SUMÁRIO:
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Da interpretação conjugada dos elementos teleológico e sistemático das normas jurídico-fiscais e contabilísticas aplicáveis, deve resultar uma interpretação da Circular n.º 7/2020 no sentido de que não tendo o legislador expressamente previsto as taxas de depreciação dos ativos sob direito de uso, devem os mesmos ser depreciados “tendo em conta o período de vida útil esperada daqueles elementos”;
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O “período de vida útil esperada” (cf. artigo 31.º, n.º 3, do Código do IRC e do artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Regulamentar n.º 25/2009) corresponde ao período durante o qual se estima que um elemento do ativo seja utilizado pelo sujeito passivo, pelo que, no caso sub judice tal período corresponde à duração dos contratos de arrendamento em causa.
DECISÃO ARBITRAL
1- A..., LDA., sociedade com sede na ..., n.º..., ..., em Lisboa (...-...), com o número único de matrícula e de pessoa coletiva ..., vem, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea b), 6.º, n.º 2, alínea b) e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL COLETIVO com vista à declaração de ilegalidade do ato tributário consubstanciado na liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2023..., de 06.03.2023, na liquidação de juros compensatórios n.º 2023..., e na demonstração de acerto de contas n.º 2023..., de 08.03.2023, referente ao exercício de 2020.
2-A requerente usou da faculdade prevista no art.º 6º. nº. 2, alínea b), do RJAT e nomeou como árbitro o Sr. Dr. José Luís Ferreira, que aceitou a designação.
A Autoridade Tributária, notificada para o efeito, nomeou com árbitro o Sr. Dr. Henrique Fiúza, que aceitou a designação.
Os árbitros indicados pelas partes solicitaram ao CAAD a nomeação do árbitro para presidir ao presente Tribunal. Foi nomeada a Senhora Conselheira Fernanda Maças, a qual aceitou o cargo, não se tendo as partes oposto a tal designação.
O Tribunal Arbitral foi constituído no dia 28 de novembro de 2023, na sede do CAAD, sita na Avenida Duque de Loulé, n.º 72-A, em Lisboa, conforme comunicação da constituição do tribunal arbitral que se encontra junta aos presentes autos.
3-A fundamentar o pedido invoca a requerente, entre o mais, que:
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Os serviços de inspeção tributária consideraram que não deu cumprimento ao disposto no ponto 9. da Circular n.º 7/2020, o qual dispõe que: “Uma vez que não se encontram previstas taxas de amortização para os ativos sob direito de uso nas tabelas anexas ao Decreto-Regulamentar n.º 25/2009, é conforme ao princípio de utilidade económica do funcionamento dos bens que enforma o regime fiscal que o período de vida útil dos ativos sob direito de uso seja determinado atendendo às taxas das tabelas I e II dos ativos subjacentes”, o que levou os serviços de inspeção tributária a concluírem no relatório de inspeção que “(…) o sujeito passivo não procedeu de forma correta no cálculo das depreciações dos ativos sob direito de uso, no ano de 2020, uma vez que: (…) considerou uma taxa de depreciação superior à taxa máxima de 2% fiscalmente aceite e não expurgou o valor do terreno do valor do ativo, cuja depreciação não é fiscalmente aceite, em conformidade com o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 34 do CIRC, conjugadas com o n.º 1 do art.º 5.º e com os n.ºs 1 e 3 do art.º 10.º, ambos do DR 25/2009, e com a Circular 7/2020.” .
