Sumário: Não se consideram “encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros” os encargos com portagens, para efeitos das disposições conjugadas dos n.os 3 e 5 do artigo 88.º do Código do IRC.
DECISÃO ARBITRAL
RELATÓRIO
A..., LDA., titular do NIPC..., com sede na Zona Industrial do..., ..., ...-..., ... (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista i) a declaração de ilegalidade do despacho do Senhor Diretor do Serviço Central da Unidade dos Grandes Contribuintes, que indeferiu expressamente a reclamação graciosa associada ao processo n.º ...2023..., apresentada com base em alegado erro nas autoliquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) submetidas relativamente ao grupo sujeito ao Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (“RETGS”) de que a Requerente é Sociedade Dominante, referentes aos períodos de tributação de 2020 e 2021, que deram origem, respetivamente, às liquidações com os n.os 2021..., de 03.08.2021 e 2022..., de 28.07.2022 (as “Liquidações”), e, ii) a anulação parcial das referidas Liquidações, no montante de € 24.334,23 correspondente a tributações autónomas, pedindo ainda, a final, que se determine a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
De acordo com os artigos 5.º, n.º 1, alínea a) e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 11 de outubro de 2023, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 24 de novembro de 2023.
A Requerente alega, em síntese, que cometeu um erro no cálculo de tributações autónomas autoliquidadas e a pagar, uma vez que os encargos com portagens e estacionamento suportados por si e outra sociedade do grupo sujeito ao RETGS deduzidos como custos em sede de IRC não estão sujeitos a tributação autónoma, por não terem cabimento na norma de incidência resultante das disposições conjugadas dos n.os 3 e 5, do artigo 88.º, do Código do IRC, na medida em que não devem ser considerados encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros de natureza análoga aos elencados no mencionado n.º 5, de onde, por força do princípio da tipicidade aplicável às normas de incidência fiscal, se encontram esses custos fora do âmbito de incidência de tributação autónoma. Sustenta a sua posição, também, em diversa jurisprudência judicial e arbitral.
A tal entendimento opõe-se a Requerida, que entende que os custos com portagens e estacionamento se enquadram no n.º 5, do artigo 88.º, do Código do IRC, estando, portanto, sujeitos a tributação autónoma, razão pela qual foi indeferida a reclamação apresentada pela Requerente contra as Liquidações.
MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
A Requerente é a sociedade dominante de um grupo de sociedades sujeito ao RETGS – do qual fazia parte, por referência aos períodos de tributação de 2020 e 2021, e para além de si, a B..., S.A. (“B...”) – facto não controvertido.
A Requerente, a C... e a B... dedicam-se, respetivamente, à comercialização de medicamentos para uso humano e dispositivos médicos no canal hospitalar, à comercialização de medicamentos genéricos a retalho e à produção de medicamentos para uso hospitalar – facto não controvertido.
Em 13 de julho de 2021 a Requerente, enquanto sociedade dominante do Grupo sujeito ao RETGS, procedeu à entrega da declaração Mod. 22 do IRC do Grupo, com referência ao período de tributação de 2020 – cfr. Doc. n.º 1 junto ao PPA.
A Requerente pagou o imposto apurado na autoliquidação (facto não controvertido).
E, em 3 de junho de 2022, na mesma qualidade procedeu à entrega da declaração Mod. 22 do IRC do Grupo, com referência ao período de tributação de 2021 – cfr. Doc. n.º 2 junto ao PPA.
A Requerente pagou o imposto apurado na autoliquidação (facto não controvertido).
O Grupo apurou, nas suas autoliquidações de IRC, por referência aos períodos de tributação de 2020 e 2021, os montantes de € 208.638,23 e de € 190.026,63, respetivamente, a título de tributação autónoma – cfr. Docs. n.os 1 e 2 anexos ao PPA.
Desses montantes, no exercício de 2020, o valor de € 146.345,57 correspondeu a tributação autónoma apurada na Mod. 22 relativamente a encargos declarados como incorridos em conexão com viaturas ligeiras de passageiros (facto não controvertido e resultante do Doc. n.º 1 junto ao PPA); e,
No exercício de 2021, tal valor cifrou-se em € 143.325,52 (facto não controvertido e resultante do Doc. n.º 2 junto ao PPA).
