Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 165/2023-T
Data da decisão: 2024-03-26  IRS  
Valor do pedido: € 6.910,87
Tema: IRS, exclusão de tributação; e indemnização paga a administradores e gerentes de pessoa coletiva.
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SUMÁRIO:

 

I –   A acumulação de funções de administrador de sociedade anónima e de trabalhador, numa mesma sociedade, é vedado por lei,  estatuindo esta, nomeadamente, a imediata suspensão do contrato de trabalho.

 

II – O  legislador terá sido sensível à tese da incompatibilidade entre os estatutos de administrador e de trabalhador ao considerar que a autonomia e as funções de empregador são incompatíveis com a subordinação jurídica que caracteriza a relação de trabalho assalariado.

 

III – A tributação das compensações  pagas aos administradores  pela cessação do vínculo de membro de órgão social justifica-se pelo facto de não estar associada à perda da principal fonte de rendimento – o trabalho assalariado.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I - RELATÓRIO

 

  1. A...,  contribuinte n.º..., casado com B...,  contribuinte n.º..., casados entre si, residentes na Rua ..., n.º ..., ..., Porto, doravante designados por  “Requerentes”,  vieram requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a); 5.º, n.º  2, alínea a); 6.º, n.º 1, alínea a); e 10.º, n.º 1, alínea a),  todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, na sequência da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2022... e, mediatamente, da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2022..., respeitante ao ano de 2021. Os Requerentes pretendem, nomeadamente,  que seja “[a]nulada da liquidação de IRS…”, uma vez que consideram que não há fundamento para ser aplicada, ao caso sub iudice, o previsto no artigo 2.º, n.º 4, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“CIRS”).

 

  1. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também designada por “Requerida” ou “AT”.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor  Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) em 16 de março de 2023 e, de seguida, notificado à AT.

 

  1. Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2; no artigo 6.º, n.º 1; e no artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro, que, no prazo legal, comunicou a aceitação do encargo.

 

  1. Em 8 de maio de 2023, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. O Tribunal Arbitral  foi constituído em 26 de maio de 2023, tendo a Requerida sido notificada para apresentar resposta no dia 31 de maio de 2023.

 

  1. A Requerida apresentou, em 5 de julho de 2023, Resposta,  na qual  defendeu  que:   os Requerentes não  têm direito à exclusão de tributação prevista no artigo 2.º, n.º 4, alínea b), do CIRS, na medida em que não é possível, nomeadamente, acordar o afastamento da determinação legal de proibição de acumulação das funções de administração com o exercício (de funções) enquanto trabalhador dependente. Juntou ainda o processo administrativo (“PA”).

 

  1. A reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT realizou-se no dia 6 de fevereiro de 2024, tendo sido prestadas declarações de parte da Requerente “B...” e  inquirida a testemunha  “C...”. As partes foram ainda notificadas para apresentarem, querendo, alegações finais escritas e simultâneas, no prazo de 10 dias.

 

  1. Os Requerentes apresentaram alegações finais escritas, no dia 19 de fevereiro de 2024, mantendo a posição vertida no pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. O prazo para proferir decisão arbitral foi prorrogado, por despachos, de 26 de novembro de 2023 e de 26 de janeiro de 2024, com os fundamentos neles constantes.

 

Posição dos Requerentes

 

  1. Os Requerentes alegam que a suprarreferida decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, mediatamente, a  liquidação de IRS são ilegais, pois padecem do vício de violação de lei.

 

  1.  Vejamos, em concreto, os fundamentos:

 

  1.  A compensação paga à Requerente  “B...” em nada se relacionou com  o exercício de funções, como administradora da pessoa coletiva (D..., S.A.);

 

  1. A Requerente continuou, apesar da designação para vogal do Conselho de Administração da referida sociedade, a desempenhar as mesmas funções que até então realizava;

 

  1. Não recebeu qualquer incremento monetário pela designação para membro de órgão social – Conselho de Administração.

 

  1. Defendem, por isso, que não existe qualquer motivo para ser aplicada, à situação sub iudice, o artigo 2.º, n.º 4, alínea a), do CIRS, pois a compensação auferida em nada se relacionou com o exercício de funções de administrador da pessoa coletiva.

