Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 279/2023-T
Data da decisão: 2024-04-23  IVA  
Valor do pedido: € 154.696,33
Tema: Imputação de IVA suportado a SP normais.
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SUMÁRIO:

  1.  O IVA liquidado e pago por trabalhos de construção civil e deduzido discriminadamente a entidades não isentas (Sujeitos Passivos), não pode ser corrigido em sede de Inspeção Tributária com base na convicção presumida do negócio jurídico previsto mas sempre, e só, com base no negócio jurídico efetivamente realizado.
  2. É ilegal, por ser feita em erro sobre os pressupostos de facto e de Direito, uma correção de uma liquidação de IVA numa operação económica em que está demonstrada contabilisticamente a imputação das obras adquiridas com IVA a beneficiários (SP) ao abrigo de contrato inominado sujeito a IVA, que incluía arrendamento posterior sendo este formalizado depois de obtido certificado de renúncia de isenção pelo proprietário. 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os árbitros Juiz José Poças Falcão (Presidente), Dr. António de Barros Lima Guerreiro  e Prof. Doutor Vasco António Branco Guimarães, árbitros designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 27-06-2023, deliberam o seguinte:  

1. Relatório

A... UNIPESSOAL LDA, doravante apenas “Requerente”, sociedade unipessoal por quotas, com capital social de € 5.000,00 (cinco mil euros), titular do NIP..., com sede social sita na Zona Industrial ..., ..., Rua n.º..., ..., ...-... ..., abrangida no âmbito territorial do Serviço de Finanças de ... (C.R. ...), veio apresentar pedido de constituição de tribunal arbitral e respetiva pronúncia arbitral com vista à obtenção da declaração de ilegalidade da demonstração de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), titulada sob o n.º 2022..., referente ao período de 201912T, bem como da respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios com o n.º 2022..., ambas de 25 de novembro de 2022, e ainda das respetivas demonstrações de acerto de contas com os n.ºs 2022 ... e 2022..., nos valores de € 139.445,23 e € 15.251,10, tudo no valor de € 154.696,33 (cento e cinquenta e quatro mil seiscentos e noventa e seis euros e trinta e três cêntimos - cf. documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4. A final vem Requerer que seja julgada provada e procedente a presente ação arbitral tributária e, consequentemente, declarada a ilegalidade da demonstração de liquidação de IVA, titulada sob o n.º 2022..., referente ao período de 201912T, bem como da respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios com o n.º 2022..., ambas de 25 de novembro de 2022, e ainda das respetivas demonstrações de acerto de contas com os n.ºs 2022... e 2022..., nos valores de € 139.445,23 e € 15.251,10, tudo no valor de € 154.696,33 (cento e cinquenta e quatro mil seiscentos e noventa e seis euros e trinta e três cêntimos), em virtude, a título principal, dos erros sobre os pressupostos de facto e de direito de que padecem e, em conformidade, que determinem a restituição à Requerente do valor já pago a este título, e a que deverão acrescer os juros indemnizatórios peticionados, à taxa legal aplicável, sobre o montante indevidamente cobrado, a liquidar a final, no momento do reembolso pago indevidamente, bem como com todas as demais consequências legais. A título meramente subsidiário, por vícios de forma, assentes na preterição de formalidades essenciais e na fundamentação insuficiente, a Requerente solicita a anulação das sobreditas liquidações. 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 18-04-2023.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral os acima referidos, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 09-03-2023 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 27-06-2023.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que os pedidos devem ser julgados improcedentes porque a Requerente «…não podia, como fez, deduzir o IVA suportado nos trabalhos de construção civil no ano de 2019 no âmbito da atividade que estava isenta».

Por despacho de 25-09-2023, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e marcado o prazo de vinte dias para alegações simultâneas.

A Requerente apresentou Alegações escritas em 19.10.2023.

A Requerida não apresentou Alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:      

A)        A Requerente é uma sociedade unipessoal por quotas, constituída a 4 de fevereiro de 2013, com capital social de € 5.000,00, cujo objeto social visa a “Compra e venda de bens imobiliários. Compra, venda, exploração, arrendamento, administração e locação de imóveis, próprios ou alheios, incluindo a revenda dos adquiridos para esse fim. Promoção e realização de empreendimentos imobiliários. Construção e reparação de edifícios.”, tal como se afere por consulta à sua certidão permanente acessível mediante o código ... e que aqui se junta para simplificação de acesso, conforme decorre do documento cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cf. documento n.º 9).

