DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
1.1. A, S.A., com sede na … Lisboa, pessoa coletiva n.º …, apresentou Pedido de Pronúncia Arbitral, nos termos do disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (‘RJAT’), sendo a Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (‘AT’).
1.2. A Requerente peticiona «que seja anulada a liquidação n.º 2013 …, respetiva liquidação de juros e a demonstração de acerto de contas n.º 2013 … e bem assim como o processo de execução fiscal que corre termos sob o n.º …, com fundamento na respetiva ilegalidade, por duplicação de coleta ou, caso assim não se entenda, seja declarada a nulidade da liquidação n.º 2013 …, respetiva demonstração de liquidação de juros e da demonstração de acerto de contas n.º 2013 …, por ausência de facto tributário.»
Como causa de pedir, a Requerente alega, em síntese:
1.3. Submeteu, em 23/05/2011, a Declaração Modelo 22 de IRC, referente ao exercício de 2010, tendo apurado um lucro tributável no valor de € 789.680,36, uma coleta no valor de € 195.857,59, e um total de imposto a pagar (IRC e Derrama), no valor total de € 155.733,96;
1.4. Entre os dias 16 e 26 de novembro de 2013, foi objeto de uma ação de fiscalização que teve por objeto o exercício de 2010, tendo sido propostas pela Inspeção Tributária correções à matéria coletável no montante total de € 294.658,38, o que determinou que o lucro tributável fosse corrigido para € 1.084.338,74;
1.5. Como consequência do procedimento de inspeção tributária reconheceu a validade de parte das correções efetuadas, na parte relativa aos gastos com o desmantelamento do parque eólico (conta 642 – Ativos fixos tangíveis), no valor de € 63.836,32, pelo que submeteu voluntariamente, em 17/12/2013, uma Declaração Modelo 22 de substituição, tendo acrescido à matéria coletável no Quadro 07, campo 721, o sobredito valor de € 63.836,32;
1.6. Em consequência da apresentação da Declaração de Substituição, o sistema informático gerou uma nova guia de liquidação, no valor de € 172.650,58;
1.7. Dado que anteriormente já havia pago € 155.733,96 a título de imposto, e € 332,87 a título de juros compensatórios, em 19/12/2013, a Requerente efetuou o pagamento da diferença, no valor de € 16.916,62;
1.8. Posteriormente, efetuou ainda o pagamento dos juros compensatórios e moratórios devidos, no valor total de € 1.742,79;
1.9. Contudo, pela liquidação n.º 2013 …, referente à compensação n.º 2013 … e respetiva demonstração de liquidação de juros, foi notificada para pagamento de € 18.995,11, até 17/02/2014, valor que compreendia:
a) € 16.916,62 a título de acerto de liquidação;
b) € 10,93 de juros de mora;
c) € 1.720,39 de juros compensatórios;
d) € 347,17 de juros compensatórios do pagamento por conta.
1.10. No entendimento da Requerente, a exigência por parte da AT de um valor já pago compreende uma duplicação de coleta, nos termos do art.º 205.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (‘CPPT’), ao ter sido exigido ao sujeito passivo o pagamento do mesmo tributo, por duas vezes.
1.11. O não pagamento do tributo no respetivo prazo de pagamento voluntário determinou a instauração do processo de execução fiscal n.º …, para cobrança coerciva da dívida.
1.12. Ainda no entendimento da Requerente, a AT terá reconhecido a duplicação de coleta quando, semanas mais tarde, notificou a sociedade da nota de liquidação nº 2014 … e da demostração de acerto de contas n.º 2014 ….
A Requerida AT respondeu, por sua vez, alegando a improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral pelos motivos que se passam, sucintamente, a expor:
1.13. Respondeu a Requerida por exceção, invocando as exceções dilatórias de ineptidão da petição inicial e de incompetência do Tribunal, bem como a exceção perentória de inutilidade superveniente parcial da lide.
1.14. Nesse âmbito, defendeu que a Requerente formulou pedidos cumulativos de «anulação da liquidação n.º 2013 … do exercício de 2010, respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2013 …, e compensação n.º 2013 … e bem assim como de o processo de execução fiscal que corre termos sob o número …, com fundamento na respetiva ilegalidade por duplicação de coleta», e subsidiariamente, que seja declarada a «nulidade da liquidação n.º 2013 …, respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2013 … por ausência do facto tributário».
1.15. De acordo com o entendimento da Requerida, os pedidos de anulação da liquidação, bem como do processo de execução fiscal são pedidos principais absolutamente incompatíveis, nos termos do art.º 186.º do Código de Processo Civil (‘CPC’), o que consubstancia uma exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, prevista no art.º 186.º, n.º 1, e n.º 2 alínea c) do CPC, que subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do Tribunal, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo.
Assim, concluiu que a incompatibilidade dos pedidos principais prejudicam o conhecimento do mérito da causa, pelo que a Requerida deverá ser absolvida da instância atento o disposto nos art.os 278.º, n.º 1 al. b), 576.º, n.º 1 e 577.º, al. b) do CPC, aplicáveis, ex vi do art.º 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
1.16. Sem conceder, defendeu a Requerida que, caso improceda a exceção invocada, deverá a incompetência do Tribunal no conhecimento do pedido de ‘anulação do processo executivo’ ser julgada procedente, com a consequente absolvição parcial da instância da Requerida, atento o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
1.17. Ainda sem conceder, sustenta a Requerida que, atendendo à extinção do processo de execução fiscal, por pagamento, a presente ação perdeu parte do seu objeto (anulação do processo de execução fiscal), pelo que se verifica a exceção perentória de inutilidade parcial da lide, nos termos do artigo 277.º, al. e), e 576.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi art.º 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
1.18. Por impugnação, alegou a Requerida que inexiste qualquer duplicação de coleta, por não estarem verificados os pressupostos legais previstos no art.º 205.º do CPPT.