 

Posição da Requerida

 

  1. A Requerida defende que não se verificam as ilegalidades invocadas pelos Requerentes, na medida em que:

 

  1. A Requerente “B...” e a D..., S.A. não poderiam afastar, por manifestação de vontade em sentido contrário, a proibição de acumulação de funções de administração em sociedade anónima com as de trabalhadora;

 

  1. Sendo aplicável o previsto no artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”), ex vi artigo 11.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), pode concluir-se que as restrições previstas visam impedir o recurso a meios de mera natureza formalística para obviar a posicionamentos e opções abusivas e desvirtuadoras do fim inicialmente visado, o da decisão e favorecimento próprios;

 

  1. Se uma qualquer situação laboral da peticionária com a sociedade, encontre ou não tradução formal e resulte, ou não, de  deveres ou garantias laborais, deve ser questionada  em sede que não a tributária.

                             

15. Questões a Apreciar

 

  1. Se a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, mediatamente, a  liquidação de IRS são  ilegais, por padecerem do vício de violação de lei, pois a Requerente “B...” (i) podia continuar a realizar uma prestação de trabalho assalariado, apesar da designação para membro do Conselho de Administração; e (ii) era, de facto, trabalhadora e não membro de órgão social.

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

 

MATÉRIA DE FACTO

 

16. Factos com relevância para a apreciação da causa que se consideram provados

 

16.1 A Requerente “B...” foi trabalhadora  da sociedade D..., S.A., desde 1 de outubro de 1989 até 30 de agosto de 2021.

(Documento junto pelos Requerentes, com o pedido de pronúncia arbitral, sob o número 1)

 

16.2 Foi designada, paralelamente, membro de órgão estatutário (Administradora), desde 31 de maio de 2010 até à liquidação da  referida pessoa coletiva, ocorrida em 13 de julho de 2021.

(Documento junto pelos Requerentes, com o pedido de pronúncia arbitral, sob o número 1 e facto não impugnado pela Requerida)

 

16.3  Na ata da Assembleia-Geral (de 31 de maio de 2010) de designação da  Requerente “B...” para o  Conselho de Administração da D..., S.A., mandato 2010-2012, consta  que:

“[p]ediu a palavra a senhora acionista Dra. B..., a qual referiu que, desde 1989 desempenha, em regime de contrato individual de trabalho, as funções de Diretora de Serviços pelo que aceita o exercício do cargo de vogal do Conselho de Administração para o triénio 2010/2012 em acumulação de funções, pois tal cargo não interfere, nem colide, com o vínculo laboral que a acionista mantém e continuará a manter com a sociedade, sendo condição essencial de aceitação da sua nomeação.

Todos os senhores acionistas manifestaram estar de acordo com a acumulação de funções a realizar pela senhora Dra.B...”.

(Documento junto pelos Requerentes, com o pedido de pronúncia arbitral, sob o número 2)

 

16.4 No “recibo de vencimento” da Requerente “B...”, do mês de agosto de 2021,  constam, nomeadamente, os seguintes montantes a título de “Abonos”:

i) “Compensação cessação contrato em valor sem SS, mas suj. a IRS” – 47 405,66 euros;

ii) “Compensação cessação de contrato em valor isento SS e IRS” – 59 750,59 euros;

iii) “Vencimentos por antecipação de cessação do contrato” – 9 812,84 euros.

(Documento junto pelos Requerentes, com o pedido de pronúncia arbitral, sob o número 5)

 

16.5 O pagamento dos referidos valores foi determinado por um liquidatário indicado pela  sociedade ( D..., S.A.).

 (Testemunha C...)

 

16.6 No “recibo de vencimento” da Requerente “B...”, do mês de junho de 2010, consta como “categoria profissional” administrador.

(Documento junto pelos Requerentes, com o pedido de pronúncia arbitral, sob o número 4)

 

16.7  A Requerente continuou a assumir a direção de  serviços de recursos humanos e de informática da D..., S.A., depois de 31 de maio de 2010.

(Testemunha C...)

 

16.8 Os Requerentes entregaram a declaração modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2021, em 06 de abril de 2022.

