Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 583/2023-T
Data da decisão: 2024-04-18  IRC  
Valor do pedido: € 127.497,81
Tema: IRC. Eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos – artigo 51.º do Código do IRC.
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SUMÁRIO

  1. Verificados os pressupostos cumulativos (expressamente) elencados no artigo 51.º do Código do IRC (regime da eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos), os dividendos pagos a sujeitos passivos com residência fiscal em território português não concorrem para a determinação do respetivo lucro tributável.
  2. Para efeitos do regime estatuído no artigo 51.º do Código do IRC, não é relevante se os dividendos distribuídos têm origem em resultados gerados no exercício em que ocorreu a deliberação de distribuição de dividendos, ou em períodos anteriores, nem cumpre ao sujeito passivo demonstrar que os resultados da sociedade distribuidora foram efetivamente sujeitos a tributação, porquanto tal interpretação não tem respaldo na lei.
  3. Do princípio de que “o legislador se exprimiu de forma correta e completa” (consagrado no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil) imana o princípio de que “onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir” (“Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus”), ambos aceites pelos Tribunais Superiores como regras clássicas da hermenêutica.
  4. Nos termos do artigo 51.º, n.ºs 13 e 14, do Código do IRC, o regime da eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos contido no n.º 1 do mesmo artigo é afastado quando exista uma “construção ou série de construções que, tendo sido realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto e finalidade de eliminar a dupla tributação sobre tais rendimentos, não seja considerada genuína, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes”.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Dr. Manuel Lopes da Silva Faustino e Professora Doutora Maria do Rosário Anjos, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo constituído em 18-10-2023, acordam o seguinte:

 

I.  RELATÓRIO

  1. A..., LDA., sociedade por quotas com número único de matrícula e de identificação fiscal ..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., ...-... ... (doravante “Requerente”), notificada da liquidação adicional de IRC n.º 2023..., relativa ao exercício fiscal de 2019, e respetivas liquidações de juros, no montante global de € 168.444,47, com data limite de pagamento em 22.6.2023, veio, em 9.8.2023, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”), bem como dos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d), da LGT e 99.º, alínea a), do CPPT, requerer a constituição de tribunal arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante “AT” ou “Requerida”), não tendo utilizado a faculdade de designar árbitro, e peticionando: (1) a declaração de ilegalidade e consequente anulação da mencionada liquidação adicional de IRC e respetivas liquidações de juros, e (2) a condenação da AT no pagamento de indemnização no montante de € 2.022,58, pela prestação indevida de garantia, nos termos dos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT, acrescido dos juros trimestrais que forem debitados pela instituição financeira até ao levantamento da referida garantia.
  2. Cumpridos os necessários e legais trâmites processuais, designadamente os previstos no RJAT e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, foi constituído Tribunal Arbitral Coletivo, em 18.10.2023, formado pela Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente),  Dr. Manuel Faustino e Professora Doutora Maria do Rosário Anjos (árbitros vogais), em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
  3. Notificada em 18.10.2023, nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, veio a AT apresentar resposta e juntar o processo administrativo a 22.11.2023.
  4. Em 29.11.2023, a Requerente respondeu à exceção suscitada pela Requerida: incompetência do Tribunal Arbitral para se pronunciar sobre o mérito da autoliquidação, uma vez que não tinha sido apresentada a reclamação prejudicial em conformidade com o disposto no artigo 131.º do CPPT.
  5. Em 4.12.2023, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho:
    1. Ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da livre determinação das diligências de prova necessárias (cf. artigo 16.º, alíneas c) e e), do RJAT), o Tribunal Arbitral admite o requerimento apresentado pela Requerente no dia 29 de novembro de 2023, no exercício do direito ao contraditório, e dispensa a realização da reunião do artigo 18.º do RJAT, por desnecessária.
    2. Notifique-se as Partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas (simultâneas) no prazo de 10 dias.
    3. Notifique-se as Partes para juntarem aos autos a versão Word de todos os articulados no prazo referido no número anterior.
    4. Notifique-se a Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente até o dia 20 de dezembro de 2023.
    5. Notifique-se as Partes de que a decisão arbitral será proferida até ao final do prazo do artigo 21.º, n.º 1, do RJAT.
  6. A Requerente apresentou alegações em 5.12.2023, juntando comprovativo de despesas com garantia bancário no montante de € 552.67, e a Requerida apresentou alegações em 18.12.2023.

 

II.  POSIÇÃO DAS PARTES

Posição da Requerente

  1. No PPA, a Requerente argumentou que a liquidação adicional de IRC impugnada, referente ao IRC da Requerente do ano de 2019, é ilegais por (a) violação do princípio da descoberta da verdade material ínsito no artigo 58.º da LGT, (b) interpretação errónea do artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC, (c) violação do direito de audição prévia contido no artigo 60.º da LGT, e (d) aplicação errónea do artigo 51.º, n.ºs 13 e 14, do Código do IRC. Em requerimento separado, a Requerente defendeu-se relativamente à exceção dilatória invocada pela Requerida na resposta.