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Nesta sequência alega a Requerente, entre o mais, que: a) A interpretação defendida no parágrafo 9. da Circular n.º 7/2020, na qual os serviços de inspeção tributária fundamentam a correção em apreço, é ilegal por violação do artigo 31.º, n.º 3, do Código do IRC e do artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Regulamentar n.º 25/2009, porquanto, do elemento literal da interpretação da lei, resulta cristalino que não tendo o legislador expressamente previsto as taxas de depreciação dos ativos sob direito de uso, devem tais ativos ser depreciados “tendo em conta o período de vida útil esperada daqueles elementos.” [cf. subcapítulo A.1) infra]; b) O “período de vida útil esperada” (cf. artigo 31.º, n.º 3, do Código do IRC e do artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Regulamentar n.º 25/2009) corresponde ao período durante o qual se estima que um elemento do ativo seja utilizado pelo sujeito passivo, pelo que, no caso sub judice tal período corresponde à duração dos contratos de arrendamento [cf. subcapítulo A.1.1) infra]; c) No caso vertente, os serviços de inspeção tributária não cumpriram o ónus de provar que tais taxas não são razoáveis atento o “período de utilidade esperada” (cf. artigo 74.º, n.º 1, da LGT, conjugado com o artigo 31.º, n.º 3, do Código do IRC) [cf. subcapítulo A.1.1) infra]; d) A interpretação defendida no parágrafo 9. da Circular n.º 7/2020, na qual os serviços de inspeção tributária fundamentam a correção em apreço, não encontra apoio no elemento histórico, uma vez que a solução consagrada no regime atual já constava da versão originária do Código do IRC e do Decreto-Regulamentar n.º 2/90, de 12 de janeiro [cf. subcapítulo A.2) infra]; e) O elemento teleológico não consente a interpretação defendida pela administração tributária, na medida em que é clara a intenção do legislador em garantir que o gasto fiscal e o gasto contabilístico são coincidentes e, por outro lado, que as taxas fixadas correspondam ao período de vida útil dos elementos do ativo [cf. subcapítulo B.2) infra]; f) Do elemento sistemático também não é possível extrair a interpretação defendida pela administração tributária, já que são identificáveis situações em que é relevado o período de vida útil dos elementos do ativo (cf. exemplificativamente, o artigo 31.º, n.º 6, do Código do IRC e o artigo 13.º, n.º 1, do Decreto-Regulamentar) [cf. subcapítulo B.2) infra];g) A Circular n.º 7/2020 viola o princípio constitucional da legalidade tributária de reserva de lei formal da Assembleia da República (cf. artigo 165.º, n.º 1, alínea i) e 103.º, n.º 2, da CRP), padecendo de inconstitucionalidade formal [cf. subcapítulo B) infra]; h) A interpretação defendida pela administração tributária na Circular n.º 7/2020 e, por conseguinte, no relatório de inspeção padece de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios da tributação pelo rendimento real (cf. artigo 104.º, n.º 2, da CRP) e do princípio da capacidade contributiva, corolário do princípio da igualdade (cf. artigos 13.º e 104.º, n.º 2 e n.º 3, da CRP) [cf. subcapítulo C) infra]; i) Por fim, a aplicação da interpretação defendida no parágrafo 9. da Circular n.º 7/2020, que subjaz à correção em apreço, é suscetível de conflituar com o princípio da especialização dos exercícios, previsto no artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC [cf. subcapítulo D) infra].
4-Por sua vez, a requerida alega, em síntese, opondo-se ao entendimento da requerente, concluindo:
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Os ativos sob direito de uso, objeto de contratos de locação pela aplicação da IFRS 16, são ativos intangíveis sujeitos a deperecimento e a depreciação dos mesmos tem que seguir os requisitos da IAS 16 – Ativos Fixos Tangíveis;
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A amortização dos ativos sob o direito de uso, é efetuada em função do período de vida útil dos ativos subjacentes (tangíveis), que resulta da aplicação das taxas previstas nas tabelas I e II anexas ao Decreto-Regulamentar n.º 25/2009;
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Na legislação fiscal, a fixação da vida útil de um bem do ativo, isto é, o período durante o qual o mesmo é depreciado ou amortizado, faz-se por regra em função das taxas constantes das tabelas I e II anexas ao DR 25/2009, que refletem uma expetativa de utilidade económica daqueles ativos em geral;
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A defendida determinação do período de vida útil dos ativos sob direito de uso em função do prazo do contrato de locação, além de não ter suporte na legislação fiscal, acarretaria enorme subjetividade no apuramento das depreciações e amortizações para efeitos fiscais e consequentemente no apuramento do resultado tributável dos locatários.
