Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 618/2023-T
Data da decisão: 2024-03-18  IRS  
Valor do pedido: € 1.457,76
Tema: IRS – Rendimentos Prediais; Taxa de tributação autónoma - artigo 72º nº5 do CIRS; Aplicação da lei no tempo.
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SUMÁRIO:

1-A versão dos nº2, 3, 4 e 5 do artigo 72º do CIRS introduzida pela Lei  nº 119/2019 de 18 de Setembro apenas tem aplicação aos contratos de arrendamento celebrados após a entrada em vigor em 01 de Outubro de 2019.

2-Os contratos de arrendamento, habitacionais e não habitacionais celebrados durante a vigência da Lei nº3/2019 de 9 de Janeiro beneficiam das reduções de taxa de tributação autónoma previstas na versão do artigo 72º do CIES introduzida pela Lei nº3/2019 de 9 de Janeiro.

 

DECISÃO ARBITRAL

I-RELATÓRIO

 

1. No dia 01 de Setembro de 2023, A..., titular do Número de Identificação Fiscal..., residente em ..., ... ...-... ..., doravante “Requerente” apresentou pedido de constituição de tribunal e pronúncia arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), respeitante à liquidação de IRS nº 2023... relativa ao ano de 2022, no valor de € 1.954,62 (mil novecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e dois cêntimos), por entender que a referida liquidação é  ilegal, por  erro sobre os pressupostos de direito, no que concerne ao imposto liquidado relativo à tributação autónoma de rendimentos prediais, requerendo a declaração de ilegalidade parcial da liquidação, e o consequente reembolso do de imposto indevidamente cobrado em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, desde a data em que o Requerente efetuou o pagamento, até ao integral e efetivo pagamento do montante a restituir.

 

2.No dia 01 de Setembro de 2023  foi aceite o pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

 

3.No dia 08 de Novembro de 2023 foi constituído o Tribunal Arbitral.

 

4. Em 09 de Novembro de 2023, foi a Requerida notificada nos termos e para os efeitos do n.ºs 1 e 2 do art. 17.º do RJAT para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, solicitar a produção de prova adicional, e para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo.

 

5. Em 11 de Dezembro de 2023 a Requerida juntou a sua resposta, defendendo-se por impugnação. Concluído a Requerida que o PPA deve improceder por falta de apoio legal.

 

6. Tribunal Arbitral por despacho de 16 de Dezembro de 2023,  dispensou a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, dado que as questões que subsistem nos autos são essencialmente de direito,  e que  se trata, no caso, de processo não passível duma definição de trâmites processuais específicos, diferentes dos habitualmente seguidos pelo CAAD na generalidade dos processos arbitrais. Mais facultou às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas no prazo simultâneo de 15 dias, contados da notificação do despacho.

 

7. Em 03 de Janeiro de 2024 o Requerente juntou aos autos alegações.

 

8. Em 17 de janeiro de 2023 a Requerente Juntou aos autos alegações.

 

II. Descrição Sumária dos Factos

II.1 Posição do Requerente

O Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

  1. O Requerente na sua declaração modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2022, no anexo F declarou dois contratos de arrendamentos comerciais celebrados em 8 Julho de 2019 pelo prazo de vinte anos com rendimento ilíquido conjunto de €8.305,20 euros e despesas de manutenção de €699,20.
  2. Contratos que  foram registados no Serviço de Finanças de ... em 15 de Julho de 2019, com imposto de selo, liquidado e pago em 26 de Julho de 2019.
  3. Contratos de arredamento que o Requerente entende ser  aplicável o  benefício de redução da taxa de imposto em  dezoito pontos percentuais ao abrigo do disposto no nº 5 do artigo 72º do CIRS, na redação dada pela Lei nº 3/2019, de 9 de Janeiro.
  4. Benefício fiscal que determinou a decisão do Requerente em celebrar contratos de arrendamento pelo prazo de 20 anos. Se tal regime fiscal não tivesse em vigor o Requerente apenas celebraria contratos de curta duração, os quais nessa circunstância corresponderiam aos interesse do Requerente.
  5. Tendo em conta que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), não liquidou o imposto com base na redução de taxa que o Requerente defende ser-lhe aplicável, este entende que a AT liquidou imposto em excesso no montante de € 1.457,76.
  6. Entende o Requerente que resulta de forma clara que nos termos do artigo 2º da Lei 3/2019, a nova redação dos números 2, 3, 4 e 5 do artigo  72º do CIRS  aplica-se a todos os contratos de arrendamento, pois o legislador não restringe a aplicação das referidas reduções de taxas a qualquer espécie de arrendamento em particular.
  7. Por sua vez a Lei 119/2019 estabeleceu a sua entrada em vigor  01 de Outubro de 2019, não constituindo esta, na posição do Requerente, uma lei interpretativa da Lei 3/2019, operando antes à revogação de parte do constante do artigo 2º desta.
  8. Considerando o Requerente constituir um erro de aplicação de lei o entendimento da Requerida que o regime introduzido pelo artigo 2º da Lei 119/2019   aplica-se a todo o ano de 2019, substituindo “ex tunc” aquele que foi instituído pelo artigo 2º da Lei 3/2019.
  9. O Requerente traz à colação o artigo 103º da Constituição de que resulta a proibição de retroatividade normas fiscais que causem prejuízo ao cidadão. Entendendo  que anular retroativamente  benefícios fiscais que ao requerente legalmente cabem, tem o mesmo efeito e significado que obrigar a pagar um imposto com natureza retroativa; os benefícios fiscais obedecem aos mesmos princípios que os impostos.
  10. Concluído que as normas da Lei 119/2019 e do artigo  330º da Lei 2/2020, na interpretação que lhes é dada pela AT, são manifestamente inconstitucionais por violação do artigo 103º da Constituição.
  11. Nestes termos entende o Requerente que a postura da AT na questão “sub judice” coloca  em crise o “princípio da confiança”.
  12. Em defesa da sua posição o Requerente traz para o efeito as decisões arbitrais proferidas em 2021/08/25 e em 2022/11/16 nos Processos nº 389/2020-T e nº 571/2021-T.
  13. Apresentado  o Requerente como pedido do seu PPA que o Tribunal Arbitral:
    1. Declare que a atribuição de efeitos retroativos à Lei 119/2019, de 18 de Setembro, quer por a considerar lei interpretativa da Lei 3/2019, de 9 de Janeiro, quer com base na teoria interpretativa do “facto gerador” do IRS estabelecida no referido Ofício Circulado da AT, viola o nº 3 do artº 103º da Constituição.
    2.  Declare a ilegalidade, por omissão, cometida pela AT na elaboração do referido Anexo F, na medida em que não possibilitou ao requerente nele inscrever os rendimentos derivados dos dois identificados contratos de arrendamento comercial celebrados em 2019/07/08 pelo prazo de 20 anos com o benefício da redução de taxa prevista no nº 5 do artº 72º do CIRS na redação dada pela Lei 3/2019, de 9 de Janeiro, e, ao invés, o obrigou a registá-los como rendimentos sujeitos à taxa normal de 28%.
    3.   Declare que aos dois contratos de arrendamento comercial atrás referidos (ambos celebrados em 2019/07/08 pelo prazo de 20 anos) se aplica o disposto no nº 5 do artº 72º do CIRS na redação que lhe foi dada pelo artº 2º da Lei 3/2019, de 9 de Janeiro;
    4.   Julgue procedente, por provado, o pedido de pronúncia arbitral apresentado pelo requerente, declarando parcialmente ilegal a referida liquidação de imposto.
    5.  Condene a AT a restituir ao requerente o valor de imposto indevidamente cobrado em excesso, no montante de € 1.457,76 .
    6.  Condene a AT a pagar ao requerente juros indemnizatórios à taxa legal, relativamente ao valor de imposto indevidamente cobrado, desde a data em que o requerente efetuou o pagamento, até ao integral e efetivo pagamento do montante a restituir.
    7. g) - Condene a AT nas custas do processo

