Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 492/2023-T
Data da decisão: 2024-03-28  ISV  
Valor do pedido: € 8.720,00
Tema: Artigo 11 do Código do ISV – execução de julgado arbitral – competência do tribunal em razão da matéria.
Versão em PDF

 

Sumário:

Não se inserem no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, as questões relacionadas com a execução de julgados, carecendo o Tribunal Arbitral de competência para determinar, impor ou pronunciar-se sobre a forma como foi concretizada a decisão transitada em julgado.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. A..., titular do n.º de identificação fiscal..., com domicílio fiscal na Rua ..., ... – ..., ...-..., Aveiro (doravante, Requerente), apresentou, em 05-07-2023, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2, n.º 1, al. a), e 10, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente pede:

(i) a anulação do ato de liquidação oficiosa de Imposto sobre Veículos (ISV), com data de 22-05-2023, consubstanciado na Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2021/... (16-02-2021). Já em sede de resposta à exceção formulada pela AT, referiu que pretende “a anulação parcial da liquidação do ISV, com fundamento da sua ilegalidade”.

(ii) a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do montante de €8 420,01, suportados pelo Requerente, acrescidos da taxa de €300,00.

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. Em 06-07-2023, o pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6, n.º 2, al. a) e do artigo 11, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido.

 

6. Foram as partes notificadas dessa designação, em 24-08-2023, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6 e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 12-09-2023.

 

7. Em 18-09-2023, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, notificado na mesma data, ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17 do RJAT).

 

8. A Requerida veio apresentar resposta, em 19-09-2023, remetendo o Processo Administrativo. Considerando o PPA e a Resposta oferecida pela Requerente, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, em 30-10-2023, dispensando a reunião a que alude o artigo 18 do RJAT, por a prova testemunhal requerida pelo Requerente se mostrar desnecessária em face do objeto do processo, e conferindo ao Requerente o prazo de 10 dias para que este pudesse, querendo, pronunciar-se sobre a defesa por exceção promovida pela Requerida.

 

9. O que veio a acontecer, com o requerimento apresentado em 10-11-2023.

 

10. No cumprimento do princípio do contraditório, foi prolatado Despacho, com data de 11-03-2024, conferindo às partes o prazo de 10 dias para que se pronunciassem sobre a possibilidade de o Tribunal arbitral se julgar incompetente em razão da matéria, por estar em causa uma questão relacionada com a execução do julgado arbitral, concretamente a prática de um ato de liquidação (oficiosa) que afronta o caso julgado ou que mantém, sem fundamento válido, a situação ilegal, na aceção do artigo 167, n.º 1 do CPTA, aplicável ex vi do artigo 29, al. c) do RJAT. O Requerente pronunciou-se através de requerimento com data de 20-03-2024. A Requerida pronunciou-se através de requerimento com data de 26-03-2024.

 

11. Compulsado o PPA e as respostas, a posição das partes é, em síntese, a seguinte:

(a) O Requerente invoca que o ato de liquidação oficiosa de ISV praticado em 22-05-2022 é ilegal, porque viola uma decisão arbitral transitada em julgado – concretamente, a decisão referente ao processo n.º 221/2021-T. Além disso, tal ato foi praticado com base em normas – as da Declaração de retificação n.º 06/2021, de 22-02-2021 – feridas de inconstitucionalidade orgânica e material, por violação, respetivamente, dos princípios da legalidade fiscal, na sua vertente formal, e da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima dos cidadãos, consagrado nos artigos 2 e 103, n.º 3 da CRP.

(b) Ainda que assim não se entenda, a liquidação sempre estaria sempre ferida de ilegalidade, porquanto o artigo 11, n.º 1 do CISV, na redação conferida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro (LOE para 2021), consagra percentagens de redução distintas para as componentes ambiental e de cilindrada do imposto a pagar, o que está em desconformidade com o preceituado no artigo 110 TFUE, tal como este vem sendo interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, Tribunal de Justiça).

