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SUMÁRIO
1. No caso de impugnação do ato de liquidação, em que se materializa o imposto a pagar, o valor da causa é o da importância cuja anulação se pretende.
2. A qualificação de determinadas despesas empresariais com serviços jurídicos como encargos inerentes a uma transação geradora de mais-valias, para efeitos do artigo 46.º, n.º2, do CIRC, não pode abdicar de ter em conta os factos e circunstâncias relevantes, incluindo a respetiva complexidade.
3. O n.º 1 do artigo 23.º do CIRC não permite a dedução de despesas cuja efetivação não se pode imputar aos interesses societários, mas aos interesses pessoais dos sócios ou de terceiros.
4. São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido, com efeitos lesivos para o credor Estado.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Rui Duarte Morais (Presidente), Marta Vicente e Jónatas Machado, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
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Relatório
A... Lda., sociedade por quotas titular do número único de matrícula na Conservatória do Registo Comercial e de identificação de pessoa coletiva ..., com sede no ...– ... (doravante, simplesmente A... ou Requerente), veio, a 01.09.2023, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, no n.º 2 do artigo 3.º e nos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, apresentar pedido de pronúncia arbitral do ato de indeferimento parcial da reclamação graciosa, e, bem assim, dos atos de liquidação adicional de IRC e respetivos juros, referentes ao ano de 2018, a saber, liquidação de IRC n.º 2022.... no valor de € 79.811,92, e respetivos juros compensatórios, consubstanciada na demonstração de acerto de contas n.º 2022..., de onde resultou um montante global a pagar de € 114.583,09 (doravante, a «Liquidação»).
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 04.09.2023, e automaticamente notificado à Requerida.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e na alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD nomeou três árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 24.10.2023.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico e, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 14.11.2023.
5. Na sua Resposta, apresentada em 19.12.2023, a AT veio impugnar as razões da Requerente, sustentando a alteração do valor da causa a improcedência do pedido de pronúncia arbitral por não provado.
6. Por ter sido solicitada pela Requerente e o presente Tribunal a ter considerado útil para o esclarecimentos dos factos, foi proferido Despacho, no dia 15.01.2023, a agendar a reunião a que se refere o art.18.º do RJAT, bem como a prestação de depoimento de parte, para o dia 19.02.2023, tendo aí sido decidido conceder às partes a faculdade de apresentarem alegações sucessivas no prazo de 10 dias, o que aconteceu, quanto ao sujeito passivo, em 01.03.2024, que reiterou os argumentos apresentados e juntou documentos aos autos.
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Sequência dos factos relevantes
7. Em 1993, a A... dquiriu uma participação representativa de 20,05% do capital social da sociedade «B... Lda.» (doravante, «B...»), a sociedade maioritária do Grupo C... (C...), pelo preço (custo de aquisição contabilístico) de € 24.483.692,91, tendo sido uma sócia importante e interventiva da B.... durante mais de 25 anos, integrando, com o Grupo D... e o E..., o «bloco português» de acionistas.
8. A B... detinha 56% (55,99%) do capital social do C..., sendo os restantes 44% detidos pela F..., sendo que aquele grupo (e a B..., que o encabeçava) vivia num equilíbrio (entre os membros do bloco português e entre este e a F...) construído e delineado em vários contratos, designadamente acordos parassociais, equilíbrio que, em meados de 2017, foi ameaçado com a notícia de que o E... se encontrava disposto a vender a sua participação na B...
9. Para a interpretação dos contratos celebrados, sobre vários temas e com intervenientes diversos, relativamente à B... e ao C... (v.g. vendas de participações sociais, continuidade dos acordos e equilíbrio de poder em caso de saída de acionistas, direitos de preferência, sentido de voto) – condicionantes ao exercício livre dos direitos sociais associados à participação por si detida, o Conselho de Administração da A... recorreu ao apoio jurídico da sociedade de advogados G..., no Porto, a quem pagou o valor total de € 69.259,49.
10. Em 2018, o E... vendeu a sua participação ao Grupo D..., sem que tenha sido dado conhecimento ao Grupo F..., tendo o impacto negativo na influência que a A... era desde então capaz de exercer sobre o C... e os elevados investimentos que se advinhavam levado a Requerente a vender, ainda em 2018, a sua participação no C... ao Grupo F... .
11. Em resultado dessa alienação, a A... apurou uma mais-valia no montante de € 118.331.721,42, a qual ficou isenta de tributação em sede de IRC em virtude da aplicação do regime fiscal de participation exemption previsto no artigo 51.º-C do CIRC.
12. A A... fez investimentos no valor total de € 7.616.876,40 na imobiliária H... tendo decidido, em 2018, por causa dos efeitos da crise financeira, livrar-se dos créditos que detinha sobre esta empresa, cedendo-os por € 3000, um valor muito abaixo do justo valor do mercado, tendo deduzido fiscalmente a menos-valia realizada por entender que a mesma tem um nexo com o interesse empresarial da A... . A A.., no ano de 2018, de forma indireta, através da I... (por si detida a 100%), injetou quase o dobro desse valor na H..., através de suprimentos.