Violação do princípio da descoberta da verdade material ínsito no artigo 58.º da LGT

  1. Em resposta ao Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (“PRIT”) notificado à Requerente em 28.03.2023, no qual foi proposta uma correção ao lucro tributável inscrito na Declaração Modelo 22 do IRC da Requerente relativa ao exercício de 2019, a Requerente, em sede de audição prévia, admitiu o erro na qualificação dos dividendos pagos pela sociedade B..., S.A. (“B...”), no valor de € 690.000,00, e alegou ser aplicável o método para a eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos consagrado no artigo 51.º do Código do IRC, por estarem verificados todos os pressupostos de que tal aplicação depende. Posteriormente, a Requerente apresentou a documentação adicional solicitada pelos serviços de inspeção tributária
  2. Encontrando-se a AT na posse de todas as informações e documentos necessários para concluir que o montante de € 690.000,00 se encontrava incorretamente inscrito na Declaração Modelo 22 do IRC da Requerente e que, naturalmente, era sua intenção declarar aquele valor no campo 771 do quadro 07 da declaração (e não no campo 704), deveria a AT ter dado a oportunidade à Requerente de suprir o erro em apreço, através da submissão de uma declaração de substituição, e abster-se de realizar as correções sub judice, o que evitaria o recurso à via judicial, poupando, desta forma, o dispêndio de meios e recursos ao erário público. Ao não proceder desta forma, a AT violou o disposto no artigo 58.º da LGT (“A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”).

Interpretação errónea do artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC

  1. Nos termos do artigo 51.º do Código do IRC, os lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC com sede em território português, como é o caso da Requerente, não concorrem para a determinação do lucro tributável, desde que verificados, cumulativamente, os pressupostos previstos nas alíneas a), b), c), d) e e) do n.º 1 daquele artigo.
  2. No Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), a AT concluiu pela inaplicabilidade do artigo 51.º do Código do IRC por ter considerado que (i) a transmissão das quotas da B... consubstancia uma construção não realizada por razões económicas válidas em conformidade com os n.ºs 13 e 14 do artigo 51.º do Código do IRC, e (ii) a Requerente não demonstrou que os resultados correspondentes aos dividendos distribuídos já haviam sido tributados na esfera da sociedade distribuidora (B...).
  3. Ao contrário do que parece entender a AT, o artigo 51.º do Código do IRC não faz depender a aplicação do regime nele previsto à prova adicional requerida pela AT no RIT, designadamente a “demonstração concreta e cabal de que os mesmos já foram efetivamente tributados na esfera da sociedade distribuidora”, nem restringe o regime nele contido aos resultados gerados no período em que foram distribuídos os dividendos. A verdade é que os pressupostos enunciados no n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRC encontram-se verificados relativamente aos dividendos pagos pela B... à Requerente, no valor de € 690.000,00, e a interpretação das normas aplicáveis ao caso em apreço subscrita pela AT extravasa claramente o seu sentido e colide com a respetiva ratio normativa, sendo a liquidação de IRC em crise e respetivos juros, por este motivo, ilegais.

Violação do direito de audição prévia contido no artigo 60.º da LGT

  1. Enquanto no PRIT os fundamentos em que se estribou a AT reconduziam-se à não verificação dos requisitos previstos no artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC, já no RIT a AT optou por alterar a sua linha argumentativa, alegando, pela primeira vez, que a operação de aumento de capital em espécie obsta à aplicação do regime previsto naquela norma, por consubstanciar uma construção não realizada por razões económicas válidas, em conformidade com os n.ºs 13 e 14 do artigo 51.º do Código do IRC.
  2. Considerando que a decisão final da AT que suporta as liquidações adicionais de IRC sub judice integra novos factos e fundamentos, relativamente aos quais não foi dada oportunidade de pronúncia à Requerente, é forçoso concluir estarmos perante uma manifesta violação do princípio da participação em sede de audição prévia, conforme previsto no artigo 60.º da LGT, em especial do seu n.º 3 (“Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais se não tenha pronunciado”).
  3. A violação do direito de audição prévia previsto no artigo 60.º, n.º 3, da LGT pela AT consubstancia um vício de procedimento suscetível de conduzir à anulação do despacho que notificou o RIT à Requerente.

Aplicação errónea do artigo 51.º, n.ºs 13 e 14, do Código do IRC

  1. A este respeito, a AT limita-se a constatar no RIT que o aumento de capital na Requerente foi concretizado pela entrega de participações sociais que sócios da Requerente detinham na sociedade B... e, desta forma, os referidos sócios continuaram a controlar a sociedade B..., em virtude de serem detentores da maioria do capital da Requerente. Da constatação daquele facto a AT extrai, através de uma argumentação desprovida de qualquer sentido e que desafia as regras da lógica, que aquela operação consubstancia, alegadamente, uma construção não realizada por razões económicas válidas.
  2. Conforme resulta da escritura de aumento de capital e alteração do pacto social, os sócios realizaram uma operação de aumento de capital em espécie na Requerente, no âmbito de uma operação de restruturação societária do Grupo, que visou concentrar as diversas participações sociais por si detidas numa única sociedade (i.e., na Requerente). Inexiste qualquer construção que não tenha sido realizada por razões económicas válidas ou não reflita substância económica, porquanto as razões que estiveram na origem da restruturação societária do grupo liderado pelos sócios em causa prenderam-se, exclusivamente, por razões não fiscais.
  3. A AT não cumpriu, como lhe competia, o seu ónus da prova e fundamentação para aplicação das normas previstas no artigo 51.º, n.ºs 13 e 14, do Código do IRC, designadamente provar que a principal finalidade da operação de aumento de capital realizada na Requerente teve como objetivo obter uma vantagem fiscal e identificar a efetiva vantagem fiscal de que a Requerente beneficiou. Por este motivo, a interpretação que a AT faz no RIT do artigo 51.º, n.ºs 13 e 14, do Código do IRC, é manifestamente ilegal, pelo que a correção realizada pela AT nos termos do RIT enferma de vícios determinativos da sua ilegalidade, por erro nos pressupostos de direito e de facto, sendo, por consequência, anulável nos termos do artigo 163.º do CPA.
  4. Sendo a liquidação supra identificada e posta em crise manifestamente ilegal, tem a Requerente direito a indemnização pela garantia prestada indevidamente, nos termos dos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT.