De acordo com a Requerida, os Serviços da AT procederam à emissão de três liquidações de IRC para o exercício de 2010:
i. A primeira liquidação n.º 2011…, no seguimento da autoliquidação do imposto relativo ao período de 2010;
ii. A segunda liquidação n.º 2013 … resultante da apresentação da declaração de substituição Modelo 22, em 17/12/2013, que apurou um lucro tributável no montante de € 853.516,68, para o exercício de 2010;
iii. A terceira liquidação n.º 2014 … emitida no seguimento da ação inspetiva, que apurou IRC a pagar no montante total de € 212.421,67, e um valor a entregar ao Estado no valor de € 63.477,52.
1.19. Alega a Requerida que, de facto, a Requerente pagou duas vezes o montante de € 16.916,62, no dia 20/12/2013 e 14/05/2014, mas os dois pagamentos são devidos e foram considerados pelos Serviços nas liquidações, nas demonstrações de acerto de contas e nas notas de cobrança, porquanto, o pagamento de autoliquidação considerado na liquidação n.º 2014 … corresponde ao pagamento dos montantes de € 16.916,62, efetuado em 20/12/2013, e de € 155.733,96, efetuado em 28/05/2011.
1.20. Por outro lado, a nota de cobrança n.º 2014 …, referente à liquidação n.º 2014 … determina imposto a entregar ao Estado no montante de € 44.482,41 (o qual resulta da dedução de € 16.916,62, pago pela Requerente no processo de execução fiscal ao valor anteriormente apurado de imposto a pagar no montante de € 63.477,52).
1.21. No dia 21/10/2014 teve lugar a Primeira Reunião do Tribunal Arbitral a qual foi Presidida pela ora Signatária, e secretariada pela Dra. Tânia Carvalhais Pereira, jurista do Centro de Arbitragem Administrativa.
Na Reunião estiveram presentes os mandatários da Requerente, os Exmos. Srs. Drs. … e Dr. …, bem como, em representação da Requerida, as Exmas. Sras. Dra. … e Dra. ….
1.22. Na Primeira Reunião as Partes pronunciaram-se oralmente sobre as exceções alegadas pela Requerida na sua Resposta.
Ainda no decurso da Reunião, e no uso da palavra, o mandatário da Requerente declarou prescindir da Testemunha arrolada, o que mereceu a concordância da Requerida e do Tribunal.
Por último, e para o que aqui releva, as partes foram notificadas para apresentação de Alegações, no prazo de 20 dias, as quais foram apresentadas no prazo concedido para o efeito.
1.23. Em sede Alegações, a Requerente reiterou o alegado no início da Primeira Reunião do Tribunal Arbitral, no sentido da improcedência das exceções alegadas pela Requerida na sua Resposta, a saber, de ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, de incompetência material do Tribunal Arbitral e de inutilidade parcial da lide por falta de objeto.
Nesse âmbito, esclarece que não formulou qualquer pedido cumulativo, antes apenas pedidos subsidiários, de anulabilidade e nulidade da liquidação, e que a expressão “e bem assim” utilizada no pedido «a mesma não mais compreende que uma mera consequência jurídica do pedido de anulação da liquidação (….) pese embora não caiba ao Tribunal Arbitral determinar a anulação da execução, da decisão do Tribunal no sentido de determinar a anulação da liquidação que serve de base à execução não pode, pura e simplesmente, deixar de se extrair uma conclusão: que a execução deve ser extinta!», pelo que as invocadas exceções não podem proceder.
Especificamente quanto à inutilidade da lide por alegada falta de objeto defende, sucintamente, que não obstante não ter apresentado oposição à execução, tal não impede a peticionada análise da liquidação subjacente.
1.24. Quanto ao mérito da causa – verificação de duplicação de coleta – a Requerente reiterou o já alegado aquando do Pedido de Pronúncia Arbitral, requerendo a anulabilidade da liquidação n.º 2013 …, e respetiva demonstração de liquidação de juros e a Demonstração de Acerto de Contas n.º 2013 …, com fundamento em ilegalidade.
1.25. Subsidiariamente, reiterou a Requerente que caso a liquidação em crise não seja anulada, deverá ser declarada nula por violação do conteúdo essencial do direito à propriedade privada e dos princípios constitucionais da proibição do excesso, e da igualdade fiscal, alegando que esta nulidade pode ser arguida a todo o tempo, nos termos do art.º 133.º, n.º 2, al. d) do Código de Procedimento Administrativo, ex vi do art.º 2º, al. d) do CPPT.
1.26. De igual modo, a Requerida pugnou em sede de Alegações pela verificação das exceções antes invocadas na Resposta, alegando que a fundamentação da Requerente encerra «algumas contradições e confusão de conceitos, designadamente no que respeita à distinção e diferente âmbito de aplicação dos meios de defesa de oposição à execução, de impugnação judicial e do processo arbitral tributário» pelo que conclui que, não só as exceções por si invocadas devem proceder, como «a liquidação de IRC do exercício de 2010 cuja anulação ou declaração de nulidade é peticionada na presente ação (…) é uma liquidação que já não se encontra vigente na ordem jurídica porquanto foi substituída pela liquidação n.º 2014 … (…)» sendo certo que «a Requerente afirma e comprova que deduziu impugnação contra a liquidação vigente» o que retira o objeto à presente ação e determina a impossibilidade da lide arbitral.
