SUMÁRIO:
A norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho, é inconstitucional, na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, por violação do princípio da proibição da retroactividade fiscal, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Tomás Cantista Tavares e João Pedro Rodrigues, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., SA, SUCURSAL EM PORTUGAL, pessoa colectiva n.º ..., com local de representação em R. ..., ..., ...‑... ... (“Requerente”), veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 95.º, n.º 1 e 2 da Lei Geral Tributária (“LGT”), e ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, mediatamente, com vista à anulação do acto sobre o qual aquela decisão versou, que consiste na autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário (“ASSB”), referente ao passivo apurado no primeiro semestre de 2020 e autoliquidado em 15 de Dezembro de 2020, no valor de € 208.826,77, peticionando ainda a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”) ao reembolso do montante pago acrescido de juros indemnizatórios.
2. A Requerente fundamentou o seu pedido, em suma, com base nos seguintes argumentos:
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O ASSB é um imposto especial sobre o sector bancário que não se confunde com a Contribuição sobre o Sector Bancário (“CSB”);
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O ASSB é um imposto que não tem carácter excepcional e cuja receita é integralmente afecta ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (“FEFSS”), o que viola o princípio geral da não consignação de receitas previsto na Lei de Enquadramento Orçamental (“LEO”);
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A receita proveniente do ASSB não se encontra discriminada de forma concreta e individualizada no Orçamento do Estado e no Orçamento Suplementar para 2020, pelo que não é possível apurar com segurança e clareza a caracterização, a natureza e a classificação daquela receita, o que viola o princípio da especificação orçamental consagrado na LEO e na Constituição da República Portuguesa (“CRP”);
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O ASSB assenta sobre um facto tributário de natureza complexa que incide sobre a média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020. Cada um dos saldos é autónomo face aos demais, tendo por base um cálculo que inicia e finda a cada mês, o que significa que o ASSB apenas entrou em vigor após a formação do facto tributário. Ainda que se entendesse que o facto tributário apenas se forma com a média do semestre, isto é, no final do sexto mês, o ASSB continua a ter entrado em vigor após a verificação do facto tributário. Nestes termos, o ASSB é inconstitucional por configurar um caso de retroactividade própria/autêntica proibida pela CRP. Se, no limite, se considerasse que o facto tributário só se verificava em 2021, o ASSB seria ainda assim inconstitucional por consistir num caso de retroactividade inautêntica/imprópria, já que os contribuintes do sector bancário tinham a expectativa de não vir a ser onerados com um novo imposto relativamente à mesma base de incidência já tributada pela CSB, não existindo um interesse público prevalecente a essa expectativa, dado que o fundamento deste imposto não era fazer face às necessidades provenientes do contexto da pandemia mas sim mitigar a despesa fiscal associada à isenção do IVA nas operações financeiras;
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Caso o ASSB seja qualificado como uma contribuição verifica-se que não existe qualquer prestação pública que justifique, ainda que de modo difuso, a sujeição da Requerente a imposto, já que a receita deste consiste num recurso exclusivo do FEFSS, que visa unicamente financiar os mecanismos de protecção prestados pela segurança social destinados às pessoas singulares residentes em Portugal, o que significa que a Requerente enquanto sucursal de um banco estrangeiro nunca poderá beneficiar de segurança social;
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Caso o ASSB seja qualificado como imposto, constata-se que a sua estrutura viola o princípio da capacidade contributiva. Isto porque a sua base de incidência objectiva abrange os principais complementos do balanço e incide de forma desajustada sobre um determinado grupo de contribuintes que acabam por suportar sectorialmente o que deveria ser imposto a todos os contribuintes, já que se tributa exclusivamente o sector bancário quando existem outros sectores que beneficiam igualmente da isenção de IVA e que contribuem igualmente para essa despesa fiscal;
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Nos termos dos artigos 18.º e 49.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-Membro da União Europeia no território de outro Estado‑Membro, sendo que o artigo 54.º do TFUE equipara as pessoas singulares nacionais às sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e que aí tenham a sua sede estatutária, a sua administração central ou o seu principal estabelecimento. A liberdade de estabelecimento proíbe todas as medidas nacionais susceptíveis de dificultar ou tornar menos atraente a constituição e a gestão de empresas, bem como a criação de agências, sucursais ou filiais num Estado‑Membro, pelas sociedades sedeadas ou estabelecidas (residentes) noutro Estado-Membro;
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O ASSB incide sobre o passivo, deduzido, quando aplicável, dos elementos do passivo que integram os fundos próprios e dos depósitos abrangidos pela garantia do Fundo de Garantia de Depósitos e pelo Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo (ou equivalente). Sucede que as sucursais não têm personalidade jurídica, efectuando directamente, no todo ou em parte, operações inerentes à actividade da instituição de crédito não residente que integram, o que significa que não têm capitais e fundos próprios tal como estes são considerados e contabilizados para efeito das instituições de crédito residentes em Portugal;
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O regime do ASSB determina que, no caso das sucursais, o respectivo passivo relevante para a aplicação do ASSB inclui todas as dívidas para com a sede e/ou outras sucursais desta, as quais são, assim, e sem qualquer distinção, consideradas dívidas para com terceiros, negando-se qualquer relevância ao free capital. Mas mesmo que se admitisse que uma sucursal poderia reconhecer o seu capital alocado como capital próprio, a verdade é que estas continuariam a ser objecto de um tratamento discriminatório quando comparadas com instituições de crédito residentes, já que existe um conjunto vasto de elementos que “segundo as normas de contabilidade aplicáveis” poderiam ser “reconhecidos como capitais próprios” que estão presentes nas instituições de crédito residentes, e não nas sucursais, mas que as sucursais não têm, por serem apenas emitidos por entidades com personalidade jurídica, designadamente obrigações convertíveis, obrigações participantes, acções preferenciais remíveis ou contingent convertible bonds;
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No fundo, o regime jurídico do ASSB impossibilita as sucursais de instituições de crédito não residentes de deduzirem ao passivo os capitais próprios, colocando-as numa situação mais desfavorável face às sucursais residentes, que são tributadas pelo seu passivo “líquido” e não pelo seu “passivo” bruto. Ao estarem as sucursais e as instituições de crédito residentes numa situação objectivamente comparável e ao não existirem razões imperiosas de interesse geral que justifiquem a discriminação enunciada, conclui-se que o ASSB é incompatível com a liberdade de estabelecimento;
