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Sumário:
I-Tendo sido efetuada uma liquidação de IRS, datada de 6.09.2019, referente ao ano de 2018, com o valor de 20.885,56 €, que foi paga e vindo a ser efetuada, em 28 de novembro de 2022, uma liquidação adicional do mesmo imposto referente ao mesmo período tributário, da qual resultou o valor a pagar de 36.152, 92 €, este novo ato tributário é inovador e lesivo, sendo consequentemente impugnável.
II-Tendo o sujeito passivo adquirido por doação a nua propriedade de prédio rústico onde veio a ser edificado um prédio urbano destinado a habitação, vendido em 2018, após renúncia ao usufruto pelos respetivos titulares, o valor de aquisição considerado para efeitos de mais valias não pode assentar no valor patrimonial tributário do prédio rústico adquirido, sendo de considerar o valor de aquisição previsto no art. 46º, nº 3, do CIRS, bem como o estabelecido no artigo 45º do mesmo Código no que respeita à expansão do direito de propriedade decorrente da renúncia ao usufruto.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. No dia 25.07.2023, o Requerente, A..., contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua..., n.º ..., Parede, requereu ao CAAD a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação da liquidação de IRS com o número 2022..., referente ao ano de 2018.
A Requerente peticiona, ainda, a condenação da Requerida à devolução do montante de €20.885,56 (vinte mil, oitocentos e oitenta e cinco euros e cinquenta seis cêntimos), que alega ter pagado indevidamente por conta do crédito tributário, acrescido de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, nos termos do artigo 43.º da LGT .
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 3.10.2023.
3. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:
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Em 7 de dezembro de 2022, o Impugnante foi notificado do ato tributário de liquidação do imposto em sede de IRS com o número ..., referente ao ano de 2018.
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A AT apurou através da demonstração de liquidação de IRS um crédito de €57.038,48 (cinquenta e sete mil, trinta e oito euros e quarenta e oito cêntimos), a que deduziu a quantia de €20.885,56 (vinte mil, oitocentos e oitenta e cinco euros e cinquenta e seis cêntimos) que o Requerente já havia pagado por conta do crédito tributário.
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Considerando, por conseguinte, em dívida o montante de €36.152,92 (trinta e seis mil, cento e cinquenta e dois euros e noventa e dois cêntimos), à data de 11 de janeiro de 2023.
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O Impugnante não reconhece a dívida ora mencionada, por considerar que a liquidação de IRS do ano de 2018, enferma de ilegalidade, face aos motivos explanados em sede de reclamação graciosa apresentada em 1 de fevereiro de 2023.
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Em 14 de novembro de 1994, o sujeito passivo, ora impugnante, por via de uma doação, passou a ser titular da nua propriedade do imóvel sito na Rua ..., na união das freguesias de ... e ..., concelho do Cartaxo, que à data se tratava de um prédio rústico com a área de mil cento e sessenta metros quadrados, tendo sido atribuído o valor de €1.246,99 (mil, duzentos e quarenta e seis euros e noventa e nove cêntimos) à nua propriedade do imóvel que foi doado ao sujeito passivo.
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Contudo, não poderá a AT desconhecer que posteriormente o imóvel em questão passou a ter natureza urbana, a que foi atribuído o valor patrimonial tributário de €170.820,00 (cento e setenta mil, oitocentos e vinte euros).
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À data da venda do imóvel supra identificado, que ocorreu em 31 de outubro de 2018, o valor patrimonial tributário do bem era €170.820,00 (cento e setenta mil, oitocentos e vinte euros), valor este aceite pela AT porquanto era este o valor mencionado na caderneta predial urbana à data da venda do imóvel e resultante da avaliação efetuada pela própria AT.
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Esta questão, omitida pela AT, reveste-se da maior importância para efeitos de liquidação do imposto devido, sendo que foi violado o n.º 3 do artigo 46.º do CIRS que preconiza o seguinte: “3 - O valor de aquisição de imóveis construídos pelos próprios sujeitos passivos corresponde ao valor patrimonial inscrito na matriz ou ao valor do terreno, acrescido dos custos de construção devidamente comprovados, se superior àquele.”
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O imóvel que foi vendido pelo sujeito passivo, ora Impugnante, era inexistente à data da sua doação e o que foi doado foi um prédio rústico.
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O imóvel vendido em 31 de outubro de 2018, pelo valor total de €300.000,00 (trezentos mil euros) respeita a um prédio urbano, pelo que, existe errónea quantificação dos rendimentos obtidos pelo sujeito passivo.
