Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 636/2023-T
Data da decisão: 2024-03-07  IRS  
Valor do pedido: € 11.254,01
Tema: IRS de 2021 – Residência fiscal – Falta de comunicação de alteração de domicílio fiscal – Prova de residência fiscal.
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SUMÁRIO:

 

  1. Os conceitos de domicílio fiscal (previsto no artigo 19.º da LGT) e de residente fiscal para efeitos de IRS, não se confundem.
  2. A preterição da formalidade de comunicação prevista no n.º 1 do artigo 43.º do CPPT, e no atual artigo 19.º, n.º 3 da LGT, não deverá por si só converter o contribuinte em residente para efeitos fiscais, na medida em que não configura uma formalidade ad substanciam.
  3. Os meios de prova de que o contribuinte se pode servir para comprovar a sua residência fiscal não se encontram limitados legalmente.

 

I. RELATÓRIO

 

A... (doravante Requerente), com morada na Rue..., ... ..., Suíça,  sujeito passivo com número de identificação fiscal  ..., vem apresentar pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante RJAT), submetendo à apreciação do Tribunal Arbitral a legalidade do ato tributário identificado abaixo.

Peticiona que seja declarada a ilegalidade da decisão de indeferimento tácito de reclamação graciosa que correu termos junto da AT, sob o n.º ...2023...;

Peticiona ainda a título mediato, enquanto objeto daquela reclamação graciosa, a declaração de ilegalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) relativa ao ano de 2021, com o n.º 2022..., efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, com o valor total a pagar de imposto, incluindo juros compensatórios, fixado em € 11.254,01 (onze mil duzentos e cinquenta e quatro euros e um cêntimos), bem como a consequente anulação e devolução do montante indevidamente liquidado e penhorado, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal aplicável.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente enviado email à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), a informar da entrada de um pedido de constituição de Tribunal Arbitral e do n.º do processo atribuído, em 08-09-2023, tendo por sua vez a AT sido notificada, em 13-09-2023.

Nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a signatária foi designada pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos. 

Em 27-10-2023, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico.

 

Síntese da posição das Partes:          

1.      Do Requerente

Foi o Requerente notificado pela AT da liquidação de IRS, n.º 2022..., relativa ao ano de 2021. Não podendo concordar com a ordem de pagamento que sobre si impendia, apresentou reclamação graciosa nos termos do artigo 68.º e seguintes do CPPT. Precisa o Requerente que a AT nunca apresentou qualquer resposta ao articulado por si apresentado, omitindo o dever de se pronunciar, pelo que nos termos do artigo 106.º do CPPT esta se teve por tacitamente indeferida na data em que se completaram 4 meses sobre a receção daquela reclamação por parte da AT.

Segundo o Requerente, em 28-04-2019 este emigrou para a Suíça, país onde reside desde então, regressando esporadicamente a Portugal apenas para visitar família e amigos, sendo naquele país que trabalha, desde 01-06-2019.

Reconhece não ter procedido à participação da alteração da sua residência para outro Estado junto da AT, o que, pese embora não justifique o incumprimento da obrigação a que estava sujeito, apenas não fez por puro e simples desconhecimento de que tal lhe competia.

Esclarece que, em 27-10-2022, a AT tomou finalmente conhecimento de que o Requerente se encontra a trabalhar e residir na Suíça, o que ocorreu, não porque este tenha procedido à participação da alteração da residência fiscal que tão pouco sabia lhe competia fazer, mas antes porque se viu obrigado a entregar a declaração de IRS em Portugal visando beneficiar de abono a que pensava ter direito, em virtude do nascimento de seu filho, em 26-09-2022, sendo aquele um dos requisitos exigidos para aquisição de tal benefício.

A AT procedeu, assim, à liquidação de IRS que considera devido em virtude dos rendimentos obtidos pelo Requerente na Suíça, e de que até então não tivera conhecimento. Rendimentos que a AT desconhecia porquanto o Requerente, trabalhando e residindo na Suíça, cumpria naquele país as obrigações de declarar os seus rendimentos e pagar impostos.