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Acresce que a Directiva 2014/59/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Maio de 2014, que estabelece um enquadramento harmonizado a nível europeu para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento estabeleceu os critérios gerais a nível europeu para determinar a fixação e o cálculo das contribuições das instituições de crédito para os mecanismos nacionais de financiamento das medidas de resolução e para efeitos de financiamento do Fundo Único de Resolução. O ASSB consubstancia um tributo sui generis não previsto na Directiva que viola o regime harmonizado europeu no que respeita ao sistema de tributação do sector bancário, medidas de resolução e ao seu financiamento através da tributação do passivo deste sector. Isto sem contar que a imposição do ASSB à Requerente determina uma sobreposição insanável de tributação que contraria o TFUE e a Directiva, designadamente por consistir numa restrição do acesso ao mercado por via da violação das liberdades fundamentais. Por um lado, porque o legislador europeu excluiu a possibilidade de os Estado-Membro tributarem as sucursais de bancos domiciliados noutros Estado-Membro, determinando que a sua tributação respeita o princípio da sede e não o da fonte. Por outro lado, porque o passivo da Requerente é duplamente tributado, duas vezes em Portugal através da CSB e do ASSB e de novo em Espanha através das contribuições previstas na Directiva;
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Por fim, o ASSB viola o princípio da concorrência livre, igual e não falseada que enforma do direito da União Europeia, já que as instituições de crédito residentes noutros Estado-Membro e que aqui disponham de sucursal sofrem uma oneração acrescida que prejudica a sua actuação no mercado europeu e põe em causa os objectivos da harmonização concretizada pela Directiva 2014/59/UE.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros Carla Castelo Trindade, Tomás Cantista Tavares e Maria Alexandra Mesquita como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 3 de Maio de 2023. A Requerida foi notificada para apresentar a sua resposta.
6. Em 2 de Junho de 2023, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo, tendo-se defendido por impugnação e requerido a sua absolvição dos pedidos com base, em síntese, nos seguintes fundamentos:
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O ASSB é um imposto indirecto que visa compensar a não tributação em IVA da generalidade das operações financeiras e que está indissociavelmente associado ao contexto histórico da pandemia da COVID-19 e aos custos da resposta à crise pandémica;
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A consignação das receitas do ASSB ao FESS tem enquadramento legal na Lei de Bases da Segurança Social e na LEO que prevê como excepção ao princípio da não consignação a afectação de receitas fiscais ao financiamento da segurança social e dos seus diferentes sistemas e subsistemas;
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O ASSB foi aprovado no âmbito do Orçamento Suplementar 2020, tendo a estimativa das respectivas receitas sido incluída no Mapa X – Receitas da Segurança Social por Classificação Económica, rúbrica 06 – Transferências correntes – Estado, sendo certo que a identificação do tipo de tributo está devidamente efectuada e respeita o princípio da anualidade;
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O facto tributário que origina a obrigação de pagamento do ASSB é o momento da aprovação das contas e não o do encerramento do exercício. O que releva para efeitos da proibição da retroactividade fiscal não é o momento da liquidação do tributo, mas sim o momento em que ocorre o acto que determina o seu pagamento, porque é este acto que dá origem à constituição da obrigação tributária. Seguindo a jurisprudência do STA relativamente à CSB, conclui-se que não está em causa um facto tributário de formação sucessiva, mas antes um facto tributário que apenas se verifica na ordem jurídica com a aprovação do passivo e no ano em que a mesma ocorre (embora respeitando ao ano económico anterior ao ano da aprovação). Assim sendo, quando entrou em vigor o regime do ASSB, ainda não tinha ocorrido o facto que determina o pagamento do imposto, razão pela qual não se verifica qualquer situação de retroactividade;
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O ASSB não é um imposto discriminatório por não abranger outros sectores de actividade isentos de IVA. Ao contrário do que sucede com a generalidade das isenções daquele imposto que têm subjacentes razões de política económica, social ou ambiental, no caso dos serviços financeiros a isenção de IVA deve-se à dificuldade em determinar o valor tributável em uma parte substancial das suas operações. Esta isenção é colmatada em parte com a sujeição a Imposto do Selo, contudo, não só as taxas deste imposto se afiguram substancialmente inferiores à taxa média do IVA, como ficam de fora da sua incidência as restantes operações em que intervêm instituições de crédito, designadamente transacções financeiras e locações financeiras. As isenções em IVA representam justamente excepções ao princípio da igualdade, que implicam perda de receita fiscal, distorção e desigualdade entre operadores, mas também de desigualdade na distribuição do esforço tributário. Assim, a introdução do ASSB representa um propósito de justiça fiscal e não de penalização do sector bancário;
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O regime do ASSB não comporta um tratamento discriminatório baseado na nacionalidade/residência das instituições de crédito, razão pela qual não viola a liberdade de estabelecimento prevista nos artigos 18.º, 26.º e 49.º do TFUE;
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Não se encontra vedado às sucursais de instituições de crédito residentes noutros Estado-Membros a dedução de capitais próprios, estando na disponibilidade da sucursal qualificar os fundos que lhe são afectos pela sede como passivo ou como capital próprio, em função, entre outros critérios, de serem, ou não, passíveis de remuneração e do carácter de permanência;
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As sucursais e os restantes sujeitos passivos do ASSB estão sujeitos às mesmas regras contabilísticas e de apuramento da base de incidência de imposto, independentemente da respectiva nacionalidade, de tal forma que a não dedução de capitais próprios, caso a sucursal os não tenha, não significa a existência de um tratamento diferenciado;
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O ASSB não consiste numa forma de financiamento das medidas de resolução nem do Fundo Único de Resolução, posto que não se encontra abrangido pela referida Directiva e isto explica que o legislador tenha ignorado todo o enquadramento europeu resultante da Directiva 2014/59/EU e da sua transposição para o direito nacional. Ao não estar o ASSB relacionado com os mecanismos nacionais de financiamento das medidas de resolução, não se verifica qualquer situação de dupla tributação.