1.27. Caso assim não se entenda, pugna pela improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral quanto à invocada duplicação de coleta, não tendo alegado, ao nível da defesa por impugnação, qualquer matéria de facto ou de direito substancialmente nova.
2. Saneamento
2.1. Encontrando-se o presente Tribunal regularmente constituído, importa verificar se estão verificados os pressupostos processuais legalmente exigidos.
As Partes têm personalidade e capacidade tributária, bem como legitimidade e interesse em agir, nos termos do art.º 65.º da Lei Geral Tributária (‘LGT’), e 26.º do CPC, estando regularmente representadas.
Nos termos do art.º 10.º, n.º 1 alínea a) do RJAT o Pedido de Pronúncia Arbitral foi tempestivamente apresentado.
Foi suscitado pela Requerida nos presentes autos a exceção de incompetência material ‘parcial’ do presente Tribunal Arbitral a qual será de seguida apreciada.
2.2. Questões prévias:
2.2.1. Da alegada exceção de incompetência do Tribunal
3.
Tal como alegado, a Requerida AT alega que deverá ser declarada a verificação da exceção de incompetência do presente Tribunal para efeitos de conhecimento do pedido de ‘anulação do processo executivo’, com a consequente absolvição parcial da entidade Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 278.º, n.º 1 da alínea a), 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
A esse propósito, alega a Requerente, já em sede de Alegações, que não formulou nenhum pedido com tal conteúdo, dado que a indicada extinção da execução subjacente mais não é que a necessária consequência jurídica da peticionada anulabilidade da liquidação adicional sob análise.
Cabe a este Tribunal apreciar e decidir:
Considera este Tribunal que, independentemente da intenção da Requerente, de facto, na formulação textual do pedido por si apresentado formula-se, inquestionavelmente, um pedido de anulabilidade do processo de execução, nos seguintes termos:
«Requer-se que seja anulada a liquidação (…), respetiva liquidação de juros e a demonstração de acerto de contas (…) e bem assim como o processo de execução fiscal (…), com fundamento na respetiva ilegalidade, por duplicação de coleta» (sublinhado nosso).
Pelo que cumpre analisar a exceção invocada pela Requerida:
Nos termos do art.º 2.º do RJAT, a competência material do Tribunal Arbitral cinge-se à apreciação das seguintes pretensões:
«a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria coletável e de actos de fixação de valores patrimoniais;»
A competência do Tribunal Arbitral é ainda (mais) limitada pela Portaria de Vinculação da AT, i.e., pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, que exclui da vinculação da AT as seguintes pretensões:
«a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria coletável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.»
Efetivamente, nos termos conjugados das disposições supra referidas, escapa ao poder decisório deste Tribunal a apreciação de qualquer questão que se relacione com processos de execução fiscal.
Nestes termos, não será objeto de apreciação toda a matéria alegada relativa ao processo de execução fiscal que correu termos sob o n.º …, pelo que procede a exceção dilatória de incompetência material do presente Tribunal, para o conhecimento do pedido relativo à ‘anulação do processo executivo’, com a necessária absolvição parcial da instância, nos termos do disposto nos art.os 278.º, n.º 1; 576.º, n.º 1, alínea a) e 577.º, alínea a), todos do CPC, ex vi do art.º 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Sem prejuízo do exposto,
Prossegue o presente processo para apreciação dos restantes pedidos formulados, para os quais o presente Tribunal se considera competente, a saber, a apreciação do pedido de anulação da liquidação n.º 2013 …, com fundamento na ilegalidade por duplicação de coleta, bem como, do pedido subsidiário, de nulidade dessa liquidação, com o mesmo fundamento.
2.2.2. Da exceção de ineptidão da Petição Inicial
Pugnou a Requerida pela verificação da exceção dilatória de ineptidão da petição inicial com fundamento na incompatibilidade absoluta dos pedidos cumulativos formulados de:
i) anulação da liquidação n.º 2013 … do exercício de 2010, respetiva Demonstração de Acerto de Contas n.º 2013 …, e compensação n.º 2013 …; e de
ii) anulação do processo de execução fiscal que corre termos sob o número …;
Pedido que requer que seja apreciado pelo Tribunal dado que consubstancia uma exceção, que subsistirá, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do Tribunal, nos termos do artigo 186.º n.º 4 do CPC, conduzido à absolvição da instância.
Efetivamente, e não obstante o Tribunal já se ter previamente declarado materialmente incompetente para a análise e apreciação da matéria alegada pela Requerente relativa ao processo de execução fiscal, tal não impede a verificação de uma cumulação de pedidos incompatíveis e a consequente verificação da respetiva exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, tal como peticionada pela Requerida. Tal entendimento encontra-se sufragado, por exemplo, pelo Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14/12/2010 (Processo n.º 2604/084TBAGD.C1), quando enuncia a esse propósito que «verificando-se essa oposição substancial entre os pedidos, a ineptidão da petição inicial subsiste mesmo que um dos pedidos em oposição fique sem efeito por incompetência do Tribunal ou por erro na forma do processo (artigo 193.º n.º 4 do Código de Processo Civil)» (atual artigo 186.º do CPC invocado pela Requerida).
Porém, e contrariamente ao que alega a Requerida, o Tribunal considera que os pedidos formulados não são incompatíveis, dado que a ineptidão da petição inicial prevista no art.º 186.º, n.º 1, alínea c) do CPC respeita à cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, isto é, aos casos em que os efeitos jurídicos que se pretendem obter são inconciliáveis.
Neste âmbito, veja-se, a titulo exemplificativo o Douto Acórdão da Relação do Porto, de 12.10.1998, nos termos do qual o Tribunal decidiu que:
«I- Só há incompatibilidade de pedidos, determinante da ineptidão da petição inicial, quando existe inintegibilidade do pensamento do autor, impossibilitando o tribunal de tomar decisão sobre qualquer dos pedidos formulados.»
