Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 425/2023-T
Data da decisão: 2024-04-19  IRC Outros 
Valor do pedido: € 38.865,43
Tema: IRC – requisitos exigíveis de faturas para efeito do art. 23º-A, nºs 3 e 4, do CIRC.
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SUMÁRIO

 

            Em sede de IRC, as faturas que documentam despesas, para efeitos do art. 23º-A do CIRC, a fim de poderem ser consideradas como documentos fiscais permitindo a dedução de encargos, carecem de um conjunto de elementos que identificam a essencialidade do fluxo financeiro, admitindo-se que não seja necessária a sua exaustiva indicação havendo outros elementos disponíveis que comprovem a realização da operação económica correspondente.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 21 de agosto de 2023, decide o seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

 

1. A entidade Requerente, A..., LDA, NIPC ..., com sede em Rua ..., n.º ..., freguesia de ... e ..., em Mafra, apresentou – na sequência da notificação do ato de indeferimento da Reclamação Graciosa com o n.º ...2022... (...), relativa a IRC e Juros compensatórios do exercício de 2019 – um pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no art. 2.º, n.º 1, al. a), e do art. 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por “RJAT”).

 

              2. No seu objeto de pedido de pronúncia arbitral, a Requerente referiu o contexto de  uma ação inspetiva da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), em que, de entre outras correções efetuadas, se destacou, pela sua relevância quantitativa, a não aceitação enquanto encargo fiscal para efeitos de dedução em IRC do valor suportado referente aos trabalhos/serviços efetivados e faturados pelas sociedades prestadoras/fornecedoras:

                             -B..., LDA;

                             - C..., LDA;

                             -D..., LDA.

 

              3. Fundamentou o seu pedido no facto de, recaindo sobre a AT, a Requerida, o ónus da prova, não ter esta logrado fazer a prova devida no tocante à desconsideração das operações tituladas por aquelas 10 faturas, que não foram aceites para a finalidade de dedução de encargos em sede de IRC, aí se verificando também a falta de fundamentação para essa decisão, em violação das normas aplicáveis, pedindo-se ainda a devolução do valor pago indevidamente acrescido de juros indemnizatórios.

 

4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, em 9 de junho de 2023, e em conformidade com o preceituado no art. 11.º, n.º 1, al. c) do  Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66º-­B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificada nessa data a Autoridade Tributária (AT).

 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do art. 6.º, n.º 1, e do art. 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, o Conselho Deontológico, em 31 de julho de 2023, designou o árbitro signatário, que comunicou no prazo legalmente estipulado a aceitação do respetivo encargo.

 

6. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do art. 11.º n.º 1, al. a) e b), do RJAT e arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

7. Deste jeito, o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 21 de agosto de 2023, com base no disposto nos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta, o que veio a fazer na sua qualidade de Requerida.

 

8. A Requerida, chamada a pronunciar-se, sustentou em 9 de outubro de 2023 que, no âmbito da ação inspetiva levada a efeito, o Requerente não poderia deduzir o valor das 10 faturas das três mencionadas sociedades enquanto gasto fiscal, por estas razões:

a) Desrespeito da disciplina do art. 23º do CIRC, porquanto não terá ficado comprovada a efetividade das operações (falta de substância) tituladas pelas faturas emitidas pelas sociedades C..., D... e B..., atenta a falta de estrutura operacional e os demais esclarecimentos prestados terem sido considerados insuficientes;

b) Violação dos requisitos a que aludem os n.ºs 3 e 4 do art. 23º do CIRC, o que impediria de considerar o gasto com tais faturas como fiscalmente dedutível, por força da al. c) do n.º 1 do art. 23º-A do CIRC.

 

9. Assim, a Requerida entendeu ser de manter a decisão de indeferimento da reclamação graciosa (nº ...2022...) e correção efetuada pelos SIT ao resultado tributável no montante de € 150.800,57, de que resultou a liquidação de IRC nº 2022..., parcialmente contestada, materializada na nota de acerto de contas nº 2022..., referente ao exercício de 2019, no montante total a pagar de 37.585,27 €.

 

10. Nem sequer havendo, por isso, lugar ao pagamento de quaisquer juros indemnizatórios peticionados.

 

11. Tendo sido solicitada a produção de prova testemunhal, em 17 de janeiro de 2024, procedeu-se à inquirição das testemunhas e da parte Requerente:

- Testemunhas: E..., F..., G..., H... e I...;

- Declarações de Parte: J....

 

12. Estiveram presentes o Árbitro, assistido pelo Secretário do CAAD, Dr. ..., bem como a Dra K..., Ilustre mandatária da Requerente, tendo a Drª L..., Ilustre representante da Direção-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, participado por via telemática. 