13. Na sequência de uma ação inspetiva com início a 26.10.2021 e término a 03.03.2022, à qual estava subjacente a ordem de serviço n.º OI2021..., a AT emitiu uma liquidação de IRC n.º 2022..., relativa ao exercício de 2018, no valor de € 79.811,92, e respetivos juros compensatórios, consubstanciada na demonstração de acerto de contas n.º 2022..., de onde resultou um montante global a pagar de € 114.583,09;
14.Em reclamação graciosa deduzida pela Requerente no dia 28.09.2022, a A... contestou a correção referente aos gastos com a alienação de participações financeiras, constante do ponto III.1.1.1 do RIT e a correção relativa a perdas não relacionadas com os rendimentos sujeitos a IRC, constante do ponto III.1.1.2 do RIT;
15.A A... apontou ainda erros formais à liquidação, relacionados (i) com a dedução à coleta de crédito de imposto resultante do SIFIDE reportado de anos anteriores, no montante de € 50.704,65, e que a A... não havia utilizado em 2018 por ausência de coleta, e (ii) com a redução do valor das tributações autónomas consequente à «conversão» de prejuízo tributável em lucro tributável, tendo a AT deferido parcialmente as pretensões apresentadas pela A.. em particular, as relacionadas com os erros formais da liquidação;
16.Posteriormente foi emitida uma nova liquidação adicional de imposto, n.º 2023..., e respetivos juros compensatórios, consubstanciada na demonstração de acerto de contas n.º 2023..., onde se evidencia um montante global a reembolsar de € 12.862,02, na qual se corrigiu o valor das referidas tributações autónomas (cf. documento n.º 5, que se junta e se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais), tendo esse valor sido pago à A... no dia 02.06.2023.
17. A Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral deduzido do ato de deferimento parcial da reclamação, bem como, à cautela, da primeira liquidação adicional, na configuração que lhe foi atribuída pela segunda liquidação, e, bem assim, da segunda liquidação adicional acima identificada.
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Argumentos apresentados pelas partes
18. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido com base nos argumentos aqui sintetizados:
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A AT não apresentou uma única razão para ter considerado que os encargos suportados pela A... com assistência jurídica eram inerentes à operação de alienação de participações sociais celebrada com o grupo F...;
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A existência de um email enviado pela contabilista certificada da A..., no qual se indicou que os encargos com assistência jurídica respeitavam «ao processo de venda da participação na B...» não prova que se trate de encargos inerentes à operação de alienação em causa;
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A contabilista certificada não está a par de tudo o que acontece na empresa, não conhece o contexto das despesas de que toma conhecimento, não acompanha negociações, decisões de investimento ou desinvestimento, de gestão estratégica e especializada, não tendo estado presente nas reuniões com os advogados e consultores da A..., nem interagido com os mesmos, não conhecendo os temas que foram discutidos;
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Num email enviado a 26.05.2021, pelo Senhor Dr. J... (Administrador da K... Holding e Gerente da A...) ao Inspetor da AT Senhor Dr. L..., no âmbito de uma inspeção que decorria relativamente à K... Holding explicou-se que «a necessidade de recorrer a estes serviços decorreu das elevadas complexidade e dimensão (em valor) da referida transação»;
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Em sede de Inspeção, foi explicada à AT, de modo pormenorizado, a importância e grandeza que caracterizou a transação em causa;
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Pelas datas nas quais a G... emitiu as suas faturas, e que constam do Relatório de Inspeção Tributária não é razoável supor que os honorários incorridos até finais de outubro se reportassem que à transação com o grupo F..., em finais de 2018;
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A maioria daqueles serviços jurídicos respeitava a períodos muito anteriores à referida operação de venda, períodos nos quais a A... não alienou quaisquer participações, nem sequer ponderava ainda alienar a sua participação na B..;
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Apesar a colaboração entre a G... e a A... ter culminado na venda da participação da B..., não foi esse o objeto e o escopo da assistência jurídica contratada, sendo que só uma parte (reduzida) dos honorários cobrados respeitava de facto à revisão do contrato de compra e venda de ações elaborado pela equipa jurídica da F...;
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A eventual ligação entre os serviços jurídicos prestados e a operação de venda não é suficiente para que os respetivos encargos se considerem inerentes à mencionada venda, sendo que a nossa lei fiscal, neste domínio, não se refere a encargos relacionados com a venda, mas antes inerentes à venda;
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Beneficiando a contabilidade da A... de uma presunção de veracidade (artigo 75.º da LGT), a AT não cumpriu o ónus que lhe competia em matéria de prova da verificação dos pressupostos legais legitimadores da sua atuação (artigo 74.º da LGT);
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A despeito de fazer uma interpretação extraordinariamente restritiva do conceito de «encargos inerentes» a uma qualquer operação suscetível de gerar mais-valias tributáveis, a AT – no caso presente, sem fundamentar devidamente – trata como inerentes despesas suportadas numa operação que não coincide temporalmente com as datas em que essas despesas foram incorridas, e cujos documentos não referem nem indiciam qualquer ligação com a referida operação, não aplicando a lei fiscal de forma objetiva;
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O vocábulo “inerentes” é utilizado no artigo 46.º, n.º 2, do CIRC e no artigo 51.º do CIRS, a respeito da mesma regra de apuramento: cálculo de mais-valias decorrentes de operações de alienação de ativos, não estando em causa a veracidade das despesas nem o facto de as mesmas terem sido suportadas pela A..., pelo que a circunstância de ter ou não contabilidade organizada, versus algum regime simplificado, não é relevante para interpretação da expressão “inerente”;
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O qualificativo "inerente", logo etimologicamente - in re - contém, a se, uma ideia de inseparabilidade, uma relação intrínseca - que não meramente extrínseca - com a alienação: para ser considerada relevante, a despesa há de sê-lo pela sua posição relativamente à alienação, há de, em suma, ser dela indissociável. De outro modo: a despesa há de ser integrante da própria alienação;
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Os honorários suportados pela A... com apoio jurídico, não podem ser considerados obrigatórios para a realização da operação geradora de mais-valia, porque não eram subsumíveis, na sua totalidade, à operação de venda da participação na B...;
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A A... não pretende que lhe seja aplicado o disposto no artigo 51.º do CIRS, mas que a expressão constante do artigo 46.º do CIRC – idêntica, e proferida em contexto equivalente, à do referido artigo 51.º – seja interpretada à luz do que os tribunais, e a própria AT, já disseram sobre a primeira norma citada;
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Diante da frágil situação económico-financeira da H... – uma sociedade do ramo imobiliário em que a A... havia feito investimentos no valor de € 7.616.876,40 – a A... quis livrar-se dos créditos que detinha sobre a empresa, cedendo-os por € 3000, um valor muito abaixo do justo valor do mercado – não contestado pela AT – devendo a menos-valia ser dedutível por ter um nexo com o interesse empresarial e não com os interesses pessoais dos acionistas da A...;