 

II.2 Posição da Requerida

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

  1. A Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, veio introduzir alterações muito significativas no que respeita à taxa de tributação autónoma aplicável aos rendimentos prediais, passando então a prever-se a redução daquela taxa em função do período pelo qual os contratos de arrendamento são celebrado ou objetos de renovação, alterações que foram consagradas nos nºs 2, 3, 4 e 5 do artigo 72º do CIRS.
  2. Nos termos do artigo 4º da Lei 13/2019, os termos em que se verificam as reduções de taxa previstas nos nºs 2, 3, 4 e 5 do artigos 72º do CIRS seriam regulamentados após 60 dias da sua entrada em vigor.
  3. E essa regulamentação veio a ser efetivada pela Portaria nº 110/2019, de 12/04, com efeitos a 01/1/2019.
  4. Entendendo a Requerida face ao teor do preâmbulo da Portaria nº 110/2019, de 12/04 ainda que a letra da Lei nº 3/2019 não tenha limitado expressamente o campo de aplicação do regime dos arrendamentos para habitação permanente (referindo-se apenas a “contratos de arrendamento”), o objetivo daquele normativo era, inequivocamente, o de incentivar a celebração de contratos de arrendamento (duradouros) destinados à habitação permanente.
  5. Entendendo a Requerida que  Lei nº 3/2019 veio, criar condições de acesso a incentivos fiscais em programas de construção de habitação para renda acessível e alterar o CIRS, no seu artigo 72º, promovendo, através de uma redução da taxa autónoma, o estimulo a contratos de arrendamento duradouro para habitação permanente que imprimam esse carácter de estabilidade às famílias.  Objetivos que a Portaria nº 110/2019 veio, de forma expressa, consignar.
  6. Defendendo a Requerida  que a Lei nº 119/2019 veio reforçar aquele que era já o escopo da Lei nº 3/2019, com a redação então introduzida ao artigo  72º do CIRS (e que estava já expresso na Portaria nº 110/2019), ou seja, que a taxa de tributação autónoma reduzida é apenas aplicável aos rendimentos prediais de contratos de arrendamento para habitação permanente.
  7. Defendendo a Requerida que a redação dos nºs 2, 3, 4 e 5 do artigo 72º do CIRS, introduzida pela Lei nº 3/2019, que veio consagrar a redução da taxa autónoma aplicada sobre os rendimentos prediais, refere-se aos contratos de arrendamento para habitação permanente. Como, posteriormente, veio a ficar expressamente consignado nos nºs 2, 3, 4 e 5 do artigo 72º do CIRS, à luz da redação introduzida pela Lei nº 119/2019.
  8. Entendimento que a Requerida  considera reforçado pelo artigo 330º da Lei nº 2/2020, que atribuiu à Lei nº 119/2019 uma natureza interpretativa da Lei nº 3/2019.
  9. Alega ainda a Requerida na defesa da sua posição, o constante no ofício-circulado nº 20217, de 05/02/2020 que considera o  IRS como um imposto anual, cujo “facto gerador” ocorre em 31 de Dezembro de cada ano,  o que determina que deve considerar-se, para a liquidação do imposto, o regime legal em vigor a essa data, sendo esse regime o que decorre da Lei nº 119/2019.
  10. Considerando ainda a Requerente  que não existe qualquer retroatividade censurável constitucionalmente, porque à data da entrada em vigor da Lei nº119/2019, não estava ainda verificado o facto tributário referente ao ano de 2019, que só ocorre a 31 de Dezembro, não existindo igualmente qualquer violação do Código Civil e da Lei Geral Tributária.
  11. Concluído a Requerente que a liquidação em crise, no segmento da tributação autónoma dos rendimentos prediais e, especificamente, dos rendimentos provenientes de contratos de arrendamento comercial, não merece qualquer censura, devendo em consequência o PPA improceder, por falta de apoio legal.

 

III. Saneamento

 

O Pedido de Pronúncia Arbitral é tempestivo. O Tribunal é materialmente competente e encontra-se regulamente constituído, nos termos dos artigos 2.º n.º 1 alínea a), 5º n.º 1 e 2 do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.

A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

Pelo que não há qualquer obstáculo à apreciação da causa, pelo que cumpre proferir decisão.

 

IV-Matéria de Facto

IV.A- Factos Dados com Provados

 

A.O Requerente é proprietário da fração autónoma constituída pelo rés do chão do prédio urbano sito na..., nº ... e na Rua ... nº ..., na freguesia e concelho de ..., inscrita na matriz predial urbana sob o art.º .., ... e descrita da Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ... .

 

B. Em 08 de Junho de 2019 o Requerente celebrou dois contratos de arrendamento comercial, com início de vigência em 01 de Maio de 2019, relativamente ao prédio identificado acima. Um contrato sob uma área de 35 m2 e outro sobre a área  de 65 m2, com renda mensal fixada respetivamente de €260,00 e €420,00.  (conforme doc nº2 e 3 juntos ao PPA).

 

C. Contratos de arrendamento comercial celebrados pelo prazo de 20 anos. (conforme doc nº2 e 3 juntos ao PPA).

 

D. Contratos de arrendamento comercial que foram registado no Serviço de Finanças de ... em 15 de Julho de 2019, tendo o Requerente efetuado o pagamento do imposto de selo devido nos termos legais. (conforme doc nº4 e 5 juntos ao PPA).

 

E. Em 2023-06-12 o Requerente submeteu declaração de IRS modelo3 com os anexos A, F e H relativos ao ano fiscal de 2022. (conforme doc nº1 junto ao PPA).

 

F. No Anexo F da declaração de IRS do Requerente consta o seguinte:

 

 

 

G. O Requerente declarou relativamente aos dois contratos de arrendamento comercial supra identificados, um rendimento ilíquido de €8.305,20.

 

H. O Requerente foi notificado da liquidação  de IRS nº 2023... em 2023-07-08 relativa ao ano de 2022, com imposto a pagar de €1.954,62, nos seguintes termos:

 

 

I. As rendas  ilíquidas relativas aos dois contratos de arrendamento auferidas em 2022 no valor de €8.305,20 foram sujeitas a tributação autónoma de 28%.

 

J.O Requerente em 01 de agosto de 2023 efetuou o pagamento do valor de €1.954,62 constante da liquidação de IRS nº 2023... relativa ao ano de 2022. (conforme doc. nº9 junto ao PPA).

 

IV.B- Factos que não se consideram provados

 

Não existem quaisquer outros factos com relevância  para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados

 

V.C– Fundamentação da matéria de facto que se considera provada

 

1.Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo (PA).

 

2.Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).