A Requerente calculou esses valores com base, entre outros, num montante de encargos com portagens e estacionamento correspondente a € 71.671,83 contabilizado em 2020 e € 77.422,46 contabilizado em 2021 (facto não controvertido).
Foi sobre esse valor de encargos com portagens e estacionamento contabilizados que a Requerente computou montantes de tributação autónoma de € 12.431,26, por referência a 2020, e de € 11.902,96, por referência a 2021, num total de € 24.334,23 (facto não controvertido).
A Requerente apresentou reclamação graciosa contra as Liquidações em 22 de março de 2023, com fundamento em erro na aplicação do artigo 88.º, n.º 5 do Código do IRC aos encargos com portagens e estacionamento contabilizados nos exercícios de 2020 e 2021 – cfr. Doc. n.º 7 anexo ao PPA.
A reclamação foi indeferida em 11 de maio de 2023 – cfr. Doc. n.º 7 anexo ao PPA.
O presente pedido arbitral foi apresentado em 31 de julho de 2023.
A.2. Factos dados como não provados
Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Em particular, refira-se que no decurso do procedimento administrativo foi suscitada pela AT uma eventual falta de demonstração de parte dos encargos com portagens e estacionamento deduzidos pela aqui Requerente ao lucro tributável.
Contudo, tal alegação não se traduziu em qualquer ato de correção à matéria tributável e/ou de liquidação de imposto (ou tributações autónomas) diverso dos que estão em causa nos autos (ou que altere as Liquidações aqui em causa), pelo que tal asserção relativa à (não) demonstração parcial de gastos se configura como irrelevante para a decisão arbitral a proferir no presente processo.
Por essa razão, os factos a dar por provados nesta matéria resumem-se àquilo que foi declarado pela Requerente como tendo sido incorrido e sujeito a tributação autónoma, factos esses que subsumiremos adiante ao direito julgado aplicável.
Além disso, não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
DO DIREITO
Elencada a pertinente matéria de facto e precisado que o tema da eventual falta de comprovação dos encargos é irrelevante na medida em que os atos impugnados e sob julgamento não comportam qualquer correção à matéria tributável com esse fundamento, debrucemo-nos de imediato sobre a questão a decidir, qual seja, a de saber se os gastos incorridos com portagens e estacionamento se incluem ou não no conceito de “encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros […], nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização”, a que se refere o n.º 5 do artigo 88.º do Código do IRC, o que é dizer se cabem ou não os mesmos na norma de incidência de tributação autónoma contida no n.º 3 do mesmo artigo daquele diploma.
As normas em causa apresentavam, nos exercícios de 2020 e 2021, aqui em causa, a seguinte redação:
Artigo 88.º
Taxas de tributação autónoma
[…]
3 — São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:
a) 10 % no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a 27 500 €;
b) 27,5 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a 27 500 € e inferior a 35 000 €;
c) 35 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 35 000. […]
5 — Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.
Para alguns autores, as tributações autónomas, na sua configuração inicial, constituíam “um mecanismo de tributação intra-sistemático e complementar ao IRC, que tinha por objeto despesas relacionadas com a atividade empresarial. Desde logo, essa solução pretendia submeter a tributação despesas de natureza confidencial e indocumentadas numa tentativa de combater primariamente a criminalidade económica e a corrupção e, subsidiariamente, dissuadir a evasão fiscal.
Em segundo lugar, eram objeto de tributação autónoma os gastos dedutíveis (então designados de "custos") que configurassem, indiretamente, rendimento não tributado noutras esferas jurídicas (em especial, nas pessoas singulares).
Neste segundo conjunto de casos, havia lugar a uma tributação atípica por substituição, com a sujeição a tributação autónoma em IRC daquilo que não era praticável tributar em IRS. A lógica subjacente à tributação era a de que, tratando-se de despesas deduzidas pela sociedade, mas que traduziam alguma forma de vantagem para os respetivos destinatários - no sentido de corresponderem a gastos que os beneficiavam e em que estes evitavam incorrer - impunha-se alguma forma de reflexo fiscal dessa capacidade contributiva. Era, manifestamente, o caso das despesas de representação ou dos encargos com viaturas ligeiras de passageiros - que ainda hoje se podem encontrar nos n.os 3 a 7 do Código do IRC - e que mais não traduziam do que vantagens indiretas auferidas pelos beneficiários de tais despesas e que, por esta via, eram sujeitos a tributação” – cfr. Gustavo Lopes Courinha, Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Almedina (Coimbra:2019), pp. 180-181.