 

(c) Já a Requerida pugna pela improcedência do pedido de anulação parcial das liquidações. Invoca, em primeiro, a exceção de incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria, nos termos e com os efeitos previsto nos artigos 576 e 577, al. a) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29, n.º 1, al. e) do RJAT. Entende a AT que o PPA formulado pelo Requerente extravasa o previsto no artigo 2 do RJAT, que não consente a utilização da ação arbitral para “a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa”.

 

(d) Alega, depois, que tem legitimidade para proceder à revisão da liquidação com base no artigo 78 da LGT, ao abrigo do qual praticou um novo ato de liquidação. Ao contrário da liquidação anterior, anulada pela decisão arbitral do processo n.º 221/2021-T, a liquidação oficiosa acompanha a vontade manifestada pelo Requerente no sentido de que o ISV fosse apurado com base na fórmula de cálculo alternativa do n.º 3 do artigo 11 do CISV, na redação dada pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro (LOE para 2021), retificada pela Declaração n.º 6/2021, de 22-02-2021. A Declaração de retificação n.º 06/2021 não viola, ao contrário do sustentado pelo Requerente, o artigo 103, n.º 3 da CRP e a proibição de retroatividade de normas fiscais, visto que a retificação se limita a corrigir um lapso gramatical, ortográfico, de cálculo ou análogo.

 

(e) Não há violação do caso julgado nem do artigo 24 do RJAT, uma vez que a liquidação oficiosa consiste num novo ato de liquidação, sustentado em novos factos e novos fundamentos. Além disso, da decisão do CAAD que decidiu pela ilegalidade do ato de liquidação e que determinou a sua anulação não resulta que a AT deveria ter efetuado a liquidação de ISV com base no método alternativo e com base na fórmula de cálculo anterior à Declaração de retificação n.º 06/2021.

 

(f) Finalmente, a nova redação do artigo 11, n.º 1 do CISV, ao prever uma percentagem de redução do imposto a pagar em função da desvalorização ao nível da componente ambiental, respeita e executa o acórdão do Tribunal de Justiça, prolatado no âmbito do Processo C-169/2020. Neste aresto, o Tribunal de Justiça entendeu que a anterior redação do artigo 11 CISV era desconforme com o artigo 110 do TFUE, ao não prever qualquer redução por força da desvalorização inerente à componente ambiental, mas não exigiu que a percentagem de redução das duas componentes (cilindrada e ambiental) fosse idêntica.

 

II – Saneamento

12. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10, n.º 1, al. a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4 e 10, n.º 2 do RJAT e artigo 1 da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, na redação da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro).

 

13. O processo não enferma de nulidades.

 

14. Foi suscitada pela Requerida a exceção de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, relativamente à qual o Requerente teve oportunidade de se pronunciar. Por Despacho prolatado no dia 11-03-2024, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria, desta feita por estar em causa uma questão de execução do julgado arbitral. O requerente pronunciou-se por Requerimento com data de 20-03-2024, pugnando pela improcedência da exceção dilatória oficiosamente invocada pelo Tribunal arbitral. Argumenta, concretamente, que a decisão arbitral relativa ao processo n.º 221/2021-T já foi integralmente executada pela AT, e que o Tribunal arbitral é competente, nos termos do artigo 2, n.º 1, al. a) do RJAT, para conhecer de questões relativas à legalidade de atos de liquidação de impostos. Outro entendimento corresponderia, no seu entender, a uma denegação de justiça violadora do princípio da legalidade, nos termos do artigo 103 da CRP. A AT reiterou tudo o expendido em sede de Resposta.

 

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

 

III – Matéria de facto

§1. Factos provados

15. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.º - Pela DAV n.º 2021/..., com data de 16-02-2021, o Requerente declarou para efeitos de introdução no consumo um veículo de marca BMW, modelo M340iX 6N11, movido a gasolina, procedente da Alemanha.

2.º - A primeira matrícula foi emitida em 14-02-2020.