 

3.Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência de vida e conhecimento das pessoas (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 5, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

 

4.Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

 

5.Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

VI. – Do Direito

Tendo em atenção as pretensões e posições do Requerente e da Requerida constantes das suas peças processuais, são as seguintes as questões que o Tribunal Arbitral deve apreciar (sem prejuízo de a solução dada a certa questão poder prejudicar o conhecimento de outra ou outras questões – cfr. artigo 608.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT):

  1. Verificação se a liquidação encontra-se ferida de erro sobre os pressupostos de direito por não aplicação de redução de taxa aos rendimentos prediais auferidos pelo Requerido nos termos do artigo 72º nº5 do CIRS.
  1. Caso a liquidação deve ser anulada, saber se o Requerente tem direito a juros indemnizatórios.

 

Para o efeito o Requerente apresenta como pedido em sede de PPA, nomeadamente:

  1. Julgue procedente, por provado, o pedido de pronúncia arbitral apresentado pelo requerente, declarando parcialmente ilegal a referida liquidação de imposto.
  2.  Condene a AT a restituir ao requerente o valor de imposto indevidamente cobrado em excesso, no montante de € 1.457,76 .
  3.  Condene a AT a pagar ao requerente juros indemnizatórios à taxa legal, relativamente ao valor de imposto indevidamente cobrado, desde a data em que o requerente efetuou o pagamento, até ao integral e efetivo pagamento do montante a restituir.

 

Porém, para além destes o Requerente formula ainda os seguintes pedidos:

  1. Declare que a atribuição de efeitos retroativos à Lei 119/2019, de 18 de Setembro, quer por a considerar lei interpretativa da Lei 3/2019, de 9 de Janeiro, quer com base na teoria interpretativa do “facto gerador” do IRS estabelecida no referido Ofício Circulado da AT, viola o nº 3 do artº 103º da Constituição.
  2. Declare a ilegalidade, por omissão, cometida pela AT na elaboração do referido Anexo F, na medida em que não possibilitou ao requerente nele inscrever os rendimentos derivados dos dois identificados contratos de arrendamento comercial celebrados em 2019/07/08 pelo prazo de 20 anos com o benefício da redução de taxa prevista no nº 5 do artº 72º do CIRS na redação dada pela Lei 3/2019, de 9 de Janeiro, e, ao invés, o obrigou a registá-los como rendimentos sujeitos à taxa normal de 28%.
  3. Declare que aos dois contratos de arrendamento comercial atrás referidos (ambos celebrados em 2019/07/08 pelo prazo de 20 anos) se aplica o disposto no nº 5 do artº 72º do CIRS na redação que lhe foi dada pelo artº 2º da Lei 3/2019, de 9 de Janeiro;

 

Pedidos estes últimos, que não consubstanciam-se em pedidos de anulação de ato tributário de liquidação, ainda que se perceba que são instrumentais face ao objetivo central do Requerente da obtenção da anulação parcial da liquidação de IRS.

 

Sucede, que o contencioso arbitral do CAAD é um contencioso de mera anulação, e não tendente a pedidos de simples apreciação, ou de condenação a ato devido.

 

 Veja nesse sentido a decisão arbitral nº838/2019-T:

“Numa situação deste tipo, em contencioso de mera anulação, como é a arbitragem tributária, em que os poderes dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD se restringem à declaração de ilegalidade de actos (artigo 2.º, n.º 1 do RJAT), o Tribunal deve declarar a ilegalidade (ilegal aplicação do n.º 1 do artigo 43.º) que afecta todo o acto, pois nenhuma parte dele teve por base o n.º 2. Num contencioso deste tipo, não cabe ao Tribunal liquidar o imposto que deveria ser liquidado se fosse aplicada a norma legal em vez da ilegal, sendo essa tarefa que cabe à Autoridade Tributária e Aduaneira, como, de resto, decorre do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT”

 

Ou o Acórdão do Tribunal Central Administrativo  Sul, processo nº 9655/16.3BCLSB de 09.07.2020:

Reconhecendo-se algumas limitações na redação deste n.º 1 do art.º 2.º do RJAT, é pacífico que os Tribunais arbitrais têm poderes de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do ato impugnado. É ainda pacífico que, não obstante este contencioso ser essencialmente de mera anulação, à semelhança do que sucede com o contencioso tributário impugnatório no âmbito dos tribunais tributários estaduais, existem alguns poderes condenatórios, estreitamente ligados com o poder anulatório, relacionados com o direito a juros indemnizatórios ou com o direito a indemnização por prestação indevida de garantia. Abstraindo destes poderes condenatórios, porquanto não são os mesmos que ora estão em causa, a questão sob apreciação prende-se com os poderes do tribunal arbitral quando se depara com um ato impugnado que considera ser ilegal. Sob essa exclusiva perspetiva, como referimos, estamos perante um contencioso tendencialmente de mera anulação. Significa isso que, perante a impugnação de um ato tributário perante um tribunal arbitral (ou perante um tribunal tributário estadual, dado que, ao nível da impugnação judicial, os poderes de uns e outros são idênticos), a este tribunal cabe apenas considerar o ato legal ou ilegal e, em consequência, mantê-lo ou anulá-lo (ou declarar a sua nulidade ou inexistência).

Ao contrário do que sucede no domínio das ações administrativas, quando está em causa a legalidade de atuação da administração, no âmbito das quais o julgador pode emitir injunções e pronúncias condenatórias relativamente à Administração, condenando-a à prática de ato com um conteúdo determinado, tal não sucede no âmbito do contencioso tributário de impugnação de ato de liquidação (quer arbitral quer estadual) com esse alcance, não estando legalmente prevista a possibilidade de condenação à prática de ato devido. Tal não significa que não haja qualquer falta de sindicância da atuação da AT, em termos de cumprimento do julgado anulatório; não obstante, tal deverá ser feito ao nível da execução desse mesmo julgado, alcançando-se, neste todo, o respeito pela tutela jurisdicional efetiva.

Significa, pois, que os tribunais arbitrais tributários não podem emitir injunções condenatórias (para além das situações já referidas supra), nomeadamente nos termos em que sucedeu in casu, em que o Tribunal arbitral anulou a decisão proferida em sede de reclamação graciosa, por considerar padecer a mesma de erro sobre os pressupostos, mas condenou a administração tributária à prática do ato devido, consubstanciado em nova decisão com um conteúdo vinculado em termos de pressupostos de atuação.”

 

Assim, tendo em consideração que o contencioso arbitral do CAAD é um contencioso de mera anulação, não tem o Tribunal Arbitral competência à luz do artigo 2º do RJAT para condenação à prática de ato devido, ou mesmo determinar ou ordenar a AT como deve ser liquidado um imposto. A competência da arbitragem tributária reduz-se tão somente à possível declaração de anulação de uma liquidação e ao consequente  efeito repristinatório do statu quo ante – reembolso do imposto ilegalmente cobrado e o ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado, caso verifique-se  existe erro imputável à AT nos termos do artigo 45º da LGT.

 

Como atrás se referiu os pedidos do Requerente identificados no PPA, sob as alínea a)  b) e c) ainda que instrumentais, e ligados a um possível percurso cognitivo demostrativo da alegada ilegalidade do ato de liquidação, consequente à obtenção da anulação parcial da liquidação de IRS não consubstanciam-se de forma direta dentro da competência da arbitragem tributária.  Termos em que improcedem os pedidos do Requerente identificados no PPA, sob as alínea a); b) e c) supra identificados. Pelo que neste ponto improcede o pedido do Requerente.