7. Em 9 de junho de 2023, foi emitido Despacho a declarar a suspensão da instância até ao conhecimento da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia relativa ao reenvio efetuado no processo arbitral do CAAD com o n.º 502/2021-T. As questões suscitadas nesse reenvio prejudicial são substancialmente idênticas às suscitadas neste processo, com idêntico pedido de reenvio formulado pelo requerente no seu requerimento inicial. O tribunal tem de obedecer ao que for ditado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, pelo princípio do Primado e nos termos do artigo 8.º da CRP; e atenta a similitude fáctico-jurídica entre os dois casos, a suspensão da instância é a solução que melhor adequa os interesses todos em causa.
8. Em 26 de Janeiro de 2024, foi emitido Despacho a decretar o fim da suspensão da instância, perante o conhecimento da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia relativa ao processo acima identificado, com o n.º C-340/22.
9. E as partes foram notificadas, nesse mesmo despacho, para se pronunciarem, querendo, sobre a relevância e aplicação dessa decisão judicial para o processo em causa. O que foi efetuado por ambas.
10. No início de Março de 2023, a árbitra Maria Alexandra Mesquita renunciou ao cargo e, por decisão do Conselho Deontológico do CAAD, foi substituída por João Pedro Rodrigues, que comunicou a aceitação do encargo, no prazo legal. As partes foram notificadas desta nova nomeação, não tendo manifestado vontade de recusar a sua designação.
11. Perante a decisão da requerente de prescindir da prova testemunhal, em 13 de Março de 2023, foi emitido Despacho, dando sem efeito a reunião do artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, celeridade, simplificação e informalidade processuais. As partes foram ainda notificadas para apresentarem, querendo, alegações finais escritas. O que efetuaram ambas, mantendo, no essencial, os argumentos esgrimidos nos articulados anteriores.
II. SANEAMENTO
12. O pedido arbitral foi tempestivamente apresentado e o Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído, nos termos dos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112‑A/2011, de 22 de Março.
13. Para apreciar a competência material do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido, revela-se necessário qualificar previamente o tributo cuja declaração de ilegalidade é suscitada no presente processo. Esta precisa questão foi apreciada pelo Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 21 de Março de 2023, no âmbito do processo n.º 598/2022-T, em termos aos quais se adere e que aqui se reproduzem:
“Qualificação jurídica do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário
6. Analisado, em traços gerais, o regime jurídico do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário, cabe ainda uma referência preliminar quanto à qualificação jurídica que lhe poderá ser atribuída.
A LGT, aprovada em 1998, no seu artigo 3.º, passou a incluir entre os diversos tipos de tributos, os impostos e outras espécies criadas por lei, designadamente as taxas e as contribuições financeiras a favor das entidades públicas, definindo, em geral, os pressupostos desses diversos tipos de tributos no subsequente artigo 4.º.
Aí se explicita que “os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património” (n.º 1), e as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares” (n.º 2). No que se refere às contribuições especiais, o n.º 3 desse artigo apenas especifica que “[a]s contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma atividade são consideradas impostos”.
Em tese geral, o imposto constitui uma “prestação pecuniária, coativa e unilateral, exigida por uma entidade pública com o propósito de angariação de receita”, ao passo que a taxa se caracteriza como “prestação pecuniária e coativa, exigida por uma entidade pública, em contrapartida de prestação administrativa efetivamente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo”, distinguindo-se essas duas espécies de tributos pelo seu carácter de unilateralidade ou bilateralidade (cfr., na linha de outros Autores, Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, págs. 214 e 240).
Por seu lado, a constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.
A doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas. Como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, “a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas” (Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1095).
Neste sentido, as contribuições são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efetivas (Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 287).
Trata-se, neste caso, de tributos de natureza bilateral ancorados numa lógica grupal ou de equivalência de grupo, por oposição ao que sucede com a figura das taxas, que se alicerça num princípio de equivalência estrita ou individual, e que, nessa medida, são uma categoria de tributo cujo facto tributário se constitui em função de um nexo bilateral derivado para o qual influem os sujeitos passivos do grupo a que pertencem (cfr. Filipe de Vasconcelos Fernandes, O (Imposto) Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, pág. 86-87 e nota 132). E que dependem, do mesmo modo, do preenchimento de três diferentes requisitos: a homogeneidade do grupo, que pressupõe uma distinção face à carga impositiva geral que incide sobre a generalidade dos contribuintes, a responsabilidade de grupo, que implica uma relação específica entre o cada grupo homogéneo e certas necessidades de ordem financeira, e a utilidade de grupo, que tem por base o facto de estes tributos assentaram num princípio de equivalência de grupo, de forma a que a receita é utilizada no interesse de todo o grupo, e não especificamente de um contribuinte individual (idem, págs. 87-90).
Como se deixou dito, o ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e constitui receita geral do Estado que é integralmente consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.
E, assim, ao contrário do que sucede com a Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), que foi consensualmente caracterizada como uma contribuição financeira (cfr., por último o acórdão do STA de 25 de janeiro de 2023, Processo n.º 01622/20, e a jurisprudência nele citada), não pode ser atribuída essa mesma natureza ao ASSB, na medida em que não existe conexão entre os objetivos que presidem à sua criação e uma qualquer responsabilidade acrescida do setor bancário, como também não há uma relação específica de proximidade entre o grupo de sujeitos passivos e ónus de custear o serviço público de segurança social, nem subsiste qualquer benefício para o grupo por efeito da carga fiscal com que é diferenciadamente onerado. E, nesses termos, não se verificam os requisitos típicos de homogeneidade, responsabilidade e utilidade de grupo que possam justificar a caracterização do ASSB como contribuição financeira (idem, págs. 91-96).
E, por maioria de razão, está excluído que o ASSB possa integrar o conceito de taxa, uma vez que não estão em causa qualquer dos pressupostos enumerados no artigo 4.º, n.º 2, da LGT que permitam evidenciar o carácter de bilateralidade do tributo.