Ora, em abstrato, a anulação do processo de execução fiscal é uma consequência direta e necessária da anulação da respetiva liquidação subjacente, pelo que, ao contrário do que alega a Requerida, a extinção do processo de execução fiscal não importa a incompatibilidade material dos pedidos formulados.
Esta extinção levaria, quanto muito, à inutilidade superveniente parcial da presente lide, porquanto o efeito pretendido – de extinção do processo executivo – já se encontra verificado, por pagamento realizado pela Requerente.
Em face do exposto, e verificando-se que, em abstrato, os pedidos de anulação da liquidação, e de extinção do correspondente processo de execução fiscal, não são substancialmente incompatíveis ou inconciliáveis – sendo, pelo contrário, perfeitamente harmonizáveis, e correlativos – e sem prejuízo da incompetência material deste Tribunal para a apreciação de toda a matéria relativa ao processo de execução fiscal, improcede, para os devidos efeitos, a exceção de ineptidão dilatória da petição inicial por incompatibilidade de pedidos, alegada pela Requerida.
2.2.3. Da inutilidade parcial da lide
Por fim, alega a Requerida a verificação da exceção perentória de inutilidade parcial da lide, porquanto, efetuado o pagamento da dívida exequenda (liquidação em crise), e encontrando-se extinta a execução fiscal, perdeu a presente ação parte do seu objeto, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 576.º, n.º 3 do CPC, ex vi do art.º 29.º, 1, alínea e) do RJAT, com a consequente absolvição parcial do pedido.
Contudo, e conforme apreciado anteriormente, verificada a exceção de incompetência material relativamente à matéria do processo de execução fiscal, não pode este Tribunal pronunciar-se sobre a exceção invocada.
3. Fundamentação
3.1. Factos provados
Com relevo para a apreciação da pretensão da Requerente, importa dar como provados os seguintes factos:
A. A A, S.A., é uma sociedade anónima que tem como objeto principal a produção de eletricidade a partir de fontes renováveis (energia eólica), estando registada com o CAE … – cf. Pp. 5 e 6 do Relatório de Inspeção (OI …) que integra o processo administrativo instrutor;
B. A Requerente submeteu, em 23/05/2011, a Declaração Modelo 22 de IRC, com a Identificação …, referente ao exercício de 2010, que apurou um lucro tributável no valor de € 789.680,36, coleta no valor de € 195.857,59, e um total de imposto a pagar de € 155.733,96 – cf. Declaração Modelo 22 junta ao Pedido de Pronúncia Arbitral como Doc. n.º 1;
C. O imposto autoliquidado, no valor de € 155.733,96, foi pago em 23/05/2011 – cf. comprovativo de pagamento junto como Doc. n.º 3 do Pedido de Pronúncia Arbitral;
D. No seguimento da autoliquidação, foi emitida a liquidação n.º 2011 …, de 23/06/2011, que apurou o valor de € 332,67 a pagar, referente a juros compensatórios (€ 331,31) e juros de mora (€ 1,56) - cf. cópia da liquidação junta como Doc. n.º 2 ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
E. Os juros supra foram pagos - cf. comprovativo junto como Doc. n.º 4 ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
F. Entre os dias 18/11/2013 a 26/11/2013, a Requerente foi alvo de uma ação inspetiva (OI…), ao exercício de 2010 - cf. P. 4 do Relatório de Inspeção (OI …) que integra o processo administrativo instrutor;
G. No âmbito da ação inspetiva, o ‘resultado declarado’ pela Requerente foi corrigido, tendo nessa sede a matéria coletável sido alterada de € 789.680,36 para € 1.063.812,08 – cf. P. 20 do Relatório de Inspeção (OI …) que integra o processo administrativo instrutor;
H. Das correções propostas pela Inspeção Tributária, a Requerente aceitou as correções referentes à depreciação das despesas de desmantelamento do parque éolico, no valor de € 63.836,32 – cf. p. 19 do Relatório de Inspeção (OI …) que integra o processo administrativo instrutor;
I. Nessa sequência, a Requerente procedeu voluntariamente à correção do referido valor, tendo submetido a competente Declaração Modelo 22 de IRC de substituição, - Declaração com o identificador … -, em 17/12/2013, acrescendo à matéria coletável no Quadro 07, campo 721, o valor de € 63.836,32 - cf. Declaração junta como Doc. n.º 6 ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
J. As restantes correções efetuadas pela Inspeção Tributária, no valor total de € 210.295,37, foram contestadas judicialmente pela Requerente, correndo o processo de Impugnação Judicial no Tribunal Tributário de Lisboa - cf. a cópia da Petição Inicial apresentada junto do Serviço de Finanças de Lisboa-6, em 06/06/2014, junto aos presentes autos na Primeira Reunião do Tribunal Arbitral;
K. No seguimento da apresentação da Declaração de substituição enunciada em I., foi emitida a Guia de Pagamento de Autoliquidação de IRC n.º …, que apurou o montante a pagar de € 172.650,58 – cf. Doc. 7 ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
L. Atendendo a que, em 23/05/2011, havia pago o imposto resultante da autoliquidação, no valor de € 155.733,96, em 19/12/2013, a Requerente procedeu ao pagamento da diferença entre os valores autoliquidados, no total de € 16.916,62 – cf. comprovativo de pagamento junto como Doc. n.º 8 ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
M. Foram ainda pagos, em 7 de fevereiro de 2014, os juros apurados, no valor de € 1.742,79 - cf. Doc. n.º 9 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
N. Após a apresentação da Declaração de substituição referida em I., foi emitida a correspondente liquidação n.º 2013 …, de 17/12/2013, a qual apurou um total a pagar no montante de € 18.995,11 - cf. Doc. n.º 10 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