Reconhecendo, embora, que à luz do artigo 19.º, n.º 3 da LGT “É obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.“, sublinha o Requerente que nos termos do disposto no n.º 11 do artigo 19.º da LGT“A administração tributária poderá rectificar oficiosamente o domicílio fiscal dos sujeitos passivos se tal decorrer dos elementos ao seu dispor.”

E assinala: «Pelo que sempre se dirá que, nos termos do artigo 19.º, n.º 11 da LGT, competia à AT retificar oficiosamente o domicílio fiscal do Autor, quando este procedeu à entrega da declaração de IRS, na medida em que daí resulta que este se encontra a trabalhar e residir na Suíça».

Mais acrescenta o Requerente que uma vez que a tributação será diferente consoante o sujeito passivo seja residente ou não em Portugal, e que o conceito de domicílio é muitas vezes confundido e erradamente equiparado ao de residente, importa destrinçar tais conceitos, desenvolvendo no PPA a razão pela qual, na sua ótica¸ a questão de saber se alguém é ou não residente em Portugal é independente do seu domicílio fiscal, que no caso sub judice terá sido o único conceito no qual a AT se baseou para tributar os rendimentos auferidos pelo Requerente no estrangeiro.

Neste sentido, invoca também a decisão do CAAD, de 11-10-2022, proferida no âmbito do Proc. n.º 63/2022-T: As expressões “residência fiscal” e “domicílio fiscal” encerram conceitos diferenciados. Residência fiscal integra a hipótese de normas tributárias substantivas e domicílio fiscal projeta-se em consequências processuais.

A obrigação declarativa prevista no artigo 19.º, n.º 3, da LGT não é uma formalidade ad substancia, pelo que a sua preterição não tem, em princípio, impacto em termos de tributação.

“Não residência fiscal” resulta a contrario do próprio Código do IRS. Quem não preencher um dos critérios para ser residente, previstos no artigo 16.º do Código do IRS, é não residente fiscal em Portugal.

Para prova da residência fiscal ou não residência fiscal, em Portugal, são admissíveis quaisquer meios legalmente admissíveis em direito.

E bem assim, a decisão tomada em sentido idêntico por outro Tribunal constituído no CAAD, no âmbito do Processo n.º 36/2022-T, referindo que o enquadramento normativo é o mesmo que o aqui aplicável, e que por sua vez espelha os entendimentos vertidos no Acórdão do TCA Sul, de 11.11.2021, proferido no âmbito do processo n.º 2369/09.7BELRS, e ainda no Acórdão do mesmo Tribunal Superior, de 08/07/2021, proferido no processo n.º 803/05.0BESNT.

Como tal, conclui que aquele que efetivamente transferiu a sua residência para o estrangeiro, não pode mais ser considerado residente em Portugal, mesmo que nos registos da AT – e ainda que por omissão - continue a figurar como domiciliado em Portugal.

Quanto à proibição da dupla tributação internacional e de acordo com o Requerente, ainda que não se atendesse à factualidade e sua subsunção ao direito supra exposta, a anulação da liquidação de IRS peticionada sempre terá de ser entendida como sendo necessária, sob pena de se incorrer em dupla tributação internacional uma vez que os mesmos rendimentos que pretende agora a AT tributar, foram já tributadas na Suíça.

Refere assim o Decreto-Lei n.º 716/74, de 12 de dezembro, que aprovou a Convenção entre Portugal e a Suíça, com vista a evitar a dupla tributação e a estabelecer regras de assistência administrativa recíproca em matéria de impostos sobre o rendimento. «Nos termos do art.º 4.º, n.º 2 daquele DL, a que impera observar no presente caso, “se uma pessoa singular for residente de ambos os Estados Contratantes, a situação será resolvida de acordo com as seguintes regras: a) Será considerada residente do Estado Contratante em que tenha uma habitação permanente à sua disposição. Se tiver uma habitação permanente à sua disposição em ambos os Estados contratantes, será considerada residente do Estado contratante com o qual sejam mais estreitas as suas relações pessoais e económicas (centro de interesses vitais).»

Ainda de acordo com o Requerente «(…) é indiscutível que, residindo e trabalhando na Suíça, o centro de interesses vitais do Autor se situa naquele país (...), pelo que, tendo em conta o critério de desempate supra exposto, o Autor deveria – como foi – ser tributado na Suíça (…) que não pode conduzir a outro resultado que não o impedimento de que seja novamente tributado em Portugal».