 

VI.A Da verificação da existência de erro sobre os pressupostos de direito na liquidação por não aplicação de redução de taxa aos rendimentos prediais auferidos pelo Requerido nos termos do artigo 72º nº5 do CIRS.

 

A questão jurídica central dos presentes autos, passa por determinar se os contratos de arrendamento comercial celebrados pelo Requerente em 08 de junho de 2019, têm direito à redução de taxa de tributação prevista no artigo 72º do CIRS. Para o efeito é necessário convocar e interpretar um conjunto de normas legais, a saber: a  Lei n.º 3/2019;  a Portaria  n.º 110/2019 de 12 de Abril; a Lei n.º 119/2019; e o artigo 330º da Lei 2/2020 de 31 de Março.

 

A Lei  n.º 3/2019 de 09 de Janeiro, estipula o seguinte:

“Artigo 1.º

Objeto

A presente lei altera o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e cria condições de acesso a incentivos fiscais em programas de construção de habitação para renda acessível.

Artigo 2.º

Alteração ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares. Os artigos 9.º e 72.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto- -Lei n.º 442  A/88, de 30 de novembro, na sua redação atual, adiante designado CIRS, passam a ter a seguinte redação:

(….)

Artigo 72.º

[...]

1 - . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

2 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento com duração igual ou superior a dois anos e inferior a cinco anos, é aplicada uma redução de dois pontos percentuais da respetiva taxa autónoma; e por cada renovação com igual duração, é aplicada uma redução de dois pontos percentuais até ao limite de catorze pontos percentuais.

3 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento celebrados com duração igual ou superior a cinco anos e inferior a dez anos, é aplicada uma redução de cinco pontos percentuais da respetiva é aplicada uma redução de cinco pontos percentuais até ao limite de catorze pontos percentuais.

4 -Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento com duração igual ou superior a dez anos e inferior a 20 anos, é aplicada uma redução de catorze pontos percentuais da respetiva taxa autónoma.

5 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento com duração superior a 20 anos, é aplicada uma redução de dezoito pontos percentuais da respetiva taxa autónoma.

(….)

 Artigo 5.º

Entrada em vigor, aplicação no tempo e produção de efeitos

1 - A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, produz efeitos a partir de 1 de janeiro de 2019 e aplica -se a novos contratos de arrendamento e respetivas renovações contratuais, bem como às renovações dos contratos de arrendamento verificadas a partir de 1 de janeiro.

2 - No final de 2019, o Governo procede à reavaliação do regime fiscal estabelecido na presente lei, no sentido de apresentar à Assembleia da República as propostas de alteração que se justifiquem em função dos resultados da sua aplicação.”

 

Por sua vez a Portaria  n.º 110/2019 de 12 de Abril estipula o seguinte:

“Com o objetivo de estimular uma oferta de habitação para arrendamento habitacional que responda a necessidades de habitação de longo prazo em condições adequadas ao desenvolvimento da vida familiar em situação de estabilidade, a Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, veio alterar o artigo 72.º do Código do IRS no sentido de criar condições favoráveis à celebração de novos contratos, ou à renovação de contratos existentes, por períodos longos, estabelecendo, assim, reduções da taxa autónoma de tributação do IRS prevista para os rendimentos prediais, em função da duração desses contratos de arrendamentos. Considerando que o artigo 4.º da Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, prevê a regulamentação dos termos em que se verificam as reduções de taxa previstas nos n.os 2, 3, 4 e 5 do artigo 72.º do Código do IRS, na redação conferida por aquela lei, importa proceder ao respetivo enquadramento.

Assim: Nos termos da alínea c) do artigo 199.º da Constituição e do artigo 4.º da Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, manda o Governo, pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e pela Secretária de Estado da Habitação, o seguinte:

Artigo 1.º

Objeto

A presente portaria destina -se a regulamentar os termos e as condições previstas nos n.os 2, 3, 4 e 5 do artigo 72.º do Código do Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2.º da Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro.

(….)

Artigo 4.º

Entrada em vigor e produção de efeitos

A presente portaria entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produz efeitos a 1 de janeiro de 2019.

 

A Lei n.º 119/2019 de 18 de setembro dispõe:

Artigo 2.º

Alteração ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

Os artigos 9.º, 22.º, 57.º, 58.º, 72.º, 74.º, 81.º, 99.º -D, 101.º -C e 119.º do Código do IRS, passam a ter a seguinte redação:

(…)

Artigo 72.º

[...]

1 - . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

2 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento para habitação permanente com duração igual ou superior a dois anos e inferior a cinco anos, é aplicada uma redução de dois pontos percentuais da respetiva taxa autónoma; e por cada renovação com igual duração, é aplicada uma redução de dois pontos percentuais até ao limite de catorze pontos percentuais.

3 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento para habitação permanente celebrados com duração igual ou superior a cinco anos e inferior a dez anos, é aplicada uma redução de cinco pontos percentuais da respetiva taxa autónoma; e por cada renovação com igual duração, é aplicada uma redução de cinco pontos percentuais até ao limite de catorze pontos percentuais.

4 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento para habitação permanente com duração igual ou superior a dez anos e inferior a vinte anos, é aplicada uma redução de catorze pontos percentuais da respetiva taxa autónoma.

5 - Aos rendimentos prediais decorrentes de contratos de arrendamento para habitação permanente com duração igual ou superior a vinte anos, é aplicada uma redução de dezoito pontos percentuais da respetiva taxa autónoma.

(….)

Artigo 26.º

Entrada em vigor e produção de efeitos

1 - A presente lei entra em vigor em 1 de outubro de 2019.

2 - Produzem efeitos a 1 de janeiro de 2020:

a) As alterações ao Código do Imposto do Selo;

b) As alterações aos artigos 2.º e 10.º do Código do IUC;

c) O aditamento ao Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados;

d) O artigo 24.º e as alíneas c) e d) do artigo 25.º da presente lei.

 

Por sua vez o artigo 330º da Lei 2/2020 de 31 de Março, refere:

Artigo 330º da Lei 2/2020 de 31 de Março

Norma interpretativa em sede de IRS

Considerando que as alterações aos artigos 22.º, 58.º, 72.º, 81.º e 119.º do Código do IRS aprovadas pela Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, se destinaram ao aperfeiçoamento do novo regime introduzido pela Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, e que este diploma visou a criação de condições para o arrendamento habitacional acessível, têm as mesmas natureza interpretativa.

 

Façamos então a interpretação e conjugação das supra mencionadas normas jurídicas no enquadramento dos autos.