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O ato tributário em questão assume o valor patrimonial tributário do prédio rústico, ao invés do valor patrimonial tributário do prédio urbano.
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O ato de liquidação padece de ilegalidade pelo que deve ser anulado, porquanto a Administração Tributária não considerou o VPT de €170.820,00 (cento e setenta mil, oitocentos e vinte euros) do imóvel que foi vendido e construído pelo próprio sujeito passivo.
4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:
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Remete-se e dá-se como reproduzida a decisão de pronúncia da DSIRS, tendente à manutenção do ato ora posto em crise, verificando-se as exceções de caducidade do direito à ação, assim como, do caso decidido, por inimpugnabilidade do ato em virtude da intempestividade da reclamação graciosa, com os fundamentos expendidos nos pontos i) a iii) daquela pronúncia, com os quais se concorda.
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Na decisão de pronúncia da DSIRS, tendente à manutenção do ato, consta, além do mais, o seguinte:
“Após leitura e análise da matéria objeto do pedido de pronúncia arbitral, informa-se que não há razões para alterar a liquidação mencionada supra tendo em conta que:
i)A matéria relativamente à qual foi suscitada a apreciação do Tribunal Arbitral, reporta-se ao valor de aquisição do imóvel (prédio urbano inscrito na respetiva matriz sob o artigo n.º ... da união de freguesias de ... e ..., concelho do Cartaxo, melhor identificado nos autos) inscrito nos campos 4001 e 4002 da declaração de rendimentos do ano fiscal de 2018.
Ou seja, o requerente centra as suas alegações apenas nesta matéria: valor de aquisição do imóvel alienado em 2018.
ii) Por outro lado, saliente-se que houve lugar à reliquidação da declaração somente por não ter sido inscrito nas declarações (desse ano e/ou dos seguintes) o reinvestimento do montante total pretendido reinvestir.
Quer isto dizer que apenas esta questão (do reinvestimento) originou a reliquidação.
Quanto aos restantes valores inscritos pelo aqui recorrente no anexo G da Modelo 3 referente ao ano fiscal de 2018 (nomeadamente, valores de realização e de aquisição), não houve qualquer mexida por parte dos serviços.
Assim, a reclamação graciosa respeitante ao valor de aquisição, teria de ser efetuada relativamente à primeira liquidação (liquidação n.º 2019..., de 2019SET06, com valor a pagar de 20.885,56 €) e não relativamente à reliquidação (liquidação n.º 2022..., de 2022NOV2, com valor a pagar de 57.038,48 €).
Ora, relativamente à primeira declaração, a reclamação graciosa apresentada pelo sujeito passivo excede o prazo previsto para a interposição desse procedimento.
(…)
O processo gracioso de reclamação visa a anulação total ou parcial dos atos tributários por iniciativa dos contribuintes (n.º 1 do artigo 68º do Código de Procedimento e de Processo Tributário), sendo que o prazo para dedução da reclamação está previsto no artigo 70º n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, conjugado com o n.º 2 do artigo 140º do Código do IRS.
Assim, o decurso do prazo legalmente estabelecido para os contribuintes arguirem a ilegalidade da liquidação extingue o direito de reclamação do mesmo ato.
No caso presente, o prazo para interposição da reclamação graciosa foi manifestamente excedido, face à redação dos artigos mencionados supra.
Assim, e apesar do requerente ter presumido o indeferimento tácito, a reclamação graciosa deveria ter sido rejeitada por manifesta extemporaneidade.
iii) Essa circunstância (intempestividade da reclamação graciosa) obstará à apreciação do presente pedido de pronúncia arbitral.
Veja-se a esse propósito o Acórdão do TCA Sul, de 23/03/2017, processo n.º 07644/14, onde se refere expressamente que “Estando a reclamação graciosa fora de prazo à data em que foi apresentada, em consequência e independentemente da mesma ter sido ou não decidida, a impugnação judicial também será intempestiva.”.
À mesma conclusão se chega nos CAAD n.º 14/2022-T e 430/2022-T.
Como tal, sendo a petição de reclamação graciosa extemporânea, o indeferimento tácito é perfeitamente legal, e é improcedente o pedido de anulação do mesmo formulado como objeto imediato deste pedido de pronúncia arbitral.”
