também perfeitamente natural que, mesmo que lhes fosse possível obter algum reembolso do imposto suportado no estrangeiro, os Requerentes tenham abdicado de tal direito, optando por não o exercer, por tal não lhes ser compensador, seja em função dos valores em questão (no que diz respeito aos rendimentos com fonte em Espanha), sejam em função da distância e eventuais dificuldades de acessibilidade/relacionamento com as autoridades tributárias locais (no que diz respeito aos rendimentos com fonte no Perú), sendo certo que o deferimento do crédito fiscal em causa nos presentes autos não requer ou pressupõe que os beneficiários esgotem, ou acionem por qualquer forma, os eventuais meios de reembolso do imposto, ou parte deste, suportado no estrangeiro.
Assim, apreciada globalmente a situação e tendo em conta as regras da experiência, não restarão dúvidas razoáveis que o imposto suportado pelos Requerentes nos Estados estrangeiros, relativos aos rendimentos ali auferidos e por si declarados, foram, efectivamente, os constantes da sua declaração de rendimentos, oportunamente apresentada.
Não obstará, às conclusões retiradas, a circunstância, apontada pela AT nos autos, relativa ao facto de que “os artigos 10º e 11º da CDT Espanha prevê a taxa máxima de 15% quer para os dividendos, quer para os juros, no entanto, da análise da declaração emitida pelo Banco C, as retenções na fonte efectuadas atingiram taxas de 30% e de 40%, sendo, por isso os seus montantes muito superiores aos permitidos pela CDT, não podem ser válidos para efeitos do disposto no nº 2 do art. 81º do CIRS”[8].
Com efeito, como apontam os requerentes nas suas alegações, no que não foram contraditados nas subsequentes alegações da AT, “tal circunstância apenas relevaria para efeitos de limite do crédito de imposto a atribuir ao sujeito passivo, nos termos do artigo 81.º, n.º 2 do Código do IRS, e não para efeitos de não atribuição do crédito de imposto”.
Deste modo, e face a todo exposto, incorreu a liquidação a que se refere o presente processo em erro nos pressupostos de facto, devendo, como tal, ser anulada.
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Cumulam os Requerentes com o pedido anulatório do acto tributário objecto dos presentes autos, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre a quantia por si paga na sequência da notificação das liquidações ora anuladas.
É pressuposto da atribuição de juros compensatórios que o erro em que laborou a AT lhe seja imputável[9].
No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do acto de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, há lugar a reembolso do imposto pago pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.
No que concerne aos juros indemnizatórios, é também claro nos autos que a ilegalidade do acto de liquidação de imposto impugnado é directamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal, padecendo de uma errada apreciação dos factos juridicamente relevantes e consequente aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.
Assim, os Requerentes têm direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.
Os juros indemnizatórios são devidos aos Requerentes desde data em que efectuaram o pagamento da prestação do imposto em causa nos autos, até ao integral reembolso do montante pago, à taxa legal.
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Alega a AT que não deverá ser responsabilizada pelas custas do presente processo arbitral, por ter sido a Requerente quem deu causa à acção.
Afigura-se, contudo, que não lhe assiste razão.
Efetivamente, no processo tributário arbitral a AT é notificada do pedido arbitral e pode, nos termos do artigo 13.º/1 do RJAT, proceder à revogação do acto tributário contestado. Pelo menos aí, a AT teve conhecimento dos fundamentos alegados pelos Requerentes, que, conforme a fundamentação supra, conduziram à presente decisão arbitral, e optou por prosseguir com a via litigiosa.
Daí que deva ser responsabilizada pelas custas.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, anular o acto tributário objecto dos presentes autos e condenar a AT a restituir aos Requerentes o imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios;
b) Condenar a AT nas custas do processo, no montante de €2.142,00.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €47.019,51, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.142,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa
26 de Janeiro de 2015
O Árbitro
(José Pedro Carvalho)
[1] “Àquele que invocar direito (...) estrangeiro compete fazer a prova da sua existência e conteúdo”.
[2] Artigo 43.º do Requerimento inicial.
[4] Note-se, que, como referido no Acórdão do STJ de 24-03-2004, proferido no processo 04A3101 (disponível em www.dgsi.pt), citando o Prof. Antunes Varela, “A presunção não elimina o ónus da prova, nem modifica o resultado da sua repartição entre as partes. Apenas altera o facto que ao onerado incumbe provar: em lugar de provar o facto presumido, a parte onerada terá de demonstrar a realidade do facto que serve de base à presunção”.
[8] Cf. ponto 14. da resposta.
[9] Cf. artigo 43.º da LGT.