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Assim, os encargos com as locações passam a ser imputados a resultados com base nas depreciações do ativo referente ao direito de uso locado e pelos gastos de juros implícitos da locação ao longo do contrato;
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Deste modo, perfilha-se o enquadramento fiscal exposto no RIT, relativamente aos ativos intangíveis sob direito de uso de bens imóveis, cujas amortizações fiscalmente dedutíveis, nos termos da al. g) do n.º2 do art.º 23.º do CIRC, seguem o regime dos ativos subjacentes (imóveis) e as limitações que se indicam: •São aceites como gastos as depreciações de elementos do ativo não corrente sujeitos a deperecimento, nomeadamente os ativos fixos tangíveis e os ativos intangíveis depois de entrarem em funcionamento ou utilização ( al. a) do n.º1 e n.º4 do art.º 29.º do CIRC); •O cálculo das depreciações e amortizações é efetuado, em regra, pelo método da linha reta, atendendo ao seu período de vida útil do ativo em causa, conforme prevê o n.º1 do art.º 30.º do CIRC; •A quota anual de depreciação ou amortização aceite como gasto é determinada pela aplicação das taxas definidas no DR 25/2009. (art.º 31.º do CIRC) •Não são aceites como gastos (n.º 1 art.º 34.º do CIRC): a) As depreciações e amortizações de elementos do ativo não sujeitos a deperecimento; b) As depreciações de imóveis na parte correspondente ao valor dos terrenos ou não sujeita a deperecimento; c) As depreciações e amortizações que excedam os limites estabelecidos nos artigos anteriores; d) As depreciações e amortizações praticadas para além do período máximo de vida útil, ressalvando-se os casos especiais devidamente justificados e aceites pela Autoridade Tributária e Aduaneira; •Na determinação da depreciação fiscal, ao valor de cada imóvel é expurgado o valor do terreno nos termos do n.º1 e n.º 10 do DR 25/2009 e al. b) do n.º1 do art.º 34.º do CIRC. •A taxa máxima fixada para os imóveis sob apreciação é de 2% (cf. DR 25/2009, Tabela II – Taxas genéricas - Grupo 1 – Imóveis, código 2015;
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Conclui-se que o entendimento vertido no §. 9.º da Circular n.º 7/2020, de 13 de agosto, adaptado ao caso concreto, está em perfeita consonância com o disposto nos supracitados normativos do Código do IRC e do Decreto-Regulamentar 25/2009, inexistindo os vícios apontados pela requerente no presente PPA.
5-Por despacho de 18 de Janeiro de 2024 o Tribunal dispensou a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, nos termos que se dão por reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Vd. arts. 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT;
No mesmo despacho foram as partes notificadas para produzirem alegações escritas, no prazo de quinze dias, designando-se o dia 28 de Maio de 2024 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral.
6- As partes apresentaram alegações.
7-O Tribunal arbitral é materialmente competente, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
Não se verificam nulidades
Cumpre apreciar e decidir.