Tal como sugere Gustavo Lopes Courinha na obra acima citada (entre outros autores)[1], a tributação autónoma dos encargos relacionados com viaturas traz na sua génese a dúvida permanente sobre a utilização totalmente empresarial das viaturas ligeiras de passageiros, por oposição à possível utilização (também) pessoal dessas viaturas por funcionários ou membros dos órgãos estatutários, nos casos em que não seja celebrado o acordo escrito a que se refere o n.º 9), da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do Código do IRS.
Como apontam Requerente e Requerida, a inclusão dos gastos com portagens e estacionamento no conceito de encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros aludido no n.º 3 para efeitos de tributação autónoma, e melhor densificado no n.º 5, do artigo 88.º, do Código do IRC, tem sido objeto de decisões na jurisprudência arbitral em sentidos opostos, sendo de destacar, no sentido pretendido pela Requerente, a decisão proferida no processo n.º 138/2022-T, e, no sentido defendido pela Requerida, a decisão proferida no processo n.º 51/2023-T pela do CAAD, sendo certo que a base fundamental de ambas está na consideração (ou não) destas despesas como tendo uma natureza análoga às demais elencadas no n.º 5 a que nos vimos referindo.
Com efeito, na decisão relativa ao processo n.º 138/2022-T o Tribunal Arbitral entendeu que “as despesas com portagens, estacionamentos e parques de estacionamento, embora de algum modo relacionadas com veículos, não ostentam uma ligação com estes em que se surpreenda uma natureza idêntica ou análoga às espécies de despesas enunciadas no n.º 5 do artigo 88.º do Código do IRC. Na verdade, as despesas com portagens, estacionamentos e parques de estacionamento estão directamente relacionadas com as utilizações concretas e determinadas, situadas e situáveis no tempo, de determinado veículo, enquanto as despesas ali enunciadas não têm tal relação, antes se podem reportar difusamente à utilização do veículo, quer quanto ao tempo quer quanto ao modo.
Aliás, precisamente porque se reportam a factos concretos situados no tempo e no espaço, as despesas com portagens e estacionamentos são susceptíveis de uma apreciação, caso a caso, sobre se foram efectivamente feitas para fins da empresa ou não, o que dá sentido material à sua exclusão dessa tributação em que consiste a tributação autónoma sub judice, do ponto de vista da pertença ou não, das despesas, aos fins da empresa” (cit., sublinhados nossos).
Diferentemente, na decisão proferida no processo n.º 51/2023-T, entendeu-se que “ditam as regras da experiência que os encargos com portagens e estacionamentos sejam despesas tipicamente relacionadas com a utilização comum de viaturas ligeiras de passageiros – são típicas da utilização desses veículos, embora, evidentemente, não sejam exclusivas desses veículos, tal como o não são as despesas expressamente enumeradas no art. 88º, 5 do CIRC.
Não se afigura razoável, assim, que, no vigor da argumentação, se pretenda:
a) que as portagens e os estacionamentos não são uma realidade comum, constante, e incindível da utilização corrente de viaturas ligeiras de passageiros;
b) que uma norma que está expressa e indubitavelmente formulada em termos de enumeração aberta, exemplificativa, incluindo um “nomeadamente” inserido antes de uma exemplificação, seja lida como uma tipificação fechada, um “numerus clausus”.
É verdade que, como se argumenta na fundamentação da decisão arbitral no Proc. nº 138/2022-T do CAAD, essa exemplificação foi perdurando nas sucessivas versões que antecederam aquela que vigorava no período de referência como art. 88º, 5 do CIRC, e nunca se incluiu expressamente a alusão a portagens e estacionamentos – mas o argumento é, se atentarmos bem nele, reversível:
-
nas sucessivas versões também nunca se aboliu o “nomeadamente”, retirando o carácter ostensivamente exemplificativo da norma – quando essa abolição poderia ter acontecido;
-
jamais é conclusivo qualquer argumento de inclusão ou exclusão, não-inclusão ou não-exclusão, de um item numa lista aberta e meramente exemplificativa.