O. Nos termos da respetiva Demonstração de Acerto de Contas n.º 2013 …, datada de 20 de dezembro de 2013, o valor a pagar, no total de € 18.662,24, encontrava-se decomposto nos seguintes termos - cf. Doc. n.º 11 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral:
- Acerto de Liq. de 2010 - € 16.916,62;
- Juros de mora - € 10,93;
- Juros compensatórios - € 1.720,39;
- Juros compensatórios por pagamento por conta - € 347,17
P. O prazo do pagamento voluntário da Liquidação terminou em 17/02/2014 - cf. Doc. n.º 11 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
Q. Foi instaurado pelo Serviço de Finanças de Lisboa-6 o processo de execução fiscal n.º …, para pagamento do montante apurado na Demonstração de Acerto de Contas identificado em O., no valor de € 18.662,24 - cf. Doc. n.º 12 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
R. A liquidação n.º 2013 … foi paga em 14/05/2014, já no âmbito do processo de execução fiscal n.º … (facto que decorre da Resposta da Requerida e não foi contestado pela Requerente);
S. No seguimento do total das correções efetuadas pela Inspeção Tributária, foi emitida a liquidação n.º 2014 …, de 03/01/2014, resultante das correções da ação inspetiva, relativas ao exercício de 2010, que apurou uma matéria coletável de € 1.063.812,05, um imposto (IRC e Derrama) no valor global de € 228.378,85 e que liquidou o valor de € 63.477,52 – cf. Doc. n.º 13 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
T. Foi ainda emitida a respetiva Demonstração de Acerto de Contas n.º 2014 …, que apurou o imposto a pagar no valor total de € 44.482,41 - cf. Doc. n.º 14 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
U. O referido valor de imposto devido/a pagar de € 44.482,41 foi apurado nos seguintes termos:
i. Total de IRC do exercício de 2010 (após correções da Inspeção Tributária): € 212.421,67 – cf. Doc. n.º 13 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
ii. Derrama: € 15.957,18 - cf. Doc. n.º 13 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
iii. Juros compensatórios: € 7.741,15 - cf. Doc. n.º 13 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
iv. Juros moratórios: € 8,10 - cf. Doc. n.º 13 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral;
Num total liquidado de € 236.128,10.
v. Ao valor total liquidado relativamente ao exercício de 2010, a AT considerou pagos em autoliquidação € 172.650,58 (vd. linha 28 de Liquidação), a saber:
a. o valor pago aquando da autoliquidação do imposto, no valor de € 155.733,96 - cf. Doc. n.os 3 e 13 juntos ao Pedido de Pronúncia Arbitral (facto provado C) anterior;
b. o valor de € 16.916,62, pago voluntariamente pela Requerente após a apresentação da Declaração de substituição -cf. Doc. n.os 8 e 13 juntos ao Pedido de Pronúncia Arbitral (facto provado L) anterior);
vi. Ao valor total a pagar relativamente ao exercício de 2010, a AT ainda deduziu o valor apurado pela segunda liquidação n.º 2013 …, e paga em sede de execução fiscal, no valor de € 18.995,11 -cf. Doc. n.º 14 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral.
Pelo que o imposto a pagar in fine cifrou-se em € 44.482,41.
3.2. Da Duplicação de Coleta
3.2.1 Do pedido principal
Aqui chegados, cumpre, por fim, apreciar o mérito do pedido de anulação da liquidação n.º 2013 …, referente à compensação n.º 2013 …, e respetiva demonstração de liquidação de juros, no valor total de € 18.995,11, composta por:
a. € 16.916,62, a título de acerto de liquidação;
b. € 10,93 de juros de mora;
c. € 1.720,39 de juros compensatórios;
d. € 347,17 de juros compensatórios de pagamento por conta.
De acordo com a Requerente, a referida liquidação é ilegal por duplicação de coleta, porquanto, foi exigido ao mesmo sujeito passivo o mesmo tributo, por duas vezes.
Efetivamente, e como alegado pela Requerente, não obstante a figura da duplicação de coleta ser um instituto jurídico tributário com os contornos delineados no artigo 205.º do CPPT, em sede dos fundamentos de oposição à execução, é pacificamente assente que pode constituir fundamento de impugnação judicial ou de reclamação graciosa – vd., a título exemplificativo, o Douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 12.10.2006 (Processo n.º 313/04) e, na doutrina, Jorge Lopes de Sousa – in Código De Procedimento e do Processo Tributário, 5.ª Edição, 2007, Volume II, pp. 396 - e, nessa sequência, de pronúncia arbitral, pelo que, cabe verificar quais os requisitos necessários à respetiva verificação.
Nos termos do art.º 205.º do CPPT, que delimita os contornos da figura:
«1 - Haverá duplicação de coleta para efeitos do artigo anterior quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo.
2 - A duplicação de coleta só poderá ser alegada uma vez, salvo baseando-se em documento superveniente demonstrativo do pagamento ou de nova liquidação.»
Ora, do que antecede, e seguindo a doutrina de João António Valente Torrão, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Almedina, 2005, p. 818, em anotação ao art.º 205.º do CPPT:
«A duplicação de colecta depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
a) Pagamento anterior e por inteiro de um tributo;
b) Exigência da mesma ou de diferente pessoa de tributo de igual natureza;
c) O tributo deve ser referente ao mesmo facto tributário, e ao mesmo período de tempo;
Neste mesmo sentido, veja-se o Douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 8/11/2012, (Proc. n.º 01128/05.6BEPRT), que decidiu serem requisitos cumulativos para a verificação de duplicação de coleta:
«a) – unicidade dos factos tributários;
b) – identidade da natureza entre a contribuição ou imposto e o que de novo se exige;
c) – coincidência temporal do imposto pago e o que de novo se pretende cobrar.(…)»
Assim, a duplicação de coleta verifica-se sempre que, estando paga uma coleta, se liquida e exige outra da mesma natureza, em relação ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo.
