Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 382/2023-T
Data da decisão: 2024-03-05  IRC  
Valor do pedido: € 124.388,42
Tema: IRC - Estabelecimentos de ensino particular: isenção.

Princípio da confiança.
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SUMÁRIO:

  1. A Requerente, enquanto titular de estabelecimentos de ensino particular, não reúne os pressupostos legais para ser qualificada como pessoa coletiva de utilidade pública.
  2. Com a revogação do art. 47º do EBF, os lucros obtidos pelos titulares de estabelecimentos de ensino particular passaram a ser tributados em IRC nos termos gerais.
  3. A falta de controlo pela administração de uma determinada situação, ainda que ao longo de décadas, não pode ser havida como suscetível de gerar confiança digna de proteção legal.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., Lda., NIPC..., com sede em ..., n.º ..., ...-... Lisboa, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

 

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I – RELATÓRIO

 

  1. O pedido

 

A Requerente pretende a anulação da liquidação de IRC n.º 2017 ..., relativa a 2017, bem como da correspondente liquidação de juros compensatórios (€13.420,83), num valor total de € 124.388,00.

 

Em consequência, pede o reembolso das quantias indevidamente pagas, acrescidas dos juros indemnizatórios.

 

B) O Litígio

 

A Requerente alega, em suma, que:

 

- não obstante a AT tenha qualificado o procedimento inspetivo realizado como interno, o mesmo é um procedimento “externo” (…), pelo que ocorreu a falta de notificação prévia ao sujeito passivo exigida pelo artigo 49.º, n.º 1 do RCPITA, bem como a ausência de ordem de serviço exigida pelo artigo 46.º. n.º 2 do RCPITA,  o que viola, inadmissivelmente, o princípio da legalidade, consagrado no artigo 103.º, n.º 2 da CRP e o disposto no artigo 13.º do RCPITA com a consequente ilegalidade da liquidação.

 

- havia caducado o direito da AT proceder a uma liquidação adicional por força do nº 2 do art. 45º da LGT[1].

 

- tem beneficiado desde a sua fundação, no ano de 1967, do reconhecimento do gozo das prerrogativas das pessoas coletivas de utilidade pública e que a revogação da isenção só poderá ser concretizada no prazo de 1 ano após ter sido concedida através do reconhecimento prévio pelo Ministério da Educação e sempre aceite pela AT, por aplicação conjugada do disposto nos artigos 141.º, nº 1, do CPA e 58.º do CPTA.

 

- está abrangida pela isenção prevista no art. 10º do IRC.

 

- a liquidação impugnada consubstancia uma intolerável violação do princípio da confiança.

 

Por seu lado, a Requerida sustenta a legalidade da liquidação, por ser tempestiva e por a Requerente não reunir os requisitos para poder beneficiar da isenção prevista no art.º 10.º, al. c) do CIRC, desde logo porque não solicitou qualquer reconhecimento da isenção ao Ministro das Finanças. 

 

  1. Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 2023-05-26.

A Requerente optou pela possibilidade de designar árbitro, pelo que coube à Requerida o mesmo direito. O presidente do coletivo arbitral foi designado pelo Conselho Deontológico do CAAD a solicitação dos outros árbitros.

O tribunal ficou constituído em 25/09/2023.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

Em 25/01/2024 realizou-se a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT e foi ouvido o depoente, como consta da respetiva ata.

As partes apresentaram alegações escritas reiterando o por elas afirmado nos articulados iniciais.

 

  1. Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

A Requerente, no articulado inicial, veio invocar a caducidade do direito à liquidação. Nas suas alegações veio, também, invocar a falta de fundamentação das liquidações impugnadas. Questões de que adiante se conhecerá.

Não existem outras questões suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito.

 

 

II- PROVA

 

 

II.1 Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente dedica-se à atividade de ensino particular mediante exploração de dois estabelecimentos de que é titular, o Externato B... e o Externato C... .
  2. O Externato B... funciona ao abrigo do Alvará n.º ..., emitido em 25.10.1968, pela então Inspecção-Geral do Ensino Particular, do Ministério da Educação, que o autoriza a ministrar cursos de ensino não superior.
  3. O Externato C... funciona ao abrigo da Autorização Definitiva n.º ..., concedida por despacho de 25.06.1986, que o autoriza a ministrar cursos de 1.º Ciclo e Jardim de Infância.
  4. Desde a sua fundação no ano de 1967, a Requerente tem beneficiado de uma situação factual de não tributação em sede de IRC.
  5. Ao tempo, no Portal das Finanças correspondente à página referente a “Outros dados de atividade” da Requerente, no campo relativo ao “regime de tributação em IRC” constava a seguinte descrição “Isenção temporária desde 01.01.1989”.
  6. Nas declarações Modelo 22 e outras que a Requerente foi apresentando, desde o ano de 1967, sempre foi invocada a referida isenção de IRC, sem qualquer reação por parte da administração.
  7. A AT reconheceu, a favor da Requerente, isenções fiscais em sede de IMT com base no seu enquadramento como pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública.
  8. Em 29.10.2022, a Requerente alterou dados relativos ao seu cadastro fiscal, em razão em razão da modificação da sua estrutura societária, sem que, também então, tenha sido questionado o facto de estar isenta de IRC.
  9. Em 7 de Fevereiro de 2002, a Direção Regional de Lisboa do Ministério da Educação havia emitido um documento afirmando que o Externato B...“goza das prerrogativas das pessoas coletivas de utilidade pública”.
  10. A realização da ação inspetiva que deu origem à liquidação impugnada, classificada de interna, decorreu depois de ter sido efetuada uma inspeção externa aos exercícios de 2013 a 2016, na qual se verificou que o SP, tendo enquadrado os rendimentos no regime de isenção definitiva, não reunia os requisitos para que possa estar enquadrado no artigo 10º do CIRC.
  11. A Requerente reclamou graciosamente da liquidação que ora impugna, a qual foi indeferida.
  12. A Requerente procedeu ao pagamento da quantia liquidada.

 

II.2- Factos não provados

 

Não ficou provada (nem sequer foi alegada) a existência de um qualquer ato administrativo praticado pelo Ministro das Finanças reconhecendo à Requerente o direito a isenção de IRC.

 

 

III - O DIREITO

 

 

  1. Caducidade do direito à liquidação

A Requerente alega que os factos tributários ocorreram no ano de 2017, consequentemente a liquidação reclamada e a respetiva demonstração de acerto de contas, emitidos em 2021 ocorreram depois do decurso do respetivo prazo de caducidade da liquidação, constante do artigo 45.º, n.º 2 da LGT[2].

A questão é, pois, a de saber se estamos perante um erro evidenciado na declaração do sujeito passivo.

 

Há que começar por notar que não está propriamente em causa um erro na declaração, ou seja (art. 247º do Código Civil), um caso em que a vontade declarada não corresponde à vontade real do autor.

A Requerente, nas suas declarações, nomeadamente a mod. 22 relativa ao ano de 2017, sempre fez constar o enquadramento jurídico da situação que entendia (e continua a entender no presente processo) ser o correto.

Admitimos razoável sustentar que o erro de direito cabe também no conceito de erro constante do n.º 2 do art.º 45º do CIRC, porquanto, num sistema de autoliquidação, cabe ao sujeito passivo não só declarar os factos geradores de imposto, mas também proceder à sua qualificação (a subsunção à norma corretamente aplicável) e à demais aplicação da lei que se mostre necessária, nomeadamente das normas atinentes à quantificação da matéria coletável.

 

Porém, para efeitos de aplicabilidade do nº 2 do art.º 45º da LGT, o erro tem que ser evidenciado na declaração. O mesmo é dizer que um leitor médio, lendo a declaração e sem dispor de quaisquer elementos mais, deve aperceber-se desse erro.

O que, manifestamente, não acontece no caso concreto. Saber se a Requerente, enquanto titular de estabelecimentos de ensino particular, goza ou não de um estatuto legal de pessoa coletiva de utilidade pública e, consequentemente, se goza ou não da isenção prevista no art. 10º, nº 5, do CIRC é uma questão de direito relativamente complexa, como resultará da abordagem que adiante faremos. Uma questão que, manifestamente, não pode conhecer resposta com a simples leitura de uma declaração do sujeito passivo.

 

Mais ainda, segundo essa norma, tal isenção está dependente de reconhecimento pelo Ministro das Finanças. Ora, não existe, na mod. 22, um quadro para fazer constar a indicação de um tal “reconhecimento”. Ou seja, a verificação da situação de isenção invocada pela Requerente (ou outro sujeito passivo a quem seja aplicável a norma em questão) sempre obrigaria ao recurso a prova documental que não é sequer mencionável na declaração em causa.

 

Pelo que, por não existir “erro evidenciado na declaração”, se considera inaplicável o disposto no nº 2 do art.º 45º da LGT. Estando em causa o exercício de 2017 e tendo a liquidação impugnada sido notificada em 2021 (o que é aceite por ambas as partes), há que concluir pela sua tempestividade.

 

 

  1. A qualificação da inspeção

A Requerente afirma que a atuação da Administração Tributária violou, de forma intolerável, o princípio da boa-fé a que alude o artigo 10.º do CPA e o artigo 59.º, n.º 2 da LGT ao instaurar e concluir um procedimento inspetivo alegadamente interno, com base nos elementos contabilísticos e justificativos fornecidos em grande parte pela Demandante, aos quais teria acesso apenas no caso de se deslocar às instalações do sujeito passivo.

 

Consultado o RIT, temos que (pág. 12, ponto 7): procedeu-se ao envio de uma notificação ao SP. (…), na qual se solicitava que fossem remetidos os seguintes elementos (…) 1  (i) Balancetes analíticos à data de 31.12.2017, antes e após apuramento de resultados; (ii) Extratos das contas 71 - Vendas e 72 - Prestações de Serviços, respeitantes ao exercício de 2017; e (iii)  Fotocópias dos documentos de suporte, faturas, recibos, notas de crédito e respetivas provas de pagamento/recebimento) correspondentes às dez operações de maior montante que no exercício de2017, tinham sido efetuadas pelo SP aos seus clientes.

Será, portanto, esta a documentação a que a Requerente se refere.

 

Ora, é bom de ver que estes elementos, solicitados pela AT e fornecidos pelo SP, se mostraram totalmente inúteis para a fundamentação da liquidação impugnada, a qual, aceitando como bons os factos declarados pela Requerente, concluiu por um seu diferente enquadramento jurídico.

O mesmo é dizer que o facto de a inspeção em causa ter sido qualificada como interna, e não como externa como pretende a Requerente, é materialmente irrelevante. Embora sejam diferentes os formalismos a observar em cada caso, de tal não resultou uma qualquer diminuição das garantias do sujeito passivo. Nem tal é, sequer, alegado.

 

Mais, a Requerente não terá tido em conta a alteração (de 2016) à redação da al. a) do art. 13º do RCPITA: o procedimento pode classificar-se em
interno quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento; 

Ou seja, uma inspeção só deve ser qualificada como externa quando aconteçam atos inspetivos em instalações do sujeito passivo ou de terceiros, o que não é alegado ter acontecido.

A obtenção de documentos no decurso do procedimento, nomeadamente em resultado de solicitação feita ao sujeito passivo, como foi o caso, documentos esses que depois são analisados pelos serviços nas instalações destes, não altera a qualificação da inspeção como sendo “interna”.

Pelo que se indefere a pretensão anulatória da Requerente com este fundamento.

 

  1. Falta de fundamentação

 

A Requerente, mormente nos nº 13 a 16 das suas alegações, alega o vício de violação de lei, por falta de fundamentação dos actos tributários, por violação do artigo 77.º da LGT.

Cremos que todo esse extenso argumentário se pode resumir na seguinte afirmação da Requerente: com efeito, os actos em causa (as liquidações impugnadas) não indicam e inexiste qualquer dispositivo legal e aplicável que fundamente e legitime a quantificação dos montantes apurados e a liquidação do tributo em causa, nem foram indicadas quaisquer razões justificativas da liquidação agora impugnada.

 

A falta de razão da Requerente surge-nos como manifesta.

A AT não procedeu a qualquer quantificação da matéria coletável, limitou-se a aceitar o valor apurado pela Requerente na declaração mod. 22.

A fundamentação da AT - que este tribunal considera perfeitamente suficiente (até pela “simplicidade” dos termos em que se coloca a questão), clara e congruente - aparece em passo do RIT que a própria Requerente cita no ponto 28 do seu PPA como forma de identificar o “cerne do litígio (o que seria impossível caso tal fundamentação fosse obscura ou contraditória).

 

Transcrevemos:

Ao considerar que os rendimentos obtidos na sua atividade estavam isentos, o SP não os sujeitou a tributação em sede de IRC. Dado que o art. 10º do Código do IRC não é aplicável aos rendimentos obtidos pelo SP, verifica-se que do procedimento adotado por este resultam as seguintes omissões ao lucro tributável:

- resultado fiscal declarado no regime de isenção definitiva - 495.236, 34

- desconsideração do regime de isenção para o regime de sujeição a IRC - 495.236, 34

Pelo que se propôs que a correção do lucro tributável do SP, sujeito a IRC e não isento, fosse no valor de 495.236, 34

 

Restará dizer que tal conclusão é “precedida” de uma cuidada análise da situação.

Pelo que, a nosso ver, manifestamente improcede o alegado vício de falta de fundamentação.

 

D) O direito à isenção

 

Nas palavras da Requerente, a questão decidenda em sede dos presentes autos reconduz-se à aferição da legalidade dos atos tributários de IRC e respectivos juros compensatórios, sendo certo que a AT levou a cabo a acção de inspecção tributária referente ao IRC de 2017, com fundamento no facto do procedimento inspectivo ter considerado - erradamente - que a Demandante incumpriu os requisitos de índole fiscal relativamente à aplicação de isenção aos rendimentos obtidos na sua actividade nos termos do artigo 10.º do CIRC.

 

A Requerente considera que, em 2017, estava abrangida pela isenção prevista na al a) do n.º 1 do artº 10º do CIRC.

Parece-nos inquestionável afirmar que o SP não é uma pessoa coletiva de utilidade pública administrativa. As pessoas coletivas de utilidade pública administrativa eram uma figura prevista em normas do Código Administrativo de 1940, as quais só foram formalmente revogadas em 2021[3].

A maioria das pessoas coletivas de utilidade pública administrativa geral que ainda subsistia aparece hoje elencada no anexo IV à LQEUP[4]. Facilmente se verifica serem entidades profundamente distintas da Requerente, desde logo quanto à sua forma jurídica, mas, em especial, pelo seu escopo não lucrativo.

 

Daí que, tal como fez a AT na sua resposta, entendamos que a isenção invocada pela Requerente, a existir, teria como suporte legal a al. c) do artº 10 do CIRC, ou seja, ser a Requerente uma pessoa coletiva de utilidade pública (PCUP) que prossiga, exclusiva ou predominantemente, fins científicos ou culturais.

Parece-nos pacífico afirmar que a Requerente nunca poderia ter sido havida como sendo uma PCUP pois, para além de outras razões[5], não prossegue, exclusiva ou predominantemente, fins científicos ou culturais. O seu escopo primário é a obtenção de lucro através de prestações de ensino remunerados ou até, tão só, através da “guarda” de crianças.

 

Muito embora irrelevante para a decisão que cumpre tomar, admite-se que no passado (mormente na vigência da Contribuição Industrial), tal como alega, a Requerente tivesse reunido as condições legais para gozar de isenção de tributação dos seus lucros, atento, nomeadamente, o que então dispunha o artigo 9º do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 553/80 de 21 de novembro, revogado antes de 2017.

Porém, já a Lei 2/78, de 17 de janeiro, determinava que a concessão das isenções fiscais às pessoas coletivas de utilidade pública e de utilidade pública administrativa previstas em tal diploma dependia de despacho conjunto dos Ministros da Administração Interna, das Finanças e da Tutela.

Ou seja, já tal norma previa isenções não automáticas, mas sim dependentes de reconhecimento, à semelhança do que sucede com o atual art. 10º do CIRC.

Ora, a Requerente não fez a prova (nem sequer alegou) que o seu estatuto de pessoa coletiva isenta tenha, alguma vez (quer no domínio da Contribuição Industrial, quer no domínio do IRC) sido reconhecido pela entidade competente, o Ministério das Finanças[6].

Assim sendo, não tendo ficado alegada/provada a existência de um ato administrativo praticado pela entidade competente (o Ministro das Finanças) reconhecendo a isenção alegada pela Requerente, cai pela base toda a argumentação por ela desenvolvida no sentido da ilicitude da revogação do ato administrativo que lhe havia reconhecido a isenção de que gozava.

 

Embora irrelevante, se se pode admitir que a Requerente alguma vez, no passado, preencheu os requisitos legais que lhe permitiriam usufruir da isenção a que diz ter direito, o certo é que a sua situação, em sede de tributação do lucro, resultou totalmente clara após a reforma fiscal de 1989.

Ao lado da isenção prevista no art. 10º do CIRC, de que podem gozar as pessoas coletivas de mera utilidade pública, passou a existir um benefício fiscal específico para os lucros dos estabelecimentos de ensino particular integrados no sistema educativo, os quais passaram a estar sujeitos a uma taxa reduzida de 20% (art. 47º do EBF).

 

As regras da interpretação sistemática obrigar-nos-ia sempre a concluir que, existindo um benefício fiscal especial para os rendimentos obtidos através de estabelecimentos de ensino particular, resultava prejudicada a possibilidade de lhes ser aplicada a regra, mais geral, relativa aos benefícios previstos para as pessoas coletivas de mera utilidade pública.

 

Esta dualidade de benefícios fiscais foi claramente percecionada pelo STA: (...) o legislador fiscal quis distinguir as pessoas colectivas de utilidade pública das pessoas colectivas titulares de estabelecimentos de ensino particular, ainda que integrados no SNE, pois que as tratou diferentemente. Na verdade, e desde logo, verificámos que concedeu às primeiras a total isenção de IRC (vd. art.°9 do CIRC) e que às segundas apenas as contemplou com uma taxa reduzida (20%) de IRC (vd. art.° 47° do EBF). Ou seja, o legislador considerou que as pessoas colectivas de interesse público inseridas no SNE, muito embora pudessem desenvolver uma actividade socialmente relevante, não mereciam o mesmo tratamento fiscal que as pessoas colectivas de utilidade pública. Ora, se fosse propósito do legislador tratá-las de modo igual e conceder-lhes iguais direitos certamente que não faria distinção entre elas e num único preceito, ou mesmo em preceitos separados, atribuir-lhes-ia o mesmo tipo de isenção. O facto de o legislador, intencionalmente, atribuir tão diferentes benefícios àquelas pessoas é bem revelador de que não quis que elas pudessem ter igual tratamento fiscal[7].

 

Entendimento reafirmado mais recentemente:  A isenção de IRC prevista no artº 10º, nº 1 do CIRC tem como destinatários as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, as instituições particulares de solidariedade social e entidades anexas, bem como as pessoas colectivas àquelas legalmente equiparadas e as pessoas colectivas de mera utilidade pública que prossigam, exclusiva ou predominantemente, fins científicos ou culturais, de caridade, assistência, beneficência, solidariedade social ou defesa do meio ambiente.
Deste modo, não se inserem no âmbito de previsão desta norma os estabelecimentos de ensino particular que, por se enquadrarem nos objectivos do Sistema Nacional de Educação gozem das prerrogativas das pessoas colectivas de utilidade pública (nos termos do disposto na Lei n.º 9/79, de 9 de Março), mas não detenham essa qualidade
[8].

 

O benefício fiscal previsto no art. 47º do EBF foi revogado em 2011.

 

Mas tal não pode ser considerado como significando que o legislador tenha entendido conceder a isenções de imposto às entidades titulares de estabelecimentos de ensino particular os benefícios fiscais previstos para as pessoas coletivas de utilidade pública.

Assim, deixando de estar abrangidos por benefícios fiscais, quer quanto a isenções quer quanto à taxa aplicável, há que concluir, como faz a AT, que os lucros obtidos pela Requerente estavam sujeitos à taxa geral do IRC vigente.

 

 

E) O princípio da confiança

 

A Requerente entende que a liquidação impugnada viola o princípio da confiança, razão porque deve ser anulada: nesta medida, a AT violou as legítimas expectativas e garantias da Demandante anteriormente constituídas e o princípio da confiança e segurança jurídica ínsitos ao princípio do Estado de Direito, além de ter violado os princípios da legalidade tributária, da proibição da retroactividade da lei fiscal e da certeza e segurança jurídica previstos, entre outros, nos artigos 12.º da LGT, 12.º do CC e 103.º n.º 3 da CRP.

 

Isto porquanto – como alega - sempre realizou o apuramento do rendimento tributável, em sede de lucros, tendo por base o referido benefício associado às prerrogativas das pessoas coletivas de utilidade pública.

 

Salvo o devido respeito, a Requerente analisa a questão de uma forma que não pode ser havida como correta.

 

Em primeiro lugar, temos que, como vimos, a questão centra-se na evolução legislativa que aconteceu ao longo da existência da Requerente. Ora, ninguém pode ter uma legítima expetativa que a lei fiscal, nomeadamente no tocante a benefícios fiscais não contratuais, não venha a conhecer alterações, por vezes desfavoráveis aos sujeitos passivos.

Assim sendo, e ao contrário do que alega a Requerente, não se coloca qualquer questão de retroatividade da lei fiscal (pretende-se aplicar, relativamente a 2017, uma norma já então vigente). Como não se coloca a questão da violação do princípio da legalidade fiscal porquanto a isenção pretendida pela Requerente pura e simplesmente não existe na lei em vigor ao tempo.

 

Em segundo lugar, temos que a AT não praticou um qualquer ato suscetível de gerar legítima confiança da Requerente na existência do direito à isenção.

O que aconteceu foi algo bem diferente, uma omissão: a inépcia da administração em controlar as sucessivas declarações apresentadas pela Requerente invocando uma inexistente isenção.

Inépcia que se manteve ao longo de anos o que certamente se “explica” por um erro “original: a Requerente figurar no cadastro como isenta.

Ou seja, as sucessivas declarações da Requerente passavam no crivo do controlo normal (controlo por cruzamento de informação) porque o declarado e o constante do cadastro coincidiam.

É evidente que deficiências de fiscalização, mesmo que ao longo de anos, não podem criar expetativas legítimas de que tal fiscalização nunca venha a acontecer. Repugnaria ao princípio da igualdade na tributação que a manutenção, ainda que por longo período, de situações ilegais de não pagamento de imposto, pudesse, de algum modo, gerar o direito a não o pagar.

 

Em terceiro lugar, temos que a existência de “confiança” invocada pelo sujeito passivo é, no mínimo, duvidosa, pelo menos em termos jurídicos.

Num sistema de autoliquidação, a obrigação de estar atento às modificações normativas, de em cada ano aplicar a lei nele vigente, cabe ao sujeito passivo. Ou seja, era à Requerente (e não à AT) que cabia, em cada ano, verificar se existia ou não o invocado direito à isenção.

Mais, não é crível que a Requerente não se tenha apercebido, ao longo dos anos, que as suas congéneres (sociedades titulares de estabelecimento de ensino particular e/ou de creches) pagavam IRC.

Por último, em 2017 a Requerente teria de estar consciente da “fragilidade” do seu entendimento em razão de já ter sido inspecionada relativamente aos anos anteriores e a AT ter concluído pela sua obrigação de pagamento de imposto.

 

Improcede, pois, o alegado vício.

 

Improcedendo o pedido principal, fica prejudicado o conhecimento dos demais pedidos, daquele dependentes.

 

DECISÃO

 

Termos em que improcedem, na totalidade, os pedidos formulados pela Requerente.

 

 

Valor: € 124.388,42

Custas arbitrais: já pagas pela Requerente, a quem cumpre tal encargo uma vez que optou por designar árbitro.

 

05 de março de 2024

 

 

Os árbitros

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

 

Jorge Carita

 

 


Cristina Coisinha 

 

 

 

 

 

 



[1] Artigo 45º LGT:

1 - O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.

2 - No caso de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo o prazo de caducidade referido no número anterior é de três anos.

[2] Artigo 45.º LGT (Caducidade do direito à liquidação):

(…)

2 - No caso de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo o prazo de caducidade referido no número anterior é de três anos.

(…)

[3] TIAGO FIDALGO DE FREITAS, «As pessoas coletivas de utilidade pública administrativa e a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública», Juris APP, 25/09/2023, disponível on line.

.

[4]  Lei n.º 36/2021, de 14 de junho (Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública).

 

[5] Nomeadamente a sua forma jurídica de sociedade comercial. Sobre os requisitos a serem preenchidos para se poder usufruir, para fins fiscais, do estatuto de pessoa coletiva de utilidade pública, Leonardo Marques dos Santos, Manual de IRC das entidades não lucrativas, 2023, pág.130 ss.

 

[6] Obviamente que não se pode fazer equivaler a um despacho do Ministro das Finanças o constante do documento emitido pela Direção Regional de Lisboa do Ministério da Educação (i) dos factos provados).

 

[7] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21.04.1999 no processo n.º 23115.

 

[8] Ac STA de 17-06-2015, proc. n.º 01103/13.