(PA)

 

16.9 Inscreveram, no “Anexo A” da referida declaração modelo 3 de IRS,  a título de rendimentos de trabalho dependente da Requerente “B...”, o montante de 83 247,83 euros, pagos pela sociedade D..., S.A., NIF..., retenção na fonte, no montante de 32 285,00 euros; e contribuições obrigatórias para a Segurança Social, no montante de 3 942,65 euros.

(PA)

 

16.10 Os Requerentes apresentaram, em 25  de agosto de 2022, reclamação graciosa da liquidação de IRS n.º  2022..., respeitante ao ano de 2021.

(PA)

 

16.11 A reclamação graciosa foi  indeferida com os seguintes fundamentos:

 

16. Significa isto que, no caso dos membros do Conselho de Administração, a compensação correspondente ao período em que exerceram funções fica sujeita, na totalidade, a tributação em sede de IRS.

17. A Reclamante recebeu duas verbas pela rescisão de trabalho, conforme consta da declaração para efeitos do artigo 119.º, n.º 1, al. b) do CIRS e do recibo de vencimento referente a agosto de 2021. A saber: o montante de 59.750,59€ isento de IRS nos termos do art.2º, n.º 4, al b) do CIRS, uma vez que não excede a fórmula de cálculo aí prevista; e o montante de 47.405,66€, valor tributado em sede de IRS ao abrigo da al. a) do n.º 4 do artigo 2.º.

18. Pretendem os Reclamantes que não haja tributação alguma da compensação recebida e, para o efeito, alegam que, apesar da Reclamante ter sido nomeada Vogal do Conselho de Administração da sociedade com a qual havia celebrado um contrato individual de trabalho, as suas funções durante todo o período compreendido entre a celebração do dito contrato e a cessação do mesmo, se cingiram apenas e tão só às funções previstas no mesmo, nunca tendo exercido outras funções que não as previstas no contrato.

19. Ora, sucede que, a Reclamante vem alegar que não exerceu quaisquer outras funções que não as previstas no contrato de trabalho, mas não apresenta prova desses factos, conforme lhe competia nos termos do artigo 74.º, n.º 1 da LGT.

20. Acresce ainda que, consultada a Certidão Permanente da sociedade, junta aos autos pelos Reclamantes, à data da liquidação da sociedade, a Reclamante cessou funções como Presidente do Conselho de Administração.

21. Prescreve o artigo 398º do CSC que “1-Durante o período para o qual foram designados, os administradores, na sociedade (…), quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo (…).2 - Quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça qualquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano.”

22. Resultando evidente que, esta imposição legal de proibição de acumulação das funções de administração com a celebração de contratos de trabalho não pode ser afastada por qualquer convenção entre partes.

23. No que concerne ao normativo supra descrito, veja-se, entre tantos outros, o Acórdão proferido pelo STJ, no processo 394/10.0TTTVD.LI.SI, de 17 de novembro de 2016: “a análise da norma extrai-se, com toda a clareza, que a lei é desfavorável, e não permite, que seja cumulado, num mesmo sujeito, as qualidades de Administrador de uma sociedade anónima e as de trabalhador, subordinado ou autónomo, dessa mesma sociedade, com o consequente exercício de funções, seja a constituição do vínculo laboral anterior, simultânea ou posterior à da relação de Administração.

Com efeito, o legislador vedou a todos aqueles que exerçam funções de Administrador nas circunstâncias definidas pelo preceito supra citado, e durante o período para o qual foram designados, a possibilidade de o fazerem ao abrigo de contratos de trabalho, subordinado ou autónomo.

E foi mais longe estabelecendo os efeitos para os contratos relativos a tais funções: suspendem-se,no caso de terem durado mais do que um ano.

Ao impor a suspensão do contrato de trabalho em tais circunstâncias o legislador exprimiu de forma inequívoca, no normativo em análise, que o exercício das funções de um Administrador societário não pode assentar num contrato de trabalho.

24. Assim, conclui-se que os Reclamantes não apresentaram prova suficiente de que a Reclamante apenas exerceu funções ao abrigo do contrato individual de trabalho desde 01 de outubro de 1989 até ao encerramento/liquidação da sociedade.