Cumpre apreciar, mais em concreto:
Os Serviços da AT procederam à emissão de três liquidações de imposto, relativas ao exercício de 2010, a saber:
i. A primeira liquidação n.º 2011 …, resultante da autoliquidação do imposto relativo ao exercício de 2010, que apurou uma matéria coletável de € 789.680,36 e um imposto (IRC e Derrama), no valor global de € 155.733,96, conforme Facto provado B) supra;
ii. A segunda liquidação n.º 2013 …, resultante da apresentação da declaração de substituição Modelo 22, em 17/12/2013, que apurou uma matéria coletável de € 853.516,68 (€ 789.680,36 iniciais acrescidos dos € 63.836,32 de matéria coletável corrigida/acrescida voluntariamente pela Requerente) e um imposto (IRC e Derrama) no valor global de € 172.650,58 - conforme Factos provados H), I), K) e L) supra - e que corresponde um acréscimo de imposto de € 16 916,62 face à liquidação anterior;
iii. A terceira liquidação n.º 2014 …, resultante das correções da ação inspetiva, relativas ao exercício de 2010, que apurou uma matéria coletável de € 1.063.812,05 e um imposto (IRC e Derrama), no valor global de € 228.378,85 - conforme Factos provados S) e U) supra - e que corresponde um acréscimo de imposto de € 55.728,27 face à liquidação anterior;
Do que antecede resulta que a realidade fáctica subjacente a cada uma das três liquidações supra identificadas é diferente, porquanto, a primeira refere-se à Declaração Modelo 22 entregue pela Requerente em 23/05/2011 (autoliquidação), a segunda, é consequência da entrega da Declaração Modelo 22 de substituição, pela Requerente, em 17/12/2013 (autoliquidação), e a última, é consequência das correções efetuadas pela Inspeção Tributária, e que foram alvo de impugnação judicial, conforme se referiu nestes autos (processo que corre termos no Tribunal Tributário de Lisboa).
Poder-se-ia colocar a questão de saber se, com a terceira liquidação adicional supra referida, se verificou uma duplicação de coleta relativamente aos gastos com o desmantelamento do parque eólico (conta 642 – Ativos fixos tangíveis), no valor de € 63.836,32, que foram voluntariamente acrescidos à matéria coletável na segunda liquidação supra (e cuja legalidade aqui se afere).
Porém, tal não foi o alegado, nem é o caso.
Conforme resulta da análise das sobreditas liquidações, não obstante apenas com a última (terceira) liquidação de imposto, se ter apurado o montante total de IRC e Derrama relativo ao exercício de 2010, a pagar pela Requerente, após a inspeção tributária, no valor global de € 228.378,8, verifica-se que este montante de imposto apurado não contém nenhuma duplicação de coleta, antes resulta da soma dos impostos individualmente apurados em consequência de em cada uma das liquidações (€ 155.733,96 + € 16.916,62 + € 55.728,27).
Ou seja, resulta provado que todos os pagamentos de imposto efetuados pela Requerente que antecederam a última liquidação foram integralmente considerados e contabilizados pela AT como ‘pagamento por conta do imposto devido a final após a formação do facto tributário’, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 33.º da Lei Geral Tributária, e art.º 86.º, n.os 4 a 6 do CPPT.
A propósito dos referidos normativos legais, referem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª Edição, 2012, Encontro da Escrita Editora, p. 276, em anotação ao art.º 33.º da LGT, que:
«Além destes pagamentos por conta, efetuados no período de formação do facto tributário [art.º 33.º da LGT], o CPPT prevê, nos n.os 4 a 6 do art. 86.º, a possibilidade de outros pagamentos por conta, efetuados após a formação deste facto, mas antes da extração da certidão de divida, ou no decurso do processo de execução fiscal (arts. 262.º, n.º 4, e 264.º, n.º2).»
Ora, como bem nota o Ilustre Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 2007, Áreas Editora, 5.ª Edição, Vol. II, p. 394 e ss:
«Torna-se necessário que a realidade fáctica que está subjacente à pluralidade de liquidações seja a mesma, o que não acontecerá, por exemplo, no caso de liquidações adicionais, em que se pretende cobrar um tributo que, indevidamente, não foi liquidado inicialmente. Nestas situações de liquidação adicional, a segunda liquidação não incide sobre o mesmo facto tributário (a mesma parcela de rendimento ou de valor patrimonial ou de despesa, por exemplo), sobre o qual incidiu a primeira.
(…)
A referência ao pagamento do tributo por inteiro, tem ínsita a exigência de que o tributo devido esteja totalmente pago, o que afasta a possibilidade de invocação da duplicação de coleta quando o tributo apenas está parcialmente pago, na sequência da primeira liquidação, seja por que foi feito o pagamento apenas de parte das prestações, seja por que a primeira liquidação, apesar de estar paga na sua totalidade, não atinge o montante a cobrar em face da segunda liquidação.»
A doutrina do Ilustre Juiz Conselheiro foi acolhida no Douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 8/11/2012 (Proc. n.º 01128/05.6BEPRT), em cujo sumário se pode ler:
«V. Para que ocorra duplicação de coleta torna-se necessário que a realidade fáctica que está subjacente à pluralidade de liquidações seja a mesma, o que não acontecerá, por exemplo, no caso de liquidações adicionais, em que se pretende cobrar um tributo que, indevidamente, não foi liquidado inicialmente.»