 

O artigo 1º da Lei nº 3/2019 de 9 de Janeiro estabelece como objeto do diploma a alteração do CIRS e a criação de condições de acesso a incentivos fiscais em programas de construção de habitação para renda acessível. Não efetuado no seu objeto qualquer diferenciação entre contratos de arrendamento para habitação e não habitacionais. Por sua vez, o  artigo 2º da Lei  nº 3/2019 de 9 de Janeiro,   que efetua alterações ao CIRS, nomeadamente aos nº 2, 3, 4 e 5 do artigo 72º do CIRS, menciona sempre a expressão “aos rendimentos prediais decorrentes de  contratos de arrendamento”. Em nenhum momento do articulado encontramos diferenciação entre contratos de arrendamento para habitação e não habitacionais. É certo que no respaldo do artigo 11º nº1 da LGT e do artigo 9º do Código Civil,  a interpretação das normas não se reduz ao seu elemento literal. Todavia, a interpretação não pode extravasar o seu âmbito literal, com uma interpretação em sentido contrário, ou para além do que resulta da letra da lei. E nada no texto legislativo, nos indicia, por ausência de considerações teleológicas que impusessem sentido diferente, que o legislador pretendesse restringir o benefício fiscal aos contratos de arrendamento habitacionais. Assim, tendo em conta as regras da hermenêutica jurídica fiscal via artigo 11º nº1 da LGT, resulta evidente, face ao teor literal da norma, e a ausência de considerações teleológicas que impusessem sentido diferente, que o legislador pretendia conceder benefícios ao arrendamento, não tendo efetuado restrições a tipologias de contratos de arrendamento.

 

Ficou ainda consagrado na Lei  nº 3/2019, no artigo 5º, a obrigação do governo no final de 2019 proceder à reavaliação do regime fiscal estabelecido na norma legal. O que nos indica que o legislador deixou para momento futuro, numa ponderação dos resultados obtidos, eventuais modificações ou aperfeiçoamentos da norma legal, das quais poderia resultar a modificação da tipologia dos contratos de arrendamento beneficiários das reduções de taxa de IRS.

Pelo que nos parece claro que a redução de taxa de tributação prevista na Lei nº 3/2019 nos termos do artigo 5º, da referida lei teria aplicação a todos os novos contratos de arrendamentos e respetivas renovações contratuais celebrados  a partir de 01 de Janeiro de 2019.

 

A Lei 3/2019 estabelecia no artigo 4º a obrigação do governo regulamentar no prazo de 60 dias os termos em que se verificam as reduções de taxa previstas nos nºs 2, 3, 4 e 5 do artigo 72.º CIRS. No cumprimento desta obrigação foi emitida a Portaria nº110/2019 de 12 de Abril, com produção de efeitos a 01 de janeiro de 2019.

Entende a Requerida que a Portaria nº 110/2019,  ao referir no seu preâmbulo “Com o objetivo de estimular uma oferta de habitação para arrendamento habitacional que responda a necessidades de habitação de longo prazo em condições adequadas ao desenvolvimento da vida familiar em situação de estabilidade, a Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, veio alterar o artigo 72.º do Código do IRS no sentido de criar condições favoráveis à celebração de novos contratos, ou à renovação de contratos existentes, por períodos longos, estabelecendo, assim, reduções da taxa autónoma de tributação do IRS prevista para os rendimentos prediais, em função da duração desses contratos de arrendamentos” , veio de forma expressa, consignar o objetivo intrínseco da Lei  nº 3/2019 de estimulo a contratos de arrendamento duradouro para habitação por via de redução da taxa de tributação.

Sendo certo que a Portaria nº110/2019 de 12 de Abril faz menção concreta a um suposto objetivo de estimulo da oferta de habitação para arrendamento habitacional previsto na Lei 3/2019, a verdade, é que esta conclusão não tem aderência ao conteúdo da referida lei, que apenas faz referência contratos de arrendamento, e nunca contratos de arrendamento duradouro para habitação. Seria atribuir à Portaria nº110/2019 de 12 de Abril uma natureza interpretativa da Lei  nº 3/2019, contrária ao princípio da legalidade.

Não nos podemos esquecer que o artigo 2º da  Lei  nº 3/2019, tipifica um benefício fiscal. Ora, a definição do âmbito objetivo dos benefícios fiscais é matéria integrada na reserva relativa da Assembleia da República só podendo ser regulada por lei formal ou decreto-lei autorizado, conforme decorre dos artigos 103.º n.º 2, 165.º n.º 1 da alínea i) e 198.º n.º 1 da alínea b) da Constituição. Não sendo assim possível uma Portaria restringir o âmbito de aplicação de um benefício fiscal previsto em lei, que conforme atrás se referiu atribuiu a redução de taxa de tributação a todos os contratos de arrendamentos.

Pelo que concluímos que ser claro que da Lei  nº 3/2019 de 9 de janeiro, resulta a configuração de um benefício fiscal atribuível aos novos contratos de arrendamento (sem discriminação de modalidade), com entrada em vigor em 01 de janeiro de 2019.

 

Conforme referimos, ficou consignado no artigo 5º nº2 da Lei 3/2019 a obrigação da reavaliação do regime fiscal instituído pela norma.  Assim, pela Lei 119/2019 de 18 de Setembro, em consonância com artigo 5º nº2 da Lei 3/2019, o legislador legitimamente, decidiu rever, modificar, estabelecer um novo regime que  alterou o previsto na norma anterior.

Por conseguinte, a Lei 119/2019 de 18 de Setembro no seu artigo 2º veio alterar o CIRS nomeadamente o conteúdo do artigos 72º nº2, 3, 4 e 5 no sentido de restringir o benefício aos contratos de arrendamento para habitação permanente. Com  a Lei n.º 119/2019 de 8 de Setembro, o texto dos   nº2, 3, 4 e 5 foi revisto, com a substituição da expressão “contratos de arrendamento” por “contratos de arrendamento para habitação permanente”. Ou seja, através da Lei n.º 119/2019 de 8 de Setembro o legislador no respeito pelo princípio da legalidade ínsito do nº2 do artigo 103º da Constituição, e do nº1 do artigo 8º da LGT de que os benefícios fiscais são criados e modificados por lei, decidiu restringir a redução de taxa de tributação autónoma para os contratos de arrendamento para habitação permanente.

 

Resta percecionar quando é que as alterações ao artigo 72º do CIRS promovidas pela Lei 119/2019 de 18 de Setembro passaram a produzir efeitos.

 

A Requerida, para efeito da resposta a esta questão chama à colação o artigo 330º da Lei 2/2020, que segundo esta, teria uma natureza interpretativa da Lei 3/2019.

O artigo 330º da Lei 2/2020 refere “Considerando que as alterações aos artigos 22.º, 58.º, 72.º, 81.º e 119.º do Código do IRS aprovadas pela Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, se destinaram ao aperfeiçoamento do novo regime introduzido pela Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro, e que este diploma visou a criação de condições para o arrendamento habitacional acessível, têm as mesmas natureza interpretativa.”

 

Sucede, que uma norma interpretativa tem por objetivo, esclarecer, tornar claro, aperfeiçoar o sentido de compreensão de uma norma pré existente. Apenas pretende-se esclarecer o correto sentido da mesma, e não efetuar alteração ao seu conteúdo ou âmbito de aplicação. Uma norma interpretativa não pode inovar, criar novo direito, efetuar per se restituições ou alargamento de direitos.

 

Veja-se nesse sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional  nº751/2020 que refere:

“Nesta perspetiva, e tendo em conta a ótica da tutela da confiança dos destinatários do direito, relevará, então, que a lei verdadeiramente interpretativa é apenas formalmente retroativa, uma vez que se limita a declarar o direito preexistente; ao passo que a lei autoqualificada como interpretativa mas que em boa verdade seja inovadora se deva considerar como material ou substancialmente retroativa, porquanto, ao modificar o direito preexistente, constitui direito novo.