Da exceção de incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar e decidir alegados vícios do ato de autoliquidação

  1. O artigo 131.º do CPPT exige que, em caso de erro na autoliquidação, o sujeito passivo apresente uma reclamação graciosa, submetendo assim a questão administrativamente, antes do recurso à via judicial, uma vez que, nestes casos, ainda não se verificou qualquer atuação administrativa lesiva dos contribuintes ou, por outras palavras, a AT ainda não tomou qualquer posição sobre a sua relação com o contribuinte que efetuou a autoliquidação por sua própria iniciativa. O fundamento dos artigos 131.º a 133.º do CPPT é, assim, o de possibilitar que a AT profira um ato administrativo sobre determinada realidade que esteve sempre no controlo do contribuinte, ou seja, permitir-lhe o controlo administrativo da declaração do contribuinte e a sanação de qualquer vício antes de intervenção do Tribunal.
  2. Se a AT pronunciou-se sobre a declaração do sujeito passivo no RIT, como sucedeu no caso sub judice, cessa a razão de ser da aplicação do artigo 131.º CPPT e, consequentemente, a obrigação do sujeito passivo de apresentar uma reclamação graciosa previamente à impugnação judicial / arbitral.
  3. Acresce que a liquidação impugnada foi emitida pela Requerida, não estando em causa sequer uma autoliquidação subsumível à norma prevista artigo 131.º do CPPT. Nestes termos, não estava a Requerente obrigada a apresentar uma reclamação graciosa antes da respetiva impugnação arbitral para apreciar e decidir os vícios do ato impugnado.
  4. Assim, é mister concluir que o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT. Esta é a interpretação que melhor se coaduna com o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

Posição da Requerida

Da alegada violação do princípio do inquisitório e da descoberta da verdade material

  1. No que respeita à liquidação oficiosa aqui em discussão, a AT limitou-se a exercer a competência que lhe atribuiu o legislador no artigo 2.º do RCPITA, que consiste em aferir da conformidade dos elementos declarados pelos sujeitos passivos com a legislação fiscal, bem como em verificar o cumprimento das exigências formais atinentes à idónea comprovação e à verificação dos requisitos necessários para efeitos da sua elegibilidade fiscal. A AT concluiu no âmbito da ação inspetiva, tal como a própria Requerente assume, que a dedução efetuada ao resultado líquido para efeitos de apuramento do resultado tributável não configura uma variação patrimonial negativa aceite fiscalmente, conforme fundamentação inserta no RIT.
  2. Tendo a Requerente reconhecido e assumido que “o erro de inscrição do aludido montante na declaração de IRC modelo 22 constitui um claro e manifesto erro na autoliquidação”, cabia-lhe apresentar reclamação graciosa, nos termos do artigo 137.º do Código do IRC e artigo 131.º do CPPT, corrigindo dessa forma a alegada injustiça, o que nunca fez.
  3. Salientando-se, também, que a correção à matéria tributável em sede de IRC resulta do facto de ter sido declarada indevida e ilegalmente, pela Requerente, uma variação patrimonial negativa, no quadro 07, da DR-Modelo22, o que determinou um acréscimo do lucro tributável, por parte da AT, originando uma correção a favor do Estado, no montante de € 690.000,00. Pelo que não se encontra concretizada na liquidação adicional ora impugnada, qualquer correção à matéria tributável nos termos do artigo 51.º do Código do IRC, como parece defender erroneamente a Requerente.
  4. Nos termos do disposto nos artigos 266.º da CRP, 55.º e 58.º da LGT e 6.º do RCPITA, a AT deve realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material. In casu, foi ao abrigo do princípio do inquisitório e no exercício da competência de verificação do cumprimento das obrigações tributárias que a AT, perante a argumentação invocada no âmbito do exercício do direito de audição, no sentido de que os dividendos atribuídos pela participada se enquadravam no disposto no artigo 51.º do Código do IRC, notificou a Requerente para apresentar esclarecimentos e documentação.
  5. Todavia, da análise efetuada pela AT aos elementos carreados pela Requerente não resultaram provas capazes de sustentar a então arguida e peticionada correção a seu favor, ao abrigo daquela disposição legal. Não ocorreu, pois, a alegada violação do princípio do inquisitório previsto no artigo 58.º da LGT.

Da exceção de incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar e decidir alegados vícios do ato de autoliquidação

  1. A pretensão de dedução dos dividendos ao lucro tributável, a efetuar nos termos do n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRC, não foi inicialmente concretizada pela Requerente (através do ato de autoliquidação), nem foi posteriormente desconsiderada, em resultado de qualquer correção proposta pela AT. Recorde-se que a correção à matéria tributável resulta do facto de ter sido declarada, indevida e ilegalmente, pela Requerente uma variação patrimonial negativa, no quadro 07, da Modelo 22 do IRC, pelo que a liquidação adicional aqui em causa não incorpora qualquer correção a uma dedução ao lucro tributável efetuada nos termos do n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRC.
  2. Os alegados erros cometidos pela Requerente na autoliquidação deveriam ter sido objeto de reclamação graciosa necessária, nos termos do artigo 137.º do Código do IRC e do artigo 131.º do CPPT. Atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º e 2.º, alínea a), ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, verifica-se a exceção de incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar e decidir alegados vícios do ato de autoliquidação, circunstância que determinaria a absolvição da AT da instância (cf. artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, alínea a), do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT), o que se requer.