III- FUNDAMENTAÇÃO
III-1- Matéria de Facto
§1.º Factos dados como provados
Com relevo para a decisão consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente desenvolve a atividade de prestação de serviços e fornecimento de equipamentos na área das telecomunicações, informática e tecnologias de informação;
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A Requerente prepara as suas demonstrações individuais nos termos das Normas Internacionais de Relato Financeiro (International Financial Reporting Standards - IFRS), incluindo a IFRS 16 - Locações;
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Com início em 9 de Abril de 2019, a Requerente celebrou com a «C..., SA» um contrato de arrendamento para fins não habitacionais. Foi convencionado que “(…) o Contrato não se encontra sujeito a renovações automáticas, caducando impreterivelmente na Data do Termo, sem quaisquer formalidades adicionais». O contrato terminará, conforme o prazo inicialmente estabelecido, em 8 de Abril de 2024;
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A Requerente registou, nos termos da IFRS 16, um activo e passivo nos valores de € 2.575.368,43. O activo foi depreciado à taxa de 20%;
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A Requerente celebrou, com a «B..., SA», um contrato de subarrendamento para habitação com termo certo (3 Abril de 2017 a 2 Abril de 2018). O contrato “renova-se automaticamente por períodos de um ano se nenhuma das partes se opuser à sua renovação até 2 meses antes do respectivo termo, com o máximo de 2 renovações”. Ou seja, a prorrogação não estava à livre disposição do locatário. O contrato cessou em 4 de Abril de 2020, tendo sido prorrogado pelo prazo máximo;
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A Requerente celebrou, com a «B..., SA», um segundo contrato de subarrendamento para habitação com termo certo (10 de Junho de 2019 a 9 de Junho de 2021). À semelhança do anterior contrato “renova-se automaticamente por períodos de um ano se nenhuma das partes se opuser à sua renovação até 2 meses antes do respetivo termo, com o máximo de 2 renovações”. O contrato cessou na data inicialmente prevista;
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Os 2 referidos contratos de subarrendamento originaram, em conformidade com a IFRS 16, o registo de um ativo de € 306.238,18, que foi depreciado à taxa de 50%;
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A título de depreciação pelo direito de uso dos referidos ativos, a Requerente registou uma depreciação de € 528.23,60 e € 153.119,09;
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A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo interno e de âmbito parcial, que incidiu sobre o período de tributação de 2020, realizado pelos serviços de inspeção da Unidade dos Grandes Contribuintes (Ordem de Serviço n.º OI2022..., de 20 de Abril de 2022);
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No âmbito desse procedimento inspetivo, foi efetuada uma correção à matéria coletável de IRC do exercício de 2020, no montante de € 638.126,59;
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A Circular 7/2020, que fundamentou a referida correção, estabelece, no seu ponto 9, que: “Uma vez que não se encontram previstas taxas de amortização para os ativos sob direito de uso nas tabelas anexas ao Decreto-Regulamentar n.º 25/2009, é conforme ao princípio de utilidade económica de funcionamento dos bens que enforma o regime fiscal que o período de vida útil dos ativos sob direito de uso seja determinado atendendo às taxas das tabelas I e II dos ativos subjacentes”;
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Em face do entendimento vertido na referida Circular, os serviços de inspeção tributária referiram que “(…) a taxa máxima de depreciação dos ativos sob direito de uso registados nas contas 4320610 e 4320410 é de 2%, conforme consta da tabela II – Taxas genéricas, para os bens do Grupo 1 - Imóveis, com o código “2015 - Comerciais e administrativos” do DR 25/2009”;
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Razão pela qual, os serviços de inspeção tributária concluem no relatório de inspeção que “(…) o sujeito passivo não procedeu de forma correta no cálculo das depreciações dos ativos sob direito de uso, no ano de 2020, uma vez que: (…) considerou uma taxa de depreciação superior à taxa máxima de 2% fiscalmente aceite e não expurgou o valor do terreno do valor do ativo, cuja depreciação não é fiscalmente aceite, em conformidade com o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 34 do CIRC, conjugadas com o n.º 1 do art.º 5.º e com os n.ºs 1 e 3 do art.º 10.º, ambos do DR 25/2009, e com a Circular 7/2020”;
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A Requerente exerceu o direito de audição prévia. Os serviços de inspeção mantiveram a correção em apreço, tendo considerado que:
(…)
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A Requerente foi notificada do ato tributário controvertido n.º 2023... no valor de € 172.137,87, tendo procedido ao respetivo pagamento;
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A Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação integral do ato tributário, com a consequente restituição do imposto pago e o reconhecimento ao direito a juros indemnizatórios;
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Ambas as Partes coincidem no entendimento de que (i) o contrato de arrendamento e os dois contratos de subarrendamento consubstanciam locações operacionais, nos termos da IFRS 16 e (ii) os ativos foram mensurados e registados nos termos preconizados na IFRS 16;
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Em Março de 2024 a Autoridade Tributária e Aduaneira publicou a Circular 3/2024:
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A Circular conclui pela respetiva aplicabilidade às situações controvertidas pendentes de decisão:
§2.º Factos dados como não provados
Não existe outra factualidade alegada que seja relevante para a correta composição da lide processual.