Também é verdade que, como se argumenta na fundamentação da aludida decisão no Proc. nº 138/2022-T do CAAD, a exemplificação dentro de uma enumeração aberta serve para delimitar a analogia entre o expresso e o implícito – mas também aqui se impõe reconhecer que as despesas com portagens e estacionamentos são tanto ou mais inerentes à utilização de viaturas ligeiras de passageiros como as despesas que servem de exemplos na enumeração do art. 88º, 5 – e que se impõe como evidência às regras de experiência que ditam a convicção deste tribunal e presidem à sua apreciação dos factos.” (cit., sublinhados nossos).
Face às interpretações defendidas nas mencionadas decisões arbitrais (ambas bem fundamentadas, diga-se), cumpre tomar posição, a qual, além das impressões/convicções subjetivas do Tribunal, deve levar em linha de conta os princípios aplicáveis em sede direito fiscal, a correta técnica de interpretação jurídica estabelecida no artigo 9.º do Código Civil e aplicável por remissão do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, e a consideração das várias fontes de direito eventualmente aplicáveis. Vejamos:
A razão pela qual se incorre em encargos com portagens e estacionamento é a utilização de uma viatura. E portanto, numa lógica de senso comum, estes encargos são relacionados com viaturas (ligeiras de passageiros, no caso) – o que não se afigura passível de discussão.
Contudo, atendendo ao elemento literal de interpretação, não pode deixar de se atender ao facto de que o legislador não quis, como melhor se explica abaixo, sujeitar a tributação autónoma todos os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros – o que é dizer que não incide tributação autónoma sobre todo e qualquer encargo relacionado com viaturas.
Se o legislador tivesse querido tributar nesta sede todos os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, não era necessário consagrar qualquer enumeração, ainda que exemplificativa, no n.º 5 do artigo 88.º do Código do IRC, bastando a norma contida no n.º 3 para atingir esse desiderato. Com efeito, na ausência do n.º 5, crê este Tribunal que não restariam dúvidas sobre a incidência de tributação autónoma sobre os encargos aqui em discussão.
Pelo que o vocábulo “nomeadamente” precedendo a enumeração constante do n.º 5, do artigo 88.º, do Código do IRC, abre a porta à concretização de um conceito indeterminado, o que nos parece ser metodologicamente justificado pelo carácter financeiramente punitivo que decorre das pretensões anti-abusivas das normas de tributação autónoma. Trata-se de uma técnica próxima da técnica dos exemplos padrão, em que cada uma das concretizações apontadas pelo legislador permite extrair e delimitar conceitos com um certo grau de indeterminação.
E que critério é esse? No entender deste Tribunal, acompanhando a jurisprudência dos Tribunais Centrais Administrativos (“TCA”) Norte e Sul que de forma unânime se têm pronunciado sobre o assunto desde há vários anos[2], o mesmo residirá na natureza análoga de determinadas despesas em relação às despesas concretamente enumeradas naquele n.º 5.
Com efeito, como se referiu no acórdão do TCA Norte proferido em 11 de março de 2021 no âmbito do processo n.º 2303/11.0BEPRT (citado pela jurisprudência posterior do mesmo Tribunal Central), e cuja decisão reputamos de acertada, “[a]dmitimos a natureza exemplificativa do nº 5 do artigo 81º (actual 88º) do CIRC, porém, com as cautelas metodológicas recomendadas pelo princípio da legalidade em direito fiscal, analisado, aqui, na necessidade da previsão em lei, das realidades objecto da incidência tributária (cf. artigos 8º nº 1 da LGT e 103º nº 2 da Constituição). Tomados de tais cautelas, julgamos que, se é certo que as menções expressas no citado normativo não esgotam as espécies de objectos de despesa tributáveis, também o é que, em homenagem ao princípio da legalidade na determinação da incidência dos impostos, as outras realidades assimiláveis ao nº 3 do artigo 81º mediante a exemplificação do nº 5 hão-de ser apenas aquelas que tiverem a mesma ou análoga natureza, no sentido de relevarem de uma relação com o veículo, ao menos, análoga à que ocorre nas despesas expressamente enunciadas no nº 5.