 

13. A jurisdição do Tribunal foi prorrogada até 19 de abril de 2024 e decidiu-se a apresentação de alegações escritas simultâneas no prazo de 15 dias.

 

14. A Requerente apresentou as suas alegações finais no prazo estipulado para o efeito. 

 

  1. SANEAMENTO

 

15. O Tribunal foi regularmente constituído em 21 de agosto de 2023, em conformidade com o preceituado na al. c) do n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

 

16. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos arts. 4.º e 10.º do RJAT e do art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

17. O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

            Cumpre apreciar e decidir

 

  1. DOS FACTOS

 

18. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e dos elementos remetidos aos autos, além da inquirição das testemunhas e da parte Requerente, fixa-se como segue:

 

  1. Factos Provados

 

19. A Requerente A..., LDA, tem o NIPC..., com sede em Rua..., n.º ..., freguesia de ... e ... .

 

20. No ano de 2021, a Requerente foi alvo de uma ação inspetiva da AT, através da qual se entendeu que 10 faturas emitidas por três empresas não preenchiam os requisitos devidos, a saber:

- B... UNIPESSOAL, LDA, com o NIF...: fatura nº 2019/17, de 28 de junho de 2019, no valor de 39.000 euros; 

- C..., LDA, com o NIF...: fatura nº 2019/2, de 20 de junho de 2019, no valor de 25.000 euros;

- D..., LDA, com o NIF...: fatura nº 1/15, de 30 de outubro de 2019, no valor de 17.500 euros; fatura M/59, de 13 de outubro de 2019, no valor de 15.430 euros; fatura nº 1/16, de 11 de novembro de 2019, no valor de 15.000 euros; fatura nº 1/17, de 27 de novembro de 2019, no valor de 180,57 euros; fatura nº 1/20, de 28 de novembro de 2019, no valor de 880,00 euros; fatura nº 1/18, de 13 de janeiro de 2020, no valor de 13.900 euros; fatura nº 1/19, de 13 de janeiro de 2020, no valor de 16.000 euros; fatura nº 1/22, de 21 de janeiro de 2020, no valor de 6.910 euros. 

 

21. Em consequência disso, a liquidação feita em IRC não incorporou tais valores como encargos que se deduzissem ao lucro tributável, Liquidação de IRC de 2019 n.º 2022 ... e JC n.º 2022....

 

            22. A inquirição das testemunhas, bem como o depoimento de parte, não foi apreciada como concludente do ponto de vista da determinação dos elementos essenciais em falta nas faturas emitidas a ponto de as poderem complementar, sendo certo dever dar-se neste tipo de questões maior relevância dar à prova documental, não se tendo mostrado a prova testemunhal produzida, com testemunhos vagos e genéricos, apta a colmatar essas deficiências, no caso de as mesmas assim serem consideradas pelo Tribunal na apreciação de direito.

 

  1. Factos não provados

 

23. Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

  1. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

24. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

25. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. o art. 596.º, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].

 

26. Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos, bem como das posições assumidas pelas Partes nos respetivos articulados.

 

  1. DO DIREITO

 

  1. A suficiência dos elementos insertos na fatura para efeitos de dedução de encargos em sede de IRC e os meios complementares da sua comprovação

 

27. O tema fundamental dos autos respeita a saber se as faturas que foram apresentadas têm os elementos que legalmente são considerados indispensáveis para que tais documentos possam ser aceites para o efeito de dedução de encargos em sede de IRC.

 

28. Na verdade, o art. 23º-A, nº 1, al. c), do CIRC dispõe o seguinte: “1 – Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação: (…) c) Os encargos cuja documentação não cumpra o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 23º, bem como os encargos evidenciados em documentos emitidos por sujeitos passivos com número de identificação fiscal inexistente ou inválido, por sujeitos passivos cuja cessação de atividade tenha sido declarada oficiosamente nos termos do nº 6 do artigo 8º ou por sujeitos passivos que não tenham entregue a declaração de inscrição, prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 117º”.

 

29. Por seu turno, os nºs 3 e 4 do art. 23º do CIRC estabelecem que:

- nº 3: “3 – Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito”;

- nº 4: “4 – No caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo a que se refere o número anterior deve conter, pelo menos, os seguintes elementos: a) Nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário; b) Números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se trate de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional; c) Quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados; d) Valor da contraprestação, designadamente o preço; e) Data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados. “

 

30. O entendimento que tem sido adotado em várias instâncias é o de que as exigências constantes daqueles preceitos do CIRC podem ser objeto de alguma “suavização”, havendo índices complementares, mas devendo prevalecer a ideia de que é necessário garantir uma suficiência discriminativa em ordem à identificação das despesas concretamente efetuadas.