Em face a todo o exposto, o ASSB constitui um imposto especial sobre o sector bancário, que, não obstante apresentar um âmbito de incidência semelhante à Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), não se limita a estabelecer uma nova taxa sobre a matéria coletável dessa contribuição, nem um novo imposto sobre a coleta, e, nesse sentido, não corresponde a um adicional ou a um adicionamento, mas a um imposto autónomo (sobre o conceito de adicional e de adicionamento, cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 11.ª edição, Coimbra, pág. 79; no sentido da qualificação do ASSB como imposto, Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. cit., pág. 92, e a decisão arbitral proferida no Processo n.º 504/2021-T).”.
14. Ora, com base na argumentação acabada de citar, também este Tribunal Arbitral entende que o ASSB é um tributo que se qualifica como um imposto, o que de resto também é consensual entre as partes. Por conseguinte, o Tribunal Arbitral julga-se materialmente competente para conhecer do pedido.
15. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
16. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é a sucursal em Portugal do B..., instituição de crédito de direito Espanhol, que tem sede e administração efectiva em Espanha;
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Essa instituição espanhola assegura a sua presença em Portugal através da Requerente;
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Em 15 de Dezembro de 2020, a Requerente procedeu à autoliquidação do ASSB referente à média anual dos saldos finais do passivo de cada mês relativo às contas do primeiro semestre de 2020, mediante a submissão da declaração Modelo 57;
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Na sequência da submissão daquela declaração foi apurado um montante de ASSB no valor de € 208.826,77, que foi integralmente pago pela Requerente;
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Inconformada, a Requerente apresentou reclamação graciosa quanto à autoliquidação do ASSB em causa (relativa ao primeiro semestre de 2020);
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A reclamação graciosa foi totalmente indeferida, de forma expressa, no final de 2023;
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Em 22 de fevereiro de 2023 a Requerente apresentou o presente pedido arbitral.
§2 – Factos não provados
17. Com relevo para a decisão do presente processo, não existem factos que se tenham considerado como não provados.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
18. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, tendo sido valorados e apreciados de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos, conforme resulta do artigo 16.º, alínea e) do RJAT e dos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC , aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
§1 – Ordem de conhecimento dos vícios
19. Uma vez que a Requerente imputou diversos vícios ao acto de autoliquidação aqui contestado, cumpre fixar a respectiva ordem de apreciação, tendo presente que não foi invocado nenhum vício conducente à nulidade daquele acto; mas tão só vícios conducentes à mera anulabilidade. Quanto a estes, prevê-se no artigo 124.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do CPPT aplicável ex vi artigo 19.º, n.º 1, alínea a) do RJAT que sempre que os vícios não sejam imputados numa relação de subsidiariedade – como acontece no presente caso –, o julgador deverá fixar, segundo o seu prudente critério, a ordem que assegurar a mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos. Assim, será apreciada em primeiro lugar a violação do princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal, em segundo lugar a violação do princípio da igualdade, em terceiro lugar a violação da lei de enquadramento orçamental e, por fim, a violação do direito da União Europeia invocada pela Requerente. A título prévio, cumpre ainda enquadrar, em traços gerais, o regime jurídico do ASSB.
§2 – Enquadramento jurídico do ASSB
20. O regime jurídico do ASSB consta no artigo 18.º e respectivo anexo VI da Lei n.º 27‑A/2020, de 24 de Julho, que aprovou o Orçamento Suplementar para 2020. O intuito da sua criação residiu no reforço dos mecanismos de financiamento do sistema de segurança social através da consignação ao FEFSS da receita arrecadada com a respectiva cobrança, conforme resulta do n.º 2, do artigo 1.º e do artigo 9.º do citado anexo VI. A criação do ASSB e a sua aplicação exclusiva ao sector bancário foi justificada, de acordo com o estabelecido no n.º 2, do artigo 1.º, do referido anexo VI, enquanto forma de compensação pela isenção de IVA aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando por esta via a carga fiscal suportada pelo sector financeiro à que onera os demais sectores.
21. Relativamente à incidência subjectiva deste imposto, previu-se no artigo 2.º, n.º 1, do citado anexo VI que são sujeitos passivos do ASSB (a) as instituições de crédito residentes em Portugal, (b) as filiais em Portugal de instituições de crédito residentes noutros Estados e (c) as sucursais em Portugal de instituições de crédito residentes noutros Estados. Para efeitos de aplicação do ASSB deve entender-se por instituições de crédito, filiais e sucursais as entidades definidas nas alíneas u), w) e ll) do artigo 2.º-A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.
22. Quanto à incidência objectiva, determinou-se no artigo 3.º do citado anexo VI que o ASSB incide sobre o passivo ajustado e sobre o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço, ambos apurados contabilisticamente no final do exercício. Em concreto, determinou-se naquele artigo o seguinte:
“Artigo 3.º
Incidência objetiva
O adicional de solidariedade sobre o sector bancário incide sobre:
a) O passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos deduzido, quando aplicável, dos elementos do passivo que integram os fundos próprios, dos depósitos abrangidos pela garantia do Fundo de Garantia de Depósitos, pelo Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo ou por um sistema de garantia de depósitos oficialmente reconhecido nos termos do artigo 4.º da Directiva 2014/49/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativa aos sistemas de garantia de depósitos ou considerado equivalente nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 156.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, dentro dos limites previstos nas legislações aplicáveis, e dos depósitos na Caixa Central constituídos por caixas de crédito agrícola mútuo pertencentes ao sistema integrado do crédito agrícola mútuo, ao abrigo do artigo 72.º do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 24/91, de 11 de janeiro;
b) O valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço apurado pelos sujeitos passivos.
23. A quantificação da base de incidência, no que concerne à delimitação do passivo, é feita no artigo 4.º do citado anexo VI da seguinte forma:
“Artigo 4.º
Quantificação da base de incidência
1 – Para efeitos do disposto na alínea a) do artigo anterior, entende-se por passivo o conjunto dos elementos reconhecidos em balanço que, independentemente da sua forma ou modalidade, representem uma dívida para com terceiros, com exceção dos seguintes:
a) Elementos que, segundo as normas de contabilidade aplicáveis, sejam reconhecidos como capitais próprios;
b) Passivos associados ao reconhecimento de responsabilidades por planos de benefício definido;
c) Os depósitos abrangidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos e pelo Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo relevam apenas na medida do montante efetivamente coberto por esses Fundos;
d) Passivos resultantes da reavaliação de instrumentos financeiros derivados;
e) Receitas com rendimento diferido, sem consideração das referentes a operações passivas; e
f) Passivos por ativos não desreconhecidos em operações de titularização.
2 – Para efeitos do disposto na alínea a) do artigo anterior, observam-se as regras seguintes:
a) O valor dos fundos próprios, incluindo os fundos próprios de nível 1 e os fundos próprios de nível 2, compreende os elementos positivos que contam para o seu cálculo de acordo com o disposto na parte II do Regulamento (UE) 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento e que altera o Regulamento (UE) n.º 648/2012, tendo em consideração as disposições transitórias previstas na parte X do mesmo Regulamento que, simultaneamente, se enquadrem no conceito de passivo tal como definido no número anterior;
b) Os depósitos abrangidos pela garantia do Fundo de Garantia de Depósitos, pelo Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo ou por um sistema de garantia de depósitos oficialmente reconhecido nos termos do artigo 4.º da Directiva 2014/49/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, ou considerado equivalente nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 156.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, dentro dos limites previstos nas legislações aplicáveis relevam apenas na medida do montante efetivamente coberto por esses Fundos.”.
24. Por fim, cumpre ter em consideração que em paralelo à criação do ASSB foi estabelecida uma disposição transitória no artigo 21.º, n.º 1 da Lei n.º 27‑A/2020, de 24 de Julho, na qual se previu o seguinte:
“Artigo 21.º
Disposição transitória
1 – Em 2020 e 2021, a liquidação e o pagamento do adicional de solidariedade sobre o setor bancário previsto no regime que consta do anexo VI à presente lei efetua-se de acordo com as seguintes regras:
a) A base de incidência apurada nos termos dos artigos 3.º e 4.º do regime é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, e nas contas relativas ao segundo semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2021, publicadas em cumprimento da obrigação estabelecida no Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2019, de 31 de janeiro, que atualiza o enquadramento normativo do Banco de Portugal sobre os elementos de prestação de contas;
b) A liquidação é efetuada pelo próprio sujeito passivo, através de declaração de modelo oficial aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, que deve ser enviada até ao dia 15 de dezembro de 2020 e 2021, respetivamente;”.
§3 – Princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal
25. No presente processo coloca-se a questão de apurar se o regime transitório do ASSB acima transcrito viola ou não os limites temporais que resultam do princípio constitucional que proíbe a criação de impostos retroactivos. Esta precisa questão foi apreciada pelo Tribunal Arbitral no acórdão proferido no processo n.º 502/2021-T, em termos aos quais se adere e que aqui se reproduzem de seguida:
26. O princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal, que decorre do princípio da segurança jurídica, encontra-se constitucionalmente consagrado no artigo 103.º, n.º 3 da CRP, no qual se determina que “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.”.
27. A proibição constante daquela norma no domínio dos impostos – onde se enquadra, como se viu, o ASSB –, tem sido tradicionalmente analisada pelo Tribunal Constitucional com base na dicotomia estabelecida entre a retroactividade autêntica/própria/forte/pura e a retroactividade inautêntica/imprópria/fraca/impura. Enquanto o primeiro tipo ou grau de retroactividade ocorre nas situações em que uma lei nova se aplica a factos totalmente verificados em momento anterior à sua entrada em vigor, o segundo tipo ou grau de retroactividade verifica-se nas situações em que a lei nova se aplica a factos passados que iniciaram a sua formação antes da respectiva entrada em vigor mas que ainda não se formaram totalmente e continuam a produzir efeitos já na vigência desta.
28. No entender “tradicional” do Tribunal Constitucional, só o primeiro tipo ou grau de retroactividade está abrangido pela proibição de retroactividade prevista no artigo 103.º, n.º 3 da CRP. Neste sentido, vejam-se as considerações feitas por aquele Tribunal no acórdão n.º 175/2018, proferido em 5 de Abril de 2018, no âmbito dos processos n.ºs 175/2017 e 246/2017:
“Até à explicitação no texto da Constituição da proibição da retroatividade em matéria fiscal, levada a cabo no âmbito da revisão no âmbito da revisão constitucional de 1997, o Tribunal Constitucional vinha aferindo a constitucionalidade das leis fiscais retroativas com recurso ao método de ponderação inerente ao controlo da constitucionalidade das leis baseado no princípio da proteção da confiança. No desenvolvimento da orientação fixada no Parecer da Comissão Constitucional n.º 25/81 (Pareceres da Comissão Constitucional, 16º Vol., p.257), firmou-se na jurisprudência constitucional o entendimento segundo o qual a retroatividade das leis fiscais seria constitucionalmente legítima sempre que não ferisse «de forma inadmissível ou intolerável, a certeza e a confiança na ordem jurídica dos cidadãos por ela afetados; ou que não trai[sse], de forma arbitrária e injustificada, as expectativas juridicamente tuteladas e criadas na esfera jurídica dos cidadãos ao abrigo das disposições vigentes à data da ocorrência dos factos que as geraram» (cf. Acórdãos nºs 41/90 e 1006/96).
Procurando lançar luz sobre a ambiguidade e a incerteza que, em razão dos critérios necessariamente fluídos de controlo, vinha caracterizando a jurisprudência constitucional em matéria de leis fiscais retroativas (neste sentido, cf. Acórdão n.º 128/2009), o legislador constituinte optou por consagrar, em termos tão enfáticos quanto precisos, a proibição de cobrança de impostos retractivos, objetivando-a no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição.