Por fim, e no que se refere à restituição dos valores penhorados e dos juros indemnizatórios, recorda o Requerente que viu o seu património penhorado em 2.289,09 € (dois mil duzentos e oitenta e nove euros e nove cêntimos), valor este que deve ser restituído, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.

2. Da Requerida

Os argumentos apresentados na Resposta da AT sublinham o seguinte:

O objeto do presente pedido refere-se à residência fiscal, isto é, o Requerente alega que não era residente fiscal em Portugal, desde abril de 2019, pelo que em 2021 deve ser considerado como não residente e consequentemente ser anulado o ato impugnado.

Invoca o Requerente decisões arbitrais nas quais se dá relevância à distinção entre domicílio fiscal e residência fiscal, alegando também que foi tributado duplamente não tendo a AT respeitado a Convenção para evitar a Dupla Tributação (CDT) celebrada entre Portugal e a Suíça.

Contudo, entende a AT que a pretensão do Requerente não deverá ser acolhida.

Porquanto defende a Requerida que relativamente à determinação da residência fiscal do Requerente se torna necessário observar alguns requisitos, nomeadamente a indicação de uma morada fiscal quer em Portugal, ou no estrangeiro, nos termos do artigo 19.º da LGT e, caso se considere o sujeito passivo não residente em Portugal, a apresentação de um certificado de residência fiscal nos termos do artigo 4.º da CDT celebrada entre Portugal e a Suíça, atestando a sua residência naquele país.

Ora, segundo a Requerida não existiam documentos que comprovassem a residência fiscal na Suíça, para o ano de 2021.

Ao contrário do alegado, sublinha que se verifica uma alteração da morada/residência fiscal do Requerente, em 2022 para a Suíça, mas que essa alteração nem sequer retroagiu a anos anteriores.

A AT refere ainda o seguinte:

O Requerente apresentou a declaração de rendimentos referente, ao ano 2021, na Suíça, não constando no processo qualquer outro documento emitido pelas autoridades fiscais da Suíça.

Nestes documentos consta uma morada na Suíça apesar de não ser possível determinar se o sujeito passivo foi tributado enquanto residente fiscal.

Também de acordo com a Requerida, o Requerente terá continuado a considerar o seu domicílio/residência fiscal em Portugal (apesar de alegadamente possuir residência no estrangeiro para o mesmo período), defendendo que tal facto se presume por não ter apresentado quaisquer outros documentos que afastem, por um lado, a presunção de morada constante do cadastro, nem a informação constante da declaração de IRS de 2021 voluntariamente submetida, onde se considerou como residente fiscal em Portugal, tendo inclusive declarado no anexo J os rendimentos do estrangeiro.

Constando do cadastro do registo de contribuintes a morada em Portugal para o ano em causa, nos termos do artigo 19.º da LGT, presumiu a AT que o sujeito seria residente em Portugal.

Quanto à alegação de que deveria a AT ao ter conhecimento dos rendimentos auferidos no estrangeiro, ter procedido à alteração oficiosa da morada, considera a Requerida que os documentos apresentados por si só não são suficientes para presumir a residência fiscal no estrangeiro, uma vez que foi o próprio contribuinte na sua declaração de IRS de 2021, submetida voluntariamente, que se considerou residente em Portugal.

Por fim, considera a Requerida que, caso se entenda que ao abrigo das normas internas o Requerente pode ser considerado residente, será de recorrer à norma de conflito constante do n.º 2 do artigo 4.º da CDT celebrada entre Portugal e a Suíça, e aferir qual o país em que deve considerar-se residente.

E repete a Requerida que, no presente caso, se considera o Requerente como residente fiscal em Portugal, não só em consequência da morada que consta do registo de contribuintes, mas acima de tudo por ter voluntariamente submetido declaração de rendimentos onde se declarou como residente fiscal no nosso país, reforçando a AT que não existem quaisquer documentos que demonstrem que o requerente foi residente fiscal na Suíça, uma vez que o facto de possuir uma morada na Suíça e lá trabalhar não constitui elemento suficiente para aferir da sua residência fiscal.