Na verdade, pode suceder – e sucede com alguma frequência – que o legislador declare ou qualifique expressamente como “interpretativa” certa disposição de uma lei nova, mesmo quando essa disposição seja na realidade inovadora. Ora, uma lei que modifique o direito preexistente – o mesmo é dizer, que constitua direito novo – sob a capa de “lei interpretativa”, porque criadora de efeitos jurídicos novos para os respetivos destinatários, violará necessariamente uma eventual proibição de leis retroativas; porém, a lei genuinamente interpretativa, porque se limite a declarar o direito que já vigora e com o qual os respetivos destinatários podem contar, não violará tal proibição, do mesmo modo que toda e qualquer interpretação jurídica, incluindo a feita pelos tribunais, também não pode considerar-se como produtora de efeitos jurídicos novos que frustrem «expectativas seguras e legitimamente fundadas.

(….)

Consequentemente, a retroatividade inerente às leis interpretativas é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.”

 

No caso em apreço é indiscutível que a Lei 119/2019, não se limitou a esclarecer dúvidas sobre o conteúdo da Lei 3/2019. Pelo contrário, a Lei 119/2019, alterou, inovou, modificou, criou direito, ao restringir os benefícios fiscais ao contratos de arrendamento para habitação permanente. Pelo que entendemos que o artigo 330º da Lei 2/2020, não obstante a epigrafe de “norma interpretativa em sede de IRS” não configura juridicamente uma norma interpretativa.

 

Conforme refere a decisão arbitral 398/2020-T:

“A Lei 119/2019 introduziu uma nova versão do artigo 72º do CIRS, com nova redação, cujo âmbito de aplicação é, agora, mais restrito. Logo, isto basta para dizer que nunca poderia ser considerada como «lei meramente interpretativa». A Lei 119/2019 veio alterar a redação do artigo 72º do CIRS, restringindo o alcance dos benefícios de redução de taxa nele consagrados em função do prazo do contrato de arrendamento, os quais passaram desde então a aplicar-se apenas aos contratos de arrendamento para habitação. Neste sentido o artigo 330.º da Lei 2/2020, não pode vir atribuir natureza interpretativa a alterações legislativas ocorridas. Na verdade, o que faz é pretender alcançar factos tributários pretéritos e tributá-los, sendo que a versão da norma em vigor ao tempo em que estes ocorreram não contemplava essa incidência, como sucede, precisamente, com o caso em apreciação nestes autos.”

 

Pelo que não podemos na solução do caso sub judice, acolher a posição da Requerida que entende que que o artigo 330º da Lei nº2/2020, enquanto norma interpretativa, faria com que o regime da Lei 119/2019 modifica-se o conteúdo da Lei nº 3/2019 com efeitos retroativos.

 

Traz a ainda a Requerida para defesa da sua posição o oficio circulado 20217 de 05/02/2020, que refere:

“Embora a Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, tenha entrado em vigor em 01-01-2019, sendo o IRS um imposto anual, cujo “facto gerador” ocorre em 31 de dezembro de cada ano, deve considerar-se a redação em vigor nessa data e, portanto, apenas os contratos de arrendamento para habitação permanente podem beneficiar do novo regime previsto nos n.ºs 2 a 5 do artigo 72.º do Código do IRS, independentemente da data a que se reporta a obtenção dos rendimentos.”

 

Ou seja, a Requerida entende que sendo o IRS um imposto anual, cujo facto gerador ocorre em 31 de Dezembro de cada ano, deve considerar-se para liquidação do imposto o regime legal que esteja em vigor a 31 de Dezembro.  O que no caso em apreço seria a Lei nº 119/2019 de 8 de Setembro que apenas atribui a redução de taxa aos contratos de arrendamento para habitação permanente.

 

No ordenamento fiscal encontramos  dois tipos de impostos. Os impostos de obrigação única, cujo facto tributário se constitui e conclui num único ato. E os impostos periódicos cujo facto tributário tem início no primeiro dia do ano e que apenas esta concluído em 31 de Dezembro.  Os impostos periódicos são impostos de formação sucessiva do facto tributário. O IRS é em termos jurídico-fiscais um imposto periódico.

No que diz respeito à sucessão de lei no tempo, devemos ter em consideração  o artigo 12º da LGT estipula:

“ 1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer tributos retroativos.

 2 - Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.

 3 - As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes.

 4 - Não são abrangidas pelo disposto no número anterior as normas que, embora integradas no processo de determinação da matéria tributável, tenham por função o desenvolvimento das normas de incidência tributária.

 

Sendo o IRS um imposto periódico de formação sucessiva é aplicável o nº2 do artigo 12º da LGT. Assim, no caso de sucessão de lei no tempo, a nova lei, no caso a Lei nº 119/2019 de 8 de Setembro apenas se aplica  ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor. Por efeitos do artigo 26º da Lei nº119/2019 de 8 de Setembro, as alterações ao artigo 72º do CIRS entram em vigor a 01 de outubro de 2019. Pelo que é claro que a redação do artigo 72º do CIRS que restringiu a aplicação do benefício fiscal de redução de taxa aos contratos para habitação permanente, entrou em vigor em 01 de outubro de 2019. 

 

Resta o problema de determinar se a nova versão do artigo 72º do CIRS na formula da Lei nº119/2019 de 8 de Setembro tem aplicabilidade apenas aos novos contratos celebrados após 01 de outubro de 2019, ou ao invés, os seus efeitos retroagem ao inicio do período de tributação tendo em conta que o IRS é um imposto de formação sucessiva, ou seja a 01 de janeiro de 2019, com aplicabilidade a todos os  novos contratos de arrendamento celebrados após esta última data.

 

Na defesa da sua posição o Requerente, argumenta com a proibição constitucional de normas fiscais retroativas  e com a colocação em crise do princípio da confiança. Por sua vez a Requerida argumenta que não existe qualquer retroatividade censurável, porquanto, à entrada em vigor da Lei nº119/2019, não estava ainda verificado o  facto tributário referente ao ano de 2019.

 

A atividade económica e a vida quotidiana apenas podem-se desenvolver num ecossistema social em que a estabilidade, a determinabilidade e a previsibilidade do ordenamento jurídico e do ordenamento fiscal em particular, sejam uma evidência. A ciência económica ensina-nos que a estabilidade, a certeza e a confiança dos agentes são condições cruciais para o crescimento económico. Ora, sem segurança jurídica, não há estabilidade, nem crescimento/desenvolvimento económico e social. Esta ideia de segurança jurídica é ínsita ao Estado de Direito, que no Direito Fiscal demostra-se numa dupla perspetiva. Numa vertente positiva de princípio da proteção da confiança e numa vertente negativa como  princípio da  proibição da retroatividade fiscal. Princípio da proteção da confiança que se traduz na ideia ínsita de estabilidade, certeza, determinabilidade e ausência de surpresas legais nas situações jurídicas já realizadas. E princípio de proibição da retroatividade acolhido de forma plena no nº3 do artigo 103º da Constituição, ao proibir impostos de natureza retroativa. Mas a retroatividade per se é um conceito jurídico complexo. Este encerra intrinsecamente duas perspetivas: a retroatividade autêntica e a retroatividade inautêntica (esta também denominada de retrospetividade). Na primeira, a norma pretende produzir efeitos sobre o passado, ambicionando a nova norma jurídica incidir sobre factos tributários que já tenham produzido todos os efeitos ao abrigo da norma antiga. Diferentemente na retroatividade inautêntica, a nova norma jurídica pretende disciplinar relações jurídicas futuras, mas vai abranger situações que iniciaram-se no passado e que se mantêm.