Após tal alteração, o Tribunal passou a interpretar a proibição de leis fiscais retroativas não já na base ponderativa em que o vinha fazendo até 1997 – isto é, em função das circunstâncias informadoras da relação jurídico-tributária afetada pela aplicação da nova lei –, mas antes em termos objetivos, informados pela contraposição entre retroatividade autêntica (ou pura) e retroatividade inautêntica (ou impura) ou retrospetividade: de acordo com o entendimento desde então reiteradamente expresso na jurisprudência do Tribunal, a proibição de retroatividade em matéria de impostos consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, apenas abrange as situações de retroatividade autêntica, mas não já as de retroatividade inautêntica e de retrospetividade (cf., a título de exemplo, os Acórdãos n.º 128/2009, n.º 85/2010, n.º 399/2010).
Reproduzindo a formulação já anteriormente seguida no Acórdão n.º 67/2012, tal entendimento foi sintetizado no Acórdão n.º 85/2013, tirado em Plenário, nos termos seguintes:
«2. Conforme se disse, o tribunal recorrido recusou a aplicação da norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, por violação do princípio da proibição da retroatividade fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Esta norma constitucional dispõe que «Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
Sendo o poder de lançar impostos inerente à noção de Estado, como manifestação da sua soberania, perante um longo passado de abusos e arbitrariedades, a introdução do princípio da legalidade nesta matéria veio conferir-lhe um estatuto de cidadania no mundo do Direito.
Assim, para que o Estado possa cobrar um imposto ele terá que ser previamente aprovado pelos representantes do povo e terá que estar perfeitamente determinado em lei geral e abstrata, só assim se evitando que esse poder possa ser exercido de forma abusiva e arbitrária, indigna de um verdadeiro Estado de direito.
Por outro lado, o mesmo princípio da legalidade não poderá deixar de impedir que a lei tributária disponha para o passado, com efeitos retroativos, prevendo a tributação de atos praticados quando ela ainda não existia, sob pena de se permitir que o Estado imponha determinadas consequências a uma realidade posteriormente a ela se ter verificado, sem que os seus atores tivessem podido adequar a sua atuação de acordo com as novas regras.
Esta exigência revela as preocupações do princípio da proteção da confiança dos cidadãos, também ele princípio estruturante do Estado de direito democrático, refletidas na vertente do princípio da legalidade, segundo o qual, a lei, numa atitude de lealdade com os seus destinatários, só deve reger para o futuro, só assim se garantindo uma relação íntegra e leal entre o cidadão e o Estado.
É neste sentido que deve ser entendida a opção do legislador constituinte de, na revisão constitucional de 1997, consagrar no artigo 103.º, n.º 3, a regra da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável. Com esta alteração constitucional não se visou explicitar uma simples refração do princípio geral da proteção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a atividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impostos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstrato de grave violação daquela confiança.
O Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento que esta proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (v.g. acórdãos n.º 128/2009, 85/2010 e 399/2010, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt)».
Pese embora o entendimento recentemente preconizado no Acórdão n.º 171/2017 – de acordo com o qual «o n.º 3 do artigo 103.º da Constituição deve ser interpretado como estabelecendo um princípio (…) de não-retroatividade da lei fiscal», sujeito ao «método de ponderação que tem sido reservado para os casos de retroatividade dita inautêntica» –, continua a poder retirar-se da orientação desde há muito sufragada na jurisprudência deste Tribunal que a proibição da retroatividade fiscal consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, para além de «sancionar, de forma automática», «a mera natureza retroativa de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares» (Acórdão n.º 128/2009), apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo somente os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular produziu já todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga; excluídas do âmbito de aplicação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, encontram-se, por isso, as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, isto é, aquelas em que a lei nova é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede com as normas fiscais que produzem um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga, continuando a formar-se sob a vigência da nova lei (cf. Acórdão n.º 267/2017, bem como os Acórdãos n.ºs 617/2012 e 85/2013, que, por sua vez, remetem para os Acórdãos n.ºs 128/2009, 85/2010 e 399/2010)”.
29. Ora, no presente caso a Requerente autoliquidou o ASSB em Dezembro de 2020 por referência “à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020”. Está, assim, em causa, um facto tributário de natureza complexa, que apenas se verifica com a média do semestre, ou seja, no final do sexto mês. Significa isto que por força da aplicação das normas constantes do artigo 21.º, n.º 1, alíneas a) e b) da Lei n.º 27‑A/2020, de 24 de Julho foi liquidado imposto por referência a um conjunto de factos totalmente verificados antes da entrada em vigor do ASSB.
30. Tal conclusão não é passível de ser afastada, conforme defende a Requerida com alusão ao regime da CSB, pelo facto de nos termos do artigo 3.º do anexo VI da Lei n.º 27‑A/2020, de 24 de Julho a base de incidência do ASSB depender da aprovação das contas e não do encerramento do exercício. É que relativamente ao primeiro semestre de 2020 determina-se no regime transitório que o imposto será liquidado até 15 de Dezembro de 2020, o que significa que neste específico caso o legislador não associou a verificação do facto tributário à aprovação de contas que apenas ocorreria em 2021, mas antes ao mero saldo contabilístico do passivo apurado pela Requerente ainda antes do encerramento do exercício.
31. Neste mesmo sentido tem concluído a jurisprudência dos Tribunais Arbitrais que se pronunciaram sobre o tema, designadamente nos processos n.ºs 504/2021-T, 598/2022-T, 599/2022-T, 21/2023-T, 104/2023-T, 327/2023-T, 328/2023-T e 379/2023-T. Por todos, vejam‑se as considerações do Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 21 de Março de 2023, no âmbito do processo n.º 598/2022-T:
“(…) deve começar por dizer-se que a CSB e o ASSB, embora possuam uma estrutura de incidência similar, não são coincidentes quanto ao método de quantificação da base de incidência quando esteja em causa a liquidação do ASSB devido em 2020.
Tal como prevê para a CSB o artigo 3.º, alínea a), da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, o ASSB, nos termos da disposição homóloga do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, igualmente incide sobre o “passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos”, estatuindo o artigo 4.º, n.º 4, quanto à quantificação da base de incidência, que “a base de incidência apurada nos termos do artigo 3.º e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte”.
No entanto, a norma transitória do artigo 21.º da mesma Lei, determina, na sua alínea a), que, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, “a base de incidência apurada nos termos dos artigos 3.º e 4.º do regime é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020”.
O acórdão do STA de 19 de junho de 2019 (Processo n.º 023/40/13), analisando a CSB aplicada ao ano de 2011, à luz da referida disposição do artigo 3.º, alínea a), da Lei n.º 55-A/2010, afastou a violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, com base na seguinte argumentação:
O facto tributário correspondente à CSB do ano de 2011 (-) é constituído pelos passivos apurados e aprovados pelo sujeito passivo (deduzidos dos fundos próprios de base (Tier 1), dos complementares (Tier 2) e dos depósitos abrangidos do Fundo de Garantia de Depósitos) no próprio ano em que é devida a contribuição (artigo 3º do regime da CSB, e artigo 6.º da Portaria nº 121/2011, de 30 de março). Ou seja, em 2011. Daí que (…) o facto tributário só tenha emergido na ordem jurídica com a aprovação do passivo e no ano em que a mesma ocorreu (embora respeitando ao ano económico anterior ao ano da aprovação), sendo que, para além de não se configurar, nesses termos, tributação assente em facto sucessivo, também a própria contribuição se objetiva apenas com o apuramento e aprovação do respetivo passivo e na medida deste (-). O facto tributário assim configurado verificou-se após o início da vigência do regime da CSB (1 de janeiro de 2011). E como se salienta na sentença, o momento relevante a considerar é o da aprovação das contas e não o do encerramento do exercício, sendo que nas instruções constantes da declaração modelo 26 (cfr. o anexo à Portaria) constava igualmente a indicação de que «[a] base de incidência apurada é sempre calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas aprovadas no próprio ano em que é devida a contribuição.
Conclui o acórdão, neste condicionalismo, que não há aplicação da lei nova a factos tributários integralmente verificados ou cujos efeitos estivessem integralmente produzidos e verificados no domínio da lei antiga, ou seja, antes da entrada em vigor da lei nova.
Todavia, um tal entendimento não é transponível para o adicional de solidariedade devido em 2020, segundo a regulamentação que consta da citada norma transitória do artigo 21.º da Lei n.º 27-A/2020, que, como se viu, prevê que a base de incidência seja calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020.
O adicional é calculado com base numa média relativa ao primeiro semestre de 2020, e embora deva haver correspondência entre os saldos de cada mês, nesse semestre, e os saldos que constem das contas anuais relativas ao mesmo semestre, o certo é que a eventual divergência entre o saldo médio que serviu de base à liquidação do imposto e os saldos mensais aprovados nas contas anuais, apenas poderá justificar a correção aritmética, por parte da Autoridade Tributária, com base na verificação de erros ou omissões que determinem a exigência de um valor do adicional superior ao liquidado, tal como prevê o artigo 6.º, n.º 2, do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020.
Ou seja, a exigida correspondência entre o saldo médio relativo ao primeiro semestre e os saldos finais de cada mês considerados nas contas anuais não salvaguarda a retroatividade do imposto, visto que a aprovação das contas referentes a 2020, incluindo as do primeiro semestre, em atenção ao disposto no artigo 65.º, n.ºs 1 e 5, do Código das Sociedades Comerciais, só pode ocorrer após o encerramento de cada exercício anual, e, portanto, após o período de tributação a que respeita o imposto (cfr. PINTO FURTADO, Curso de Direito das Sociedades, 4.ª edição, Coimbra, pág. 481).
Tendo em consideração que, no que se refere ao adicional devido em 2020, o sujeito passivo deve efetuar a liquidação do imposto até 15 de dezembro de 2020, não será possível ao contribuinte certificar, através das contas anuais, a média de saldo que serviu de base à liquidação, e, sendo assim, não há qualquer dúvida que o facto tributário que origina o imposto é o mero apuramento contabilístico da média dos saldos do passivo relativamente ao primeiro semestre.
Como explicita, a citada decisão arbitral n.º 504/2021-T, à data da liquidação do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, ainda se não encontra encerrado o exercício nem aprovadas as contas, pelo que o facto tributário que a norma erige para efeito de liquidação não é a aprovação das contas, mas o facto material da verificação de existência do passivo através dos dados inscritos na contabilidade, e que necessariamente ocorre ainda antes da entrada em vigor da Lei n.º 27‑A/2020.
A questão suscitada no presente processo não tem, pois, qualquer correspondência com a que foi analisada no citado acórdão do STA de 19 de junho de 2019 relativamente à CSB, em que se considerou como momento relevante para a exigência do tributo o da aprovação das contas, tendo em consideração que, nesse caso, a base de incidência apurada é sempre calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas aprovadas no próprio ano em que é devida a contribuição.
Por conseguinte, a norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27‑ A/2020, de 24 de julho, é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, pelo que a liquidação do adicional de solidariedade sobre o sector bancário, relativa ao ano de 2020, enferma de ilegalidade.”.
32. Mais recentemente, pronunciou-se também o Tribunal Constitucional sobre esta mesma e exata questão, no acórdão n.º 149/2024, proferido em 27 de Fevereiro de 2024, no âmbito do processo n.º 638/2022, no qual julgou inconstitucional a norma contida no regime transitório do ASSB aqui em análise, ao que importa, com base nos seguintes argumentos:
“Em suma, o ASSB só pode qualificar-se como imposto, pelo que a regra da proibição da retroatividade será aferida à luz do disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
2.5 Recordemos, antes de mais, que a norma transitória sub judice prevê que a base de incidência prevista no Regime do ASSB, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020 publicadas em cumprimento da obrigação estabelecida no Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2019, de 31 de janeiro, que atualiza o enquadramento normativo do Banco de Portugal sobre os elementos de prestação de contas.
Considerando que o ASSB foi criado pela Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que entrou em vigor em 25/07/2020, salta à vista que os factos tributários principais se situam no passado relativamente à publicação e entrada em vigor daquele diploma.