§3.º Fundamentação da matéria de facto
O Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do atual CPC).
Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados (pedido de constituição arbitral e Resposta da Requerida) e à prova documental junta aos autos, consideram-se provados os factos elencados supra com relevo para a decisão.
III-2-1- DO DIREITO
No caso dos autos o enquadramento contabilístico aplicável aos contratos de arrendamento e de subarrendamento não constitui matéria controvertida. Concretamente, não é controvertido que a Requerente exerceu a opção de aplicação das Normais Internacionais de Relato Financeiro (“IFRS”) nas suas demonstrações financeiras individuais e que os contratos de arrendamento e subarrendamento qualificam como uma locação operacional nos termos e para os efeitos da IFRS 16, i .e. que estamos na presença de ativos sob direito de uso (cfr. artigos 5º a 7.º do pedido de pronúncia arbitral e artigos 28.º a 32.º da resposta da Requerida).
A divergência situa-se no plano do prazo de depreciação do ativo. A Requerente considera ser aplicável o prazo da locação, ao passo que a Requerida, baseando-se na Circular 7/2020, pugna pela aplicação das taxas previstas no Decreto-Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de Setembro.
A fundamentar o pedido a Requerente invoca os seguintes vícios como causas de pedir:
- Da ilegalidade do entendimento vertido na Circular n.º7/2020 (em especial o parágrafo 9.º);
- Da ilegalidade da Circular n.º 7/2020 por violação do princípio constitucional da reserva de lei;
-Da violação do princípio da tributação das empresas pelo lucro real, consagrado no artigo 104.º, n.º2, da CRP, e com o princípio da igualdade contributiva, consagrado nos artigos 13.º e 104.º, n.ºs 1 e 2 da CRP;
-Da violação do princípio da especialização dos exercícios.
Vejamos.
§1.º Quanto à ilegalidade da Circular n.º 7/2020
A IFRS 16 foi publicada em 2016, aplicando-se para os exercícios iniciados após 1 de Janeiro de 2019, e estabelece “os princípios aplicáveis ao reconhecimento, à mensuração, à apresentação e à divulgação de locações”.
“No início de um contrato, as entidades devem avaliar se este constitui, ou contém, uma locação. Um contrato constitui, ou contém, uma locação se comportar o direito de controlar a utilização de um ativo identificado durante um certo período de tempo, em troca de uma retribuição” (parágrafo 9).
Nos termos do parágrafo 18, “as entidades devem determinar o prazo da locação como o período não cancelável de uma locação, juntamente com:
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Os períodos abrangidos por uma opção de prorrogar a locação, se o locatário tiver uma certeza razoável de exercer essa opção; e
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Os períodos abrangidos por uma opção de rescisão da locação, se o locatário tiver uma certeza razoável de não exercer essa opção”.
O parágrafo 20 estabelece que “o locatário deve reavaliar se tem uma certeza razoável de exercer uma opção de prorrogação, ou de não exercer uma opção de rescisão, aquando da ocorrência de um acontecimento significativo ou de uma alteração significativa das circunstâncias que:
a) Esteja sob o controlo do locatário; e
b) Afete a certeza razoável do locatário quanto ao exercício de uma opção que não tenha sido previamente incluída na sua determinação do prazo da locação, ou ao não exercício de uma opção anteriormente incluída na sua determinação do prazo da locação”.
“Na data de entrada em vigor, um locatário deve reconhecer um ativo sob direito de uso e um passivo da locação” (parágrafo 20).
Nos termos dos parágrafos 23 e 24, “na data de entrada em vigor, um locatário deve mensurar o ativo sob direito de uso pelo seu custo. O custo do ativo sob direito de uso deve incluir: a) O montante da mensuração inicial do passivo da locação, conforme descrito no parágrafo 26”.
Parágrafo este, segundo o qual “o locatário deve mensurar o passivo da locação pelo valor presente dos pagamentos de locação que não estejam pagos nessa data”.