5. O Requerente pronunciou-se sobre a matéria de exceção alegada pela Requerida, nos termos seguintes:
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Não resulta da documentação junta aos autos a demonstração de que o impugnante foi validamente notificado da liquidação n.º 2019..., de 2019SET06. Pelo que,
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Expressamente se impugna que o impugnante tenha sido validamente notificado da liquidação n.º 2019..., de 2019SET06.
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Os documentos juntos aos autos pela AT constituem documentos internos elaborados pela própria, não oponíveis ao Impugnante.
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Termos em que, deverá ser julgada improcedente a exceção de caducidade do direito de ação.
6. Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.
Foi ainda dispensada a realização de alegações, nos termos do art. 18º, nº 2, do RJAT, “a contrario”.
6. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
7. Cumpre solucionar as seguintes questões:
1) Caducidade do direito à ação.
2) Inimpugnabilidade do ato em virtude da intempestividade da reclamação graciosa.
3) Ilegalidade do ato de liquidação impugnado.
4) Direito do Requerente à restituição de imposto e a juros indemnizatórios.
II – A matéria de facto relevante
8. Consideram-se provados os seguintes factos:
8.1. O Impugnante foi notificado do ato tributário de liquidação adicional do imposto em sede de IRS com o número 2022..., referente ao ano de 2018, emitida em 28 de Novembro de 2022, bem como da respetiva demonstração de acerto de contas por referência à primitiva liquidação de IRS referente ao mesmo período tributário, com o nº 2019..., tendo os atos notificados o seguinte teor:
(documento nº 1 junto pelo Requerente)
8.2.A tributação em causa reporta-se aos rendimentos do sujeito passivo provenientes da sua atividade profissional e, ainda, as mais-valias advenientes da venda de um prédio urbano
sito na Rua ..., na união das freguesias de ... e ..., concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º ..., da freguesia da ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo n.º ... .
8.3.Este prédio urbano foi implantado no prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia ..., Concelho do Cartaxo sob o artigo ... da secção H, no prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia da ..., Concelho do Cartaxo sob o artigo ... da secção H e no prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia da ..., Concelho do Cartaxo sob o artigo ... da secção H (documento nº 5 junto pelo Requerente em conjugação com escritura pública de renuncia a usufruto de 8.09.2017, contrato particular de compra e venda de 31.10.2018, ambos constante do processo administrativo junto pela Requerida e certidões prediais juntas pela Requerida em requerimento de 12.03.2024).
8.4.O impugnante adquiriu a nua propriedade do prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia da ..., Concelho do Cartaxo sob o artigo ... da secção H por doação que lhe foi feita no dia 14.11.1994 por B... que, na mesma data doou o usufruto do referido imóvel aos pais do impugnante C... e D... . (documento nº 4 junto pelo Requerente)
8.5.Pela apresentação 05 de 21.11.1994 foi registada a favor do Requerente na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo a nua propriedade dos prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos artigo ... da secção H e ... da secção H, ambos inscritos na matriz predial da freguesia da ..., Concelho do Cartaxo, por doação e na mesma data pela apresentação 06 foi registado o usufruto sobre os referidos imóveis a favor dos pais do impugnante C... e D..., também por doação. (certidão predial juntas pela Requerida em requerimento de 12.03.2024)
8.6. Por escritura pública de renuncia a usufruto 8.09.2017 os pais do impugnante C... e D... declararam renunciar ao usufruto que declararam ter sobre o imóvel referido em 8.2. do probatório. (escritura pública de renuncia a usufruto de 8.09.2017, constante do processo administrativo junto pela Requerida e também junto pela Requerida em requerimento de 12.03.2024).
8.7.Da caderneta predial do prédio referido em 8.2. datada de 30.07.2007, consta como titular do imóvel o pai do impugnante C... (documento nº 5 junto pelo Requerente)
8.8.Na declaração modelo 3 referente aos rendimento do ano de 2018 o impugnante declarou a mais-valia resultante da venda do imóvel indicando como valor de aquisição o valor patrimonial tributário de prédio rústico em que foi edificado o prédio urbano identificado no ponto 8.2 do probatório.
8.9.Quer na primitiva liquidação, quer na liquidação adicional o valor considerado para efeitos de aquisição do prédio urbano vendido foi o valor patrimonial tributário de prédio rústico onde o mesmo foi edificado.
8.10.Em 2 de Fevereiro de 2023 o Requerente, tendo sido notificado do ato de liquidação adicional de IRS com o nº 2022... apresentou reclamação graciosa contra este ato tributário.(documentos números 2 e 3 juntos pelo Requerente)
8.11.Até à data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral a reclamação graciosa apresentada pelo Requerente não havia sido objeto de decisão.
8.12.A primitiva liquidação de IRS, com o nº 2019..., datada de 6.09.2019,
foi paga pelo Requerente (documento nº 1 junto pelo Requerente)
Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados
9. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, supra indicados por referência a cada um dos pontos do probatório, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes,
Relativamente aos demais factos constantes do probatório a decisão quanto à consideração dos mesmos como provados resulta do acordo das partes quanto ao mesmos.
No caso dos factos dos pontos 8.8 e 8.9 a argumentação de ambas as partes assentam na sua ocorrência.
No caso dos factos dos pontos 8.2. e 8.11., a sua consideração como provados resulta da sua alegação pelo Requerente e na ausência de qualquer contestação da Requerida quanto à sua verificação.
-III- O Direito aplicável
Da matéria de exceção
10. Face à posição do Requerente de que “liquidou a quantia de €20.885,56 (vinte mil, oitocentos e oitenta e cinco euros e cinquenta e seis cêntimos), por conta do crédito tributário objeto do presentes autos“ e à posição da Requerida no sentido de que ” saliente-se que houve lugar à reliquidação da declaração somente por não ter sido inscrito nas declarações (desse ano e/ou dos seguintes) o reinvestimento do montante total pretendido reinvestir.
Quer isto dizer que apenas esta questão (do reinvestimento) originou a reliquidação.
Quanto aos restantes valores inscritos pelo aqui recorrente no anexo G da Modelo 3 referente ao ano fiscal de 2018 (nomeadamente, valores de realização e de aquisição), não houve qualquer mexida por parte dos serviços.” afigura-se -se pertinente tecer algumas considerações sobre os atos de liquidação de IRS praticados pela Requerida relativamente ao ano de 2018, tendo por sujeito passivo o Requerente.
Refere Paula Rosado Pereira:
“O nº 5 do artigo 10º do CIRS é, normalmente, referido como sendo uma norma de exclusão tributária. Sem nos afastarmos dessa designação geral, até por questões de comodidade de referência, não podemos deixar de precisar que, em rigor, nos casos de reinvestimento posterior se está perante uma suspensão de tributação aplicável mediante a simples manifestação, na declaração de rendimentos referente ao ano de realização, da intenção de proceder ao reinvestimento (artigo 57º, nº 4, al. a) do CIRS).
(…)
Se, todavia, vier a verificar-se que o sujeito passivo, afinal, não efetuou o reinvestimento ou que o fez apenas parcialmente, será sujeito a uma liquidação adicional de IRS (…)[1]”.
Por sua vez, escreve António Braz Teixeira:
“Diferentemente do que acontece nos casos de revogação ou reforma do acto tributário, nos casos de liquidação adicional o primitivo acto permanece intocado, com a sua inicial conformação, sendo, no entanto, completado por um acto novo, de idêntica natureza., que a ele acresce”[2]
Assim, é inequívoco que a Requerida praticou dois atos de liquidação:
- Liquidação n.º 2019..., de 6.09.2019, de que resultou um valor de imposto no montante de €20.885,56, que foi pago.
-Liquidação adicional número 2022..., de 28.11.2022, de que resultou um valor a pagar de € 36.152,92.
Esta conclusão não é posta em causa pela circunstância de na “DEMONSTRAÇÃO DE LIQUIDAÇÃO DE IRS” da liquidação adicional se recalcular o imposto abstraindo da 1ª liquidação, resultando, aparentemente, um valor a pagar referente à totalidade do facto tributário em causa. Na verdade, esta “DEMONSTRAÇÃO DE LIQUIDAÇÃO DE IRS” da qual consta a expressão “acerto” tem necessariamente de ser entendida em conjugação com a “DEMONSTRAÇÃO DE ACERTO DE CONTAS” Id. Documento ..., com a qual está intrinsecamente ligada.
Da conjugação dos dois documentos resulta, claramente, que o valor da liquidação adicional é de 36.152, 92 €.
Por outro lado, não se trata de mera “reliquidação“ como alega a Requerida. Trata-se, diferentemente, de liquidação adicional enquadrável no art. 89º do CIRS, que consiste em ato inovador (motivado, segundo a Requerida, pela não concretização da manifestada intenção de reinvestimento por parte do impugnante) do qual resultou um valor a pagar de € 36.152,92, adicionalmente ao que já havia resultado da primeira liquidação.
O impugnante veio pedir a anulação do “ato tributário de liquidação de IRS com o número..., referente ao ano de 2018”.