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Ao ceder o crédito em 2018, ainda que por um valor reduzido, a A... «limpou» o seu balanço de um ativo indesejado e que, no limite, poderia trazer-lhe complicações (reputacionais, de relacionamento com os seus stakeholders, etc.) ou até prejuízos maiores, não o tendo feito anteriormente simplesmente por falta de oportunidade;
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O artigo 23.º do CIRC consagra como princípio geral que, para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis os gastos relacionados com a atividade do sujeito passivo e por este incorridos ou suportados, devendo a indispensabilidade dos gastos ser entendida de modo a considerar dedutíveis os incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respetivas atividades;
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A liberdade de iniciativa económica implica que a tributação das empresas incide sobre o rendimento real, pelo que o artigo 23.º do CIRC deve permitir a relevância fiscal de todas as despesas efetivamente concretizadas que sejam potencialmente adequadas a proporcionar proveitos ou ganhos, independentemente do resultado que em concreto proporcionaram, não competindo à AT avaliar a bondade ou a oportunidade da decisão de gestão dos sujeitos passivos;
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Deve existir uma ligação causal – potencial e abstrata – entre os encargos suportados e a realização de ganhos sujeitos a imposto, exige-se que essa relação seja instrumental do interesse da empresa e da prossecução das respetivas atividades e necessário que essa relação com o interesse empresarial seja devida e suficientemente suportada do ponto de vista probatório;
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Não se vê como se poderá razoavelmente supor que a A... investiria na H... durante mais de uma década, só com o objetivo de, onze anos depois do primeiro investimento, realizar uma perda – sobretudo quando aquela tinha pouca ou nenhuma influência sobre as condicionantes macro de que dependiam o sucesso ou insucesso desta (v.g. evolução do mercado imobiliário, aprovação de projetos);
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Os montantes financiados não foram utilizados pela H... para distribuição de lucros aos seus acionistas ou para concessão de empréstimos particulares, antes foram investidos em projetos imobiliários que, por razões supervenientes e inesperadas, não lograram granjear o sucesso antecipado, não havendo qualquer objetivo extrassocietário, nenhum interesse de terceiros em jogo, nenhuma tentativa forçada de diminuição da matéria coletável;
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Não ficou claro se os acionistas supostamente beneficiados pelos financiamentos e pela cessão de créditos efetuados foram os que saíram da sociedade em 2019, os que ficaram ou os da H..., não tendo a A...sido capaz de compreender a verdadeira razão pela qual a AT considerou que os atos por ela praticados violavam a lei fiscal, tendo esta violado o seu dever de fundamentação – expressa, clara, suficiente e congruente (artigos 268.º, n.º 3, da CRP e 77.º, n.º 1, da LGT);
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Ao desconsiderar a relevância fiscal da perda sofrida pela A..., a AT violou os princípios da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real e líquido e, em consequência, da justiça, da legalidade e da igualdade (cf. artigos 13.º, 104.º, n.º 2, e 268.º, n.º 3, da CRP).
18.1. Com base nestes argumentos, a Requerente pede a anulação da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa apresentada pela requerente, bem como das liquidações adicionais de IRC acima identificadas e das respetivas liquidações de juros compensatórios, com todas as consequências legais.
19. A Requerida respondeu sustentando que o presente pedido deve ser julgado improcedente, com os fundamentos a seguir sintetizados:
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Como a pretensão da Requerente é ver declarada a ilegalidade do ato de liquidação, e considerando que nos termos, da alínea a), do n.º 1, do art.º 2.º do RJAT, o valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do CPPT (n.º 2 do art.º 3.º do RCPA), resulta que, de acordo com alínea a), do respetivo n.º 1, o valor da causa, no caso de impugnação do ato de liquidação, é o da importância cuja anulação se pretende;
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O valor apurado na Demonstração de acerto de contas n.º 2022..., de 13.04.2022, no montante total a pagar de €114.583,09, traduziria, em termos económicos o efeito das correções contestadas, caso não tivesse sido entretanto reconhecido, em sede de procedimento de reclamação graciosa, o direito à dedução do SIFIDE e a possibilidade de ser tributada autonomamente em montante inferior, originando a nota de reembolso n.º 2023..., de valor €12.862,02 (reembolsado em 04.07.2023);
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Diante do valor de utilidade económica do pedido apresentado pela Requerente o valor da causa deverá ser fixado em €101.721,07 e não no montante pretendido pela Requerente de €1.613.458,54 em respeito ao disposto na alínea e) do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT;
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A mais-valia foi incorretamente calculada porque deveria incluir o valor suportado pela A... com os honorários cobrados pela G..., uma vez que estes consistiam em encargos inerentes à alienação das partes de capital para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 46.º do CIRC, devendo ser a dedução desses encargos desconsiderada ao abrigo do artigo 23.º do CIRC;
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A A... foi concedendo financiamentos à H... com o intuito de, mais tarde, ceder o crédito correspondente por um valor inferior ao seu valor nominal, com vista a registar uma perda que reduziria o resultado tributável;
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A A... e a H..., à data dos factos (no decorrer do financiamento e da cessão, em 2018), tinham os mesmos sócios maioritários, todos com participações diretas e indiretas igualitárias que totalizavam 90,45% na requerente e de 60% na H...;
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A administradora da sociedade M..., S.A., detentora de 20% do capital da H...) e é gerente da N... - Imobiliária Unipessoal Lda, empresa constituída em 26.04.2018 e detida a 100% pela A...;
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O cessionário da cessão de crédito sobre a H..., era casado a filha de um dos sócios maioritários tanto da A... e da H..., que detinha, direta e indiretamente, 30,15% no capital da A... e 20% do capital da H..., tal como os outros 2 sócios;
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Não ficou justificado como se pode considerar €3.000,00 um preço de mercado adequado/justo (cfr. §134.º do PPA) para um crédito de valor nominal de €7.616.876,40 – originando um gasto de €7.613.876,40 -, quando 8 meses antes, e sem ser apresentada qualquer justificação que permita compreender a alteração da sua própria avaliação sobre a H..., se financiou a I... para comprar crédito (€14.618.901,10) sobre a H... pelo seu valor nominal;
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A opção de querer retirar/anular ativo do Balanço da Requerente, não resultou nem de uma alteração da situação financeira da H... (que era uma situação de prejuízos que já se arrastava desde 2012, que nem por isso, invalidou a possibilidade de ter continuado a incrementar aquela divida), nem de uma alteração de perceção por parte da Requerente (já que nesse mesmo ano adquire indiretamente mais crédito da H..., através da I...– que apesar de não constar no Balanço como crédito sobre aquela sociedade, encontra-se a coberto e sob a rubrica de suprimentos, garantidos somente por aquele crédito).