B)        No âmbito da Classificação Portuguesa das Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE – Rev. 3), o seu CAE principal assenta no código 68100 – compra e venda de bens imobiliários, sendo seu CAE secundário o código 41200 - Construção de edifícios (residenciais e não residenciais), conforme decorre do documento cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cf. documento n.º 10).

C)        A Requerente iniciou a sua atividade a 18 de fevereiro de 2013, enquadrada no regime geral de IRC e no regime de isenção em IVA (isenção incompleta ao abrigo do artigo 9.º do Código do IVA), sendo que, este último, veio a ser alterado a 19 de novembro de 2019, passando a Requerente a estar classificada como sujeito passivo misto, no regime da afetação real, conforme decorre do documento cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cf. documento n.º 11).

D)        A 19 de setembro de 2019, o objeto social da Requerente passou a incluir as atividades de “construção e reparação de edifícios”, conforme se afere: “Compra e venda de bens imobiliários. Compra, venda, exploração, arrendamento, administração e locação de imóveis, próprios ou alheios, incluindo a revenda dos adquiridos para esse fim. Promoção e realização de empreendimentos imobiliários. Construção e reparação de edifícios.” (cf. documento n.º 9).

E)        Na sequência da referida ampliação do seu objeto social, a Requerente ficou enquadrada cadastralmente no regime misto com afetação real de todos os bens, ou seja, praticando operações sujeitas (e não isentas) a IVA e operações isentas de IVA (cf. página 5/21 do documento n.º 5).

F)        No âmbito da sua atividade, a Requerente passou a praticar operações tributáveis em IVA, consubstanciadas em prestações de serviços de construção civil, mas mantendo, simultaneamente, a componente das operações isentas e, por tal razão, passou a ser enquadrada em sede de IVA como sujeito passivo misto, no regime da afetação real.

G)        Esta ampliação do objeto social adveio da decisão da Requerente de construir um pavilhão industrial no prédio urbano sito na Rua ..., ..., n.º..., ..., ...-... ..., e que era da sua propriedade, identificado matricialmente, à época, sob o artigo ... (atualmente sob o artigo...), para que nele pudessem ser instalados os estabelecimentos das sociedades B..., LDA. (doravante apenas B...) e C..., LDA. (doravante apenas C...), titulares dos NIPC’s, respetivamente, ... e ... .

H)        O sócio único da Requerente, e também seu gerente, o Senhor D..., é também sócio-gerente das mencionadas duas empresas.

I)         A Requerente é a proprietária dos imóveis onde as outras duas empresas portuguesas exercem a sua atividade operacional, a B... dedica-se à transformação de pedras e a C... à comercialização das pedras transformadas pela B... .

J)         A 20 de setembro de 2019, a Requerente celebrou, enquanto dona da obra, um contrato de empreitada com a mesma sociedade E... S.A., esta enquanto empreiteira, com vista à construção daquele pavilhão industrial customizado às necessidades individuais das sociedades B... e C..., conforme decorre do documento cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cf. documento n.º 14).

K)        No âmbito do contrato acima referido em J) é emitida a fatura FAO 21911/12, de 30 de novembro de 2019, pela E... S.A., enquanto empreiteira da obra, à Requerente, no valor global de € 794.046,19, a que corresponde um IVA de € 182.630,58 autoliquidado (reverse charge), conforme decorre do documento cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cf. documento n.º 26).

L)        Os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de ... consideraram no âmbito do processo de Inspeção OI 20210... de 1.07.2021 que apenas seriam dedutíveis € 43.185,35 da fatura supra identificada (cf. página 12/21 do Relatório Final de Inspeção Tributária).

M)       A 17 de dezembro de 2019, a Requerente formalizou, enquanto promitente-senhoria, contratos promessa de arrendamento com duas sociedades, B... e C..., enquanto promitentes-arrendatárias, conforme decorre dos documentos cujos conteúdos se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais (cf. documentos n.ºs 15 e 16).

N)        Foram emitidas faturas pela Requerente à B..., num valor total de € 959.466,83, conforme decorre do documento cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cf. documento n.º 17).

O)        Foram emitidas faturas pela Requerente à C... no valor de € 78.688,84, conforme decorre do documento cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cf. documento n.º 18).

P)        No que concerne às operações relacionadas com as prestações de serviços de construção civil, a Requerente, nos anos de 2020 e 2021, repercutiu aos futuros arrendatários o valor das obras específicas e necessárias à laboração dos mesmos, ao qual acresceu uma margem de 5%. O que indica se estar perante uma atividade sujeita». – cfr,. artigos 22 e 23 da douta Resposta da AT.