Verifica ainda a AT que foi aplicado o crédito de imposto decorrente da aplicação do disposto na CDT celebrada entre Portugal e a Suíça relativamente à forma de eliminação da dupla tributação.

Face ao exposto, deverá confirmar-se a inexistência de prova suficiente para que se considere o sujeito passivo residente no estrangeiro, durante o ano 2021.

Conclui, por último, a Requerida que não se verificarem no presente caso os pressupostos do artigo 43.º da LGT, no que toca ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

***

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral singular, foi constituído em 15-11-2023.

Em 18-11-2023, foi proferido despacho arbitral ordenando a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para apresentar resposta, nos termos e prazo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT, o que efetuou, em 19-12-2023, juntando Processo Administrativo (doravante PA), em 04-01-2024.

Em 16-01-2024, foram notificadas as partes do despacho, de 15-01-2024, proferido pelo Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, do RJAT. Em aplicação dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 16.º, 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), considerou-se que a matéria de facto relevante para a decisão da causa poderia ser fixada com base na prova documental, dispensando-se a reunião do Tribunal Arbitral a que se refere o artigo 18.º desse Regime e consequentemente a produção de prova testemunhal, bem como a apresentação de alegações escritas.

Estimou-se igualmente a prolação de decisão arbitral dentro do prazo previsto no n.º 1, do artigo 21.º do RJAT, convidando-se o Requerente a pagar a taxa arbitral subsequente prevista no artigo 4.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

II. SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à luz do preceituado nos artigos 2.º n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

Não foram suscitadas exceções de que deva conhecer-se.

O processo não enferma de nulidades.

Inexiste, deste modo, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos provados:

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

  1. O Requerente celebrou, em 01-06-2019, com termo em 31-12-2019, um contrato de trabalho na Suíça, tendo sido renovado anualmente o vínculo laboral pelo menos até 31-12-2021.
  2. O Requerente apresentou a declaração de rendimentos referente, ao ano 2021, relativamente aos rendimentos auferidos na Suíça.
  3. Nos documentos emitidos pelas autoridades fiscais da Suíça consta uma morada existente naquele país.
  4. Durante o período em que o Requerente trabalhou na Suíça, cumpriu com as respetivas obrigações fiscais e de segurança social, possuindo n.º de contribuinte e n.º de AVS (sistema de previdência).
  5. Houve uma alteração para a Suíça da sua morada/residência fiscal em Portugal, em 2022.
  6. Até essa data constava do cadastro do registo de contribuintes a morada em Portugal para o ano em causa.
  7. Foi aplicado o crédito de imposto decorrente da aplicação do disposto na CDT celebrada entre Portugal e a Suíça relativamente à eliminação da dupla tributação.
  8. A AT emitiu a liquidação com o n.º 2022... de IRS, para o ano de 2021, no montante de € 11.110,98 (onze mil, cento e dez euros e noventa e oito cêntimos), incluindo juros compensatórios.
  9. Porque o Requerente não efetuou o pagamento até data limite foi promovida a execução fiscal n.º ...2023..., tendo sido penhorado o valor de 2.289,09 € (dois mil duzentos e oitenta e nove euros e nove cêntimos).

J)   Em 12-02-2023, o Requerente apresentou uma reclamação graciosa contra a liquidação com o n.º ...2023..., a qual se teve por tacitamente indeferida por ausência de decisão dentro do prazo de 4 meses.

l)   O Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral, em 07-09-2023.

 

 

2. Factos não provados:

Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que não tenham ficado provados.

3. Fundamentação da fixação da matéria de facto:

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e), do RJAT).

Os factos dados como “provados” e “não provados” foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA, e no PA - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, no consenso das partes.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º n.º 7, do CPPT (aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º n.º 1, alínea a), do RJAT), a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

IV. DO DIREITO

 

1. A questão a decidir:

Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral consiste em apreciar a legalidade do ato de liquidação n.º 2022... de IRS, referente ao período de tributação de 2021, bem como o indeferimento tácito do processo de reclamação graciosa n.º ...2023... .

O Requerente alega, em suma, que não é residente fiscal, em Portugal, desde abril de 2019, pelo que em 2021 deve ser considerado como não residente e consequentemente ser anulado o ato de liquidação impugnado com as consequências legais daí decorrentes.