Nesta ordem de pensamento, o pagamento dos juros de um ALD haverá de ser tributado. Com efeito, tratando-se do cumprimento em último termo, de uma obrigação acessória da renda de um contrato de aluguer, esse, expressamente previsto no nº 5, a sua natureza não é diversa, não há uma diferença de essências entre este pagamento e o do aluguer, ou, se há, trata-se, ainda assim, de uma natureza análoga à da dívida da renda do aluguer […].
Já as despesas com portagens, estacionamentos e parques de estacionamento, essas, embora de algum modo relacionadas com veículos, não ostentam uma ligação com estes em que se surpreenda uma natureza idêntica ou análoga às subjacentes às espécies de despesas enunciadas no nº 5 do artigo 81º do CIRC (redacção em 2008). Na verdade, estão directamente relacionadas com as utilizações concretas e determinadas, situadas e situáveis no tempo, de determinado veículo, enquanto as despesas ali enunciadas não têm tal relação, antes se podem reportar difusamente à utilização do veículo, quer quanto ao tempo quer quanto ao modo.
Aliás, precisamente porque se reportam a factos concretos situados no tempo e no espaço, as despesas com portagens e estacionamentos são susceptíveis de uma apreciação, caso a caso, sobre se foram efectivamente feitas para fins da empresa ou não, o que dá sentido material à sua exclusão dessa tributação cega em que consiste a tributação autónoma sub judicio, do ponto de vista da pertença ou não, das despesas, aos fins da empresa.
À conclusão hermenêutica aqui perfilhada quanto aos nºs 3 e 5 do artigo 81º do CIRS conduz-nos, também, uma interpretação histórica:
Antes do recurso, pelo legislador, à tributação autónoma ora sub juditio, o tellos da dissuasão do abuso do registo de despesas quejandas com automóveis ligeiros, só formalmente imputadas aos fins empresariais, era prosseguido mediante a aplicação de um limite percentual à dedutibilidade dessas despesas. Assim, o artigo 41º nº 4 do CIRC, na redacção dada pela lei nº 39-B/94 de 27 de Dezembro, limitava a 20% a dedutibilidade das despesas “com viaturas ligeiras de passageiros, designadamente reintegrações, rendas ou alugueres, seguros, reparações e combustível”. Quando optou por prosseguir o mesmo fim mediante a tributação autónoma das despesas (artigo 81º nºs 3 e 5 da actual redacção do CIRC), o legislador aproveitou para deixar claro o que queria entender por veículo ligeiro de passageiros (incluindo, desta feita expressamente, automóveis ligeiros mistos e motociclos), mas manteve (nº 5) praticamente a mesma exemplificação de despesas, continuando, assim, a não incluir despesas como as de portagens e estacionamentos, que havia todo o motivo para incluir expressamente, atenta a sua recorrência, se fosse sua intenção tributá-las autonomamente.
Também este elemento histórico aponta para a exclusão das despesas sub juditio, da tributação autónoma prevista no artigo 81º nºs 3 e 5 do CIRC” (cit, destaques e sublinhados nossos).
Ora, aqui chegados, entendendo este Tribunal ser de acompanhar a jurisprudência acabada de citar, tendo até em conta o fim de se obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito como se impõe através do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, não há outra decisão possível que não a de anular parcialmente as Liquidações na medida do pedido da Requerente.
Com efeito, em abono da posição defendida, é de sublinhar, ainda, que é a própria AT quem considera, no Ofício Circulado n.º 20257, de 21 de junho de 2023, que “se parece evidente que, no caso de serem utilizadas viaturas da empresa ou até mediante recurso a carros de aluguer, as despesas com portagens e estacionamentos são da responsabilidade da entidade patronal (podendo tais montantes ser ou não imputados aos clientes), também no caso de utilização de viatura própria do trabalhador tais gastos devem ser suportados pela empresa” e que “é de concluir que a finalidade pretendida com a atribuição subsídio de transporte é a de ressarcir o trabalhador pelos gastos presuntivos incorridos pela deslocação na sua viatura própria ao serviço da entidade patronal, por impossibilidade de a entidade patronal facultar-lhe uma viatura de serviço, não estando incluídos nesses gastos os custos concretamente identificados e efetivos de deslocação relativos a portagens e estacionamento”, pelo que, “[a]ssim sendo: a) Em sede de IRS, o pagamento de estacionamentos e portagens pela utilização de viatura própria do trabalhador ao serviço da empresa, desde que documentalmente comprovado, não constitui para o trabalhador um acréscimo de rendimento, mas um mero reembolso de despesas, pelo que o seu pagamento pela entidade patronal não se encontra no âmbito da tributação prevista na alínea d) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS; b) Em sede de IRC, na medida em que se trate de uma despesa incorrida pelo trabalhador com a deslocação ao serviço da empresa, é um gasto dedutível (alínea d) do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IRC)”.