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As decisões relacionadas com o financiamento da H... foram tomadas no interesse dos acionistas comuns de ambas as sociedades e, posteriormente, aquando da cessão dos créditos, no dos dois acionistas que alienaram as suas participações sociais no capital da A... e reforçaram as suas participações sociais no capital da H..., em detrimento do interesse próprio da A...;
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A cessão de créditos dos créditos sobre a H... foi efetuada com a intenção de beneficiar os interesses pessoais dos acionistas da A... através da redução do resultado tributável em IRC desta sociedade;
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Diante os factos relatados e as alterações societárias que ocorreram no GRUPO O... (no ano de 2019) posteriormente àquela operação de cessão do crédito por um valor insignificativo, deduziram aqueles SIT, que, “não tendo sido apresentadas justificações fundamentadas para a realização da operação de cessão de crédito, por um preço simbólico, apenas se pode concluir que tal operação foi realizada no interesse pessoal dos acionistas do grupo O..., que também eram acionistas da H...”, e como tal, a perda resultante da cessão de crédito no valor de €7.613.876,40, não poderá ser aceite fiscalmente, nos termos do n.º1 do art.º 23.º do CIRC;
19.1. Com base nestes argumentos, a Requerida sustenta que deve ser alterado o valor da causa e o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.
II. SANEAMENTO
20. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.
21. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. art.s 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e art.s 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
III. Do Mérito
22. Com base nos elementos colhidos no RIT e no PA e os demais documentos trazidos aos autos elencam-se os factos dados como provados e não provados. A audição do depoente, ainda que esclarecedora em vários pontos, em nada alterou a convicção do tribunal formada a partir da documentação constante dos autos.
III.1.1. Factos provados
23. São estes os factos dados como provados:
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Em 1993, a A... adquiriu uma participação representativa de 20,05% do capital social da sociedade «B... Lda.» (doravante, «B...»), a sociedade maioritária do Grupo C... (C...), pelo preço (custo de aquisição contabilístico) de € 24.483.692,91;
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A B... detinha 56% (55,99%) do capital social do C..., sendo os restantes 44% detidos pelo Grupo F...;
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O Conselho de Administração da A... recorreu ao apoio jurídico da sociedade de advogados G..., no Porto, a quem pagou o valor total de € 69.259,49;
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Em 2018, a A... a vendeu a sua participação no C... ao Grupo F... tendo apurado uma mais-valia no montante de € 118.331.721,42, a qual ficou isenta de tributação em sede de IRC em virtude da aplicação do regime fiscal de participation exemption previsto no artigo 51.º-C do Código do IRC;
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A A... fez investimentos no valor total de € 7.616.876,40 na imobiliária H... tendo decidido, em 2018, livrar-se dos créditos que detinha sobre esta empresa, cedendo-os por € 3000 e deduzindo a menos-valia realizada;
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Em 2018, de forma indireta, através da I... (por si detida a 100%e financiada através de suprimentos), a A... injetou quase o dobro daquele valor num outro crédito sobre a H...;
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Na sequência de uma ação inspetiva com início a 26.10.2021 e término a 03.03.2022, à qual estava subjacente a ordem de serviço n.º OI2021..., a AT emitiu uma liquidação de IRC n.º 2022..., relativa ao exercício de 2018, no valor de € 79.811,92, e respetivos juros compensatórios, consubstanciada na demonstração de acerto de contas n.º 2022..., de onde resultou um montante global a pagar de € 114.583,09;
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Em reclamação graciosa deduzida pela Requerente no dia 28.09.2022, a A... contestou a correção referente aos gastos com a alienação de participações financeiras e a correção relativa a perdas não relacionadas com os rendimentos sujeitos a IRC;
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A A... apontou ainda erros formais à liquidação, relacionados, nomeadamente, com a dedução à coleta de crédito de imposto resultante do SIFIDE reportado de anos anteriores, no montante de € 50.704,65, e que a mesma não havia utilizado em 2018 por ausência de coleta;
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A AT emitiu uma nova liquidação adicional de imposto, n.º 2023..., e respetivos juros compensatórios, consubstanciada na demonstração de acerto de contas n.º 2023..., onde se evidencia um montante global a reembolsar de € 12.862,02, na qual se corrigiu o valor das referidas tributações autónomas (cf. documento n.º 5, que se junta e se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais), tendo esse valor sido pago à A... no dia 02.06.2023.