Uma vez registado o ativo e o passivo, o primeiro passa a ser objeto de depreciação, conforme determinado no parágrafo 31: “O locatário deve aplicar os requisitos de depreciação previstos na IAS 16 Ativos Fixos Tangíveis ao depreciar o ativo sob direito de uso”.
Os ativos são depreciados em conformidade com o correspondente período de vida útil que a IFRS 16 define como: “Prazo da locação, o período não cancelável durante o qual o locatário tem o direito de utilizar um ativo subjacente, juntamente com: a) Os períodos abrangidos por uma opção de prorrogação da locação, se o locatário tiver uma certeza razoável de exercer essa opção; e b) Os períodos abrangidos por uma opção de rescisão da locação, se o locatário tiver uma certeza razoável de não exercer essa opção”.
Também a IAS 16, para a qual, como vimos, a IFRS 16 remete, determina que o prazo de depreciação não poderá exceder o período de vida útil, definido como “o período durante o qual se espera que um ativo seja usado”.
Subjacente ao normativo contabilístico está o princípio, segundo o qual o gasto decorrente da utilização de um ativo não poder ultrapassar o período durante o qual a utilização sob orientação e controlo do locatário. Assim se assegurando a equivalência (“matching” contabilístico) temporal entre o gasto inerente a esse uso e a sua afetação à atividade estatutária da qual flui o rédito.
Todo este enquadramento é, repete-se, reconhecido por ambas as Partes: estamos perante um ativo sob direito de uso e passível de depreciação. A divergência, como vimos, está no prazo dessa depreciação, dado que a Requerente considera o período do contrato de locação, ao passo que a AT entende estar perante um imóvel, sendo aplicáveis as taxas definidas no DR 25/2009.
Os contratos de arrendamento e subarrendamento são os seguintes:
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Um contrato de arrendamento para fins não habitacionais
É celebrado entre o proprietário e o sujeito passivo (Requerente), para os fins próprios da sua atividade comercial.
O prazo está compreendido entre 9 Abril 2019 e 8 Abril 2024, “(…) acordando as Partes que o Contrato não se encontra sujeito a renovações automáticas, caducando impreterivelmente na Data do Termo, sem quaisquer formalidades adicionais”.
O prazo de locação foi assim fixado em 5 (cinco) anos, o qual foi efetivamente cumprido, conforme consta do Anexo I ao relatório de inspeção da AT (término em 8 de Abril de 2024).
A Requerente registou um ativo no valor de € 2.575.368,43 e uma taxa de depreciação de 20%.
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Dois contratos de subarrendamento para habitação com termo certo
Foram celebrados entre os proprietários e o sujeito passivo (Requerente), servindo de habitação para alguns colaboradores deste.
Os contratos têm início a 10 de Junho de 2019 (vigorando por 24 meses) e a 3 de Abril de 2017 (vigorando por 12 meses).
Poderão renovar-se automaticamente “por períodos de um ano se nenhuma das partes se opuser à sua renovação até 2 (dois) meses antes do respetivo termo, com o máximo de 2 (duas) renovações”.
Mais uma vez, o Anexo I ao relatório de inspeção, identifica que os contratos decorreram pelo período de 2 e 3 anos (terminaram em 9 de Junho de 2021 e 2 de Abril de 2020). Ou seja, decorreram pelos períodos de 2 anos (sem prorrogação) e 3 anos (com 2 prorrogações de 1 ano cada, conforme previsto no contrato).
A Requerente registou um ativo no valor de € 306.238,18 e uma taxa de depreciação de 50%.
Como vimos, o que está em causa no presente processo é, a final, saber se os gastos correspondentes às depreciações/amortizações, a considerar como tal para efeitos fiscais, se reportam à depreciação dos prédios/frações locados/arrendados, ou se dizem respeito à amortização dos ativos sob direito de uso nascidos com a celebração dos respetivos contratos de locação/arrendamento.