 

31. Essa é a posição, por exemplo, de uma recente decisão do CAAD sobre a interpretação a dar ao disposto no n.º 4 do artigo 23º do CIRC, no âmbito do Processo n.º 735/2019-T, no qual se sustentou, com apoio jurisprudencial do Supremo Tribunal Administrativo, o seguinte: “Esta interpretação da norma atual, sendo consentânea com a letra da lei, representa também uma continuidade com a doutrina jurisprudencial anterior, em que se sustentava que “do facto de a fatura não conter todos os elementos necessários à justificação do custo não deriva que o encargo não se encontre devidamente documentado para os efeitos do artigo 42.º, n.º 1, alínea g) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, se existirem e forem exibidos outros documentos que concorram para a justificação da operação contabilística em causa” (ac. STA, 21-11-2019, proc. nº 0306/12.6BELLE 01136/16).

 

32. O ponto de partida tem de ser sempre o assunto dos elementos que constam das faturas emitidas, os quais foram analisados, com pormenor, no âmbito da ação inspetiva realizada pela Requerente.

De um modo geral, a leitura dos documentos que constam dos autos evidencia, no tocante às faturas em geral, a falta da especificação de diversos elementos, os quais se referem:

- à necessária especificação da natureza do serviço prestado;

- à sua quantidade;

- à data da sua prestação.

 

33. Por outro lado, uma das faturas nem sequer foi apresentada, e não parece que sirva de escusa o facto de a Requerente não ter estrutura suficiente, ou fazer a subcontratação dos seus trabalhos.

Nenhuma dessas circunstâncias a desobriga de exigir que as faturas que sejam emitidas contenham todos os elementos considerados indispensáveis e que identifiquem, com suficiência, a realidade económico-financeira a que se referem. 

 

34. Contudo, da apreciação das faturas, e de todos os elementos carreados para os autos, julga-se que a fatura nº 1/2019/27, emitida pela B... Unipessoal, Lda, em 28 de junho de 2019, no valor de 39.000 euros, com o IVA de 47.970,00 euros, deve ser avaliada de um modo diverso.

 

35. Assim é porque não só refere, e não as outras, o tempo em que os trabalhos foram realizados – diz-se que foram os trabalhos da “Obra...– Equipas Maio/Junho 2019” – como nelas se alude a uma conexão com um detalhado programa de encargos assumido pela Requerente, em termos muitos distintos com o que sucede com as outras faturas.

 

36. Assim, esta fatura deve ser considerada como pertinente para efeitos de dedução de encargos para efeitos de IRC, o mesmo já não sucedendo com as outras nove, cujas deficiências identificadas na ação inspetiva não lograram ser colmatadas com a prova documental e testemunhal produzidas nos autos. 

 

  1. Juros indemnizatórios

 

37. A Requerente pede ainda a condenação da AT no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Nos termos do art. 24.º, n.º 5, do RJAT, “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, implicando o pagamento de juros indemnizatórios nos termos dos arts. 43.º, n.º 1, da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT.

 

38. Julgando-se parcialmente procedente o pedido, deve julgar-se procedente o pedido de juros indemnizatórios no valor correspondente à fatura que foi considerada como válida para efeitos de dedução de encargos em sede de IRC da Requerente.

 

  1. DECISÃO

 

39. Termos em que o Tribunal Arbitral decide:

 

  1. Julgar parcialmente procedente o pedido da Requerente na parte que respeita à consideração da fatura nº 1 2019/27 da B... Unipessoal, Lda, de 28 de junho de 2021, no valor de 39.000 euros, com IVA de 8.970,00 euros;
  2. Absolver parcialmente da instância a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira, no tocante ao pedido da Requerente concernente às outras faturas sub iudice, na correspondência proporcional que tiveram na liquidação oficiosa realizada;
  3. Determinar o pagamento de juros indemnizatórios atinentes ao valor considerado na parte em que a Requerente teve ganho de causa; 
  4. Condenar as partes, na proporção do seu decaimento, no pagamento das custas.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

 

40. De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 37.585,27 euros, constante na nota de acertos de contas (trinta e sete mil, quinhentos e oitenta e cinco euros e vinte e sete cêntimos), que é o valor do pedido de pronúncia arbitral e que não foi objeto de contestação nesses termos.

 

  1. CUSTAS

 

41. Calculadas de acordo com o art. 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, fixa-se o valor de € 1.836,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros), 73% a cargo da Requerida e 27% a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 19 de abril de 2024

 

O Árbitro

 

Jorge Bacelar Gouveia