III.1.2. Factos não provados
24.Não se deu como provado que só uma pequena parte dos honorários pagos à G... por serviços jurídicos prestados tenha tido relação com a venda da participação da A... na B... .
III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
25. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
26. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
III.2. MATÉRIA DE DIREITO
27. Importa neste momento entrar na discussão das questões decidendas respeitantes à determinação do valor da causa e ao enquadramento jurídico-tributário dos encargos relacionados com o apoio jurídico contratado pela A... e da cessão, pelo valor de €3.000,00, do crédito sobre a H... .
3.2.1. Valor da causa
28.Como acima mencionado, a AT, na sua resposta questionou o valor atribuído à causa pela Requerente.
A questão foi decidida por despacho arbitral de 25/02/2024, que mereceu a concordância de todos os árbitos, de 25 de fevereiro, que se trancreve:
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Na sua resposta, a Requerida AT afirma o seguinte: No caso em apreço, o PPA vem impugnar todas as correções que deram origem ao ato de liquidação adicional agora mediatamente contestado, pretendendo que sejam anuladas todas aquelas correções, e consequentemente, a liquidação adicional e respetivos juros compensatórios no seu todo. Assim, o valor apurado na Demonstração de acerto de contas n.º 2022..., de 2022.04.13, no montante total a pagar de €114.583,09, traduziria, em termos económicos o efeito das correções contestadas, caso, não tivesse sido entretanto reconhecido, em sede de procedimento de reclamação graciosa, o direito à dedução do SIFIDE e a possibilidade de ser tributada autonomamente em montante inferior, originando a nota de reembolso n.º 2023..., de valor €12.862,02 (reembolsado em 2023.07.04). Assim, em termos líquidos, entende-se que o valor económico do pedido que se encontra agora em apreciação é de €101.721,07 (=€114.583,09-€12.862,02). Nestes termos e diante do valor de utilidade económica do pedido apresentado pela Requerente o mesmo deverá ser fixado em €101.721,07, e não o montante pretendido pela Requerente de €1.613.458,54 (em respeito ao disposto na alínea e) do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT).
Ouvidas as partes na reunião a que se refere o art. 18º do RJAT, pode concluir-se. que o valor indicado pela Requerente terá resultado de lapso ou de excesso de prudência
2- Temos, em suma, que o valor das correções postas em crise neste processo é de €1.613.458,54 e que o valor da liquidação de imposto delas resultante é de €101.721,07. A questão que se coloca é a de saber qual destes montantes deve relevar para a fixação do valor da causa.
3- O reconhecimento da divisibilidade do ato tributário está hoje consolidado na jurisprudência: a liquidação pode ser ilegal só em parte, pelo que pode ser anulada também só em parte.
O ato tributário, porque se reconduz a uma quantidade monetária, é uma realidade divisível. O contribuinte que se não conforme com parte (por oposição ao todo) de um ato tributário, pode (e deve) segregar essa parte das demais para efeitos de:
(i) requerer apenas a anulação dessa parte; e
(ii) indicar, em função do valor dessa parte, um valor para a causa.
Isto acontece frequentemente, sem que se conheça oposição da AT a este modo de proceder. Este é, sublinha-se, o único modo de proceder proporcional, porque respeitador do ato tributário na parte em que não haja discordância entre a AT e o contribuinte.
Neste sentido, entre muitos outros, veja-se o acórdão do STA de 02.12.2015, proferido no processo n.º 0754/15 e a decisão do CAAD de 30.11.2020 no Processo n.º 901/2019-T.
4- Tal como a Requerida, este tribunal arbitral entende que a adequada pronúncia sobre esta exceção deve partir do disposto no artigo 97.º-A, do CPPT, aplicável à arbitragem tributária ex vi artigo 29.º, do RJAT, que, no que aqui importa, dispõe o seguinte:
Artigo 97.º‐A
Valor da causa
1 ‐ Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as acções que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes:
a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende;
b) Quando se impugne o acto de fixação da matéria colectável, o valor contestado;”
Sobre a articulação destas duas alíneas já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, designadamente no acórdão proferido em 14 de outubro de 2020, no processo n.º 062/18 no sentido de que:
“Na senda de Jorge Lopes de Sousa, in CPPT Anotado, vol II, em anotação ao artigo 97º‐A, entendemos que só quando da fixação da matéria tributável não resulte o apuramento de imposto a pagar é que se será de adoptar o critério do “valor contestado” para determinar o valor da ação, e, nos demais casos, o valor a atender condirá com o valor da prestação pecuniária que se pretende ver anulada, o que vale por dizer, que apenas nos casos em que está em causa o acto de fixação da matéria tributável [al. b)] ou o ato de fixação dos valores patrimoniais [al. c)] é que o critério a atender é o “valor contestado”. Por assim ser, quanto às situações abrangidas pela alínea a) do nº1 do artigo 97º‐A do CPPT, é pacífico que as mesmas se atêm à expressão monetária da “utilidade económica imediata do pedido.”
“(…) como é incontroverso, o critério contemplado na alínea a) do nº1 do artigo 97º‐A do CPPT, pressupõe que da fixação da matéria tributável resulte imposto a pagar, de jeito a poder determinar‐se a importância que se pretende ver anulada (…)”
Neste caso concreto, a Requerente apenas contesta duas correções, mas o que peticiona é o ato de liquidação na parte em que se materializa em imposto a pagar em decorrência de tais correções.