3.º - O sujeito passivo apresentou requerimento para aplicação do método de cálculo do ISV previsto no n.º 3 do artigo 11 do CISV, pedido que foi rejeitado pela Alfândega de Leixões, em virtude de a aplicação deste método se encontrar suspensa até à prolação de decisão de retificação daquele normativo, na redação que fora dada pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro. 

4.º - A fórmula de cálculo do método de avaliação inicialmente publicada com a Lei n.º 75-B/2020, foi, entretanto, alterada através da Declaração de Retificação n.º 06/2021, publicada em 24-02-2021.

5.º - Em 04-03-2021, foi notificado o sujeito passivo, via email, para, no prazo de 5 dias úteis, informar se pretendia manter o pedido de adesão ao método de avaliação com aplicação da nova fórmula de cálculo (retificada) ou, se ao invés, optava pelo método clássico previsto no n.º 1 do artigo 11 do CISV.

6.º - Em 25-03-2021, foi o Requerente notificado, via email, para, no prazo de 10 dias úteis, proceder ao pagamento da taxa prevista na Portaria n.º 297/2013, de 04 de outubro, com vista a que se procedesse ao apuramento do ISV a pagar com base na fórmula prevista no n.º 3 do artigo 11, retificada. 

7.º - Em resposta de 26-03-2021, o Requerente comunicou que pretendia que a liquidação fosse feita com base no método das tabelas do n.º 1 do artigo 11 do CISV.

8.º - Com base nas tabelas previstas no n.º 1 do artigo 11 do CISV, foi liquidado ISV no montante de € 8.420,01, acrescido da respetiva taxa prevista na Portaria n.º 297/2013, de 04 de outubro.

9.º - Em 22-06-2022, foi proferida decisão arbitral no âmbito do processo n.º 221/2021-T, que anulou o ato de liquidação de ISV praticado pelo Diretor da Alfândega de Leixões, efetuado com base na DAV n.º 2021/..., condenando a AT a devolver ao sujeito passivo o montante de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

10.º - Em consequência, em 14-03-2023, a AT devolveu ao Requerente uma importância de € 9.867,39, através do cheque n.º....

11.º - Em 24-03-2023, foi o Requerente notificado, para efeitos de exercício do direito de audiência prévia, da liquidação oficiosa de ISV, praticada ao abrigo do artigo 78, n.º 1 da LGT, no montante de €8 420,01, acrescido da taxa prevista na Portaria n.º 297/2013, de 04 de outubro (doc. n.º 5 junto com o PPA).

12.º - O Requerente exerceu o direito de audiência prévia, invocando que a liquidação oficiosa, a confirmar-se, violaria o caso julgado formado na decisão arbitral inerente ao processo n.º 221/2021-T, ao arrepio do disposto no artigo 24 do RJAT (doc. n.º 6 junto com o PPA).

13.º - Em 22-05-2023, a AT praticou o ato de liquidação oficiosa ora impugnado, com a fundamentação que seguidamente se transcreve (doc. n.ºs 5 e 7 juntos com o PPA):

“(...)

Nos termos do n.º 3 do artigo 6.º do CISV, a taxa de imposto a aplicar é a que estiver em vigor no momento em que este se torna exigível. Nos termos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, “a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.”

Nos termos do artigo 26.º do CISV, na falta ou atraso de liquidação imputável ao sujeito passivo ou no caso de erro, omissão, falta ou qualquer outra irregularidade que prejudique a cobrança do imposto, a AT liquida-o oficiosamente com base nos elementos de que disponha, notificando o sujeito passivo para, no prazo de 10 dias úteis, proceder ao respetivo pagamento.

Conforme vontade do sujeito passivo, manifestada através da apresentação de modelo 1460.1, na DAV n.º 2021/..., de 16.02.2021, o ISV será calculado com recurso ao método de avaliação previsto no n.º 3 do artigo 11.º do CISV, em observância, contudo, da fórmula decorrente da Declaração de Retificação n.º 6/2021, cujos efeitos reportam à Lei do OE/2021, ou seja, à sua entrada em vigor (1 de janeiro de 2021), conforme estabelecido no n.º 4 do artigo 5.º da Lei n.º 74/98, de 11/11.