Deste modo, e face o exposto, cumpre notar que não se encontra verificado um dos requisitos legais essenciais para a verificação de duplicação de coleta, a saber, a unicidade do facto tributário, sendo certo que tais requisitos são cumulativos.
Mas não só:
Da análise da documentação junta aos autos, nomeadamente dos Docs. 8 a 13 do Pedido de Pronúncia Arbitral e dos Factos dados como provados no processo, resulta ainda que:
i. Tendo sido a DM 22 de substituição apresentada em 17/12/2013 (autoliquidação);
ii. Tendo o pagamento adicional, no valor de € 16.916,62, sido efetuado em 19/12/2013;
iii. Tendo a correspondente liquidação n.º 2013 … sido emitida com data de 17/12/2013;
iv. Tendo a correspetiva Demonstração de Acerto de Contas n.º 2013 … sido emitida em 20/12/2013, com um valor a pagar, no total de € 18.662,24.
Sucedeu que o sistema informático da AT apesar de ter emitido, de forma automática a liquidação n.º 2013 … (segunda Liquidação), aquando da respetiva Demonstração de Acerto de Contas não assumiu o ‘pagamento por conta’ do imposto devido a final realizado voluntariamente no dia anterior.
Porém, se tal facto é uma falha criticável, tal não é suficiente para este Tribunal concluir existir uma duplicação de coleta, dado que a segunda liquidação n.º 2013 … cuja legalidade é questionada, mais não é que a consolidação jurídica/validação da declaração de substituição apresentada pela própria Requerente; ou seja, in casu, verifica-se que não «foi aplicado o mesmo preceito legal (…) mais do que uma vez ao mesmo facto tributário» na expressão, a propósito desta temática, constante do Douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 08/11/2012 (processo n.º 01128/05.6BEPRT), já citado.
No entender do Tribunal, o que se verificou - e por um curto espaço de tempo, entre 20/12/2013 e 07/01/2014 (i.e., entre as datas das Demonstrações de Acerto de Contas relativas à segunda e terceira liquidações de imposto), como seguidamente se explanará - foi que um montante pago por conta do imposto devido a final não foi devida e atempadamente considerado.
Assim, ainda que em tese, no referido período (e apenas neste), pudesse ser possível defender que existiu uma verdadeira duplicação de coleta, pelo facto de ter sido cobrado um montante já pago em autoliquidação, a verdade é que a AT, ao assumir e contabilizar todos os pagamentos efetuados pela Requerente e ao tê-los abatido ao imposto devido a final aquando da emissão da terceira liquidação de imposto n.º 2014 … e respetiva Demonstração de Acerto de Contas n.º 2014 …, acabou por sanar qualquer eventual vício da liquidação com fundamento em duplicação de coleta, uma vez que todos os pagamentos foram considerados como ‘pagamentos por conta’ do imposto (IRC) devido a final.
Compreende-se, numa primeira análise simplista, que seja frustrante para a Requerente pretender pagar um imposto específico e posteriormente ver instaurado um processo executivo com base num imposto que, alegadamente, já pagou.
Porém, tal não corresponde à verdade dos factos, dado que, aquando da emissão da liquidação n.º 2014 … (terceira liquidação da AT), com as correções à matéria coletável resultantes da inspeção tributária, bem como da correspondente Demonstração de Acerto de Contas, a AT compensou tecnicamente (e considerou pagos) os montantes de imposto liquidados anteriormente, facto a que a Requerente não se opôs, quando in fine lhe foram notificados para pagar “apenas” € 44.482,41
Vejamos mais em particular,
Da análise da última demonstração de liquidação emitida pela AT, i.e., da análise da liquidação n.º 2014 … (terceira liquidação da AT) considera-se um total autoliquidado (e pago) no valor de € 172.650,58 (que resulta da soma dos pagamentos das liquidações n.º 2011 … no valor de € 155.733,09, e do valor de € 16.916,62).
Da análise da respetiva Demonstração de Acerto de Contas n.º 2014 …, de 07/01/2014, por sua vez, decorre ainda que, não obstante a liquidação n.º 2013 … (segunda liquidação da AT), no valor total de € 18.995,11, ainda não estar paga (o que apenas veio a suceder em 14/05/2014, já em sede de processo executivo), a AT considerou este valor como ‘crédito’ no âmbito da Demonstração de Acerto de Contas.
Ou seja, apesar da liquidação emitida apurar um valor final a pagar de € 63 477,52 (onde já considera, nos seus termos, como autoliquidados e pagos os € 16.916,62 de imposto), na respetiva Demonstração de Acerto de Contas o montante total a pagar cifrou-se em € 44.482,41, dado que se deduz o valor de € 18.995,11 correspondente ao valor total da (segunda) liquidação n.º 2013 ….
Em síntese:
De uma forma ainda mais simples, e se dúvidas subsistem se a Requerente pagou in fine duas vezes o montante peticionado, no sentido de aferir se se verificou uma duplicação de coleta, importa verificar:
Com a última (terceira) liquidação de imposto.º 2014 … apurou-se o montante total de imposto relativo ao exercício de 2010, a pagar pela Requerente, após a inspeção tributária, no valor global de € 228.378,8, valor ao qual acresceram € 7.741,15 de juros compensatórios e € 8,10 de Juros de mora, tudo num total de € 236.128,10.
