SUMÁRIO:
A qualificação como residente para efeitos de tributação em Portugal (residência fiscal) é determinada de acordo com os critérios constantes do art.º 16.º do CIRS[1].
Tais critérios diferem dos previstos no artigo 19º da LGT[2] (domicílio fiscal), enquanto o conceito de residência releva para efeitos de aplicação de normas tributárias materiais e substantivas, determinantes da existência e da extensão da obrigação de imposto, a questão do domicílio fiscal projeta-se em consequências processuais.
No caso vertente a AT[3] não conseguiu afastar a presunção de verdade e boa- fé de que gozam as declarações dos contribuintes, prevista no nº1 do artigo 75º da LGT, entende, por isso, o Tribunal que essa presunção deve ser mantida.
DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
A..., NIF[4]..., Residente em ... ... Reino Unido vem, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, al. a) e 10.º, n.os 1, al. a) e 2 do RJAT[5], apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral e consequente pronúncia, com vista à apreciação da legalidade despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação de IRS[6] com o n.º 2022..., no valor de € 2.253,86 e correspetiva liquidação de juros compensatórios com o n.º..., no valor de € 43,47, ambas respeitantes ao exercício de 2020, com fundamento em errónea qualificação dos factos tributários.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD[7] em 09/10/2023, e notificado à AT na mesma data.
Em 24/11/2023 o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da nomeação do Árbitro, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 do artigo 11.º do referido Regime, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do seu artigo 11.º sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 14/12/2023 o que foi, na mesma data, notificado às Partes e ao Tribunal que logo proferiu despacho nos termos e efeitos dos n.ºs 1 e 2 do artigo
17.º do RJAT.
A Requerente suporta o seu pedido, em síntese, na falta de base legal da liquidação, da sua falta de fundamentação, violação do direito de audição, violação de normas e princípios da ação inspetiva, violação de normas e princípios constitucionais e do direito da União Europeia.
Por sua vez a AT, também em síntese, vem dizer que contrariamente ao alegado pela Requerente a AT não “forjou” qualquer documento ou informação, mas baseou-se apenas na informação por si conhecida e que resulta dos elementos declarados pelos sujeitos passivos no cadastro, e apesar do contribuinte poder alterar o seu domicílio com efeitos retroativos, não o fez, motivo pelo qual no ano de 2020, a Requerente não residente em Portugal e o seu cônjuge residente, não preenchiam os pressupostos para o exercício da opção pela tributação conjunta, não se verificando assim qualquer ilegalidade na liquidação atualmente em vigor.
II – SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se devidamente representadas de harmonia com os artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
Após a resposta da AT, O Tribunal proferiu o seguinte Despacho: “…a) Que a Requerente, no prazo de cinco dias, deverá comunicar ao Tribunal se mantém interesse na produção da prova testemunhal, atendendo estarmos em presença de matéria cuja prova é essencialmente documental; e
b) Em caso afirmativo, no mesmo prazo, dizer se mantém o número de testemunhas arroladas no seu pedido de pronúncia indicando os pontos de facto sobre que deve incidir a inquirição de cada uma delas, de forma a minimizar-se a sobreposição de depoimentos, nos termos do art. 118º, 1 do CPPT[8]...”
Em 08/02/2024, a Requerente veio aos autos dizer que mantinha interesse na inquirição de testemunhas prescindindo de uma das quatro inicialmente arroladas, mas sem indicar sobre que pontos iria incidir a inquirição.
Em 26/02/2024 o Tribunal proferiu o seguinte Despacho:
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“Atendendo a que a Requerente não concretizou os artigos da sua petição que pretende ver provados através da inquirição das testemunhas arroladas, o Tribunal considera suficientes os documentos por ela juntos quanto à prova dos factos alegados, termos em que dispensa, por desnecessária, a inquirição das testemunhas e a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, suportando estas decisões no princípio da autonomia do Tribunal na condução do processo, com vista a promover a sua celeridade, simplificação e informalidade. (artigos. 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT).
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Conceder às partes o prazo simultâneo de 15 dias, para, querendo, produzir alegações escritas.
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Notificar a Requerente para dar cumprimento ao disposto no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (pagamento antes da decisão e pela forma regulamentar, do remanescente da taxa de justiça) até 28 de Março próximo.
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A decisão final será proferida até ao termo do prazo fixado no artigo 21º, nº 1 do RJAT.”
Em 06/03/2024 a Requerida produz alegações escritas onde no essencial mantém a sua posição de que no ano de 2020, a Requerente não residente em Portugal e o seu cônjuge residente, não tinham preenchidos os pressupostos para o exercício da opção pela tributação conjunta e os documentos juntos não se mostram suficientes para afastar a presunção do cadastro, tudo como melhor consta no requerimento de alegações.