Q)        Na sequência da obtenção da licença de utilização identificada pelo n.º 7/21, de 15 de dezembro de 2021, emitida pela Câmara Municipal de ..., foram celebrados a 3 de janeiro de 2022, os contratos de arrendamento com as duas sociedades promitentes.

2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.

Não se retiram outros factos relevantes dos articulados por serem citações de textos legais, acórdãos ou posições de parte sem conteúdo fáctico relevante para o dissídio em análise.

3. Matéria de direito

As questões de mérito que são objeto deste processo são:

1.         Saber se a Requerida pode desconsiderar a dedução IVA efetuada pela Requerente sobre a fatura FAO 21911/12, de 30 de novembro de 2019, emitida pela E... S.A., enquanto empreiteira da obra, por trabalhos de construção no valor global de € 794.046,19, a que corresponde um IVA de € 182.630,58 autoliquidado (reverse charge) pela Requerente, com redução para € 43.185,35 por força de acto inspetivo de correção.

2.         Saber se o facto de à data da emissão da fatura FAO 21911/12, de 30 de novembro de 2019 pela E... SA, a Requerente não ter ainda renunciado à isenção na atividade de «arrendamento» tem relevância para a desconsideração efetuada.

3.1. Posições das Partes

A Requerente defende o seguinte, em suma:

- Que à data da emissão da fatura em causa era já Sujeito Passivo pleno pela atividade de construção civil e reparação de imóveis pelo que tinha direito à integral dedução desde que o imóvel fosse utilizado e/ou transmitido a SP não isento. 

A AT defende:

-  Que a Requerente não era um SP pleno, mas sim misto, com operações com direito à dedução (construção civil) e outras sem direito à dedução (arrendamento) por serem fornecidos no âmbito de atividade da Requerente que estava isenta e esta ainda não tinha renunciado à isenção nos termos do artigo 12.º do CIVA.

3.2. Saneamento do processo.

O único acto de correção efetuado pela Requerida no presente processo está claramente identificado da seguinte forma: «A 20 de setembro de 2019, a Requerente celebrou, enquanto dona da obra, um contrato de empreitada com sociedade E... S.A., esta enquanto empreiteira, com vista à construção de um pavilhão industrial customizado às necessidades individuais das sociedades B... e C... . No âmbito do contrato acima referido em é emitida a fatura FAO 21911/12, de 30 de novembro de 2019, pela E... S.A., enquanto empreiteira da obra, à Requerente, no valor global de € 794.046,19, a que corresponde um IVA de € 182.630,58 autoliquidado (reverse charge). Os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de ... consideraram no âmbito do processo de Inspeção OI 2021... de 1.07.2021 que apenas seriam dedutíveis € 43.185,35 da fatura supra identificada (cf. página 12/21 do Relatório Final de Inspeção Tributária).

É este acto de correção da dedução efetuada que é objeto da impugnação.

Este acto de correção é feito sobre uma operação económica de construção civil estando a Requerente como Sujeito Passivo nessa atividade e isento na atividade de arrendamento à data da outorga do contrato  promessa de arrendamento tendo vindo a outorgar contratos de arrendamento em 2022, após obtenção da licença de utilização.

Decorre dos factos existentes no processo que a sociedade E..., SA, é uma sociedade de construção civil estranha ao universo societário onde se integra a Requerente e nada tem a ver com os fins e/ou utilização do bem imóvel que construiu e entregou à Requerente.

A fatura emitida pela E... SA é exclusiva da atividade de construção civil. A Requerente era SP nessa atividade e estava obrigada a contabilizar no regime de afetação real (com discriminação) as faturas por si pagas.

Não existe qualquer conexão entre os trabalhos de construção civil contratados e pagos pela Requerente (enquanto proprietária dos imóveis e dona-da-obra) à E... SA, e os arrendamentos prometidos e executados às empresas do grupo B... e C... . Esta relação económica está exclusivamente no âmbito da atividade de construção civil estando obrigada a Requerente a suportar IVA, autoliquidado e por si e entregue ao abrigo do disposto na alínea j) do nº 1, do artigo 2º do CIVA.