Este ato, que se traduz num valor adicional a pagar é, assim, inovador e lesivo, sendo naturalmente, impugnável, independentemente do ato primitivo, pelo que podia o contribuinte apresentar reclamação graciosa do mesmo. E tendo, desta liquidação adicional, apresentado a reclamação graciosa e o pedido de pronuncia arbitral nos prazos previstos na lei, improcedem as exceções suscitadas pela Requerida.
Do mérito aa Causa
11. Como supra se referiu o impugnante veio pedir a anulação do “ato tributário de liquidação de IRS com o número ..., referente ao ano de 2018”.
Deste ato de liquidação adicional número ..., resultou um valor a pagar de
€ 36.152,92.
Resulta da matéria de facto provada que este ato considerou, para efeitos de determinação de Mais-valia, o valor de aquisição de prédio rústico no qual o prédio urbano foi edificado.
Dos autos não emerge com segurança quem construiu o imóvel em causa. Mas resulta dos documentos juntos pela própria Requerida que os pais do Requerente foram titulares do direito ao usufruto sobre o prédio urbano em causa— a que renunciaram, nos termos da escritura publica a que se refere o nº 8.6 do probatório.
Tal constitui, na parte correspondente ao usufruto, aquisição gratuita para efeitos do art. 1º, nº 3, al. g), do Código de Imposto de Selo, relevante para efeitos de valor de aquisição do imóvel, nos termos do art. 45º, nº 1, al. b), do CIRS.[3]
Independentemente do que possa constar da declaração modelo 3 apresentada pelo contribuinte, esta renuncia era do conhecimento da AT que, demais, veio juntar aos autos a respetiva escritura pública, tendo assim o dever de considerar na liquidação este facto relevante para a tributação em causa, necessariamente tendo por referência, nos termos legais, o valor patrimonial tributário do prédio urbano. A sua não consideração, implica ilegalidade da liquidação, por vício de violação de lei, não podendo deixar de ser declarada anulação da liquidação impugnada, desde logo com este fundamento.
Por outro lado e independentemente da parte da aquisição gratuita correspondente ao usufruto, na parte remanescente, também não podia a Requerida, na tributação da mais-valia resultante da venda do prédio urbano destinado a habitação, considerar o valor de aquisição dum prédio rústico.
Apesar de tal ter sido assim declarado pelo sujeito passivo, é manifesto que tal não poderia em caso algum ter correspondência com a realidade. Se foi adquirido um prédio rústico e foi vendido uma casa de habitação, entre o momento da aquisição e da alienação, ocorreu necessariamente a edificação do prédio urbano, independentemente de quem procedeu à respetiva construção.
Dos elementos documentais constantes do processo, resulta que:
- Aquando da construção do imóvel o Requerente era titular da nua propriedade do terreno e seus pais titulares do respetivo usufruto.
- O imóvel foi inscrito na matriz em nome do pai do Requerente.
- Por escritura de 8.09.2017 os pais do Requerente declararam renunciar ao usufruto sobre o prédio urbano.
À face da lei nem o usufrutuário, nem o nu proprietário, poderiam, contra a vontade um do outro, proceder à edificação.
O usufrutuário não pode alterar a “forma ou substância” da coisa (art. 1439º do Código Civil), tendo de respeitar o seu “destino económico” (art. 1446º).
Por outro lado, como refere Luís Menezes Leitão” O proprietário de raiz permanece titular da propriedade sobre o bem, ainda que seja consideravelmente comprimida em consequência do usufruto. Pode, em consequência, praticar todos os actos que não impeçam nem limitem o uso da coisa por parte do usufrutuário.
(…)
O proprietário de raiz não pode, no entanto, constituir direitos que afectem o usufruto, a não ser com eficácia diferida ao termo do usufruto” (Direitos Reais, 2012, 3ª Edição, Almedina, pag. 331)
O certo é que o prédio foi edificado, tendo permanecido inscrito no registo predial o usufruto a favor dos pais do Requerente e a nua propriedade a favor deste.
Ora, nos termos do artigo 7º do Código do Registo Predial
“O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”
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Nesta medida, a existência do registo de nua propriedade sobre o prédio urbano a favor do Requerente constitui presunção da existência de tal direito.
Por outro lado, a inscrição do prédio na matriz a favor do usufrutuário decorre do art. 8º, nº 2, do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis.