A recorrida AT invoca que “[…] o que releva na formação do facto tributário sujeito a ASSB é o momento do apuramento e aprovação das contas e não o «facto material de contabilisticamente ser apurada a existência de passivo»” e que “[…] a formação do facto tributário no ASSB só se verifica com o apuramento e aprovação das contas”. O argumento, porém, não convence. Poderia, eventualmente, relevar se o imposto não tivesse de ser pago ainda no ano 2020, até 15 de dezembro (artigo 21.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho), o que implica, naturalmente, que o facto tributário se encontre totalmente verificado. Não vale, pois, para esta hipótese, designadamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (referida no Acórdão n.º 268/2021, ao apreciar a questão prévia da utilidade do recurso), relativa à Contribuição sobre o Setor Bancário.
Afirmar, como faz a AT, que a “formação do facto tributário do ASSB relativo ao primeiro semestre de 2020, não se prescinde dessas ‘complexas operações de avaliação’ nem se pode deixar de ter em conta os ‘ajustamentos posteriores à data de balanço’, que se verificam com o apuramento e aprovação das contas”, quando essas contas apenas podem ser aprovadas em 2021, após o encerramento do exercício anual (cfr. artigo 65.º do Código das Sociedades Comerciais), e o imposto tem de ser liquidado em dezembro de 2020 é um contrassenso. Ao situar a liquidação ainda em 2020, o legislador não pode invocar um facto tributário ainda em formação, porque a liquidação, enquanto ao final que determina o montante de imposto a pagar, pressupõe necessariamente um facto tributário já formado. De todo o modo, é impossível ao contribuinte certificar as contas mediante um ato que ainda não praticou. Na verdade, a norma transitória contida no artigo 21.º, n.º 1, alínea a), Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, é incompatível com a previsão do regime do ASSB que a AT usa na sua argumentação, porque o artigo 4.º, n.º 4, daquele regime estabelece a base de incidência “[…] por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte”, o que se mostra simplesmente inconciliável com os prazos previstos na norma transitória. Aliás, se assim não fosse, a norma transitória seria inútil.
Sublinhe-se, ainda, que não está em causa, nos presentes autos, a recusa da norma prevista no n.º 2 do artigo 21.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que disciplina a obrigação de pagamento na ausência da publicação das contas semestrais nos termos do Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2019, de 31 de janeiro. Assim sendo, só releva a obrigação de publicação de contas semestrais, que existe para instituições de crédito, empresas de investimento e instituições financeiras nos termos do referido aviso, que remete para os termos previstos no Código dos Valores Mobiliários (artigos 2.º, alínea a), e 7.º, n.º 2, do Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2019, de 31 de janeiro). Essa obrigação, quando existente (cfr. artigos 246.º, n.º 1, e 244.º, n.º 1, do Código dos Valores Mobiliários, na redação, aqui relevante, decorrente do Decreto-Lei n.º 22/2016, de 3 de junho), devia ser cumprida tão cedo quanto possível e decorridos, no máximo, três meses após o termo do primeiro semestre do exercício, relativamente à atividade desse período (artigo 246.º, n.º 1, do Código dos Valores Mobiliários, na aludida redação, correspondente ao atual artigo 29.º-J, n.º 1, do referido código), o que significa que a publicação das contas semestrais “tão cedo quanto possível” podia ter ocorrido antes de 25/07/2020, data de entrada em vigor da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho.
Em suma, é apenas o apuramento contabilístico do saldo médio do primeiro semestre de 2020 – e não o seu reflexo nas contas anuais – que releva para a incidência do imposto, pelo que a respetiva tributação por lei entrada em vigor em 25/07/2020 só pode ter-se como irremediavelmente retroativa e, consequentemente, violadora do disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.”.
33. Em face do exposto, e sem necessidade de mais repetições que não contribuiriam para a economia processual que se reclama, julga este Tribunal Arbitral materialmente inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3 da CRP, a norma consagrada no artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27‑A/2020, de 24 de Julho. Por conseguinte, é ilegal o acto de autoliquidação do ASSB referente ao primeiro semestre de 2020, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que sobre ele versou, impondo-se a respectiva anulação em conformidade.
34. Uma vez que a Requerente obteve já vencimento quanto ao peticionado, fica prejudicada, porque inútil e proibida no processo por força do disposto no artigo 130.º do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, a apreciação dos demais vícios imputados aos actos tributários contestados.
§4 – Juros indemnizatórios
35. Cumpre, por fim, apreciar o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.
36. A este respeito, determina-se no artigo 43.º da LGT, ao que aqui importa, o seguinte:
“Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
(…)
3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”.
37. No presente caso, o acto de autoliquidação de ASSB foi julgado ilegal em consequência da declaração de inconstitucionalidade da norma consagrada no artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27‑A/2020, de 24 de Julho em que aquele se fundou, razão pela qual são devidos juros indemnizatórios, à taxa legal devida, calculados desde a data do pagamento até ao reembolso integral do imposto indevido, por preenchimento de todos os requisitos do artigo 43.º da LGT.
V. DECISÃO
Termos em que se decide:
-
Declarar inconstitucional a norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27‑A/2020, de 24 de Julho, na parte referente ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, por violação do princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da CRP;
-
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência, declarar ilegais e determinar a consequente anulação do acto de autoliquidação de ASSB contestado e do acto de indeferimento da reclamação graciosa que sobre ele versou;
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E, consequentemente, ordenar a devolução ao Requerente da quantia de imposto por ele paga, no valor de 208.826,77€
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Acrescida de juros indemnizatórios, calculados sobre a quantia paga, à taxa legal, desde a data do pagamento (15/12/2020) até à data do processamento da respetiva nota de crédito
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Condenar o Requerida no pagamento das custas do processo
VI. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 208.826,77.
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 4.284,00, a suportar pela Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
VIII. NOTIFICAÇÃO AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 3, do RJAT, notifique-se o representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo Sul, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional.
Porto, 9 de abril de 2024
A Árbitra Presidente,
Carla Castelo Trindade
O Árbitro Adjunto,
Tomás Cantista Tavares (relator)
O Árbitro Adjunto,
João Pedro Rodrigues