A questão central reconduz-se, pois, em saber se o Requerente, pese embora não tenha alterado o seu domicílio fiscal para a Suíça deverá, in casu, ser ou não considerado residente fiscal em Portugal, durante o período de 2021, para os efeitos do disposto nos artigos 15.º, n.ºs 1 e 2, e 16.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), 2 e 3, do Código do IRS.

Cumpre apreciar e decidir.

Quer um enquadramento factual muito semelhante, quer o quadro normativo subjacente à questão em análise encontram-se hoje refletidos em pelo menos duas decisões arbitrais do CAAD, que importa trazer à colação, e que acompanhamos para resolução desta disputa.

Referimo-nos às decisões arbitrais proferidas no âmbito dos processos n.ºs 36/2022-T e 63/2022-T, onde se pode ler que a questão de saber se alguém é ou não residente em Portugal é independente da do domicílio fiscal. Nestas encontramos igualmente os seguintes entendimentos:

«Tal como analisado por José Calejo Guerra [Cf. José Calejo Guerra – A (não) residência fiscal no Código do IRS e seus requisitos: do conceito legal à distorção administrativa, Cadernos de Justiça Tributária, n.º 6, outubro-dezembro 2014, pp. 16- 22], também entendemos que o conceito de não residência fiscal resulta a contrario do próprio Código do IRS, uma vez que todos aqueles que não preencherem um dos critérios de residência fiscal previstos no artigo 16.º do Código do IRS deverão ser considerados não residentes fiscais em Portugal. Acrescenta o Autor, que a não residência fiscal é, pois, uma definição legal não escrita que se encontra sob a alçada da reserva relativa de lei da Assembleia da República, que resulta do artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP. Nesta medida, é defendido que a administração tributária não pode introduzir, através da sua atuação (ainda que baseada em orientações administrativas), quaisquer exigências que, de algum modo, dificultem ou impeçam que um qualquer sujeito passivo, que não preencha nenhum critério de residência fiscal em Portugal, seja considerado não residente fiscal (…) Na verdade, de acordo com a atual prática administrativa, a administração tributária exige a apresentação de um comprovativo de residência no estrangeiro para proceder à alteração do estatuto de residência fiscal dos sujeitos passivos para não residentes em Portugal, (…) entendemos que esta prática da administração tributária apenas se poderá reputar de ilegal, por violação do princípio da legalidade tributária, que encontra cobertura legal no artigo 8.º da LGT e cobertura constitucional no já citado artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP.” Os citados entendimentos doutrinais encontram acolhimento na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, sendo disso exemplo, entre outros, os seguintes arestos: Acórdão do TCAS, de 11.11.2021, proferido no processo n.º 2369/09.7BELRS, assim sumariado (na parte que aqui importa reter): “(…) II. Os conceitos de domicílio fiscal (previsto no art. 19.º da LGT) e de residente fiscal para efeitos de IRS não são sinónimos. III. O dever de comunicação, previsto quer no n.º 1 do art. 43.º do CPPT quer no então art. 19.º, n.º 2, da LGT (atual n.º 3), não se trata de formalidade ad substanciam, pelo que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação. (…). V. Não obstante o domicílio fiscal do Impugnante, previsto no art.º 19.º da LGT, contemplar uma morada em Lisboa, esta circunstância distingue-se do conceito de residência fiscal para efeitos de IRS e não consubstancia qualquer presunção inilidível de que a residência fiscal é na morada ali constante.»

Segundo os ensinamentos de Paula Rosado Pereira (Manual de IRS, Almedina, Coimbra, 2018, pp. 56 a 59), também aí referidos:

«(…) Em contrapartida, um não residente – pessoa singular que não preencha nenhum dos critérios de residência fiscal previstos no artigo 16.º do CIRS – encontra-se sujeito a IRS unicamente quanto aos rendimentos obtidos em território português (artigo 15.º, n.º 2 do CIRS). Os não residentes são tributados ao abrigo do elemento de conexão fonte do rendimento. O artigo 18.º elenca os rendimentos que se consideram obtidos em território português e que, como tal, podem ser tributados em sede de IRS mesmo quando auferidos por um não residente.” E citando Pedro Roma (Residência Fiscal Parcial em IRS, Almedina, Coimbra, 2018 pp. 131-145), acrescentam o seguinte: “Assim, tendo em conta estas três normas [artigo 16.º, n.ºs 1, alínea a), 2 e 3, do Código do IRS], julgamos que se poderá formular este critério de residência fiscal [a permanência por mais de 183 dias num período de 12 meses] do seguinte modo: (i) um sujeito passivo é considerado residente fiscal se, em qualquer período de 12 meses, permanecer mais de 183 dias (que incluam dormida) em Portugal e (ii) será (…), a mera disposição de uma habitação não é suficiente para que se possa concluir pelo preenchimento deste critério de residência fiscal em Portugal [critério previsto no artigo 16.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS], pois é necessária a existência de “condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual”.

Por último, (…) os critérios de residência fiscal previstos nas alíneas a) e b) do artigo 16.º, n.º 1 do Código do IRS são alternativos, (…)” Destarte, temos, pois, que o critério previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS se cinge à presença física (corpus), em Portugal, considerando residentes, de forma automática, os indivíduos que permaneçam mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, num período de 12 meses, no território nacional. Por seu turno, a alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, exigindo uma ligação física menos qualificada, impõe uma análise casuística que permita, ainda assim, assegurar que existe uma conexão efetiva com o território; esta conexão tem-se por verificada através de um elemento subjetivo mediato, a intenção de ser residente (animus), que deve ser analisado de uma perspetiva objetiva, ou seja, através de elementos imediatos que permitam a reconstrução da vontade do indivíduo a partir dos indícios por si revelados.”

Ora, verifica-se no nosso caso concreto que a AT, na fundamentação da Resposta enviada no quadro do processo arbitral, não distingue o conceito legal de “residência fiscal” do conceito de “domicílio fiscal”, considerando a não comunicação da alteração da residência fiscal para a Suíça por parte do Requerente como determinante para efeitos de tributação.

Face ao referido, cremos que também o argumentário da AT não colhe quando responde à alegação do Requerente de que ao ter conhecimento dos rendimentos auferidos no estrangeiro deveria ter procedido à alteração oficiosa da morada nos termos do n.º 11 do artigo 19.º da LGT. Considera a AT que os documentos apresentados por si só não são suficientes para presumir a residência fiscal no estrangeiro, uma vez que foi o próprio contribuinte que na sua declaração de IRS de 2021 submetida voluntariamente que se considerou como residente em Portugal.

Na verdade, o facto de o Requerente ter apresentado declaração de IRS onde fazia menção de que seria residente em Portugal, o que se interpreta, face à sua intervenção subsequente e respetivo contexto, como sendo por mero desconhecimento de como deveria proceder nessa fase –, não tem qualquer influência quanto ao estatuto de residência fiscal que deve ser reconhecido ao Requerente, no ano de 2021, pois a “definição de residente é feita, unilateralmente, pela lei de cada Estado” e, no caso português, os respetivos critérios são os constantes do artigo 16.º do Código do IRS.

 A posição da AT, de resto, continua a contrariar frontalmente a jurisprudência descrita, quando afirma não ter o Requerente demonstrado pelos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, ter sido residente fiscal na Suíça, no ano de 2021, mediante a apresentação de um certificado de residência fiscal emitido pela Autoridade Fiscal Suíça.

A nossa conclusão decorre do entendimento acima expresso, que sufragamos, de que a AT «(…) não pode introduzir, através da sua atuação (ainda que baseada em orientações administrativas), quaisquer exigências que, de algum modo, dificultem ou impeçam que um qualquer sujeito passivo, que não preencha nenhum critério de residência fiscal em Portugal, seja considerado não residente fiscal (…)», como a exigência de  um comprovativo de residência no estrangeiro para proceder à alteração do estatuto de residência fiscal dos sujeitos passivos para não residentes em Portugal.

Como se retira da decisão adotada no Processo n.º 36/2022-T, a que aqui aderimos «inexiste qualquer norma legal, nomeadamente no Código do IRS, que condicione/limite os meios de prova de que o contribuinte se pode servir para comprovar a sua residência fiscal, designadamente exigindo a apresentação de um certificado de residência fiscal emitido pelas autoridades fiscais de outro país». E nesta decisão refere-se ainda “A «ineficácia” da mudança de domicílio – repare-se que se diz “domicílio” e não “residência” – referida no artigo 19.º, n.º 4, da LGT não tem, por si só, o alcance de converter o contribuinte em residente para efeitos fiscais, se o mesmo fizer prova em sentido contrário».