 

Do alegado preenchimento dos requisitos previstos no artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC

  1. Os elementos probatórios apresentados pela Requerente não se revelam capazes de sustentar a então arguida e peticionada correção a seu favor, nos termos do artigo 51.º do CIRC. Tal como consta do RIT, o relatório de gestão e desmonstrações financeiras da sociedade B... referentes ao exercício de 2019 não permitem provar a que períodos de tributação se referiam os alegados dividendos distribuídos, no montante de € 690.000,00, porquanto dos mesmos consta que o resultado líquido do exercício de 2019 da participada ascende apenas a € 109.276,17.
  2. Daqui se retira que a Requerente incumpriu, quer em sede inspetiva, quer na presente ação arbitral, o ónus da prova que sobre si impendia nos termos do artigo 74.º da LGT, para efeitos do direito que se arroga de obter a eliminação da dupla tributação para determinação do lucro tributável do exercício de 2019.

Da alegada violação do direito de audição prévia

  1. O facto de a AT se ter pronunciado, após o exercício do direito de audição por parte da Requerente, sobre a eventual possibilidade de deduzir ao lucro tributável o montante recebido a título de distribuição de dividendos, ao abrigo do disposto pelo n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRC, não está na origem da liquidação controvertida, pois como plenamente demostrado não foi efetuada nenhuma correção ao lucro tributável, nos termos do n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRC.  Assim sendo, não recaía sobre a AT a obrigação de notificar, novamente, a Requerente para participar na tomada de decisão que se traduziu somente na convolação em definitivo da correção proposta no projeto de RIT já notificado à Requerente, nos termos do artigo 60.º da LGT e do RCPITA.

A aplicação do artigo 51.º, n.ºs 13 e 14, do Código do IRC

  1. Com a alienação da participação na B..., os sócios da Requerente, apesar de terem continuado, tal como anteriormente, a deter o controlo total da participada B... (em virtude de serem detentores da totalidade do capital da Requerente), lograram abster de tributação, em sede de IRC e nos termos do artigo 40.º-A do Código do IRS, aqueles dividendos distribuídos pela participada. Daqui se retira que estamos perante uma construção não realizada por razões económicas válidas, em conformidade com o disposto no artigo 51.º n.ºs 13 e 14, do Código do IRC.

Do pedido de indemnização por prestação indevida de garantia

  1. O direito a indemnização pela prestação indevida de garantia bancária para suspensão do processo de execução fiscal, nos termos do artigo 53.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, está dependente de erro imputável aos serviços na liquidação do tributo. Conforme vertido ao longo do presente articulado, o ato de liquidação aqui impugnado não sofre de qualquer erro ou vício que seja imputável à AT, pelo que não é devida qualquer indemnização pela prestação indevida de garantia nos referidos termos.

 

III.  QUESTÕES A DECIDIR

  1. A Requerente alega, no PPA, que a liquidação adicional de IRC impugnada (e correspondentes juros) é ilegal por (a) violação do princípio da descoberta da verdade material ínsito no artigo 58.º da LGT, (b) interpretação errónea do artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC, (c) violação do direito de audição prévia contido no artigo 60.º da LGT, e (d) aplicação errónea do artigo 51.º, n.ºs 13 e 14, do Código do IRC. Por sua vez, na resposta, a Requerida suscitou a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar e decidir alegados vícios do ato de autoliquidação. Considerando o princípio da proibição da fundamentação a posteriori (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28.10.2020, processo n.º 02887/13.8BEPRT), note-se que, no RIT, a AT não questionou o preenchimento dos pressupostos exigidos pelas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRC.
  2. Em face dos elementos constantes do processo, cumpre apreciar primeiramente a exceção dilatória de incompetência material Tribunal Arbitral, suscetível de determinar a absolvição da instância (cf. artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, alínea a) do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Caso o Tribunal Arbitral determine a improcedência desta exceção dilatória, passará à análise da matéria de facto e de direito relevante, apreciando sucessivamente os vícios assacados ao ato impugnado cuja procedência determine a mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, atento o disposto no último segmento da alínea b) do n.º 2 do artigo 124.º do CPPT, a saber:
  1. Erro quanto aos pressupostos de facto e de direito com referência ao disposto no artigo 51.º do Código do IRC, designadamente:
    1. Se, para efeitos do artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC, cumpre ao sujeito passivo demonstrar que os resultados da sociedade distribuidora foram efetivamente sujeitos a tributação?
    2. Se, para efeitos do artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC, apenas são elegíveis os resultados do período em que foi deliberada a distribuição de dividendos?
    3. Se, para efeitos do artigo 51.º, n.ºs 13 e 14, do Código do IRC, a transferência para a Requerente das participações sociais da B... (em 2018) constituiu uma “construção ou série de construções que, tendo sido realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto e finalidade de eliminar a dupla tributação sobre tais rendimentos, não seja considerada genuína, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes”?
  2. Violação dos princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material;
  3. Violação do direito de audição prévia.
  1. Relativamente à ordem de apreciação dos vícios assacados pelo Requerentes à liquidação sindicada, cumpre referir que é jurisprudência constante dos Tribunais Superiores relativamente à interpretação da alínea b) do n.º 2 do artigo 124.º do CPPT, incluindo do Douto Supremo Tribunal Administrativo, que devem conhecer-se, em primeiro lugar, os vícios de violação de lei (stricto sensu), assentes em erro nos pressupostos de facto e de direito, que impedem a renovação do ato de liquidação, e só depois os vícios procedimentais ou formais (como seja a violação do princípio da descoberta da verdade material, ou do direito de audição prévia), que não impedem a renovação do ato de liquidação, na medida em que a eventual procedência daqueles propiciam ao interessado uma tutela mais estável e eficaz dos seus direitos do que a eventual procedência destes (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 17.06.2015, processo n.º 0395/15, de 18.05.2016, processo n.º 0100/16, e de 24.01.2007, processo n.º 0939/06).
  2. Identificadas as questões decidendas e a ordem de conhecimento dos vícios invocados pela Requerente, impõe-se agora enunciar os pressupostos processuais e analisar a exceção dilatória suscitada pela Requerida.