Ou seja, a AT afasta expressamente uma eventual tributação destes custos na esfera dos trabalhadores quando comprovadamente incorridos ao serviço da empresa, o que demonstra que, ao menos para esse efeito, não considera os custos com portagens e estacionamento como estando genericamente a coberto da desconfiança ligada ao potencial de utilização pessoal que justifica a tributação autónoma dos encargos com viaturas expressamente elencados no n.º 5 do artigo 88.º do Código do IRC.
Tal reforça a convicção deste Tribunal, com base em elementos objetivos, de que os encargos com portagens e estacionamento relativos a viaturas ligeiras de passageiros não se incluem na norma de incidência de tributação autónoma que resulta das disposições conjugadas dos n.os 3 e 5 do artigo 88.º do Código do IRC.
Razão pela qual se entende ser de dar pleno provimento ao pedido, anulando a decisão de indeferimento proferida e anulando parcialmente, no valor de € 12.431,26, por referência a 2020, e de € 11.902,96, por referência a 2021, as Liquidações aqui impugnadas.
Em consequência, condena-se a Requerida a reembolsar a Requerente dos valores acima referidos, indevidamente pagos a título de tributação autónoma, e porque expressamente indeferiu a reclamação das autoliquidações apresentadas pela aqui Requerente, o que constitui erro imputável aos serviços nos termos e para os efeitos do artigo 43.º da LGT (neste sentido, v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido a 9 de dezembro de 2021 no âmbito do processo n.º 01098/16.5BELRS), condena-se a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados desde a data de indeferimento da reclamação graciosa e até integral pagamento.
DA DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido, anulando-se a decisão administrativa impugnada e, em consequência, anulam-se parcialmente as liquidações de IRC com os n.os 2021..., de 03.08.2021 e 2022..., de 28.07.2022, nos montantes, respetivamente, de € 12.431,26, por referência a 2020, e de € 11.902,96, por referência a 2021, condenando-se a Requerida i) a reembolsar a Requerente de tais valores pagos, acrescidos de juros indemnizatórios à taxa legal, calculados desde a data de indeferimento da reclamação graciosa e até integral pagamento, e, ii) a suportar as custas do processo.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 24.334,23 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.530 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 9 de abril de 2024.
O Árbitro,
(João Taborda da Gama)
[1] Por exemplo, Sofia Ricardo Borges, «Tributações Autónomas sobre encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros – Tipicidade – art. 88.º, n.º 3 do CIRC – Presunção legal?», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor António Carlos dos Santos, org. José Guilherme Xavier de Basto et alli, Almedina (Coimbra:2021), pp. 1186-1187.
[2] Ver, por exemplo, os acórdãos do TCA Norte de 11/03/2021, de 29/04/2021, 17/02/2022 e 31/03/2022, proferidos no âmbito dos processos n.º 2303/11.0BEPRT, n.º 519/06.3BEPRT, n.º 2113/08.1BEPRT, e 635/09.6BEPRT, bem como os acórdãos do TCA Sul, proferidos em 12/05/2022 em relação ao processo n.º 2983/09.6BCLSB, em 9/03/2021, relativamente ao processo n.º 08955/15, em 14/10/2021 relativamente ao processo n.º 9792/16.4BCLSB, todos eles ainda no quadro da interpretação da norma constante do n.º 4 do artigo 41.º, do Código do IRC na redação em vigor em 1998-1999, relativa à não dedutibilidade de uma parte dos custos relacionados com este tipo de viaturas e com notórias semelhanças ao atual artigo 88.º n.º 5 do mesmo diploma, na medida em que foi essa norma que esteve na origem da consagração do atual regime de tributação autónoma deste tipo de despesas.