Pelo que, nos termos da já citada al. a) do nº 1 do art. 97º-A do CPPT, se fixa o valor da causa em € 101.721,07
3.2.2. Encargos relacionados com o apoio jurídico contratado
29.A Requerente, no ano de 2018, terá, alegadamente, apresentado a sua Declaração de Rendimentos – Modelo 22 de forma inexata (em resultado do incorreto preenchimento do Mapa 31), quando deduziu no Quadro 07 daquela declaração um valor superior ao devido, descurando o valor dos gastos com serviços jurídicos inerentes à transmissão da participação social. Entende a AT que ao montante de €118.331.721,42 (ganho contabilístico resultante da transmissão da participação social) deveria ter sido o deduzido o montante €69.259,49, a título de gastos suportados com o apoio jurídico nas fases de preparação, negociação e formalização da operação de venda da participação social, portanto, inequivocamente inerentes à alienação da participação na B... conforme estabelece o art.º 46.º, n.º 2 do CIRC.
30.Contrapõe a Requerente que a existência de um email enviado pela contabilista certificada da A..., no qual se indicou que os encargos com assistência jurídica respeitavam ao processo de venda da participação na B..., não prova que se trate de encargos inerentes à operação de alienação em causa. Argumenta que a contabilista certificada não está a par de tudo o que acontece na empresa, não conhece o contexto das despesas de que toma conhecimento, não acompanha negociações, decisões de investimento ou desinvestimento, de gestão estratégica e especializada, não tendo estado presente nas reuniões com os advogados e consultores da A..., nem interagido com os mesmos, não conhecendo os temas que foram discutidos. Alega ainda que pelas datas nas quais a G... emitiu as suas faturas, e que constam do Relatório de Inspeção Tributária, não é razoável supor que os honorários incorridos até finais de outubro se reportassem que à transação com o grupo F..., em finais de 2018.
31.Quanto a esta matéria específica, os factos apurados em sede de procedimento inspetivo são os que resultam da contabilidade da Requerente e da informação cedida pela contabilista, cuja prova em contrário não foi apresentada pela Requerente, sendo que o ónus da prova previsto no n.º 1 do art.º 74.º da LGT apenas recaí sobre AT se esta invocar factos que não decorram da contabilidade e da declaração apresentada pelo contribuinte, o que não acontece no caso em apreço.
32.Acresce que não foi apresentada ao longo dos procedimentos administrativos de Inspeção Tributária e de Reclamação Graciosa, nem trazida aos autos do presente processo, qualquer nota de honorários dos advogados com aptidão para demonstrar que tais encargos não se restringiram somente à operação de transmissão da participação que a A... detinha na B... . Por outro lado, as faturas referentes àqueles encargos são todas datadas do ano de 2018 e os respetivos descritivos referem-se a serviços prestados e deslocações efetuadas também naquele ano, ano em que ocorreu a referida transmissão da participação na B... .
33. Não tendo a Requerente fundamentado a origem da sua pretensão, demonstrando que tais despesas/encargos em serviços jurídicos (ocorridas e reconhecidas contabilisticamente como gastos, em 2018) tinham subjacentes outras transações que não a operação de transmissão da participação social na sociedade B..., afigura-se razoável e juridicamente defensável a conclusão da AT de que as mesmas têm que ser assumidas como dizendo respeito à transmissão da participação naquela sociedade, já que assim foram reconhecidas na contabilidade, “pela mão” da própria contabilista.
34. É certo que a Requerente alega que a eventual ligação entre os serviços jurídicos prestados e a operação de venda não é suficiente para que os respetivos encargos se considerem inerentes à mencionada venda, sendo que a lei fiscal, neste domínio, não se refere a encargos relacionados com a venda, mas antes inerentes à venda, argumento que reforça com uma menção ad absurdum, nas alegações finais, a despesas de eletricidade, deslocações e alimentação. No entender da Requerente, o vocábulo “inerentes” é utilizado no artigo 46.º, n.º 2, do CIRC e no artigo 51.º do CIRS, a respeito da mesma regra de apuramento: cálculo de mais-valias decorrentes de operações de alienação de ativos, não estando em causa a veracidade das despesas nem o facto de as mesmas terem sido suportadas pela A..., pelo que a circunstância de ter ou não contabilidade organizada, versus algum regime simplificado, não é relevante para interpretação da expressão “inerente”.
35. Decorre do artigo 11.º da LGT – e do princípio da precisão, clareza e determinabilidade das leis ínsito no princípio do Estado de direito – um princípio hermenêutico geral orientado para a estabilidade semântica na interpretação jurídica, segundo o qual – à falta de previsão inequívoca em sentido diverso ou de manifesta ausência de paralelismo factual ou teleológico –, no sistema jurídico em geral e no sistema fiscal em especial, os conceitos devem conservar o mesmo significado nos diferentes ramos do direito. Ou seja, a mesma realidade não deve ser designada por conceitos diferentes e realidades diferentes não devem ser designadas por um único conceito, sob pena de se causar incerteza e insegurança jurídica e divergências jurisprudenciais, ferindo a unidade do ordenamento jurídico.
36. A interpretação de uma só palavra é parte da interpretação do sistema jurídico no seu todo, o que se repercute no modo lógica e teleologicamente consistente como o conceito de “inerente” deve ser interpretado em sede de IRC e IRS. No entanto, do ponto de vista metódico, o mesmo conceito pode ser aplicado de maneira diferente quando a isso obrigar uma análise cuidada de todos os factos e circunstâncias relevantes. A qualificação de determinadas despesas empresariais com serviços jurídicos como encargos inerentes a uma transação geradora de mais-valias, para efeitos do artigo 46.º, n.º2, do CIRC, não pode abdicar da consideração da respetiva complexidade e de ter em conta que, em abstrato, a mesma pode ser muito variável de transação para transação.
37. No caso concreto, tendo em conta todos os elementos carreados e não carreados para os autos e as considerações sobre uns e outros acima expendidas, afigura-se procedente o entendimento da AT nos termos do qual a complexidade do enquadramento factual que antecedeu a decisão de alienação da participação na B... bem como das operações de negociação do contrato de compra e venda permitem que se considerem os encargos da A... com a assessoria jurídica como como imprescindíveis, podendo afirmar-se com propriedade e fundamentação suficiente que se está diante de encargos inerentes à realização das mais-valias resultantes da transação em causa, não tendo a Requerente remetido aos autos prova do contrário, quendo poderia fazê-lo com relativa facilidade.