 

IV.  SANEAMENTO

  1. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado em 9.8.2023, i.e., no prazo de 90 dias previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, contado a partir do termo do prazo para pagamento voluntário da prestação tributária notificada à Requerente (22.06.2023), conforme o artigo 102.º, n.º 1, do CPPT.
  2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

 

 

Da exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral

  1. Nos termos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, o Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT.
  2. In casu, a AT defende que a liquidação adicional impugnada tem como fundamento a não aplicação do artigo 24.º do Código do IRC, à luz da Modelo 22 apresentada pela Requerente, e não a recusa do benefício contido no artigo 51.º do Código do IRC, relativamente ao qual a Requerente deveria ter apresentado reclamação graciosa separadamente.
  3. Seguindo a jurisprudência dos Tribunais Superiores, temos que assiste razão à Requerente e que a exceção dilatória suscitada pela Requerida deverá ser julgada improcedente. Desde logo, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7.12.2011, tirado no Processo n.º 0299/11, escreve assertivamente:

“Nos casos em que a Administração Tributária já tomou posição sobre a autoliquidação do imposto - através de acto tributário de correcção dos valores declarados pelo contribuinte - não se está perante nova situação que exija prévia reclamação nos termos do artigo 131.º do CPPT. Só esta interpretação logra assegurar uma adequada garantia jurisdicional no âmbito do contencioso tributário, cobrindo, sem lacuna, todas as ofensas dos direitos ou interesses legalmente protegidos cos contribuintes, pois que se assim não fosse estes ficariam impossibilitados de reagir contra os actos tributários lesivos lesivos legítimos sempre que a administração procedesse a correcções de declarações que geraram autoliquidação de impostos nos dois anos posteriores à sua apresentação, o que constituiria uma afronta inadmissível ao princípio da tutela jurisdicional efetiva.”

  1. No mesmo sentido, cita-se também o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do Processo n.º 0367/18.4BEPNF, de 28.11.2018. Também o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27.4.2017, no processo n.º 08958/15, vai no mesmo sentido, quando nele se decide:

“As impugnações administrativas constituem formas de tutela do contribuinte perante o Fisco, de forma que a instauração do seu procedimento reabre a apreciação da situação subjacente ao acto tributário, o qual não se consolida até ao trânsito em julgado da decisão judicial incidente sobre a sua impugnação.

De onde resulta que associar o efeito preclusivo da competência do tribunal arbitral à não invocação na sede administrativa de certo vício fundamento do pedido de pronúncia arbitral colide com o regime das impugnações administrativas como garantias dos contribuintes no quadro do direito à tutela jurisdicional efetiva (artigo 268.º, n.º 4, da CRP; artigo 20.º da CRP e artigo 6.º da CEDH).

A restrição do universo de elementos constitutivos da causa de pedir arbitral em função da discussão efectuada em sede procedimental constitui uma restrição desproporcionada da tutela judicial efectiva, na medida em que a garantia do cumprimento da legalidade fiscal assegurada pelos procedimentos administrativos de revisão do acto tributário não pode operar como um impedimento de tal revisão em sede contenciosa, seja a mesma garantida através de um tribunal do Estado, seja a mesma garantida através de um tribunal arbitral. De outro modo, é a tutela judicial efectiva assegurada através do tribunal da causa que sairia defraudada.”

  1. No caso sub judice, a Requerente impugnou a liquidação adicional emitida pela AT, tendo invocado anteriormente, no decurso do procedimento inspetivo, a ilegalidade das correções propostas no PRIT, por violação do artigo 51.º do Código do IRC. Daqui se retira que, antes de emitir a liquidação adicional impugnada pela Requerente em sede arbitral, a AT teve oportunidade de se pronunciar sobre a aplicabilidade do artigo 51.º do Código do IRC. Acresce que, da leitura do RIT, resulta que a AT se pronunciou expressamente sobre a interpretação do artigo 51.º do Código do IRC e a respetiva aplicação ao caso sub judice.
  2. Pelo exposto, improcede a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral. Dado que o processo não enferma de nulidades, impõe-se agora determinar a matéria de facto relevante para as questões decidendas acima identificadas.

 

V.  MATÉRIA DE FACTO

Factos provados

  1. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e do processo administrativo, fixa-se como segue:
  1. Em 2019, a Requerente era uma sociedade por quotas com atividade na área da compra e venda bens imobiliários, administração de imóveis por conta de terceiros, e prestação de serviços, com capital social de € 1.311.054,72, detido pelos seguintes sócios:
  1. C... (“C...”), detentor de uma quota com valor nominal de € 655.527,36; e
  2. D... (“D...”), detentora de uma quota com valor nominal de € 655.527,36 (cf. alegado nos artigos 10.º e 11.º do PPA, e referido no RIT junto ao PPA como Documento 8).
  1. Em 2019, a Requerente detinha, entre outras, uma participação social na sociedade B..., S.A., com o NIF..., e atividade na área de exames clínicos, execução e técnicas auxiliares e complementares de diagnósticos e terapêutica médica e cirúrgica, bem como da investigação científica, correspondente a 99,40% do respetivo capital social (cf. alegado nos artigos 13.º, 14.º e 15.º do PPA, e referido no RIT junto ao PPA como Documento 8).
  2. Esta participação social na sociedade B... havia passado a ser detida pela Requerente em 12.7.2018, na sequência da realização de entradas em espécie por C... e D... (um lote de 25.000 ações na sociedade B... da titularidade de C..., a que foi atribuído o valor de € 461.257,69, e um lote de 25.000 ações na sociedade B... da titularidade de D..., a que foi atribuído o valor de € 461.257,69), que resultaram no aumento de capital da Requerente (à data com a firma E.., Lda.) de € 5.000,00 para € 1.311.054,72 (ou seja, num aumento de capital de € 1.306.054,72) (cf. escritura pública junta ao PPA como Documento 3).
  3. Em 31.12.2019, por deliberação da Assembleia Geral da sociedade B..., foi decidido proceder-se ao pagamento, a título de dividendos, do valor de € 690.000,00 à Requerente (cf. cópia da Ata junta como Documento 4, e referido no RIT junto ao PPA como Documento 8).
  4. Em 2019, a Requerente e a sociedade B... eram entidades sujeitas e não isenta de IRC, não abrangidas pelo regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º do Código do IRC (cf. RIT junto ao PPA como Documento 8).
  5. Em 27.7.2020, a Requerente procedeu à entrega da Declaração Modelo 22 do IRC, por referência ao exercício de 2019, à qual foi atribuído o número de identificação ...-...-..., inscrevendo o montante recebido naquele ano, a título de dividendos, de € 690.000,00, no campo 704 do Quadro 07 da Declaração Modelo 22, como variação patrimonial negativa não refletida no resultado líquido do período, a que se refere o artigo 24.º do Código do IRC (cf. cópia da declaração Modelo 22 do IRC junta ao PPA como Documento 5).
  6. Em 17.2.2023, a Requerente foi notificada do início do procedimento de inspeção tributária, credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2022..., de âmbito parcial, para controlo de variações patrimoniais não refletidas no resultado líquido do período, em sede de IRC, referentes ao ano de 2019 (cf. alegado no artigo 22.º do PPA, e referido no RIT junto ao PPA como Documento 8).
  7. Em 28.3.2023, a Requerente foi notificada do PRIT emitido pela AT, do qual constava um acréscimo do lucro/matéria tributável em sede de IRC do exercício de 2019, no montante de € 690.000,00, correspondente ao valor da variação patrimonial negativa inscrita no campo 704 do Quadro 07 da Declaração Modelo 22 do IRC, com fundamento na falta de enquadramento dos dividendos distribuídos pela sociedade B... no artigo 24.º do Código do IRC (cf. Documento 6 junto ao PPA).
  8. Em 24.3.2023, a Requerente exerceu, por escrito, o seu direito de audição, requerendo o não provimento das correções projetadas no PRIT, argumentando, em síntese, que: (i) o montante de € 690.000,00 foi inscrito, por lapso, no campo 704 do quadro 07 da declaração Modelo 22 do IRC da Requerente referente ao exercício de 2019 (“Variações Patrimoniais negativas não refletidas no resultado líquido do período”), enquanto deveria ter sido inscrito no campo 771 do quadro 07 da referida declaração (“Eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos”); (ii) na medida em que se encontravam verificados todos os pressupostos previstos no artigo 51.º do Código do IRC relativamente aos dividendos distribuídos pela B... à Requerente, o montante de € 690.000,00 era elegível para a eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuído ao abrigo do artigo 51.º e seguintes do Código do IRC (cf. Documento 7 junto ao PPA).
  9. Em 24.4.2023, a Requerente foi notificada do RIT determinando a manutenção da correção proposta no PRIT (ou seja, um acréscimo de € 690.000,00 ao lucro tributável da Requerente), da qual resultou num montante de imposto, alegadamente, em falta de € 127.497,81, com os seguintes fundamentos:

 

(cf. RIT junto ao PPA como Documento 8).

  1. Em conformidade, a AT veio a emitir a liquidação adicional de IRC n.º 2023..., no montante de € 127.497,81, por referência ao período de tributação de 2019, e respetivos juros, dos quais resultou a demonstração de acerto de contas com o n.º 2023..., com o valor total a pagar de € 168.444,47, e com data-limite de pagamento de 22.6.2023 (cf. Documentos 1 e 2 juntos ao PPA).
  2. O não pagamento do aludido montante pela Requerente no referido prazo implicou a instauração do processo de execução fiscal n.º ...2023..., e a apresentação de uma garantia bancária pela Requerente para suspender o mesmo (cf. Documentos 9, 10 e 11 juntos ao PPA).
  3. Em 09.8.2023, a Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos.

 

Factos não provados

  1. Não existem, com relevo para a decisão, factos que devam considerar-se como não provados.

 

Fundamentação da matéria de facto

  1. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
  2. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
  3. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
  4. Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, e dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados, e na adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
  5. Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

VI.  MATÉRIA DO DIREITO

 

§1. Erro quanto aos pressupostos de facto e de direito com referência ao artigo 51.º do Código do IRC

 

Da legislação aplicável

  1. Na redação à data dos factos, com relevância para o presente processo, dispunha o artigo 51.º do Código do IRC:

“Artigo 51.º

Eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos

1 - Os lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português não concorrem para a determinação do lucro tributável, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: 

a) O sujeito passivo detenha direta ou direta e indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, uma participação não inferior a 10 % do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas; 

b) A participação referida no número anterior tenha sido detida, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à distribuição ou, se detida há menos tempo, seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período; 

c) O sujeito passivo não seja abrangido pelo regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º; 

d) A entidade que distribui os lucros ou reservas esteja sujeita e não isenta de IRC, do imposto referido no artigo 7.º, de um imposto referido no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, ou de um imposto de natureza idêntica ou similar ao IRC e a taxa legal aplicável à entidade não seja inferior a 60 % da taxa do IRC prevista no n.º 1 do artigo 87.º; 

e) A entidade que distribui os lucros ou reservas não tenha residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.

(...)

13 - O disposto no n.º 1 não é aplicável aos lucros e reservas distribuídos quando exista uma construção ou série de construções que, tendo sido realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto e finalidade de eliminar a dupla tributação sobre tais rendimentos, não seja considerada genuína, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes. 

14 - Para efeitos do número anterior, considera-se que uma construção ou série de construções não é genuína na medida em que não seja realizada por razões económicas válidas e não reflita substância económica.”

  1. A redação dos n.ºs 13 e 14 do artigo 51.º do Código do IRC transcritos resulta da Lei n.º 5/2016, de 29 de fevereiro, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva 2015/12/UE do Conselho, de 27 de janeiro de 2015, que alterou a Diretiva 2011/11/96 do Conselho, de 30 de novembro de 2011, relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades-mãe e sociedades afiliadas de Estados Membros diferentes.

Apreciando as questões por decidir:

 

 

Para efeitos do artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC, cumpre ao sujeito passivo demonstrar que os resultados da sociedade distribuidora foram efetivamente sujeitos a tributação?

  1. A alínea d) do n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRC apenas exige que a sociedade distribuidora de dividendos seja sujeita e não isenta de IRC, não sendo controvertido que este era o caso da B... em 2019. Não tendo o legislador exigido que o sujeito passivo demonstre que os resultados da sociedade distribuidora foram efetivamente sujeitos a tributação, entendemos não caber à AT ou ao Tribunal Arbitral restringir o âmbito de aplicação do artigo em apreço através de uma interpretação restritiva do respetivo elemento literal em detrimento do sujeito passivo.
  2. Do princípio de que “o legislador se exprimiu de forma correta e completa” (consagrado no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, onde se pode ler: “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”) imana o princípio de que “onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir” (“Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus”), ambos aceites pelos Tribunais Superiores como regras clássicas da hermenêutica (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.6.1993, processo n.º 084774; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.3.2015, processo n.º 4/2015; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 17.6.2021, processo n.º 931/10.0BELSB; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 8.6.2012, processo n.º 01901/10.3BEBRG; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 17.2.2022, processo n.º 00419/12.4BEPRT).
  3. Daqui se retira que, ao exigir que sujeito passivo demonstre, para efeitos do artigo 51.º do Código do IRC, que os resultados da sociedade distribuidora foram efetivamente sujeitos a tributação, a AT incorreu em erro quanto aos pressupostos de direito.

 

 

Para efeitos do artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC, apenas são elegíveis os resultados do período em que foi deliberada a distribuição de dividendos?

  1. O artigo 51.º do Código do IRC não restringe o regime nele contido aos dividendos distribuídos com referência aos resultados verificados no mesmo período de tributação, pelo que, à luz dos princípios de hermenêutica supra referidos (“o legislador exprimiu-se de forma correta e completa” e “onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir”), não é relevante se os dividendos distribuídos têm origem em resultados do mesmo período de tributação ou de períodos de tributação anteriores.
  2. Daqui se retira que não é relevante, como pretende a AT, que o montante dos dividendos distribuídos em 2019 seja € 690.000,00 e o resultado líquido do exercício de 2019 seja € 109.276,17. Ao restringir o âmbito do artigo 51.º do Código do IRC com o fundamento mencionado supra, a AT incorreu em erro quanto aos pressupostos de direito.

 

Para efeitos do artigo 51.º, n.ºs 13 e 14, do Código do IRC, a transferência para a Requerente das participações sociais da B... em 2018 constituiu uma “construção ou série de construções que, tendo sido realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto e finalidade de eliminar a dupla tributação sobre tais rendimentos, não seja considerada genuína, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes”?

  1. Tanto no RIT como na resposta, a AT defende que a entrada em espécie (i.e., a entrega das ações representativas de 99,40 % do capital da sociedade B...) para o capital da Requerente configura uma construção não realizada por razões económicas válidas, para efeitos dos n.ºs 13 e 14 do artigo 51.º do Código do IRC, argumentando que:

“a empresa objeto do presente procedimento inspetivo, é uma sociedade por quotas detida pelos sócios, o Sr.C...– NIF ... e Sr.ªD... – NIF ..., tendo-se constatado que o aumento de capital nesta sociedade – Anexo 2, uma parte ocorreu pela entrega de participações sociais que os referidos sócios detinham na sociedade B..., S.A., em partes iguais, ou seja, os sócios entregaram as suas ações, que ficam na posse da A... ficando esta com participação no capital da B... . Com esta operação os mesmos sócios continuam a controlar a B..., em virtude de serem detentores da totalidade do capital da A..., Lda. – NIPC..., através da valorização das quotas que cada um ficou a deter na mesma.”

“(…) com a alienação da participação na B..., os sócios da Requerente, apesar de continuaram, tal como anteriormente, a deter o controlo total da participada  B... em virtude de serem detentores da totalidade do capital da Requerente, lograram abster de tributação, em sede de IRS e nos termos do artigo 40.º-A do CIRS, aqueles dividendos distribuídos pela participada.”