Dos autos resulta provado, em síntese:
Valores de Imposto e Juros pagos pela Requerente:
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Autoliquidação paga em 23/05/2011
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155 733,96 €
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Juros 1.ª Liquidação pagos
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332,87 €
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2.ª Liquidação paga em proc. executivo
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18 662,24 €
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3.ª Liquidação paga
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44 482,41 €
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Pagamento por conta 19/12/2013
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16 916,62 €
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Total
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236 128,10 €
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Total 3.ª Liquidação (IRC + Derrama + Juros)
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236 128,10 €
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Juros pagos voluntariamente em 07/02/2014
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1 742,79 €
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Ou seja, resulta que apenas não foram considerados nas compensações da AT os € 1.742,79, relativos a juros compensatórios e de mora voluntariamente pagos pela Requerente em 7 de fevereiro de 2014, os quais deverão ser objeto de reembolso.
Em suma, no entender do Tribunal, não existem duas liquidações sobre a mesma realidade fáctica e, mesmo que assim não se entenda - e se considere que, entre a autoliquidação de 17/12/2013 e a respetiva liquidação n.º 2013 …, emitida pelo sistema com a mesma data, se verifica uma duplicação de coleta -, o vício encontra-se sanado aquando da emissão da terceira liquidação.º 2014 … e respetiva Demonstração de Acerto de Contas n.º 2014 …, dado que os pagamentos efetuados pela Requerente não foram destinados pela AT pagar o mesmo ‘facto tributário’, inexistindo, por isso, um ‘duplo pagamento’, enquanto requisito legal necessário à verificação do instituto.
Por tudo quanto foi exposto, resulta que não se encontrando verificado, no caso sub judice, a alegada duplicação de coleta – cujos requisitos são, nos termos legais, cumulativos entre si -, decide este Tribunal que não pode ser assacada à liquidação sob análise qualquer ilegalidade com fundamento em duplicação de coleta, pelo que improcede, nesta parte, o pedido da Requerente.
3.2.2. Do pedido subsidiário
Subsidiariamente, a Requerente peticiona no Pedido de Pronúncia Arbitral a declaração de nulidade da liquidação n.º 2013 …, da respetiva Demonstração de liquidação de juros, e da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2013 …, com fundamento na «ausência de facto tributário».
Contudo, nas suas Alegações, a Requerente indica como fundamento da nulidade, já não a ausência de facto tributário, mas «uma violação drástica ao conteúdo essencial do direito à propriedade privada, consagrado no art. 62., como também ao princípio da proibição do excesso, e do princípio da igualdade fiscal, plasmados nos 2º e 13º, todos consagrados na Constituição da Republica.»
Ora, no caso, a Requerente alega que existe nulidade da liquidação, nos termos do art.º 133.º, n.º 2, alínea d) do CPA, que dispõe que são nulos os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental.
Cumpre averiguar se é o caso.
Numa primeira análise, e salvo o devido respeito, importa verificar que a Requerente tem dúvidas acerca do efeito jurídico da eventual declaração de ilegalidade de uma liquidação com fundamento em duplicação de coleta, a saber, se a liquidação é anulável ou nula, pelo que, formulou um primeiro pedido (principal) de anulação da liquidação com fundamento na duplicação de coleta, e um segundo pedido (subsidiário), de declaração de nulidade da liquidação, com o mesmo fundamento.
Em regra, e conforme é jurisprudência assente dos Tribunais de jurisdição administrativa e fiscal, os vícios do acto de liquidação constituem fundamento da sua anulabilidade, só implicando a sua nulidade quando se verifique a falta de qualquer dos elementos essenciais do acto ou quando houver lei que expressamente preveja essa forma de invalidade, nos termos do disposto nos artigos 133º, nº 1, e 135º do CPA [vd. designadamente, os sumários do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 24.10.2014, (Proc. 0501/12) e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 20.10.2005 (Proc. n.º 000075/02)];
No caso de ilegalidade de acto tributário com fundamento em duplicação de coleta, entende este Tribunal, no seguimento, aliás, do que vem sendo defendido pelos Tribunais nacionais de jurisdição administrativa e fiscal, que a liquidação ilegal com fundamento na duplicação de coleta, é anulável, e não nula, não consubstanciado uma exceção ao regime regra acima enunciado.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 08.07.2009, proferido no âmbito do Processo n.º 0530/09, nos termos do qual:
«A duplicação de coleta, enquanto fundamento de impugnação judicial, consubstancia vício gerador de mera anulabilidade e não de nulidade.»
A corroborar o exposto, veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 19/04/2012 (Processo 0150/12), que decidiu que:
«Ora, a duplicação de colecta ocorre (cfr. o nº 1 do art. 205° do CPPT) quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo.
Admitindo-se casos (para além das situações em que configura fundamento de oposição à execução fiscal ― al. g) do nº 1 do art. 204º do CPPT) em que esta ilegalidade (duplicação de colecta) pode ser objecto de impugnação judicial, trata-se de ilegalidade que, sendo geradora de mera anulabilidade, deve ser invocada no prazo geral.»
Sem prejuízo do exposto, sempre se dirá conforme se referiu supra, que na situação sub judice não se encontram verificados os requisitos legais para que se verifique uma situação de duplicação de coleta.
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Decisão
Atento tudo o exposto, julga este Tribunal Arbitral improcedente os pedidos principal e subsidiário formulados pela Requerente.
De acordo com o disposto no art.º 315.º n.º 2 do CPC, 97-A, n.º 1 alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos processos de arbitragem tributária, fixo o valor do processo em € 18.995,11.
Nos termos do art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, fixo o montante das custas em € 1.224,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento das Custas nos processos de arbitragem tributária, sendo devidas pela Requerente.
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Lisboa, 9 de dezembro de 2014
Marla Brás