No primeiro caso, as depreciações respetivas terão como limite anual aceite para efeitos fiscais o valor correspondente a 2% dos valores de construção, terrenos excluídos, nos termos no disposto no artigo 31.º do Código do IRC e do disposto no DR 25/2009.
No segundo caso, o valor aceite como gasto fiscal correspondente às respetivas amortizações, terá como limite o valor conforme à vida útil estimada desses ativos sob direito de uso, nos termos do n.º 3 do artigo 31.º do Código do IRC.
Conforme decorre da matéria provada, a Requerente considerou um prazo de 5 anos para o contrato de fim não habitacional e de 2 anos para os 2 contratos de finalidade habitacional.
Essa estimativa afigura-se aceitável, na medida em que apenas um dos contratos de subarrendamento excedeu (por 1 ano) o prazo estimado pela Requerente. Acresce que se verifica existir consistência na estimativa, dado ter sido considerado um prazo de 2 anos para ambos contratos de subarrendamento.
Para mais, a ter sido considerado um prazo de 1 ano (sem prorrogações) para um dos contratos de subarrendamento, o mesmo dificilmente poderia ser registado como ativo e passivo nos termos da IFRS 16.
Face ao exposto, e não restando dúvidas estarmos perante direitos sob uso decorrentes de contratos de locação operacional, os gastos associados à depreciação dos 3 ativos devem ser, no plano contabilístico, reconhecidos em conformidade com os correspondentes períodos de vida útil de 5 e 2 anos.
No que concerne à aceitabilidade fiscal dos gastos contabilísticos registados nesses períodos de 5 e de 2 anos, a mesma está expressamente enunciada no n.º 3 do artigo 31.º do Código do IRC: “Relativamente aos elementos para que não se encontrem fixadas taxas de depreciação ou amortização, são aceites as que pela Autoridade Tributária e Aduaneira sejam consideradas razoáveis, tendo em conta o período de vida útil esperada daqueles elementos”.
É sabido que o Código do IRC acolhe o denominado princípio da dependência parcial entre os lucros contabilístico e fiscal.
Genericamente, tal significa que as disposições do Direito da Contabilidade são plenamente aceites no Código do IRC, salvo se este expressamente dispuser em sentido contrário. O que não se verifica no caso em apreço, na medida em que os Direitos Fiscal e da Contabilidade definem o prazo de depreciação por referência ao período de vida útil esperada, ou seja, o período durante o qual fluem para o locatário os riscos e benefícios decorrente da utilização do ativo sob direito de uso (o locado).
Improcede, assim, a fundamentação sustentada pela Requerida de reportar a depreciação do ativo sob direito de uso às tabelas previstas no Decreto-Regulamentar n.º 25/2009. Desde logo, porquanto se socorre de uma Circular, ignorando a aplicabilidade direta de uma norma própria (o n.º 3 do artigo 31.º do CIRC).
Acresce que a estimativa considerada pela Requerente se afigura aceitável à luz dos contratos e da sua expectativa quanto à prorrogação dos mesmos. Com efeito, um dos contratos não permite prorrogação (tendo sido cumprido o prazo de 5 anos) e os outros dois apenas permitem uma prorrogação máxima de 2 anos e desde que por mútuo acordo (foi cumprido o prazo de 2 anos, tendo apenas um dos contratos sido prorrogado por 1 ano).
O recurso a um prazo de 50 anos seria enquadrável num contrato de locação financeira, o que não se verifica no atual contrato de locação operacional (como tal considerado por ambas as Partes).
A aceitar-se o prazo de 50 anos, uma vez terminados os contratos nos prazos de 2 e 5 anos, o sujeito passivo teria de interromper as depreciações fiscais. Isto, na medida em que já não disporia de um direito de uso dos ativos.
Consequentemente, teria de deixar de reconhecer o ativo do balanço, gerando com isso um gasto fiscal “puro” (dado que o custo contabilístico já tinha sido reconhecido ao longo dos 2 e 5 anos dos contratos).