Concluindo-se pela inexistência de norma legal que limite os meios de prova de que os contribuintes se podem servir para provar a sua residência ou não residência fiscal, face aos critérios constantes do artigo 16.º do CIRS, damos como cumprido o ónus da prova da sua não residência fiscal em Portugal por ter logrado comprovar através da documentação apresentada a sua residência fiscal na Suíça, durante o ano de 2021, conforme resulta do probatório supra.

Não comprovando a AT que o Requerente dispunha de habitação em território português da qual fazia residência habitual, e permanecendo na Suíça mais do que 183 dias num período de 12 meses com início e termo em 2021, conforme decorre da obrigação contratual de prestar à entidade patronal na Suíça um determinado número de horas de trabalho semanais (taux de activité), a que acresce o gozo de 25 dias de férias anuais – tudo somado aos motivos já aduzidos anteriormente – não compreendemos, uma vez mais, como pôde a AT concluir, no caso, que o Requerente preenchia os critérios legalmente previstos na legislação tributária para ser qualificado como residente fiscal.

Face à desconformidade que resultou da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, nomeadamente, face às normas dos artigos 15.º nº 1, 16.º n.º 1 alínea a) do CIRS e artigo 19.º n.º 11 da LGT, nos termos acima indicados, terá de proceder o PPA.

 

2. Dos Valores Penhorados e dos Juros Indemnizatórios

 

À decisão arbitral cabe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticada, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, conforme determina o artigo 24.º do RJAT, na sua alínea b), em linha com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aqui aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

O reembolso do imposto indevidamente pago, i.e, dos valores penhorados em sede de execução fiscal, é consequência da reconstituição da situação jurídica que resulta da anulação do ato tributário.

O erro que afeta a liquidação resulta numa primeira fase do incumprimento de uma obrigação declarativa do Requerente e não da atuação da AT.

Contudo, deveria ter sido deferida a pretensão da Requerente já em sede de reclamação graciosa, sendo este o erro imputável à AT. Foi em 12-02-2023, como vimos, que o Requerente apresentou a reclamação graciosa contra a liquidação, a qual se teve por tacitamente indeferida por ausência de decisão dentro do prazo de 4 meses.

Neste último caso, estamos perante erro imputável aos serviços, como referido, resultante da omissão de reposição da legalidade quando se deveria praticar a ação que a reporia.

De acordo com o artigo 24.º, n.º 5 do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que nos remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, dos referidos diplomas, prevendo-se o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, calculados sobre as quantias que o Requerente tenha pago no âmbito do processo de execução fiscal.

 

V. DECISÃO

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral singular: 

  1. Julgar procedente a presente ação e anular a liquidação oficiosa de IRS, ano de 2021, com o n.º 2022..., bem como o valor total a pagar de imposto, incluindo juros compensatórios, e todos os atos subsequentes, incluindo os de segundo grau; 
  2. Condenar a Administração Tributária (1) no reembolso dos valores que tenham sido pagos no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2023... e (2) no pagamento de juros indemnizatórios até à data do processamento da respetiva nota de crédito, calculados sobre os montantes penhorados pela AT;
  3. Pese embora o valor da causa indicado pelo Requerente não tenha sido impugnado pela AT, o Tribunal, com base nos elementos constantes do PA, vê fundamento para o alterar nos termos do artigo 308.º do Código do Processo Civil (doravante CPC). Assim, de harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 306.º do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1 alíneas a) e e), do RJAT, e 3.º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa ao processo o valor de € 11.110,98 (onze mil cento e dez euros e noventa e oito cêntimos), incluindo juros compensatórios, atendendo ao valor económico aferido pelo montante da liquidação de imposto impugnada que se quer ver anulada;
  4. Condenar a Requerida nas custas judiciais. Nos termos dos artigos 12.º e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigos 2.º e 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas, em € 918,00 (novecentos e dezoito mil euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 7 de março de 2024     

 

A Árbitra

 

 

/Alexandra Iglésias/

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

 

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.