Tem a partir dessa data, o direito a deduzir o IVA suportado o que fez, conforme é reconhecido pela Requerida nos seguintes termos: «No que concerne às operações relacionadas com as prestações de serviços de construção civil, a Requerente, nos anos de 2020 e 2021, repercutiu aos futuros arrendatários o valor das obras específicas e necessárias à laboração dos mesmos, ao qual acresceu uma margem de 5%. O que indica se estar perante uma atividade sujeita». – cfr. artigos 22 e 23 da douta Resposta da AT.

Ora, se a Requerida aceita que o IVA liquidado e entregue pela Requerida foi «deduzido através dos contratos que celebrou com a B... e  C...» como e com que fundamento é que defende que a Requerente não podia deduzir?

A justificativa que consta do Relatório de inspeção  - que é o que conta para efeitos de determinação da legalidade ou ilegalidade da correção efetuada - é a da Conclusão elaborada a 14 de novembro de 2022 onde consta:

«Em resumo, mesmo tendo em consideração o acima exposto mantemos a nossa convicção de que a operação em escrutínio trata-se de uma locação simples de espaços abrangidas pela isenção prevista no n.º 29 do artigo 9.º do CIVA, com possibilidade de renúncia à isenção prevista nos n.ºs 4 e 5 do artigo 12.º do CIVA estando convictos de que esta era a vontade da A... até ao momento em que recebeu o Projeto de Relatório de Inspeção Tributária pois, caso contrário não teria solicitado o Certificado de Renúncia de Isenção».

Esta convicção da Equipa de Inspeção não se nos afigura suficientemente sustentada nos Factos provados e aceites pela AT na Resposta pelo que não serve de fundamento para a correção efetuada.

Neste enquadramento a Requerida efetuou uma correção de uma liquidação com base em erro sobre os pressupostos de facto e de Direito pelo que a mesma deve ser eliminada da ordem jurídica, com as legais consequências.

 

4. Decisão.

Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, determinando a anulação da liquidação corretiva impugnada de IVA no valor de € 154.696,33 (cento e cinquenta e quatro mil seiscentos e noventa e seis euros e trinta e três cêntimos) com o consequente reembolso da importância indevidamente cobrada acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios desde a data do pagamento até efetivo reembolso.

 

Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 154.696,33 (cento e cinquenta e quatro mil seiscentos e noventa e seis euros e trinta e três cêntimos), nos termos do artigo 97.º -A , n.º 1, alínea a do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º , n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

Custas: Vai a AT condenada em custas por ser sua a responsabilidade da ilegalidade existente, sendo o seu montante fixado em 3672,00 Euro.

         Lisboa, 23 de abril de 2024

Os Árbitros,

 

Juiz José Poças Falcão (Presidente)

 

Prof. Doutor Vasco António Branco Guimarães (Relator)

 

Dr. António de Barros Lima Guerreiro

Vota vencido conforme declaração anexa.

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Discordo  totalmente dos fundamentos da  presente Decisão Arbitral, na medida em que  reconhece à Requerente o direito a deduzir IVA suportado com vista à realização de operações que essa própria Decisão Arbitral admitiu estarem  isentas do imposto, sem direito à dedução,  sem que o sujeito passivo  tenha renunciado previamente à isenção nos termos legais.

 

A argumentação da presente Decisão Arbitral viola,  com efeito, simultânea,  assumida e frontalmente  os princípios fundamentais do direito à dedução do IVA e  as regras  gerais de repartição do ónus de prova no procedimento e processo tributário. Não tem em conta a jurisprudência nacional e do TJUE e enferma de uma, a meu ver, flagrante petição de princípio

 

Como esclarece Sérgio Vasques, “O imposto sobre o  valor acrescentado “, Coimbra, 2015, pgs. 337 e sgs. , do ponto de vista finalístico, resulta do corpo do artº 168º (da Directiva IVA) que ao sujeito passivo só é reconhecido o direito à dedução do imposto incorrido a montante quando os bens ou serviços que adquira sejam “utilizados para os fins das suas operações tributadas. (…)

 

Esta referência às “operações tributadas” serve para deixar claro que só quando se dá a aplicação efectiva do imposto nas operações activas se torna possível a dedução do imposto incorrido nas operações passivas.

 

Ao contrário, quando as operações activas beneficiem de isenção simples , como é o caso da mera locação de imóveis, fica excluído por princípio o direito à dedução e o sujeito passivo passa a ocupar posição semelhante à de um consumidor final, suportando na sua esfera o imposto relativo às suas aquisições.
 

A exigência de que os bens e serviços adquiridos pelo sujeito passivo sejam utilizados na realização de operações tributadas é pois determinante para que seja reconhecido o direito à dedução do imposto incorrido a montante.