Assim, face aos documentos carreadas para os autos, que não foram impugnadas pelas partes, é de considerar que o Requerente era titular da propriedade de raiz do prédio urbano em causa e os seus pais titulares do usufruto sobre o mesmo, não podendo deixar de se concluir, na ausência de invocação da ocorrência de acessão industrial imobiliária (arts. 1339º e segs. do Código Civil) que a edificação é juridicamente imputável ao Requerente. Daí que, o valor de aquisição a considerar, na falta de apresentação dos custos de construção, deveria ter sido o “valor patrimonial tributário inscrito na matriz” (art. 46º, nº 3, do CIRS).
Mas a solução seria idêntica, ou quase idêntica, se a construção tivesse sido efetuada por outra pessoa e transferida a título gratuito ou oneroso para o Requerente. No essencial, o valor de aquisição, em caso algum, poderia ser inferior ao valor patrimonial tributário do prédio urbano vendido (cfr. art. 45º, nº 1, do CIRS, art. 13º, nº 1, do Código do Imposto de Selo, no caso de transmissões gratuitas e art. 46º, nºs 1 e 2 do CIRS e art. 12º, nº 1, do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis).
Na hipótese mais desfavorável para o Requerente poderia ser aplicável o valor patrimonial tributário constante da matriz até aos dois anos anteriores à doação (art. 45º, nº 3, do CIRS).
Logo, a consideração pela Requerida como valor de aquisição do valor patrimonial tributário de prédio rústico é ilegal, padecendo o ato tributário, inquestionavelmente, do vício de violação de Lei, não podendo, em consequência, deixar de ser anulado, também com este fundamento.
De salientar que o ato que ora se anula é apenas o ato de liquidação adicional de IRS com o número ..., referente ao ano de 2018.
Foi este o ato impugnado e cuja anulação se requereu.
Deste ato de liquidação adicional resultou um valor a pagar de € 36.152,92.
O primitivo ato de liquidação, no valor de €20.885,56, que foi pago na sequência daquele ato tributário, não é objeto do presente processo, permanecendo na ordem jurídica, motivo pelo qual, manifestamente, improcede o pedido do Requerente à respetiva restituição o que implica também, necessariamente, a improcedência da pretensão de restituição de juros indemnizatórios.
-IV- Decisão
Assim, decide o Tribunal arbitral:
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Julgar parcialmente procedente o pedido e decretar a ilegalidade e consequente anulação da liquidação adicional de IRS 2022..., de 28.11.2022, de que resultou, em conjugação com a demonstração de acerto de contas Id. Documento ... um valor a pagar de € 36.152,92.
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Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida a devolver o valor de € 20.885, 56, e a pagar juros indemnizatórios.
Valor da ação: €57.038,48 (cinquenta e sete mil, trinta e oito euros e quarenta e oito cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A,n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas, no valor de 2 142.00 € (dois mil cento e quarenta e dois euros), a cargo pela Requerida na proporção de sessenta e três virgula quatro por cento e do Requerente na proporção de trinta e seis virgula seis por cento, nos termos do nº 4 do art. 22º do RJAT, ficando este dispensado do seu pagamento nos termos legais, em função do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique-se.
Lisboa, CAAD, 27.03.2024
O Árbitro
Marcolino Pisão Pedreiro
[1] MANUAL DE IRS, Almedina, 2018, pag. 204, nosso destaque.
[2] PRINCÍPIOS DE DIREITO FISCAL, Vol. I, 3ª Ed., 1993, Almedina, pag. 294, destaque nosso.
[3] Como se pode ler no sumário do acórdão da Relação do Porto de 18.03.2014, proferido no processo 45/11.3TBVNG.P1:
“I - Civilisticamente, a renúncia ao usufruto é uma causa de extinção do direito de usufruto e gera a expansão do direito de propriedade que, por via dele [do usufruto], se encontrava comprimido [reduzido à raiz ou nua propriedade].
II - Para efeitos fiscais, designadamente dos arts. 1º, 3º nº 3 al. a) e 13º nº6 do Código do Imposto de Selo, aquele acto integra o conceito de «transmissão gratuita» e está sujeito a imposto de selo.
III - No direito fiscal o conceito de «transmissão» não se identifica com o conceito matriz do direito civil, pois o que nele releva não é o ingresso deste ou daquele bem ou direito na esfera jurídico-patrimonial de determinado sujeito, mas sim a transmissão que faz com que a esfera patrimonial deste se veja aumentada ou enriquecida – o que se tributa é a transmissão de riqueza traduzida no incremento do património do contribuinte.”(consultável em “www.dgsi.pt”).