Ora, para além da existência de norma própria (o citado n.º 3 do artigo 31), o Código do IRC acolhe o mesmo princípio consagrado na contabilidade: o da especialização ou periodização. Nos termos do qual os gastos e o rédito devem ser reconhecidos no exercício em que os mesmos são gerados. E não seria admissível reconhecer depreciações quando é sabido - ab initio - que a periodização não ultrapassará 1, 2 e 5 anos (ou 3, 4 e 5 anos, considerando o prazo máximo de prorrogação, sabendo-se que esta exigiria acordo entre as partes, não correspondendo a um direito potestativo do locatário).
Por fim, importa salientar que a AT já reviu a sua posição vertida na Circular 7/2020, através da publicação da Circular 3/2024 sancionada pelo despacho n.º 70/2024-XXIII, de 21 de fevereiro, do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/legislacao/instrucoes_administrativas/Documents/Circular_3_2024.pdf
A Circular 3/2024 é plenamente aplicável ao caso em apreço, na medida em que nos encontramos perante uma locação operacional. Entre outros fundamentos, por não estar prevista a opção de compra do ativo sob direito de uso durante ou no momento da conclusão dos contratos de locação.
A própria Circular reconhece a aplicabilidade retroativa e concede a existência de um erro imputável aos Serviços da AT.
Por tudo o quanto vai exposto, conclui o Tribunal que a orientação seguida pela Requerente é a que melhor resulta de uma interpretação teleológica e sistemática das normas jurídico- fiscais e contabilísticas convocadas. Pelo contrário, a posição seguida pela Requerida baseada numa interpretação estritamente literal da Circular n.º 7/2020, incorre em erro de facto e de direito o que gera a anulabilidade do ato (correspondente à correção fiscal efetuada) e determina que seja anulado, por ilegal.
De referir, por último, que o conhecimento deste vício preclude a necessidade de conhecimento dos demais.
Como referem, no Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, em anotação ao artigo 95.º desse diploma, p. 483 (aplicável por remissão do artigo 2.º alínea c) do CPPT e do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT) “Se o tribunal julgou procedente o pedido principal, fica precludido o poder jurisdicional quanto a um pedido subsidiário ou formulado em alternativa; e, nos mesmos termos, se a pronúncia adoptada quanto a uma questão consome ou deixa prejudicados outros aspectos da causa que com ela se correlacionem.”
§2.º Pedidos prejudicados
Nestes termos, face à interpretação material preconizada fica prejudicado o conhecimento e a apreciação dos demais vícios imputados ao ato de liquidação adicional, assim sucedendo, por exemplo, no que se refere à alegada violação dos princípios constitucionais da igualdade e da tributação do lucro real, invocados pela Requerente. O conhecimento de tais questões encontra-se, em suma, prejudicado pela declaração de ilegalidade do ato de liquidação adicional em causa, com base nas circunstâncias invocadas, pelo que sobre elas não recairá decisão.
III-2-2- QUANTO AOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária na restituição do imposto indevidamente pago acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto indevido, até ao reembolso integral da quantia devida.
De acordo com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Tal regime está em sintonia com o resultante do artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o que, por sua vez, remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Acresce que os juros indemnizatórios são, expressamente, reconhecidos pela Requerida, nos termos da supra referida Circular 3/2024.
Face ao exposto, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos ora impugnados há lugar à restituição da quantia indevidamente paga acrescida do pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
IV – DECISÃO
Termos em que se decide neste tribunal coletivo:
a) Julgar procedente o pedido arbitral e, nessa sequência, anular a liquidação adicional de imposto sobre o IRC n.º 2023..., respetiva liquidação de juros compensatórios e demonstração de acerto de contas;
b) Condenar a requerida restituir o imposto e juros compensatórios indevidamente pagos acrescido do pagamento dos respetivos juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, nos termos legais.
V – Valor da Causa
Fixa-se o valor do processo em € 172.137,87 de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e artigo 306.º do Código de Processo Civil (CPC).
Notifique-se.
Lisboa, 04 de abril de 2024
O Tribunal coletivo,
Fernanda Maçãs (presidente)
Dr. Henrique Fiúza (árbitro vogal)
Dr. José Luis Ferreira (árbitro vogal