 

Ora, se o direito à dedução depende da prévia renúncia à isenção deve entender-se que ele apenas nasce com a realização da operação económica tributável, após a obtenção do certificado de renuncia à isenção.

 
Este certificado assume.  assim natureza constitutiva do direito à renúncia e subsequente dedução do IVA.

 

Efetuada a renúncia, o sujeito passivo tem direito à dedução do imposto suportado, nos termos do estipulado no n.º 1 do art. 8.º daquele Regime, cujo prazo vem estabelecido no n.º 2 dessa  norma, referindo este que "os transmitentes ou locadores podem deduzir o IVA relativo ao bem imóvel na declaração do período de imposto ou de período posterior àquele em que (…)tem lugar a renúncia à isenção tendo em conta o prazo a que se refere o n.º 2 do art. 98.º do Código do IVA"

 

Essa ausência de conexão entre os encargos suportados e pretensas operações tributáveis é reconhecida pela presente Decisão Arbitral nos seguintes  termos: .

 

“Decorre dos factos existentes no processo que a sociedade E..., SA, é uma sociedade de construção civil estranha ao universo societário onde se integra a Requerente e nada tem a ver com os fins e/ou utilização do bem imóvel que construiu e entregou à Requerente. A fatura emitida pela E... SA é exclusiva da atividade de construção civil. A Requerente era SP nessa atividade e estava obrigada a contabilizar no regime de afetação real (com discriminação) as faturas por si pagas.

 

Não existe qualquer conexão entre os trabalhos de construção civil contratados e pagos pela Requerente (enquanto proprietária dos imóveis e dona-da-obra) à E... SA, e os arrendamentos prometidos e executados às empresas do grupo B... e C... . Esta relação económica está exclusivamente no âmbito da atividade de construção civil estando obrigada a Requerente a suportar IVA, autoliquidado e por si e entregue ao abrigo do disposto na alínea j) do nº 1, do artigo 2º do CIVA”.

 

Não obstante essa patente falta de conexão, a Decisão Arbitral considerou preenchidos os presssupostos do direito à dedução, o que contraria toda a jurisprudência e doutrina conhecidas que faz dessa conexão depender o direito à dedução.

 

A jurisprudência do TJUE já afirmou a compatibilidade com o direito da União, da exigência de declaração prévia, junto da AT, enquanto condição de acesso ao regime de renúncia à isenção e a conformidade dessa exigência na ampla margem de manobra de que dispõe o legislador estadual., nargem que o Estado Português não   extravazou  ao prever um procedimento de certificação para a emissão de um certificado de renúncia.
 

Neste sentido se pronunciou o TJUE, no Caso Kirchberg (C-269/03, de 9/09/2004) a propósito de uma disposição da lei Luxemburguesa, que impõe a observância de determinados requisitos para aceder a tal regime.


No referido Acórdão,  o TJUE afirmou que “as disposições do artº 13º,C, 1º parágrafo, al. a) e segundo parágrafo da  então Sexta Directiva do Conselho, 77/388 CEE, não se opõem a que um Estado Membro que tenha exercido a faculdade de conceder aos seus sujeitos passivos o direito de optarem pela tributação das operações de arrendamento e locação de bens imóveis adopte uma regulamentação que faz depender a dedução integral do IVA a montante da obtenção prévia de aprovação, não retroactiva, por parte da Administração Fiscal”. No mesmo sentido, entre muitos outros, Acórdão de 16/9/2020 proc. 0822/11.7 BEBRG 6 0202/18.  .

No mesmo sentido, a jurisprudência do Tribunal de Justiça (cf. Acórdão do TJUE  ,  C- 381/97) preconizou  que “as alterações legislativas introduzidas no seio de um ordenamento jurídico nacional, mesmo com o objetivo de eliminar o direito de renúncia à isenção de IVA na locação de imóveis, não violam os princípios da neutralidade e proporcionalidade”
 

Tal enquadramento não seria alterado na Diretiva IVA/112/CE de 28/11/2005, em especial  art.. 131º., que continuou a conferir os Estados membros a regulamentação, dentro do quadro dos princípios gerais do direito comunitário, do exercício do direito de opção pela tributatação em  IVA das operações imobiliárias, em particular da locação de imóveis.

 

A quando da dedução alegadamente indevida controvertida dos autos , no final de 2019, a Requerente não dispunha de qualquer certificado de renúncia á isenção que apenas viria a obter a 14/4/2022. Nessa medida, a satisfação da pretensão da Requerente contraria a jurisprudência unânime do  STA e do  TJUE , em termos inaceitáveis.