Nestes termos, de acordo com a avaliação apresentada pelo sujeito passivo, o veículo declarado pela DAV n.º 2021/..., de 16.02.2021, é sujeito a ISV, no montante de € 8.420,01, determinado nos termos do n.º 3 do artigo 11.º do CISV, acrescido da respetiva taxa prevista na Portaria n.º 297/2013, de 4 de outubro (€ 300,00).

(...)”

14.º - Em 05-07-2023, o Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral objeto de apreciação neste processo.

 

§2. Factos não provados

16. Não existem, com relevo para a decisão, factos não provados. 

 

§3. Fundamentação da matéria de facto

17. Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123, n.º 2, do CPPT e do artigo 607, n.º 3, do CPC, aplicáveis por força do artigo 29, n.º 1, als. a) e e), do RJAT. Assim sendo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre da aplicação conjugada do artigo 596, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29, n.º 1, e), do RJAT.

 

18. Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. Não sendo a matéria de facto controvertida, não se justificam outras considerações, porque manifestamente desnecessárias.

 

IV – Fundamentação de direito

19. Da tramitação processual resulta serem três as questões de direito a decidir: a primeira prende-se com a exceção de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, à luz do artigo 2 do RJAT, por estar em causa uma questão relacionada com a execução do julgado, concretamente a prática de um ato de liquidação (oficiosa) que mantém, sem fundamento válido, a situação ilegal, na aceção do artigo 179, n.º 2 do CPTA, aplicável ex vi do artigo 29, c) do RJAT). Esta questão foi suscitada, a título oficioso, pelo tribunal arbitral; a segunda tem que ver com a exceção de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria por o pedido ter por objeto a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa; a terceira prende-se com a legalidade do ato de liquidação oficiosa de ISV praticado pela Requerida. Vejamos.

 

  1. Da exceção de incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria por estar em causa uma questão relacionada com a execução do julgado

 

20. O Tribunal arbitral invocou oficiosamente a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria por estar em causa uma questão relacionada com a execução do julgado. Trata-se de uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, que obsta ao prosseguimento do processo e determina a absolvição da instância da entidade requerida, de acordo com o previsto nos artigos 576, n.º 2, 577, al. a) do CPC e do artigo 89, n.º 4, al. a) do CPTA, ex vi artigo 29, n.º 1, al. e) do RJAT.

 

21. Dispõe o artigo 158, n.º 1 do CPTA, aplicável ex vi do artigo 29, n.º 1, al. c) do RJAT, que “[A]s decisões dos tribunais administrativos são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades administrativas”. Em sentido próximo, dispõe o artigo 100 da LGT que a administração está obrigada a reconstituir a situação que hipoteticamente existiria caso não tivesse sido praticado o ato ilegal, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei. Daqui decorre para a AT um verdadeiro dever de reexame da situação que lhe é colocada, de molde a, conjugando o dispositivo da sentença com a respetiva fundamentação, identificar os atos materiais e jurídicos necessários à reposição da legalidade, nos exatos termos da sentença (cf., também, o artigo 24 do RJAT, sobre os efeitos da decisão arbitral).

 

22. O desrespeito da sentença judicial ou arbitral por parte da administração pode traduzir-se num comportamento passivo – por exemplo, no não reembolso do montante de imposto indevidamente pago pelo sujeito passivo – ou em comportamentos ativos. Com efeito, o caso julgado da sentença de anulação de atos administrativos (ou tributários) cobre os fundamentos que determinam a anulação, pelo que haverá ofensa ao caso julgado em caso de reincidência, ou seja, caso a administração reincida nas ilegalidades previamente identificadas pelo tribunal no processo de anulação. A par de atos de ofensa do caso julgado stricto sensu, os artigos 167, n.º 1 in fine, 176 e 179, n.º 2 do CPTA qualificam ainda como desrespeitadores da decisão judicial (ou arbitral) quaisquer atos que, sem fundamento válido, mantenham a situação ilegal, inclusivamente atos que consubstanciam uma recusa disfarçada de execução do julgado.

 

23. Para efeitos da determinação da extensão material do processo de execução do julgado, haverá agora que distinguir duas situações: a situação em que o exequente alegue que o ato administrativo (ou tributário) foi praticado com o propósito de obstar à produção do resultado almejado pela decisão judicial, que deve ser apreciada no processo de execução de julgado; e a situação em que o exequente impute ao ato administrativo (ou tributário) vícios novos e próprios, caso em que deverão tais atos ser objeto de impugnação autónoma (cf., neste sentido, o acórdão do CAAD de 21-06-2019, processo n.º 130/2019-T; e Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª ed., Almedina, 2021, p. 1082-1084, em anotação ao artigo 167 do CPTA).

 

24. A jurisdição dos tribunais arbitrais que operam no CAAD estende-se à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de impostos, de acordo com o artigo 2, n.º 1, a) do RJAT, conjugado com o artigo 2 da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. Atento o que se disse supra sobre o processo de execução de julgados, estarão fora da jurisdição dos tribunais arbitrais aquelas situações em que a declaração de ilegalidade do ato de liquidação tem como fundamento a afronta do caso julgado ou a manutenção, pela AT, de uma situação que obste à produção do resultado visado pela decisão judicial ou arbitral (neste sentido, acórdão do CAAD de 09-02-2023, processo n.º 539/2022-T). Vejamos se assim é no caso concreto.

 

25. Segundo o Requerente, “[a] decisão arbitral considerou que não tendo sido calculado o imposto de acordo com o método da avaliação previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 11.º do CISV, com recurso à fórmula em vigor à data de 23.02.2021, data de introdução do consumo do veículo automóvel em questão, a mesma liquidação está ferida do vício de ilegalidade”. A AT contrapõe dizendo que a liquidação oficiosa acompanhou a vontade manifestada pelo Requerente no sentido de o cálculo do ISV ser efetuado através do método alternativo previsto no n.º 3 do artigo 11 do CISV. Da leitura da sentença arbitral relativa ao processo n.º 221/2021-T – entende a Requerida – não se conclui que AT deveria ter efetuado a liquidação do imposto pelo método alternativo e com base na fórmula de cálculo do n.º 3 do artigo 11 do CISV, na redação vigente previamente à Declaração de retificação n.º 06/2011 (ponto 98.º da Resposta).

 

26. Atente-se no seguinte excerto daquela decisão arbitral:

“(...)

Contudo, sendo o contencioso tributário um contencioso de mera anulação, o que está em causa nos presentes autos é saber se o acto de liquidação de ISV cuja legalidade se contesta foi praticado nos termos previstos na Lei, ou não.

Inexistem dúvidas que a introdução no consumo do veículo automóvel acima identificado ocorreu em 23 de Fevereiro de 2021.

Destarte encontrava-se em vigor o artigo 11.º, do Código do ISV, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 391.º, da Lei n.º 75-B, de 31 de Dezembro.

Na versão em vigor, o artigo 11.º, do Código do ISV previa expressamente a possibilidade de os contribuintes requererem ao Director da Alfândega que o imposto seja calculado através do método da avaliação.

Ora, tendo ficado demonstrado nos autos que o Requerente expressamente solicitou, conforme previsto nos n.ºs 3 e 4 do Código do ISV o cálculo do imposto através do método da avaliação, impunha-se que a Requerida o tivesse feito. Não tendo tal sucedido, isto é, não tendo a Requerida calculado o imposto de acordo com o método da avaliação previsto nos n.ºs 3 e 4 do Código do ISV, impõe-se a conclusão de que o acto de liquidação de ISV em apreço é ilegal porque praticado em erro sobre os pressupostos e violação das anteditas disposições legais, impondo-se a sua anulação.

(...)”

 

27. A leitura que a AT faz da decisão proferida no processo n.º 221/2021-T, expressa no ponto 98.º da Resposta, não é correta.

 

28. Não cabe a este Tribunal arbitral pronunciar-se sobre a correção de uma decisão arbitral já transitada em julgado, como é o caso da decisão relativa ao processo n.º 221/2021-T. O Tribunal não pode, portanto, revisitar a questão de saber se aquele tribunal se considerou erroneamente competente em razão da matéria, ao contrário do que fizeram outros tribunais arbitrais a propósito de pedidos idênticos (cf., por exemplo, a decisão arbitral de 29-10-2021 relativa ao processo arbitral n.º 117/2021-T). Nem pode, tão-pouco, revisitar a questão de saber se o tribunal arbitral, ao anular a liquidação de ISV originária com fundamento no facto de o sujeito passivo ter direito a que lhe fosse aplicada a redação do artigo 11, n.º 3 vigente ao tempo da verificação do facto tributário (anterior à retificação), deveria ter abertamente julgado ilegal ou inconstitucional a Declaração de retificação n.º 06/2011, na parte em que esta retroage os seus efeitos à data de 1 de janeiro de 2021.

 

29. Certo é que a decisão arbitral não foi impugnada e os seus efeitos estão consolidados na ordem jurídica. E da decisão arbitral – reitera-se, bem ou mal – resulta que o fundamento da declaração de ilegalidade foi a circunstância de a AT ter vedado ao Requerente o direito de ser tributado de acordo com a fórmula de cálculo vigente à data da prática do facto tributário, ou seja, de acordo com o disposto no artigo 11, n.º 3 do CISV, na redação dada pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, em momento anterior à Declaração de retificação n.º 06/2011.

 

30. Neste sentido, entende o Tribunal arbitral que o pedido de impugnação do ato de liquidação oficiosa de ISV tem subjacente uma questão de execução da decisão arbitral proferida no processo n.º 221/2021-T, para a decisão da qual o tribunal é materialmente incompetente, nos termos do artigo 2 do RJAT, conjugado com o artigo 2 da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e com os artigos 167, n.º 1, 176 e 179, n.º 2 do CPTA, aplicável ex vi do artigo 29, n.º 1, al. c) do CPTA.

 

31. Não há, nesta conclusão, qualquer denegação de justiça. De uma leitura sistemática daqueles normativos, que é no entender deste Tribunal arbitral a interpretação correta, resulta que as questões sobre a execução do julgado estão excluídas do âmbito material da arbitragem tributária. Ademais, a fundamentação gizada demonstrou que a AT, através do novo ato de liquidação, renovou o vício que motivou a anulação do ato de liquidação originário, violando os exatos termos da sentença arbitral prolatada no processo n.º 221/2021-T. Asserção, aliás, não contestada pelo Requerente na petição inicial, onde por diversas vezes se invoca a violação do caso julgado.

 

32. Concluindo, há que julgar procedente a exceção dilatória de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, e em consequência absolver a Requerida da instância, de acordo com o previsto nos artigos 576, n.º 2, 577, al. a) do CPC e do artigo 89.º, n.º 4, al. a) do CPTA, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, als. c) e e) do RJAT.

 

V – Questões de conhecimento prejudicado

33. Procedendo a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria, oficiosamente suscitada pelo tribunal arbitral, fica prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas ou que houvesse de apreciar.

 

VI – Decisão

Termos em que se decide:

a) Julgar procedente a exceção dilatória de incompetência deste Tribunal Arbitral;

b) Absolver a Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, da instância;

c) Condenar o Requerente no pagamento das custas.

 

VII – Valor do processo

Em conformidade com o disposto no artigo 306, n.º 2 do CPC, no artigo 97-A, n.º 1, al. a) do CPPT [« 1- Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende (...)]», e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [«O valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário»], fixa-se o valor do processo em € 8 720,00, sem contestação pela Autoridade Tributária.

 

VIII – Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12, n.º 2 e 22, n.º 4 do RJAT, no artigo 4, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em € 918,00, a cargo do Requerente.

 

Notifique-se.

 

Porto, 28 de março de 2024.

 

 

 

 

Marta Vicente

(Árbitro singular)