Vejamos se lhe assiste razão:

  1. Tanto o artigo 51.º do Código do IRC como o artigo 40.º-A do Código do IRS visam eliminar a dupla tributação económica, ou seja, que o lucro de uma sociedade seja tributado, em primeiro lugar, em sede de IRC dessa sociedade, e depois, sucessivamente, à medida que vai sendo distribuído pelos respetivos sócios. Considerando o objetivo dos mecanismos de eliminação da dupla tributação económica consagrados, quer no Código do IRC, quer no Código do IRS, não se pode deixar de concluir que os mesmos não saem frustrados no caso em juízo: o lucro apurado pela B... é tributado, em primeiro lugar, em sede de IRC da B...; a eliminação da dupla tributação económica, o objetivo pretendido pelo legislador, não é frustrado, sendo ao invés alcançado, quando os lucros são distribuídos à sociedade mãe (ou seja, à Requerente).
  2. Da análise do RIT, não se vislumbra em que sentido se poderia considerar que a operação em apreço tenha sido realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto e a finalidade de eliminar, em sede de IRC, a dupla tributação sobre tais rendimentos. Nada contido nos autos contraria a alegação da Requerente de que está em causa uma reorganização das várias sociedades em que os sócios, pessoas singulares, detinham participações sociais.

Conclusão:

  1. Face a todo o exposto supra resulta claro que o montante de € 690.000,00, respeitante a dividendos pagos à Requerente pela sociedade B..., é elegível para efeitos do regime de eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos previsto no artigo 51.º do Código do IRC, e que a liquidação adicional de IRC impugnada enferma de vícios determinativos da sua ilegalidade, por erro nos pressupostos de direito e de facto, nos termos do artigo 163.º do CPA.

 

§2. Questões de conhecimento prejudicado

  1. Pelo exposto supra relativamente ao artigo 51.º do Código do IRC, fica prejudicado o conhecimento e apreciação da violação dos princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material, e da violação do direito de audição prévia.

 

VII.  DA INDEMNIZAÇÃO PELA PRESTAÇÃO INDEVIDA DE GARANTIA

  1. Para efeitos da suspensão do processo de execução fiscal n.º ...2023..., a Requerente constituiu junto do BPI a garantia bancária com o n.º GAR/..., suportando os correspondentes encargos e peticionando uma indemnização com referência aos mesmos, nos termos legais.

Apreciando:

  1. No Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 30.6.2022, tirado no processo n.º 274/09.1BEBJA, a que este Tribunal adere, decidiu-se o seguinte:

“Como é sabido, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 53.º da LGT, a indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia bancária ou equivalente para suspender a execução: 

a) Não tendo havido erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, depende da manutenção da garantia ou equivalente por período superior a três anos; 

b) É proporcional ao vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida; 

c) Tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios. 

Considera-se verificado o erro imputável aos serviços quando o sujeito passivo obtiver vencimento na reclamação ou na impugnação e o fundamento da anulação não lhe for imputável, como é o caso dos autos, visto que a liquidação foi feita pelos serviços da administração, pelo que, os erros de direito, consubstanciados na aplicação da lei a determinados factos são imputáveis à Administração Tributável (vide neste sentido Acs. do STA de 18/12/2002, processo nº 0949/02 e de 30/05/2012, processo nº 0410/12).”

  1. Assim sendo, à Requerente assiste o direito aos encargos efetivamente suportados, atento o disposto no artigo 53.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, independentemente do prazo de prestação de garantia, visto que foi julgada verificada a existência de erro imputável aos serviços, e que a suspensão da execução fiscal dependia da prestação de garantia que a Requerente se viu obrigada a prestar, constituindo tal garantia uma consequência lesiva da atuação ilegal da AT.

 

VIII.  DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos antes expostos, este Tribunal:

  1. Declara ilegais e determina a anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2023... e respetivos juros, e da demonstração de acerto de contas com o n.º 2023..., com o valor total a pagar de € 168.444,47;
  2. Condena a AT no reembolso à Requerente do montante de € 168.444,47;
  3. Condena a AT a pagar à Requerente uma indemnização por prestação de garantia indevida, com o valor que vier a ser fixada em execução de sentença, nos termos legais.

 

IX.  VALOR DO PROCESSO

A Requerente indicou o montante de € 127.497,81 como valor do processo (correspondendo este valor ao montante de imposto e juros compensatórios apurado na liquidação de IRC n.º 2023...), e procedeu ao pagamento da taxa arbitral no montante de € 3.060,00.

Todavia, dado que foram cobrados juros adicionais (cuja anulação a Requerente peticiona no PPA), os respetivos montantes integram também o valor da causa, à luz do disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (o valor da causa corresponde ao da importância cuja anulação se pretende). Considerando que a Requerente juntou aos autos uma demonstração de acerto de contas com o valor total de € 168.444,47, cuja anulação (total) peticiona expressamente no PPA, entende o Tribunal Arbitral que a utilidade económica imediata do pedido corresponde a este valor.

Pelo exposto, fixa-se ao processo o valor global de € 168.444,47, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

X.  CUSTAS

Fixa-se custas no montante de € 3.672,00, em conformidade com a Tabela I, anexa ao RCPAT, e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, artigos 4.º, n.º 5, do RCPAT, e artigos 527.º e 536.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT. Dado que a Requerente procedeu ao pagamento de € 3.060,00, encontra-se em falta o valor de € 612,00.

A totalidade das custas arbitrais fica a cargo da Requerida, em razão do decaimento.

 

Notifique-se.

 

 

 

Lisboa, 18 de abril de 2024

 

A Presidente do Tribunal Arbitral,

 

Rita Correia da Cunha

 

A Árbitra Vogal,

 

Maria do Rosário dos Anjos

 

O Árbitro Vogal,

 

Manuel Faustino