 

Essa interpretação da lei nacional não contraria também os princípios da neutralizadade e proporcionalidade nem sujeita o exercício direito àdedução a exigências excessivas ou de difícil cumprimento pelos sujeitos passivos de IVA, como é  um dos elementos fulcrais da argumentação da   Requerente.

É sabido que  o exercício da renúncia à isenção de IVA pelos  sujeitos passivos dedicados à locação e transmissão de imoveis depende da obtenção e posse declaração de modelo oficial e da emissão de certificado pela AT, que será exibido aquando da celebração do contrato de arrendamento ou da escritura de transmissão ( nº 1 do art. 5º do Regime  Jurídico  da Renúncia da Isenção do IVA nas Operações relativas a Imóveis .

Essa condição de eficácia da  renúncia à isenção tem  de se verificar previamente ao facto gerador dos impostos, que ocorre à data da celebração do contrato ou da escritura da transmissão. E, a este propósito,  tem o STA sustentado o certificado de renúncia  assumir natureza constitutiva do direito à  renúncia e  subsequente dedução  ou reembolso do IVA – cf., neste sentido, entre outros ,Acórdãos de 3.7. 2002, recurso n.º 139/02, de 19.09.2007, recurso 460/07. de 05.07.2012, recurso 640/11, de 07.10.2015, recurso 1455/12 e de 20.05.2020, recurso 1687/13.

Como ficou exarado no Acórdão 139/02, «a emissão e apresentação do predito certificado é uma formalidade absolutamente essencial na mecânica do tributo.


O próprio preâmbulo do aludido Dec-Lei (241/86,  antecessor do Regime  Jurídico  da Renúncia da Isenção do IVA nas Operações relativas a Imóveis , Anexo ao DL n 21/2007,dá disso orientação segura:

Segundo esse preâmbulo, “Os procedimentos a seguir no domínio contabilístico, as exigências declarativas e, bem assim, as modalidades fixadas para o exercício do direito à dedução decorrem essencialmente das características específicas das operações imobiliárias e visam proporcionar um correcto apuramento e controle do imposto relativo a cada imóvel ou parte autónoma abrangidos pelo regime de renúncia à isenção”.
 

Ou seja: há uma relação intrínseca entre o certificado consequente àquela declaração e a própria tributação: sujeição da operação a imposto que depois possibilitará o reembolso ou dedução respectiva.»

 

Para a presente Decisão Arbitral, “se  a Requerida aceita que o IVA liquidado e entregue pela Requerida foi «deduzido através dos contratos que celebrou com a B... e  C...» como e com que fundamento é que defende que a Requerente não podia deduzir?”.

 

O facto é que a administração fiscal em momento algum reconheceu a legalidade da dedução efetuada.

 

Limitou-se a dar como provada essa dedução ter sido feita , o que não significa qualquer concordância com ela.

 

A  Decisão Arbital  não acompanha  a Conclusão do RIT elaborada a 14 de novembro de 2022 onde consta: «Em resumo, mesmo tendo em consideração o acima exposto mantemos a nossa convicção de que a operação em escrutínio trata-se de uma locação simples de espaços abrangidas pela isenção prevista no n.º 29 do artigo 9.º do CIVA, com possibilidade de renúncia à isenção prevista nos n.ºs 4 e 5 do artigo 12.º do CIVA estando convictos de que esta era a vontade da A... até ao momento em que recebeu o Projeto de Relatório de Inspeção Tributária pois, caso contrário não teria solicitado o Certificado de Renúncia de Isenção».

 

Segundo ainda a Decisão Arbitral:

 

“A convicção da Equipa de Inspeção não se nos afigura suficientemente sustentada nos factos provados e aceites pela AT na Resposta pelo que não serve de fundamento para a correção efetuada.

Neste enquadramento a Requerida efetuou uma correção de uma liquidação com base em erro sobre os pressupostos de facto e de Direito pelo que a mesma deve ser eliminada da ordem jurídica, com as legais consequências”

 

Olvida , no entanto, a Decisão Arbitral que a Requerente não aplicou  IVA  nas rendas recebidas e que caberia a ela demonstrar os pressupostos do direito à dedução. A sua concessão viola, assim,  de modo evidente, os princípios reguladores desse direito.

 

 

Lisboa, 23 de abril de 2024.

 

O Árbitro

 

(António Barros Lima Guerreiro)