Resta-nos entender se ambas as retroatividades, são proibidas pela constituição. A interpretação predominante da doutrina e da jurisprudência indica-nos que a retroatividade proibida de forma expressa pela norma constitucional é a retroatividade autêntica, por constituir per se uma violação insustentável da proteção da confiança. Pelo que é claro que situações de retroatividade autêntica são ilegais e proibidas pela Constituição.

Veja-se nesse sentido o acórdão do Tribunal Constitucional nº 617/2012:

 “Conforme se disse, o tribunal recorrido recusou a aplicação da norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, por violação do princípio da proibição da retroatividade fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição. Esta norma constitucional dispõe que «Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei». Sendo o poder de lançar impostos inerente à noção de Estado, como manifestação da sua soberania, perante um longo passado de abusos e arbitrariedades, a introdução do princípio da legalidade nesta matéria veio conferir-lhe um estatuto de cidadania no mundo do Direito. Assim, para que o Estado possa cobrar um imposto ele terá que ser previamente aprovado pelos representantes do povo e terá que estar perfeitamente determinado em lei geral e abstrata, só assim se evitando que esse poder possa ser exercido de forma abusiva e arbitrária, indigna de um verdadeiro Estado de direito.

Por outro lado, o mesmo princípio da legalidade não poderá deixar de impedir que a lei tributária disponha para o passado, com efeitos retroativos, prevendo a tributação de atos praticados quando ela ainda não existia, sob pena de se permitir que o Estado imponha determinadas consequências a uma realidade posteriormente a ela se ter verificado, sem que os seus atores tivessem podido adequar a sua atuação de acordo com as novas regras. Esta exigência revela as preocupações do princípio da proteção da confiança dos cidadãos, também ele princípio estruturante do Estado de direito democrático, refletidas na vertente do princípio da legalidade, segundo o qual, a lei, numa atitude de lealdade com os seus destinatários, só deve reger para o futuro, só assim se garantindo uma relação íntegra e leal entre o cidadão e o Estado. É neste sentido que deve ser entendida a opção do legislador constituinte de, na revisão constitucional de 1997, consagrar no artigo 103.º, n.º 3, a regra da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável. Com esta alteração constitucional não se visou explicitar uma simples refração do princípio geral da proteção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a atividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impostos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstrato de grave violação daquela confiança.

O Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento que esta proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (v.g. acórdãos n.º 128/2009, 85/2010 e 399/2010, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt). “

 

Veja-se nesse sentido o acórdão do Tribunal Constitucional nº128/2009:

“7.1 Foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroactivos. Explicitou-se, aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da protecção de confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 1092 e ss). Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroactivas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroactiva, sendo a expressão «retroactividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável. Em bom rigor, deve dizer-se que, para além de explicitar um princípio que decorria já de outro constitucionalmente consagrado, o legislador constituinte, na revisão de 1997, veio lançar luz sobre a polémica que povoava a jurisprudência do Tribunal. As decisões do Tribunal, até 1997, assentavam no seguinte argumento: uma lei fiscal seria inconstitucional (por violação do princípio da confiança) apenas quando imposta a retroactividade em “termos que choquem a consciência jurídica e frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes”. Desenvolvendo este critério, disse o Tribunal que a retroactividade das leis fiscais seria constitucionalmente legítima sempre que não ferisse “de forma inadmissível ou intolerável, a certeza e a confiança na ordem jurídica dos cidadãos por ela afectados; ou que não trai[sse], de forma arbitrária e injustificada, as expectativas juridicamente tuteladas e criadas na esfera jurídica dos cidadãos ao abrigo das disposições vigentes à data da ocorrência dos factos que as geraram”. (Cfr. neste sentido, e por exemplo, o Parecer da Comissão Constitucional n.º 25/81, em Pareceres da Comissão Constitucional, 16º Vol., p.257; o Parecer nº 14/82, em Pareceres…, 19º Vol, p. 183; o Acórdão do Tribunal n.º 11/83, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º Vol. p. 11; o Acórdão nº 141/85, em Acórdãos …, 6º Vol., p. 39; e ainda os Acórdãos nºs 409/89, 216/90, 410/95 e 1006/96, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) Estes critérios, de natureza necessariamente fluida, levaram a que, em diversos arestos, o Tribunal viesse dar como boas leis fiscais retroactivas. Foi o que sucedeu, por exemplo, nos Acórdãos n.º 11/83 e 66/84 (este último em Acórdãos, 4º Vol. p. 35) e ainda nos Acórdãos nºs 67/91, 1006/96, 1204/96 e 416/02 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) . Noutros casos, ao invés, o Tribunal entendeu que, por inexistirem razões de interesse público que prevalecessem sobre o valor da segurança jurídica, as normas retroactivas seriam intoleráveis e, consequentemente, constitucionalmente ilegítimas (Cfr., por exemplo, os Acórdão ns.º 409/89, 216/90, 410/95 e 185/2000, também disponíveis no mesmo lugar).  Uma vez expresso no texto da Constituição a proibição da retroactividade em matéria fiscal, o Tribunal passou a ler esta proibição já não numa dimensão subjectiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação tributária resultante da aplicação da lei) mas antes numa dimensão objectiva. Diz o Tribunal, a este propósito, que à proibição expressa da retroactividade da lei fiscal “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito” (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2000, in www.tribunalconstitucional.pt)

Quer isto dizer que, actualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroactividade da lei fiscal, a mera natureza retroactiva de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributária.

 

No que diz respeito à retroatividade inautêntica (retrospetividade) também encontramos jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente:

Acórdão do Tribunal Constitucional nº 128/2009:

“O tema da protecção da confiança tem sido abundantemente tratado pelo Tribunal Constitucional. Contudo – e em matéria tributária – a jurisprudência do Tribunal sobre o que queira dizer «a necessária protecção da confiança legítima» não pode deixar de ser olhada com cautela, consoante a sua produção tenha ocorrido antes ou depois da revisão Constitucional de 1997. Na verdade – e como o tem dito a doutrina –, com a formulação actual do nº 3 do artigo 103º da CRP alterou-se o lugar constitucional que o princípio decorrente do artigo 2º ocupa em matérias de natureza fiscal: a aprovação, em 1997, de um princípio geral de irretroactividade da lei fiscal veio modificar (e não diminuir ou aumentar) a relevância do princípio.  Quer isto dizer exactamente o seguinte. A proibição expressa da retroactividade da lei fiscal não tornou inútil a eventual aplicação, a matérias de natureza tributária, do parâmetro da protecção da confiança. Como diz Casalta Nabais, (Cfr. “Direito Fiscal”, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, p. 149) a protecção da confiança não foi absorvida pelo novo preceito constitucional. Ao textualizar a proibição de normas fiscais retroactivas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio, corporização essa que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que ocorram casos [de leis tributárias] que sejam retroactivas em sentido próprio ou autêntico. Nesses casos – nos quais, recorde-se, se não inclui o presente -  não há lugar a ponderações: a norma retroactiva é, por força do nº 3 do artigo 103º, inconstitucional. Mas tal não significa que, por causa disso, se tenha esgotado ou exaurido a «utilidade» do princípio da confiança em matéria tributária. Pode haver outras situações – de retroactividade imprópria, ou até de não retroactividade – que convoquem a questão constitucional que é resolvida pela tutela da confiança. Sucede, porém, que, ao contrário do que sucede com a aplicação do princípio contido no nº 3 do artigo 103º da Constituição, a «mobilização» do princípio da confiança em matéria tributária obriga a um juízo que não prescinde de ponderações: saber se a norma é ou não inconstitucional (por violação da protecção da confiança) obriga a que se tenha em conta, e se pondere, tanto o contexto da administração tributária quanto o contexto do particular tributado.