3.2.3. Cessão do crédito
38. A A... tem como atividade a indústria metalúrgica e metalomecânica, designadamente a fabricação de máquinas e equipamentos para atividades industriais e de elementos de construção em metal. Do seu objeto social não consta que tenha sido constituída para ceder empréstimos às restantes sociedades do Grupo. A prática de financiamento é afastada da atividade para a qual foi constituída.
39. Não obstante, foram apuradas duas operações de concessão de crédito por parte da Requerente. A primeira, resulta do empréstimo direto e faseado à H... (que ascendeu a €7.616.876,40) – justificado pela necessidade de garantir condições mais favoráveis do que as oferecidas pela banca – e a segunda, resulta da aquisição do crédito sobre H... (€14.618.901,10) por parte da I... financiada a 100% pela A... (através de suprimentos).
40. No âmbito da primeira operação, existia um acordo entre a A... e a H... no sentido de aquela poder converter esse crédito (i.e. €7.616.876,40) em capital, a decidir numa fase mais avançada dos projetos da H... . No entanto, alegando a inviabilidade ulteriormente verificada dos mesmos, nomeadamente por razões de ordem urbanística Requerente não aproveitou essa possibilidade, tendo antes optado por ceder o crédito (direto) sobre a H... (de valor nominal de €7.616.876,40) pelo valor de €3.000,00, considerado o valor de mercado, gerando uma perda contabilística objeto da correção controvertida no montante de €7 613 876,40. As implicações jurídico-fiscais desta operação impõem uma análise contextual atenta a todos os factos e circunstâncias relevantes.
41. A A... alegou que, desde 2012, a H... sempre teve numa situação de prejuízos, que se foi mantendo ao longo dos anos. No entanto, isso não impediu a A... de injetar dinheiro naquela sociedade, alegadamente por considerar os seus projetos como promissores. Não obstante, a dualidade dos critérios utilizados não se afigura de fácil inteleção. A um tempo, a A..., através da I..., incrementou o seu crédito sobre a H..., quando adquiriu ao E... o crédito pelo seu valor nominal. Por outro lado, “limpou” o seu ativo por valor muito inferior, de €3 000. Os gastos aqui em causa, resultam apenas do financiamento direto à H... mas importa ter conta que, apesar da intenção de se desfazer rapidamente do “crédito mal parado”, a A..., paralelamente, acumulou suprimentos junto da I..., cujo único ativo que detém é o crédito sobre a H... .
42. Aos olhos deste tribunal, a opção de querer retirar/anular um ativo do Balanço da A... não parece ter resultado de uma alteração da situação financeira da H... (que era uma situação de prejuízos que, pelos, vistos já se arrastava desde 2012), que nem por isso, impediu o incremento daquela divida. Do mesmo modo, essa opção não encontra justificação numa qualquer alteração de perceção por parte da A... . Esta, no mesmo ano de 2018, adquiriu indiretamente mais crédito da H..., através da I... – que apesar de não constar no Balanço como crédito sobre aquela sociedade, encontra-se a coberto e sob a rubrica de suprimentos, garantidos somente por aquele crédito.
43. Em abstrato, a racionalidade operação em análise não é imediatamente percetível, tendo com conta a disparidade dos valores do crédito em causa e o montante recebido pela respetiva cessão. A sociedade H... continuava obrigada a pagar a dívida pelo seu valor nominal, pelo que não parece que a referida situação de prejuízos justifique, por si só, o querer desfazer-se de um crédito (de um ativo, não de um passivo) que, eventualmente, poderia estar numa situação de imparidade. Recorde-se, que no ano de 2018, a A..., de forma indireta, através da I... (por ela detida a 100%), injetou quase o dobro do valor num outro crédito sobre a H... . Também não parece plausível, tendo em conta os factos e circunstâncias relevantes, a alegação de que o incumprimento por parte da H... causasse danos reputacionais à A... .
44. Se a A... estivesse absolutamente convencida da incapacidade da H... de cumprir as suas obrigações diante dos credores, dificilmente se compreenderia a segunda operação mencionada, a saber, a aquisição do crédito sobre H... (€14.618.901,10) por parte da I..., financiada a 100% pela A... através de suprimentos. Não é fácil compreender, como, depois de todos os financiamentos ao longo dos anos e dos suprimentos efetuados junto da sua participada, a A... tenha apresentado um gasto daquele montante. Em concreto, adquire plausibilidade a existência de outras motivações quando se tem em conta que a sociedade H..., aquando dos financiamentos e na data da cedência do crédito (ao longo dos anos de 2008 a 2018), tinha em comum com a A... os mesmos sócios maioritários.
45. Uma análise aproximada da transação permite constatar que a cessão do crédito por €3.000,00 foi feita a pessoa que tem relações familiares com uma outra que tem relações especiais e acesso a informação privilegiada sobre a H... e a A... . É razoável supor que, em data posterior àquela cessão, a dar-se uma conversão do crédito em capital, o capital H... reverterá a favor dessa mesma pessoa. Por outro lado, se a H... pagar a sua dívida (ainda que em períodos posteriores) esse pagamento também reverterá para esse novo titular. Em face do exposto, afigura-se inteiramente razoável deduzir, como fez a AT, que a A..., quando não exerceu a possibilidade de converter seu crédito em capital na H... ou não optou pela sua manutenção em balanço, optando por aceitar uma perda no valor de €7.613.876,40, somente com o pretexto de “limpar ativos”, fê-lo porque havia interesse na operação por parte de terceiros.