A Requerente apresentou alegações nas quais, no essencial mantém a posição já expendida quanto à ilegalidade das liquidações de IRS e juros compensatórios, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, falta de fundamentação, tudo como melhor consta na respetiva peça processual que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
O processo não enferma de nulidades cumpre decidir.
III- MATÉRIA DE FACTO
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Factos provados
O Tribunal Arbitral, com base nos documentos juntos aos autos pelas partes e não impugnados, considera provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
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A Requerente procedeu à entrega da declaração modelo 3 do IRS referente ao ano de 2020, na qual declarou exclusivamente a venda da sua quota-parte num imóvel de que era comproprietária em Portugal e da qual não resultou imposto a pagar.
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Na referida declaração fez ainda constar a composição do seu agregado familiar e residência do mesmo no Reino Unido, tendo declarado optar pela tributação no regime previsto para os residentes, nos termos do artigo 17.º-A do CIRS.
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A Requerente é casada com B..., cidadão de nacionalidade britânica, e com residência no Reino Unido à data dos factos.
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Foi aberto um procedimento de divergências relativamente à referida declaração, em virtude de constar no Registo de Cadastro de Contribuintes que o senhor B... tinha residência em Portugal.
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Apesar dos esclarecimentos prestados a AT emitiu a liquidação nº..., respeitante a IRS do exercício de 2020, no montante de € € 2.253,86 e liquidação de juros compensatórios no montante de € 43,47, o que perfaz o valor global de € 2.297,33, que foi pago em 14/02/2022.
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Contra a referida liquidação apresentou a Requerente reclamação graciosa, com fundamento, da sua residência bem como a do seu cônjuge, ser no Reino Unido, reclamação que veio a ser, após exercício do direito de audição, indeferida, por despacho de 2023-06-30, do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa – ..., nomeadamente, por se ter verificado, por consulta ao Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, que à data de 2020-12-31 a reclamante tem a residência com morada no estrangeiro e o cônjuge tem residência com morada portuguesa.
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No Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes consta que A..., é residente no Reino Unido desde 2006-06-29, B..., inscreveu-se como residente em Portugal em 1997-10-13, tendo apenas em 2023-06-13 alterado a sua residência para o Reino Unido.
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A Requerente apresentou uma carta de confirmação de residência na qual consta que o senhor B... foi considerado residente no Reino Unido para efeitos fiscais desde 05/01/2019 a 05/01/2022, conforme doc. 8.
2) Factos não provados
Não há factos não provados com relevância para a decisão
3. Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto
O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas Partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo
123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC[9], ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do
RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (conforme artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes, no teor dos documentos juntos aos autos e por elas não contestados.
O que se discute nos presentes autos, prende-se em determinar se o cônjuge marido no ano de 2020 era ou não residente em território português com vista aquilatar-se da possibilidade de poderem usar a opção pela tributação conjunta no regime previsto para os residentes, nos termos do artigo 17.º-A, conforme mencionado na declaração entregue pela Requerente.
Para efeitos de Tributação em IRS o conceito de residência encontra-se plasmado no artigo 16º do CIRS, no qual se exige uma permanência temporal e física nas condições nele previstas. Por sua vez artigo 19º da LGT consagra o conceito de domicílio fiscal, conceito que a doutrina e a jurisprudência dos Tribunais Superiores não consideram equivalente ao do artigo 16º do CIRS, para efeitos de IRS e pegando nos ensinamentos de Alberto Xavier[10] “noção de residência ou domicílio para efeitos de delimitação da esfera de incidência das normas tributárias de cada Estado é também distinta da noção de domicílio tributário de direito interno e que é um domicilio especial pelo qual a lei refere a um lugar bem determinado, o exercício de direitos e o cumprimento dos deveres estabelecidos pelas normas tributárias, localizando o sujeito passivo com vista a fixar a circunscrição territorial em cuja área se situem os serviços de administração competentes para a prática de actos relativos à situação fiscal do contribuinte”
Vê-se que os pressupostos do artigo 16º do CIRS interferem com a tributação, enquanto o conceito de domicílio fiscal previsto no art.º 19.º da LGT, releva de forma evidente para os contactos entre os sujeitos passivos e a AT, estipulando o nº 3 do citado artigo 19º e o nº. 2 do artigo 43º do CPPT, a ineficácia da mudança de domicílio enquanto não for participada à AT, não tendo, a sua falta, qualquer impacto em termos de tributação.
Da matéria de facto dada como provada constata-se que a Requerente apresentou a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS respeitante ao exercício de 2020, na qual declarou exclusivamente a venda da sua quota-parte num imóvel de que era comproprietária em Portugal e da qual não resultou imposto a pagar, declarou também a composição do seu agregado familiar, todo residente no Reino Unido e que optava pelo regime de tributação previsto no artigo17º-A do CIRS.
No Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes consta que A..., é residente no Reino Unido desde 2006-06-29 e B..., com quem é casada, inscreveu-se como residente em Portugal em 1997-10-13, tendo apenas em 2023-06-13 alterado a sua residência para o Reino Unido.
Tal facto levou a que a AT abrisse um procedimento de divergências relativamente à referida declaração, em virtude de constar no Registo de Cadastro de Contribuintes que à data de 2020-12-31 a reclamante tinha a residência com morada no estrangeiro e o cônjuge tem residência com morada portuguesa o que era incompatível com o regime de tributação previsto no artigo17º-A do CIRS.
Como já se viu o conceito de residência plasmado no artigo 16º do CIRS, para efeitos de residência em território português exige uma permanência temporal e física que a AT não demonstrou ter existido, tendo presumido que pelo facto do cônjuge da Requerente constar, no Registo de Cadastro de Contribuintes à data de 2020-12-31, como residente em território português era suficiente para fazer prova que residia em Portugal. Não demonstrou ter procedido a quaisquer outros meios de prova que sustentassem os requisitos que o artigo 16º do CIRS exige para que num determinado ano um sujeito passivo seja considerado residente em território português para efeitos de tributação em IRS.
Ora, como já se disse, a morada constante do Cadastro releva apenas para o exercício de direitos e deveres entre a AT e o sujeito passivo, mas não releva para efeitos de tributação em IRS, sendo por si só insuficiente para tal efeito.
Deste modo, tendo a Requerente feito prova através de carta de confirmação de residência na qual consta que o seu conjugue foi considerado residente no Reino Unido para efeitos fiscais desde 05/01/2019 a 05/01/2022, forçoso é concluir que em 2020 o agregado familiar não tinha residência em território português, tal qual ela é concebida para efeitos de tributação, conforme artigo 16º do CIRS, que exige, para efeitos de serem considerados residentes em território português uma permanência temporal e física, que a AT não conseguiu demonstrar ter existido. Socorrendo-se apenas do Registo de Cadastro de Contribuintes que, como já se referiu, é manifestamente insuficiente para afastar a presunção de verdade e boa- fé de que gozam as declarações dos contribuintes, prevista no nº1 do artigo 75º da LGT, entende o Tribunal que, neste caso, essa presunção deve ser mantida e que os sujeitos passivos reuniam condições para, quanto ao ano de 2020, poderem optar pela tributação prevista no artigo 17º-A do CIRS, declarando-se, o pedido de pronúncia arbitral procedente, com todas as consequências legais daí advindas, designadamente a revogação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação de IRS com o n.º 2022..., no valor de € 2.253,86 e correspetiva liquidação de juros compensatórios com o n.º ..., no valor de € 43,47, ambas respeitantes ao exercício de 2020, com a sua consequente anulação e reembolso dos montantes indevidamente pagos.
V – JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A Requerente peticiona ainda a restituição da quantia paga acrescida do pagamento de juros indemnizatórios, sendo certo que a jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.
Desta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios por parte da AT que deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado.
Nos termos do já citado artigo 43.º, da LGT, cujo n.º 1 estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou Impugnação judicial que há erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso concreto dos autos estamos em presença de uma liquidação de IRS, resultante de um procedimento de divergências, por parte da AT, sem que esta tenha ilidido a presunção prevista no nº 1 do artigo 75º da LGT, preenchendo, deste modo a previsão do nº.1 do seu artigo 43º.
Assim, verificam-se reunidas as previsões legais para o pagamento dos juros indemnizatórios a calcular sobre os valores indevidamente pagos, desde a data do pagamento indevido, à taxa legal supletiva prevista nos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
VI – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal decide:
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Declarar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, determinar a revogação do ato de indeferimento da reclamação graciosa, a anulação das liquidações de IRS com o n.º 2022..., no valor de € 2.253,86 e correspetiva liquidação de juros compensatórios com o n.º..., no valor de € 43,47, ambas respeitantes ao exercício de 2020 com a sua restituição acompanhada dos juros indemnizatórios a calcular nos termos definidos.
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Fixar o valor do processo em € 2.297,33, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do RCPAT[11].
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Fixar as custas do processo, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, no montante de € 612,00, a cargo da Requerida.
Lisboa, 02 de Abril de 2024
O Árbitro,
Arlindo Francisco
[1] Acrónimo de Código do Imposto dobre o Rendimento das pessoas Singulares
[2] Acrónimo de Lei Geral Tributária
[3] Acrónimo de Autoridade Tributária e Aduaneira
[4] Acrónimo de Número de Identificação Fiscal
[5] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária
[6] Acrónimo de Imposto dobre o Rendimento das pessoas Singulares
[7] Acrónimo de Centro de Arbitragem Administrativa
[8] Acrónimo de Código de Procedimento e de Processo Tributário
[9] Acrónimo de Código de Processo Civil
[10] (Direito Tributário Internacional, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2009, p. 281)
[11] Acrónimo de Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária