Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 472/2023-T
Data da decisão: 2024-02-26  IVA  
Valor do pedido: € 496.317,63
Tema: IVA – Serviços de mediação e de gestão imobiliária: isenção art.º 9, 27), g) do Código do IVA; reembolso de IVA indevidamente liquidado.
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SUMÁRIO:

  1. Os serviços de mediação imobiliária e de property management prestados ao Requerente são específicos e essenciais às funções de gestão e administração de fundos de investimento imobiliários, pelo que beneficiam da isenção de IVA da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA.

 

  1. Inexistindo abuso ou fraude fiscal e estando devidamente acautelado o risco de perda de receita fiscal, o IVA indevidamente liquidado em tais serviços pode ser reembolsado ao adquirente em conformidade com as normas nacionais aplicáveis.

 

  1. Porém, apenas pode ser efetuado o seu reembolso diretamente pelo Estado se e na medida em que o respetivo reembolso pelo fornecedor seja, comprovadamente, impossível ou excessivamente difícil, cabendo tal prova ao adquirente dos bens ou serviços.  

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros Rui Duarte Morais, Raquel Montes Fernandes e José Coutinho Pires, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

 

  1. RELATÓRIO

O Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado A..., NIPC ..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa, representado pela sua sociedade gestora, B...– Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Colectivo, S.A., NIPC nº º..., com sede na mesma morada, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  1. O pedido

O Requerente pede a anulação dos atos tributários de autoliquidação de IVA praticados por uma entidade terceira que lhe prestou serviços de mediação imobiliária e de administração dos ativos imobiliários durante o período compreendido entre janeiro de 2018 e dezembro de 2020, no âmbito dos quais o Requerente alega ter pago imposto indevido no montante de € 496.317,63.

 

Pede ainda a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

B) Tramitação

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite em 03.07.2023.

 

O Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, que aceitaram. As partes não se opuseram a tais designações.

 

O Tribunal encontra-se, desde 12.09.2023, regularmente constituído.

 

A Requerida, apresentou a sua resposta, e respetivo processo administrativo.

Tendo sido deduzida defesa por exceção, foi o Requerente notificado para se pronunciar sobre a mesma, o que veio a suceder através de requerimento apresentado em 20.11.2023, juntando dois documentos, que foram anexados aos autos. A AT apresentou novo requerimento, em 30.11.2023, com a sua análise e conclusões a retirar de tais documentos.

 

 Em 22.12.2023, a Requerida apresentou novo requerimento ao Tribunal, com o objetivo de dar a conhecer a decisão arbitral entretanto proferida no processo n.º 471/2023-T. Em 12.01.2024, o Requerente solicitou a junção de documento superveniente aos autos (correspondência trocada com o fornecedor dos serviços).

 

Por despacho de 22.02.2024, foi prescindida a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.

 

  1. O LITÍGIO

O Requerente celebrou um contrato de mediação imobiliária com a C..., S.A., no âmbito do qual esta se comprometeu, em regime de exclusividade, a diligenciar pela obtenção de interessados na compra e arrendamentos dos ativos imobiliários existentes na carteira do Requerente e, ainda, a prestar serviços de gestão de ativos imobiliários.

 

O Requerente entende que o preço de tais serviços está isento de IVA ao abrigo da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA.

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

  1. inexiste erro imputável à AT que permita o recurso ao pedido de revisão oficiosa dos atos tributários em causa dentro do prazo de 4 anos, podendo o sujeito passivo fazer-se valer, apenas, do prazo de 2 anos;
  2. a existir algum erro, este não se reporta às autoliquidações, mas, sim, às faturas emitidas pela C...;
  3. o direito à dedução, assim como à regularização de imposto, são opções do sujeito passivo, e não configuram erros, não podendo a AT substituir-se ao sujeito passivo no seu exercício;
  4. não resulta dos elementos disponibilizados em sede de pedido de revisão oficiosa que a regularização de imposto tenha sido solicitada à C...;
  5. de acordo com a alínea c) do n.º 1 do art.º 2 do Código do IVA, a menção de IVA (ainda que indevido) em faturas determina que tal montante faturado deve ser entregue ao Estado;
  6. uma vez que a revisão oficiosa não se afigura como meio idóneo para fazer valer a pretensão do Requerente, fica precludida a apreciação do mérito/legalidade da questão de fundo, que respeita ao enquadramento dos serviços em causa na subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA.

 

A Requerida alegou, ainda:

  1. que o Requerente não tem legitimidade material nestes autos quanto às autoliquidações emitidas em nome de outra entidade;
  2. que não se mostra assegurado que do presente pedido de reembolso não resulte perda de receitas fiscais e que não foi comprovada a impossibilidade ou excessiva dificuldade em obter, junto do prestador do serviço, a correção das faturas e a restituição do imposto indevidamente liquidado;
  3. que não se comprova que seja aplicável, in casu, a isenção da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA, por não se demonstrar cumprido o regime de subcontratação e/ou porque nem todas as funções exercidas no âmbito da gestão e administração de fundos de investimento, quando fornecidas em regime de subcontratação às sociedades gestoras, se encontram abrangidas pela isenção;
  4. que os documentos apresentados pelo Requerente não sustentam o montante de IVA alegadamente liquidado nas faturas emitidas pela C... pois consultado o e-fatura, o IVA liquidado nessas faturas apenas totaliza € 449.516,11 e não o montante de € 496.317,63 aqui peticionado.   

 

 

  1. SANEAMENTO

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Não existem questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

 

  1. MATÉRIA DE FACTO
  1. Factos dados como provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. O Requerente é um fundo fechado de investimento imobiliário, representado por uma sociedade gestora cuja constituição foi autorizada pela CMVM, sendo a sua atividade regulada pelo Regime da Gestão de Ativos (“RGA”), Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro.
  2. O Requerente celebrou, em 27.01.2015, contrato de mediação imobiliária com a C..., no âmbito da qual esta se comprometeu, em regime de exclusividade, a diligenciar pela obtenção de interessados na compra e arrendamentos dos ativos imobiliários existentes na carteira do Requerente (junto como Documento 3 do PPA).
  3. No âmbito deste contrato, a C... obriga-se a diligenciar no sentido de conseguir interessados para a compra ou arrendamento dos imóveis constantes das listagens anexas ao presente contrato (…), desenvolvendo para o efeito as ações de promoção e recolha de informações que reputar necessárias” (cláusula Primeira do contrato de mediação imobiliária acima referido).
  4. Para efeitos de execução do contrato de mediação imobiliária, a C...obriga-se a prestar ao Fundo as atividades seguidamente elencadas, tendo em vista a comercialização dos imóveis do Requerente (conforme cláusula Segunda do contrato de mediação imobiliária):
    1. Analisar o Portfólio dos Imóveis, respetiva documentação e todos os elementos fornecidos pelo Fundo, designadamente nas vertentes registais, urbanísticas e características físicas dos Imóveis;
    2. Identificar potenciais compradores e arrendatários e apresentar relatórios de ações realizadas;
    3. Analisar propostas de aquisição e arrendamento, e submete-las à consideração final do Fundo;
    4. Participar em negociações e colaborar na elaboração dos documentos conducentes à concretização das vendas e arrendamentos;
    5. Facultar a visita aos imóveis a potenciais interessados e apresentar propostas recebidas;
    6. Delinear e submeter à apreciação do Fundo a estratégia de venda e arrendamento dos imóveis, propor as linhas gerais do plano de promoção das vendas e arrendamento, a publicidade na comunicação social e outros meios, etc. 
  5. Por sua vez, o Requerente obriga-se a facultar à C... toda a documentação relativa aos imóveis, permitir o acesso a estes para efeitos de visitas de potenciais interessados, e a pagar as respetivas comissões (cláusula Terceira do contrato de mediação imobiliária).
  6. A atividade de mediação imobiliária da C... é desenvolvida em regime de exclusividade, sem prejuízo de o Fundo poder vender os seus imóveis a qualquer momento (cláusula Quarta do contrato de mediação imobiliária) e de a C... poder celebrar acordos de parcerias com mediadoras locais (conforme adenda de 2016).
  7. A comissão de mediação imobiliária cobrada pela C... ao Requerente é calculada de acordo com os critérios previstos na cláusula Sexta do contrato de mediação imobiliária.
  8. São encargos da C... as despesas com a sua atividade de promoção, venda e arrendamento dos imóveis, incluindo despesas com publicidade, etc. (cláusula Sétima do contrato de mediação imobiliária).
  9.  Em 23.04.2021, o Fundo e a C... celebraram um Contrato de Prestação de Serviços de Property Management de Ativos Imobiliários, com efeitos retroativos a 01.09.2020 e termo previsto em 31.08.2022 (cláusula 8ª), no âmbito do qual a C... comprometeu-se a prestar ao Requerente os seguintes serviços (cláusula 3ª):
    1. Colaboração na definição da estratégia de gestão dos ativos, para aumentar a rendibilidade dos ativos imobiliários e a sua valorização na venda;
    2. Colaboração na elaboração do orçamento anual por empreendimento, e detalhado por imóvel;
    3. Coordenação dos contratos de arrendamento dos imóveis:
      1. Acompanhamento da celebração de contratos de arrendamento, com a execução de todas as tarefas de natureza jurídica e administrativa;
      2. Preparação das frações para garantir entrega aos inquilinos;
      3. Preparação dos manuais de utilização dos equipamentos, ficha técnica, chaves, etc.;
      4. Estabelecimento de procedimento para recuperação das rendas em dívida;
      5. Coordenação das reclamações dos inquilinos;
      6. Coordenação de denúncias e oposições à renovação de contratos;
      7. Realização de vistorias às frações no fim dos contratos.
    4. Coordenação dos processos de venda dos imóveis:
      1. Obtenção e preparação da documentação necessária;
      2. Vistoria às frações e sua preparação para entrega;
      3. Preparação dos manuais de utilização dos equipamentos, ficha técnica, chaves, etc.;
      4. Preparação de contratos-promessa e de contratos de compra e venda e acompanhamento da celebração dos mesmos;
      5. Coordenação da entrega das frações aos novos proprietários.
    5. Property management dos imóveis não constituídos em condomínio;
    6. Representação do Fundo nas reuniões de condomínio;
    7. Coordenação na resolução de reclamações pós-venda;
    8. Coordenação de contratos de manutenção, limpeza, segurança e outros serviços;
    9. Acompanhamento e supervisão de obras correntes de conservação, manutenção e reparação;
    10. Acompanhamento de processos junto de entidades licenciadoras e concessionárias de serviços públicos;
    11. Serviços de asset management e de project management:
      1. Apoio na elaboração e implementação de planos estratégicos, de comercialização e comunicação para cada ativo;
      2. Coordenação dos serviços jurídicos em todas as vertentes;
      3. Apoio na elaboração de planos plurianuais de investimento em capex;
      4. Apoio na negociação de financiamentos, preparação de reuniões do Comité Consultivo do Fundo e preparação de atas;
      5. Coordenação dos prestadores de serviços a contratar para áreas específicas (arquitetura, engenharia e consultores);
      6. Formalização de dossier técnico por cada ativo a desenvolver ou licenciar, etc.

 

  1. Por conta dos supra referidos serviços, o Fundo obrigou-se ao pagamento, à C..., de um valor mensal, acrescido de IVA à taxa legal em vigor (cláusula 7ª), cujas faturas disponibilizadas nestes autos apresentam o descritivo “honorários de gestão”.
  2. Em 02.01.2023 foi aberto, pela AT, um procedimento de revisão oficiosa que teve por base um pedido do Requerente a solicitar a revisão dos atos de autoliquidação de IVA da C..., entre janeiro de 2018 e dezembro de 2020, referente aos serviços de mediação imobiliária e de gestão de ativos imobiliários por esta prestados ao Requerente, tendo por fundamento a indevida liquidação de IVA, no valor de € 496.317,63.
  3. O referido pedido de revisão oficiosa foi rejeitado liminarmente pela AT, por intempestividade, por despacho de 31.03.2023. 
  4. Em 29.06.2023, o Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral do despacho de rejeição liminar do pedido de revisão oficiosa.
  5. O Requerente juntou aos autos um email da C..., datado de 10.01.2024, com o seguinte teor: “Reiterando o que anteriormente havíamos dito e que tivemos oportunidade de explicar na reunião que tivemos, consideramos que a faturação da C... ao A... está corretamente emitida pelo que não haverá, em nosso entendimento, qualquer retificação a fazer”.

 

Estes factos resultam da documentação junta aos autos, não existindo controvérsia entre as partes sobre a sua realidade (mas sim sobre o seu “significado”).

 

  1. Factos dados como não provados
  1. O montante total dos serviços prestados pela C... ao Requerente nos anos 2018 a 2020 bem como o valor do IVA suportado por este.

 

  1. A impossibilidade ou a excessiva dificuldade em o Requerente conseguir junto C... a anulação das liquidações de IVA referentes às faturas em causa.

 

Quanto a a), não foi produzida prova documental, sendo que o montante alegado pelo Requerente não coincide com o afirmado pela AT como sendo o constante do e-factura.

 

Quanto a b), a única prova documental produzida foi a dada como provada em n) dos factos provados, ou seja, um email da C... enviado ao Requerente já na pendência deste processo, certamente a pedido desta.

 

O Requerente não especificou / comprovou concretas diligências antes levadas a cabo pelo Requerente para tentar resolver a questão junto da C... .

 

  1. Matéria de Direito

 

  1. EXCEÇÕES

A.1) Da ilegitimidade “material” do Requerente

 

Alega a Requerida a “ilegitimidade material” do Requerente.

 

Reconhecendo a sua qualidade de “repercutido” , invoca que: (i)  não resulta que o Requerente tenha solicitado ao prestador dos serviços a mencionada regularização de imposto; (ii) a retificação do imposto liquidado nas faturas – caso exista direito a tal retificação – deveria ocorrer nos termos dos art.ºs 78 e seguintes do Código do IVA; (iii) nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 2 do Código do IVA, a simples menção de IVA nas faturas determina que o respetivo emitente fique enquadrado nas regras de incidência subjetiva, impendendo sobre ele a obrigação de entregar ao Estado esse imposto, ainda que indevidamente liquidado.

 

Por sua vez, em resposta à exceção invocada pela AT, o Requerente afirma ter legitimidade por ser titular de um interesse legalmente protegido, uma vez que, economicamente, suportou o encargo do IVA em causa, que pagou ao seu fornecedor e não pode deduzir.

Contesta ainda o afirmado pela Requerida, nomeadamente quanto aos esforços necessários encetados junto do fornecedor para que este procedesse à substituição das faturas previamente emitidas.

 

Apreciando:

 

Salvo o devido respeito, existirá alguma confusão por parte da AT quanto à invocação da ilegitimidade enquanto exceção.

 

Como ensinam os manuais, a legitimidade é um pressuposto processual (e não uma condição material de procedência da ação). O que, desde logo, torna algo incompreensível falar-se, neste contexto, de “ilegitimidade material”.

 

A lei processual qualifica a legitimidade das partes como exceção dilatória de conhecimento oficioso.

 

Quando considere ilegítima alguma das partes, o juiz abster-se-á de conhecer do mérito do pedido, absolvendo o Réu da instância (art. 278º, nº1, al. d), do CPC). Daí a sua natureza de pressuposto processual.

 

O critério aferidor da legitimidade é o interesse relevante (nº 1 do art. 30º do CPC).

 

Ora, é indiscutível o interesse do Requerente em demandar: pretende, com recurso à via judicial (arbitral) recuperar o valor do IVA que, a seu ver ilegalmente, suportou.

 

Por tal razão, por ter a qualidade de repercutido, assiste ao Requerente, indubitavelmente, legitimidade processual, como a lei, para mais, o determina, pelo que é de indeferir esta exceção.

O que não significa que as questões suscitadas pela AT a título de “exceção material de ilegitimidade” não devam ser analisadas (possam, até, ser decisivas) enquanto requisitos substantivos necessários à procedência do pedido, ou seja, no contexto da apreciação do mérito da causa, como bem ensina a jurisprudência por ela citada.   

 

A.2) Inadmissibilidade do recurso à revisão oficiosa

 

Muito embora não invoque expressamente esta questão a título de exceção, certo é que a  Requerida alega: (i) que inexiste erro imputável à AT que permita o recurso ao pedido de revisão oficiosa dos atos tributários em causa dentro do prazo de 4 anos, podendo o sujeito passivo fazer-se valer, apenas, do prazo de 2 anos; (ii) que o direito à dedução, assim como à regularização de imposto, são opções do sujeito passivo e não configuram erros, não podendo a AT substituir-se ao sujeito passivo no seu exercício; (iii)  uma vez que a revisão oficiosa não se afigura como meio idóneo para fazer valer a pretensão do Requerente, fica precludida a apreciação do mérito/legalidade da questão de fundo[1].

 

Apreciando:

 

A via utilizada pelo Requerente para aceder à jurisdição arbitral foi, como provado, a revisão oficiosa.

 

Na data em que o fez, estava já ferido de caducidade o direito do Requerente (melhor, da C...) a lançar mão do mecanismo de retificação de imposto liquidado em faturas previsto no art.º 78 do Código do IVA (sem prejuízo da discussão se, in casu, seria aplicável o disposto no n.º 2 do art.º 98 do mesmo diploma).

 

É evidente que, na situação em análise, não pode estar em causa um “erro imputável aos serviços” em sentido rigoroso. Não cabe à AT, em primeira linha, liquidar o IVA. Tal é, por regra, obrigação do fornecedor dos bens ou serviços. Foi assim no caso concreto.

 

Porém, a expressão “erro imputável aos serviços” tem, hoje que ser lida de forma ampla, significando “erro não imputável ao sujeito passivo”.

 

Na realidade, até à revogação do nº 2 do art.º 78 da LGT, o erro na liquidação, mesmo quando fosse cometido pelo sujeito passivo em sede de autoliquidação, era passível de fundamentar um pedido de revisão oficiosa.

 

Com a revogação de tal norma surgiu uma nova questão: a das liquidações praticadas por uma entidade – que, formalmente, é o sujeito passivo das obrigações de liquidação e entrega ao Estado do imposto - que não é o seu devedor, ou seja, não é quem suporta o encargo económico do imposto (incluindo-se aqui o repercutido enquanto “contribuinte de facto”).

 

O entendimento dominante (cremos que hoje quase sem contestação) passou a ser o de que “erro dos serviços” abrange também o erro praticado pelos privados a quem a lei cometa a tarefa de liquidação do imposto, ou seja, a revisão oficiosa dos atos é possível sempre que o erro na liquidação não possa ser imputado a quem formula tal pedido.

 

De outra forma, estaríamos a criar uma injustificada desigualdade do acesso à justiça administrativa entre os que pretendem contestar uma hétero-liquidação praticada pela AT e os que pretendam contestar uma hétero-liquidação praticada por um sujeito passivo no exercício de funções que, materialmente, são da administração fiscal.

 

Implicando a decisão de rejeição do pedido de revisão oficiosa uma apreciação da liquidação em causa (a apreciação da autoria do alegado “erro”), o meio de reação contenciosa próprio é – como também é pacificamente aceite – o processo de impugnação. Do que decorre a competência dos tribunais arbitrais.

 

Pelo que há que considerar que o presente processo corresponde ao meio próprio para fazer valer em juízo o peticionado e, ainda, a tempestividade da ação.

 

  1. DO MÉRITO

 

B.1) Enquadramento em sede de IVA dos serviços prestados

Conforme resulta do supra exposto, estão em causa serviços (i) de mediação imobiliária e (ii) de gestão imobiliária prestados pela C... ao Requerente entre 2018 e 2020.

 

Dispõe a subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA que estão isentas de imposto a administração ou gestão de fundos de investimento. Esta norma corresponde à transposição da alínea g) do n.º 1 do art.º 135 da Diretiva IVA, que dispõe que está isenta de imposto a gestão de fundos comuns de investimento, tal como definidos pelos Estados-Membros. Conforme refere o TJUE, “a isenção prevista nessa disposição tem por finalidade favorecer o acesso dos pequenos investidores ao mercado de valores mobiliários. Efetivamente, a gestão comum dos investimentos nos fundos comuns de investimento oferece‑lhes a possibilidade de deter, apesar de um investimento modesto, uma carteira diversificada que os protege dos riscos inerentes à flutuação do valor dos títulos e permite‑lhes repartir o custo de uma gestão especializada. Na falta de isenção, os detentores de unidades de participação nos organismos de investimento coletivo são tributados mais pesadamente do que os investidores, a priori de maior dimensão, que investem diretamente o seu dinheiro em títulos sem recorrer a prestações de gestão de fundos. Ora, o princípio da neutralidade fiscal opõe‑se a que os operadores económicos que efetuam as mesmas operações sejam tratados de forma diferente em matéria de cobrança do IVA[2].

As isenções previstas no n.º 1 do artigo 135.º da Diretiva IVA constituem conceitos autónomos do direito da União, que têm por objetivo evitar divergências na aplicação do regime do IVA na União e devem, consequentemente, ser objeto de uma definição comum, cujo conteúdo não pode ser modificado pelos Estados-Membros. Não obstante, tal não é o caso quando o legislador da União Europeia confia aos Estados-Membros a definição de determinados termos de uma isenção. No que respeita à mencionada alínea g), o TJUE já esclareceu que (i) o conceito de “gestão” aí mencionado é um conceito autónomo do direito da União; diferentemente, (ii) cabe aos Estados-Membros a definição do conceito de “fundos comuns de investimento”[3].

 

No caso em apreço, não restam dúvidas de que o Requerente, na qualidade de fundo de investimento imobiliário regulado pela CMVM, se enquadra no conceito de fundo comum de investimento para efeitos do art.º 135 da Diretiva IVA.

 

Por sua vez, quanto ao conceito de “gestão” dos fundos comuns de investimento previsto na alínea g) do n.º 1 do art.º 135 da Diretiva IVA, é entendimento do TJUE[4] que:

  1. As operações abrangidas por esta norma de isenção são as que são específicas e essenciais à atividade dos organismos de investimento coletivo, abrangendo, para além da gestão da carteira de investimento (em títulos ou em ativos imobiliários), as funções de administração dos próprios organismos de investimento coletivo (como serviços jurídicos e de contabilidade de gestão do fundo, etc.); e
  2. Este conceito é definido em função da natureza das prestações de serviços que são efetuadas e não em função do prestador ou do destinatário do serviço, não sendo necessário, para efeitos da aplicação da isenção, que os serviços em causa sejam totalmente externalizados (porquanto tal interpretação limitaria o efeito útil da isenção de IVA quando fornecida por um terceiro).

Face ao exposto, são, portanto, abrangidas pela isenção de IVA acima identificada as prestações que “tenham um nexo intrínseco com a gestão de fundos comuns de investimento e sejam exclusivamente fornecidas para efeitos da gestão desses fundos, independentemente de serem totalmente externalizadas[5]. Como tal, o facto de estarmos, in casu, perante serviços prestados por uma entidade terceira (C...) ao Requerente, não afasta, por si só, a aplicação da isenção da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA, desde que os serviços de mediação imobiliária e de gestão imobiliária prestados cumpram os requisitos acima identificados pelo TJUE e, em particular, formem um conjunto distinto, apreciado de modo global, que tenha por efeito preencher as funções específicas e essenciais da gestão de fundos comuns de investimento[6].

 

Para aferir, em concreto, o âmbito e conteúdo das funções específicas e essenciais da gestão de fundos comuns de investimento devemos socorrer-nos, a nível europeu, da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13.07.2009 (“Diretiva OICVM”) e, a nível nacional, do RGA, que transpõe esta Diretiva europeia para o ordenamento nacional.

 

No que respeita à Diretiva OICMV, estabelece o n.º 2 do seu art.º 2 que “a atividade habitual de uma sociedade gestora (de um fundo comum de investimento) inclui as funções referidas no anexo II”, o qual, de forma não exaustiva, enuncia as seguintes funções incluídas na atividade de gestão coletiva de carteiras:

  1. Gestão de investimento
  2. Administração:
    1. Serviços jurídicos e de contabilidade de gestão do fundo;
    2. Consultas dos clientes;
    3. Avaliação da carteira e determinação do valor das unidades de participação (incluindo declarações fiscais);
    4. Controlo da observância da regulamentação;
    5. Registo dos participantes;
    6. Distribuição de rendimentos;
    7. Emissão e resgate de unidades de participação;
    8. Procedimento de liquidação e compensação (incluindo o envio de certificados);
    9. Registo e conservação de documentos.
  3. Comercialização

 

Por sua vez, o art.º 63 do RGA regula, para o ordenamento nacional, as funções das sociedades gestoras de organismos de investimento, as quais diferem consoante se trate (i) de organismos de investimento coletivos (“OIC”) ou (ii) de organismos de investimento alternativo (“OIA”) imobiliário. E, no que respeita à gestão de OIA (in casu, o Requerente é um fundo de investimento imobiliário que assume a natureza de OIA), determina o n.º 3 do referido art.º 63 que a sociedade gestora destes organismos desempenha as seguintes funções (que são, portanto, as funções específicas e essenciais da gestão destes fundos):

  1. Gere instalações e presta serviços de administração imobiliária;
  2. Presta aconselhamento de empresas sobre a sua estrutura de capital, estratégia comercial e assuntos conexos;
  3. Presta aconselhamento e serviços na área das fusões e aquisições de empresas e outros serviços relacionados com a gestão do OIA e das empresas e outros ativos em que o mesmo tenha investido.

 

Complementarmente, o art.º 225 do RGA determina as operações permitidas aos OIA imobiliário (como é o caso do Requerente), especificando que estes podem:

  1. Adquirir imóveis para arrendamento ou destinados a outras formas de exploração onerosa;
  2. Adquirir imóveis para revenda;
  3. Adquirir outros direitos sobre imóveis, tendo em vista a respetiva exploração económica;
  4. Realizar obras de melhoria, ampliação e de requalificação de imóveis em carteira;
  5. Desenvolver projetos de construção e de reabilitação de imóveis com uma das finalidades previstas nas alíneas a) e b).

 

Face ao exposto, entende este Tribunal que os serviços prestados pela C... ao Requerente, quer na vertente de mediação imobiliária (que, como vimos, compreende a análise de propostas de aquisição e de arrendamento, identificação de potenciais compradores e arrendatários, preparação da estratégia de venda dos imóveis, etc.), quer na vertente de property management (colaboração na definição da estratégia de gestão dos ativos, coordenação dos contratos de arrendamento e dos processos de venda dos imóveis, elaboração e implementação de comercialização e comunicação dos ativos imobiliários, etc.), correspondem a funções específicas e essenciais da gestão de um fundo de investimento imobiliário, que teriam de ser desempenhadas pela sociedade gestora, no exercício das suas funções core, caso não fossem externalizadas. De facto, estamos na presença de funções nucleares que seriam sempre necessárias, e essenciais, ao funcionamento de um fundo de investimento imobiliário e à efetiva gestão do seu património (i.e., dos seus ativos), e que apresentam um nexo direto e intrínseco com a especificidade da natureza do fundo em causa (OIA imobiliário), não sendo transversais a todos os tipos de fundos de investimentos.

 

Acresce que, frequentemente, os prestadores de serviços especializados no mercado de ativos imobiliários detêm um know-how relevante e significativo, de que as sociedades gestoras querem beneficiar, sendo, como tal, prática comum do mercado a celebração deste tipo de contratos de parceria. Ou seja, existe um racional económico e funcional por detrás da externalização deste tipo de funções pelas sociedades gestoras, que se baseia num reconhecimento de que determinados players do mercado imobiliário estão em melhores condições do que estas, face ao seu know-how acumulado, de desempenhar funções de gestão e administração de ativos imobiliários de fundos de investimento imobiliários. E, como tal, seria contrário ao princípio da neutralidade do imposto, e contrário à racionalidade e objetivo da própria isenção de IVA aqui subjacente, que o desempenho de tais funções por entidades terceiras não pudesse beneficiar da isenção de imposto.

 

Face ao exposto, conclui-se que os serviços prestados pela C... ao Requerente aqui em análise têm cabimento, quer no anexo II da Diretiva OICVM, quer nas funções a desempenhar pelas sociedades gestora de OIA nos termos do disposto no RGA, e formam um conjunto distinto e autónomo, para efeitos do conceito de gestão de fundos de investimento da alínea g) do n.º 1 do art.º 135 da Diretiva IVA. Consequentemente, tais serviços estão abrangidos pela isenção de IVA da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA.

 

B.2) Da Liquidação indevida de IVA

 

Tendo concluído supra pela aplicação da isenção de IVA da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA aos serviços de mediação imobiliária e de property management prestados pela C... ao Requerente, é, igualmente, de concluir pela liquidação indevida de imposto, de que o Requerente pretende agora ser reembolsado por esta via, no que respeita aos serviços prestados entre 2018 e 2020.

 

Da conjugação da alínea c) do n.º 1 do art.º 2, e do n.º 2 do art.º 27, ambos do Código do IVA, resulta que IVA que seja indevidamente faturado se torna devido por força dessa menção na fatura, e deve, consequentemente, ser entregue ao Estado. Tal justifica-se por razões de salvaguarda da receita fiscal, porquanto o adquirente dos bens ou serviços pode, por sua vez, exercer o direito à dedução, na sua esfera, do montante de IVA constante dessa fatura.

 

In casu, no entanto, ficou provado que o Requerente, na qualidade de adquirente dos serviços, nada deduziu entre 2018 e 2020, pelo que o objetivo pretendido com esta cláusula de proteção do erário público já foi assegurado por via da não dedução original de imposto. Também não foram suscitadas questões de abuso ou de fraude fiscal, que pudessem justificar medidas especiais de proteção da receita fiscal por via da recusa, ao destinatário, do reembolso do IVA indevidamente faturado e pago.

 

Segundo jurisprudência constante do TJUE, na falta de disposição na Diretiva IVA sobre a regularização do imposto indevidamente faturado pelo emitente da fatura, em princípio cabe aos Estados‑Membros determinar as condições em que esse IVA pode ser regularizado, devendo essas condições respeitar os princípios da equivalência e da efetividade. E, como tal, a fim de assegurar a neutralidade do IVA, cabe aos Estados‑Membros prever, na sua ordem jurídica interna, a possibilidade de regularização de qualquer imposto indevidamente faturado, desde que o emitente da fatura demonstre a sua boa‑fé[7].

 

Em particular, resulta da jurisprudência do TJUE que “uma legislação nacional nos termos da qual, por um lado, o prestador de serviços que pagou por erro o IVA às autoridades tributárias pode exigir o seu reembolso e, por outro, o destinatário dos serviços pode intentar uma ação cível para obter a repetição do indevido contra esse prestador de serviços, respeita os princípios da neutralidade do IVA e da efetividade. Com efeito, esse sistema permite que o destinatário que suportou o encargo do IVA faturado por erro obtenha o reembolso dos montantes pagos indevidamente”. E “se o reembolso do IVA se tornar impossível ou excessivamente difícil, (…) os princípios da neutralidade do IVA e da efetividade exigem que os Estados‑Membros prevejam os instrumentos e vias processuais necessários para permitir ao destinatário recuperar o IVA indevidamente faturado, nomeadamente em resposta ao seu pedido de reembolso diretamente dirigido à Autoridade Tributária” [8]

Recentemente, o TJUE voltou a afirmar este princípio no processo C-453/22, de 07.09.2023, também citado pelo Requerente, no âmbito do qual concluiu que a Diretiva IVA e os princípios da neutralidade do imposto e da efetividade devem ser interpretados no sentido de que “exigem que o beneficiário de entregas de bens disponha, diretamente junto da Autoridade Tributária, de um direito ao reembolso do IVA indevidamente faturado que ele pagou aos seus fornecedores e que estes por seu turno pagaram à Fazenda Pública, acrescido dos juros correspondentes, nas circunstâncias de, por um lado, nenhuma fraude, abuso ou negligência lhe poderem ser imputados, ele já não poder reclamar este reembolso aos seus fornecedores por força da norma prevista no direito nacional (no caso, uma norma de prescrição) e, por outro lado, haver uma possibilidade formal de, posteriormente, os referidos fornecedores reclamarem à Autoridade Tributária o reembolso do montante cobrado em excesso depois de retificadas as faturas inicialmente emitidas ao beneficiário destas entregas” (sublinhado do Tribunal).

 

Face ao exposto, resulta claro da jurisprudência do TJUE que:

  1. Os sujeitos passivos que tenham suportado indevidamente imposto na aquisição de bens ou serviços aos seus fornecedores têm direito ao reembolso desse montante indevidamente pago, nos casos em que estejam de boa-fé e, portanto, inexista abuso ou fraude fiscal, bem como perda da receita fiscal, não obstante tal imposto se ter tornado devido, num primeiro momento, por via da sua menção em fatura[9];
  2. O direito ao reembolso de IVA indevidamente liquidado deve ser, em primeira linha, exercido pelo sujeito passivo adquirente junto do fornecedor que procedeu à liquidação, e respetiva entrega, desse imposto ao Estado (e a legislação nacional tem mecanismos processuais que permitem o exercício desse direito em juízo cível);
  3. Complementarmente, o TJUE reconhece um direito ao reembolso direto pelo Estado ao adquirente / repercutido (apenas) em circunstâncias especiais, i.e., se e na medida em que o reembolso do IVA pelo fornecedor se torne impossível ou excessivamente difícil – por exemplo, quando o fornecedor não esteja em condições de promover esse reembolso por estar insolvente (C-397/21) ou quando já não seja possível ao adquirente dos bens ou serviços atuar judicialmente, por via da caducidade ou prescrição do seu direito (C-453/22). São, portanto, cenários de extrema e comprovada dificuldade ou, mesmo, absoluta impossibilidade, em que o não reembolso do imposto pelo Estado ao adquirente seria manifestamente gravoso e injustificado, porquanto este (adquirente) já não conseguirá obter tal reembolso junto do seu fornecedor;
  4. Nos casos em que o reembolso seja concedido ao adquirente dos bens ou serviços e não ao fornecedor, cabe às administrações fiscais adotarem os procedimentos necessários (neste caso, de recusa) para evitar o risco de duplo reembolso, caso o fornecedor desses bens ou serviços pretenda, a posteriori, ser igualmente reembolsado desse montante[10].

 

No caso em apreço, resulta dos autos que o fornecedor se recusou, por email de 10.01.2024 (i.e., já na pendência deste processo arbitral), a corrigir (voluntariamente) a faturação emitida ao Requerente entre 2018 e 2020. É certo que tal recusa, apesar do contexto de conversação informal entre as partes em que esse email se parece inserir, deve ser entendida como uma manifestação da não-vontade do fornecedor em promover a retificação das faturas em causa, ao abrigo do art.º 78 ou do art.º 98 do Código do IVA.

 

Não obstante, no caso em apreço não ficaram provadas quaisquer diligências concretas junto do fornecedor, e muito menos a data da sua realização, bem como não foi comprovado pelo Requerente que este já não esteja em tempo de agir contra o seu fornecedor quanto a estas faturas, suscitando, mormente por via judicial, essa correção e o respetivo reembolso do IVA indevidamente liquidado.

Ou seja, da análise dos factos presentes nestes autos não resulta que o Requerente tenha, primeiramente, encetado todos os esforços necessários ao reconhecimento do seu direito ao reembolso junto do fornecedor para, então, num segundo plano, perante uma evidente e manifesta impossibilidade, ou excessiva dificuldade, de ser bem-sucedido nesses esforços, nomeadamente por já não dispor de um direito legal de ação contra este, optar por esta via arbitral como último recurso.

 

No entender deste Tribunal – dando cumprimento, como é sua obrigação, ao entendimento do TUJE – apenas perante a plena comprovação dessa impossibilidade (ou quase impossibilidade) de legalmente exercer, junto do fornecedor, o direito ao reembolso se poderia desencadear, in casu, um pedido de reembolso (direto) ao Estado, sob pena de se subverter a lógica do sistema do IVA, em que o fornecedor atua, como regra, por conta da administração fiscal.

 

Acresce que, in casu, a devolução ao Requerente do imposto ilegalmente liquidado pelo fornecedor tem por base a alteração dos pressupostos assumidos por este em sede de IVA – prática de operações tributadas vs. prática de operações isentas de imposto – com impacto no seu direito à dedução de IVA, o qual deveria igualmente ser acautelado para evitar perda de receita fiscal.

 

Está, pois, em causa uma faculdade absolutamente excecional, o que implica grande rigor na comprovação dos seus pressupostos.

 

Em resumo, entende-se que o Requerente não cumpriu com o ónus de prova (e, até, da alegação de factos consubstanciadores) de um requisito essencial à procedência do seu pedido.

 

 

  1. DECISÃO

Pelo exposto, improcedem, na totalidade os pedidos arbitrais.

 

  1. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 496.317,63, alegado valor das liquidações impugnadas (artigo 97.º-A do CPPT).

 

  1. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 7.650,00 euros, a serem suportadas pelo Requerente por ter sido total o seu decaimento.

 

26 de fevereiro de 2024.

 

Os Árbitros,

 

Rui Duarte Morais

 

Raquel Montes Fernandes (relatora)

 

José Coutinho Pires
 



[1] Alegação que claramente consubstancia a invocação de uma exceção.

[2] Acórdão do TJUE de 17.06.2021, proferido nos processos apensos C-58/20 e C-59/20, ponto 37.

[3] A título de exemplo, veja-se o acórdão do TJUE, de 07.03.2013, proferido no processo C-424/11.

[4] Por todos, veja-se o acórdão do TJUE de 17.06.2021, proferido nos processos apensos C-58/20 e C-59/20.

[5] Conclusão do acórdão do TJUE de 17.06.2021, proferido nos processos apensos C-58/20 e C-59/20.

[6] Acórdão do TJUE de 17.06.2021, proferido nos processos apensos C-58/20 e C-59/20.

[7] Entre outros, v. o acórdão do TJUE de 26.04.2017, proferido no processo C-564/15.

[8] Acórdão do TJUE de 13.10.2022, proferido no processo C-397/21, pontos 21 e 22.

[9] Tal afigura-se, aliás, consentâneo com o entendimento do TJUE de que IVA indevidamente liquidado não é dedutível na esfera do adquirente (porque a operação em causa não está sujeita a imposto), pelo que não é ao nível da dedução de imposto que a situação de irregularidade pode / deve ser corrigida.

[10] A este respeito, ver pontos 30 e 31 do acórdão do TJUE no processo C-453/22, de 07.09.2023.