(….)

No Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro, o Tribunal estabeleceu já os limites do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas dotadas de «retroactividade inautêntica, retrospectiva». Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava-se da aplicação de uma lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.

De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:

a)  a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela cons­tantes não possam contar; e ainda

b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da propor­­cionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas  ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.

Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção. 

Por isso, disse-se ainda no Acórdão nº 287/90 – e importa ter este dito presente no caso – que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das leis, “não há (…) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados”.

 

Pelo que da jurisprudência do Tribunal Constitucional, mas também da doutrina (vide Ana Paula Dourado – “Direito Fiscal, Lições” 3º Edição, Almedina, 2018, pag.191) percebemos que a  legalidade ou ilegalidade da retroatividade inautêntica (retrospetividade),  questão relevante nomeadamente nos impostos  periódicos de formação sucessiva, como seja o IRS, exige um juízo casuístico do nível de possível violação da proteção da confiança. Em outras palavras, percebemos que a solução jurídica radica num juízo sobre o princípio da proteção da confiança.

 

Da Jurisprudência do Tribunal Constitucional supra mencionada é possível verificar quatro testes para a conformação da legalidade/ilegalidade da retroatividade inautêntica: é necessário que o Estado tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados expetativas de continuidade; tais expetativas devem ser legitimas, justificadas e fundadas em boas razões; os privados terem feito planos de vida tendo em conta a perspetiva do comportamento estatual; que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.

 

Olhando para os factos, a Lei  nº 3/2019, não efetuando qualquer tipo de diferenciação entre  modalidades de contratos de arrendamento, atribuí um benefício fiscal, vertido no artigo 72º do CIRS, com aplicação a novos contratos de arrendamento e respetivas renovações, com entrada em vigor em 01 de Janeiro de 2019. Com a Lei  nº 3/2019, o Estado gerou nos particulares uma sólida expetativa de continuidade de um benefício fiscal. Expectativas legitimas, justificadas, fundadas em boas razões, que determinaram na confiança no Estado como pessoa de bem, decisões individuais, de em segurança jurídica celebrar contratos de arrendamento subordinados a um regime jurídico que envolvia um determinado benefício fiscal. Norma legal, que justificou os privados terem feitos planos de rentabilidade económica com base no  comportamento estatual.

 

No caso dos autos, como aliás o Requerente afirma, foi a expetativa sólida  gerada pela Lei nº3/2019, que determinou a decisão do Requerente em celebrar contratos de arrendamento pelo prazo de 20 anos. Se assim não fosse, a razoabilidade económica e jurídica, determinava a  celebração de  contratos de curta duração. Pelo que entendemos que a Lei  nº3/2019, nomeadamente o seu artigo 5º  que estabelecia: “presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, produz efeitos a partir de 1 de janeiro de 2019 e aplica -se a novos contratos de arrendamento e respetivas renovações contratuais, bem como às renovações dos contratos de arrendamento verificadas a partir de 1 de janeiro.”,  criou no Requerente e no cidadão comum, sólidas e legitimas e expetativas de continuidade. Frustrar a meio caminho, impondo uma nova versão do artigo 72º do CIRS pela Lei nº119/2019, com entrada em vigor a 01 de outubro de 2019, a decisões tomadas legitimamente em período anterior, baseadas em lei, constitui uma interpretação legal que de viola de forma flagrante o princípio da confiança. Sendo que não encontramos razões de interesse público que em ponderação, justifiquem a não continuidade do comportamento legal  que gerou a situação de expetativa no Requerente. Pelo exposto entendemos que face ao teor do artigo 5º da Lei nº3/2019, sob o enquadramento normativo e interpretativo do princípio da proteção da confiança que a nova redação do artigo 72º do CIRS trazida pela Lei  nº 119/2019 de 18 de Setembro apenas é aplicável ao contratos de arrendamento celebrados após a sua entrada em vigor, ou seja 01 outubro de 2019. Aos contratos de arrendamento, como é o caso dos autos, celebrados na vigência da Lei nº3/2019 é aplicável o benefício fiscal previsto na versão desta lei do artigo 72º do CIRS, aplicável a todos os contratos de arrendamento.

 

Face ao exposto, de forma conclusiva entende-se que os rendimentos prediais do Requerente relativos aos dois contratos de arrendamento comercial auferidos no ano de 2019 beneficiavam da redução de taxa prevista no nº5 do artigo 72º do CIRS. Pelo que que verifica-se a existência de erro sobre os pressupostos de direito na liquidação por não aplicação de redução de taxa aos rendimentos prediais auferidos pelo Requerente nos termos do artigo 72º nº5 do CIRS.

 

Este vício justifica, conforme pedido do PPA a anulação parcial da liquidação impugnada, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.   Como consequência da anulação parcial da liquidação de IRS de 2022, impugnada nos autos, deve o Requerente ser reembolsado do valor de imposto pago em excesso, ou seja, do valor de €1.457,76.

 

 

 

V.B  Dos Juros Indemnizatórios

 

O Requerente pede ainda a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

O direito do sujeito passivo a juros indemnizatórios decorre do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º, n.º 1, da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante.

 

Significa isto que, na execução do julgado anulatório, a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado.

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável à AT de que resulte pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido.

Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10-07-2012, prolatado no processo 026688, em que foi relator o  Conselheiro Jorge Lopes de Sousa e onde se lê: “ (…) v – Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios (…), havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte.”

 

No caso em apreço, não pode deixar de se considerar ter havido erro imputável aos serviços, na justa medida em que a liquidação de IRS  objeto dos presentes autos, foi consequência da errónea  interpretação que a AT fez de lei.  AT incorreu em erro de direito, sendo tal erro imputável aos serviços da AT,  pelo que têm  o Requerente direito ao juros indemnizatórios.

 

Conclui-se, assim, pela procedência da pretensão do Requerente a ser ressarcido através do pagamento de juros indemnizatórios  sobre o valor do imposto pago em excesso contados desde a data do pagamento da liquidação  anulada, até à data da emissão da nota de crédito, em que são incluídos (nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

VII- Da Decisão

 

Termos em que se decide julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

  1. Declarar ilegal e anular parcialmente a liquidação de IRS  nº 2023... relativa ao ano de 2022;
  2. Condenar a AT ao reembolso do imposto indevidamente pago em excesso de €1.457,76;
  3. Condenar a AT a pagar juros indemnizatórios ao Requerente sobre o montante de  €1.457,76 até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos (nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT);
  4. Absolver a Requerida dos outros pedidos do Requerente

 

VIII. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €1.457,76 (mil quatrocentos e cinquenta e sete euros e setenta e seis cêntimos)   nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das e alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VIII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido de anulação da liquidação e condenação em juros indemnizatórios foi julgado improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 18 de Março de 2024

 

O Árbitro

 

António Cipriano da Silva