46. Este tribunal não consegue discernir um qualquer interesse societário que possa justificar economicamente a operação de cessão de crédito sobre a H..., cuja perda reverteu para a A..., para além do interesse que possa ter resultado para o Grupo O... ou para os sócios da A..., que serão necessariamente interesses alheios à prossecução da respetiva atividade. Acresce que que não é fácil, para um terceiro independente e imparcial como é este tribunal, considerar €3.000,00 um preço de mercado adequado/justo para um crédito de valor nominal de €7.616.876,40 – originando um gasto de €7.613.876,40 -, quando oito meses antes, e sem ser apresentada qualquer justificação que permita compreender a alteração da sua própria avaliação sobre a H..., ter financiado a I... para comprar crédito (€14.618.901,10) sobre a H... pelo seu valor nominal. A dificuldade em discernir uma relação de proximidade destas transações com o propósito económico (business purpose) aumenta quando se considera que se está diante de sociedades e sócios com relações especiais entre si.
47. Ainda assim, a operação de cessão de crédito e respetivo valor não foram postos em causa pela AT, a despeito da apontada disparidade entre os valores subjacentes ao crédito e à sua cessão e o facto de se estar diante de transações entre entidades relacionadas. A AT questionou apenas a dedutibilidade fiscal da perda que originou, nos termos do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC, considerando que a A... assumiu gastos (perdas) que não tinham como principal propósito a prossecução do seu interesse, mas sim do interesse do GRUPO O... ou dos seus sócios individualmente considerados. Dificilmente poderá a assunção de gastos com perdas havidas com um crédito (cuja manutenção poderia traduzir no seu recebimento futuro ou na conversão em capital) ser imputada aos interesses societários da Requerente
48. O n.º 1 do artigo 23.º do CIRC não permite a dedução de despesas cuja efetivação não se pode imputar aos interesses societários, mas aos interesses pessoais dos sócios ou de terceiros. E isso implica que, quanto a um conjunto vasto de despesas, onde se dá a interseção entre esfera pessoal e societária ou entre diversas esferas societárias, se deva concluir que, em regra, não existe um interesse coletivo da empresa. Por esse motivo, o referido artigo não deve ser interpretado como permitindo a dedução fiscal decorrente da assunção de gastos (perdas) relacionados com a cedência de um crédito, em resultado da necessidade de garantir a manutenção da atividade de outra sociedade do Grupo (a H...), quando esses mesmos gastos poderiam não acontecer, quer por via de um pagamento futuro daquela sociedade quer por via de conversão da dívida em entrada de capital (no ano anterior à operação).
49. A correção efetuada pela AT, agora contestada, apresenta fundamentação de facto (não contrariada pela Requerente) e de direito que permite concluir com suficiente segurança que o gasto reconhecido contabilisticamente, com a perda resultante da cessão de crédito existente sobre a H..., não pode ser deduzido fiscalmente ao lucro tributável da Requerente, por não respeitar o disposto no n.º 1 do art.º 23.º do CIRC.
50. O que se afigura decisivo a este tribunal, em face do disposto no n.º 1 do art.º 23.º do CIRC, é o facto de, objetivamente, a A... não ter atuado com o principal propósito de promover os próprios interesses empresariais, como logicamente se deduz quando, em atividades fora do escopo societário (i.e. financiamento de outras empresas do grupo), se dispôs a assumir gastos com perdas em créditos sobre outra empresa cujos sócios maioritários eram os mesmos que os da Requerente, ficando assim demonstrado que esses gastos foram incorridos no interesse de terceiros e não no da promoção de uma função ordinária e necessária da sua atividade empresarial.
3.2.4. Juros compensatórios
51. Nos termos do artigo 35.º, n.os 1 e 2 da LGT, são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária, e ainda quando o sujeito passivo, por facto a si imputável, tenha recebido reembolso superior ao devido. Os juros compensatórios revestem a natureza de um agravamento da própria dívida de imposto, com vista – como a própria designação indica – a compensar o Estado pela perda da quantia que não foi liquidada no momento em que deveria ter sido. Os mesmos integram-se na dívida do imposto, sendo liquidados conjuntamente com ela.
52. Diante da factualidade dos autos, e da resultante infração dos artigos artigo 51.º-C e 23.º, nº1, do CIRC, afigura-se serem devidos juros compensatórios porquanto houve retardamento daquela liquidação, existindo também um nexo de causalidade entre a atuação do contribuinte e as consequências referidas, lesivas para o credor Estado.
53. Não tendo a Requerente alegado nem provado que o não pagamento se ficou a dever a erro desculpável, nem sendo de entender-se – atenta a redação das normas em apreço e o especial fim que lhes está associado, e atenta a natureza jurídica do sujeito passivo e os especiais cuidados que sobre si recaem na forma como realiza as suas operações económicas – que é desculpável o comportamento que assumiu, encontra-se comprovada a ilegalidade da conduta (não pagamento do imposto no momento e valores devidos), concluindo-se pela verificação de dos pressupostos do artigo 35.º da LGT sobre juros compensatórios.
IV. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral alterar o valor da causa e julgar improcedente o pedido arbitral formulado, por não provado, e, consequentemente, absolver a Requerida de todos os pedidos, com as devidas e legais consequências.
V. VALOR DO PROCESSO
Nos termos do anteriormente exposto sobre o valor do processo, este é fixado em €101.721,07, nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA, no art. 97.º-A do CPPT e no artigo 299.º, n.º1, do CPC, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e ainda do art. 3.º- A do Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária (RCAT).
VI. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao RCAT, o valor das custas é de € 3 060.00, a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 20 de março de 2024
Árbitro Presidente
(Rui Duarte Morais)
Árbitra Vogal
(Marta Vicente)
Árbitro Vogal (relator)
(Jónatas E. M. Machado)