25. Ora, nos termos do artigo 74.º, n.º 1 da LGT, cabe ao contribuinte apresentar as provas dos factos por si alegados.

26. Prova essa que a Reclamante não logrou fazer.

Em face do exposto, e salvo melhor opinião, sou de parecer que deverá ser indeferida a pretensão dos Reclamantes.

(…)

(PA)

16.12 A reclamação graciosa foi indeferida por despacho, da Exma. Senhora Diretora de Finanças Adjunta do Porto, de 27 de dezembro de 2022.

(PA)

 

16.13 O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 15 de março de 2023 (Sistema informático do CAAD).

 

17.Factos não provados

 

Não se vislumbram quaisquer factos não provados com relevo para a decisão.

 

18. Fundamentação dos factos provados e não provados

 

O Tribunal Arbitral, quanto à matéria de facto, não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada -  artigo 123.º, n.º 2,  do  Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”); artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, nos quais se descreve a fonte utilizada para que se os dê como assentes.

Destaca-se que os factos assentes sob os números 16.5 e 16.7 têm por fonte a prova testemunhal produzida, na qual se relatou, com isenção, a factualidade vertida nos referidos números.

Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

19.MATÉRIA DE DIREITO

 

Os  Requerentes entendem que a liquidação é ilegal, na medida em que o valor recebido por “B...”, na data em que ocorreu a liquidação/encerramento da sociedade D..., S.A. respeita única e exclusivamente à cessação do contrato de trabalho e não por ter sido membro do Conselho de Administração, no período de 31 de maio de 2010  a 13 de julho de 2021; já a Requerida pugna pela manutenção da liquidação impugnada, na medida em que, nomeadamente, não é possível derrogar o teor do artigo 398.º do CSC, pelo que, a conclusão não pode ser outra a não ser a que parte da compensação (47 405,66 euros) respeita ao exercício de funções de administração na referida sociedade.

A designação de administradores para membro de órgão estatutário (Conselho de Administração) com contrato de trabalho encontra-se disciplinada no artigo 398.º do CSC, do seguinte modo:

 

1 - Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviços quando cessarem as funções de administrador.

2 - Quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça qualquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano.

 

A acumulação de funções de administrador de sociedade anónima e de trabalhador, numa mesma sociedade, é vedada por lei,  estatuindo, nomeadamente, esta a imediata suspensão do contrato de trabalho. O sobredito normativo prevê que, durante o período em que se mantiver na qualidade de administrador, o seu contrato de trabalho cessa, caso tenha sido celebrado há menos de um ano ou suspende-se, nos casos em que tenha sido celebrado há mais de um ano.

A doutrina[1] entende que “[o]s administradores não poderão ser qualificados como trabalhadores da sociedade para a qual exercem funções de administração, não podendo igualmente manter qualquer vínculo laboral a sociedades que integrem o mesmo grupo societário”.

O legislador terá sido sensível à tese da incompatibilidade entre os estatutos de administrador e de trabalhador, ao considerar que a autonomia e as funções de empregador são incompatíveis com a subordinação jurídica que caracteriza a relação de trabalho assalariado.

O artigo 295.º do Código do Trabalho, perante a omissão do CSC, prevê os direitos e as obrigações emergentes da suspensão do contrato de trabalho:

 

1 - Durante a redução ou suspensão, mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efetiva prestação de trabalho.
2 - O tempo de redução ou suspensão conta-se para efeitos de antiguidade.

(…)

4 - Terminado o período de redução ou suspensão, são restabelecidos os direitos, deveres e garantias das partes decorrentes da efetiva prestação de trabalho.

 

O tempo de suspensão do contrato de trabalho pelo exercício de funções de administração conta-se, assim, para antiguidade da relação de trabalho.

Contudo, a contagem do referido prazo resulta da própria lei e não significa que a compensação  recebida  pela cessação do contrato de trabalho deva ser calculada tendo em conta o exercício de funções de administração, na medida em que a lei fiscal deve ser interpretada como significando a antiguidade na entidade devedora, independentemente do que dispõe, nesta matéria, o direito do trabalho.

Já o artigo 2.º, n.º 4, alíneas a) e b),  do CIRS tinha, à data do facto tributário, a seguinte redação:

 

4 - Quando, por qualquer forma, cessem os contratos subjacentes às situações referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 1, mas sem prejuízo do disposto na alínea d) do mesmo número, quanto às prestações que continuem a ser devidas mesmo que o contrato de trabalho não subsista, ou se verifique a cessação das funções de gestor público, administrador ou gerente de pessoa coletiva, bem como de representante de estabelecimento estável de entidade não residente, as importâncias auferidas, a qualquer título, ficam sempre sujeitas a tributação:


a) Pela sua totalidade, na parte que corresponda ao exercício de funções de gestor público, administrador ou gerente de pessoa coletiva, bem como de representante de estabelecimento estável de entidade não residente;


b) Na parte que exceda o valor correspondente ao valor médio das remunerações regulares com carácter de retribuição sujeitas a imposto, auferidas nos últimos 12 meses, multiplicado pelo número de anos ou fração de antiguidade ou de exercício de funções na entidade devedora, nos demais casos, salvo quando nos 24 meses seguintes seja criado novo vínculo profissional ou empresarial, independentemente da sua natureza, com a mesma entidade, caso em que as importâncias serão tributadas pela totalidade.

 

O artigo 3.º, n.º 2, alínea a), do CIRS prevê a tributação dos rendimentos auferidos pelos membros de órgãos estatutários das pessoas coletivas, como rendimentos de trabalho dependente.

As indemnizações por extinção do contrato de trabalho beneficiam de uma exclusão de tributação, embora com um limite máximo apurado nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do CIRS.

O CIRS, por intermédio da Lei n.º 100/2009, de 8 de setembro revogou o regime de exclusão parcial  de tributação que, até então, era aplicável aos administradores, que passaram a ter as compensações tributadas pela sua totalidade. Contudo, manteve  o regime de tributação mais favorável da compensação pela extinção da relação de trabalho assalariado, o que se compreenderá pela natureza da referida relação, i.e.,  na proteção social do trabalhador que, pela extinção do contrato de trabalho, se vê amputado, por via de regra, da sua principal fonte de rendimento, o  trabalho.

Percebe-se, por isso, o facto de a referida exclusão de tributação não ser aplicável, nomeadamente, aos administradores, pelas indemnizações auferidas pela extinção dos sobreditos vínculos funcionais. Assim, no segmento que diga respeito ao exercício das sobreditas funções, as indemnizações auferidas por estes sujeitos passivos são tributadas pela totalidade, artigo 2.º, n.º 4, alínea a), do CIRS.

Já, pelo contrário, se há uma parte de uma indemnização, recebida, nomeadamente por um administrador, respeitante à sua antiguidade no exercício de funções diversas da gestão, como, por exemplo, diretor comercial, beneficia, nesse segmento, de uma exclusão.

Em resumo, o legislador, por  intermédio da Lei n.º 100/2009, de 8 de setembro, decidiu tributar a totalidade da compensação que seja recebida por membro de Conselho de Administração de uma sociedade.

Os  Requerentes advogam que, no caso sub iudice,  “ B...” continuou a desenvolver as mesmas funções, como trabalhadora, apesar da designação para a  administração da sociedade. Defendem, por isso, que a situação sub iudice se subsume ao previsto no  artigo 2.º, n.º 4, alínea b), do CIRS. Entende o Tribunal Arbitral que sem razão.

A prova documental junta aos autos demonstra que a compensação de 47 405,66 euros foi paga, em junho de 2010, com a referência “Administração (nosso sublinhado)/Diretor geral e gestor executivo, de empresas”, por  um liquidatário indicado pela D..., S.A.; em segundo lugar, no pagamento efetuado, em junho de 2010, à Requerente “ B...” consta como categoria profissional (da titular do rendimento) “Administrador”; e, por último, verifica-se a existência de uma ata de designação de vogal para o Conselho de Administração da referida sociedade.

Não pode ainda o Tribunal Arbitral ignorar o facto de o pagamento da compensação ter sido ordenado por um liquidatário externo, circunstância que exigiu o conhecimento de toda a realidade societária.

Entende o Tribunal Arbitral que são elementos suficientes para demonstrar que a administração da sociedade foi, no período de  31 de maio de 2010 até à data da liquidação, também da responsabilidade da Requerente.  Encontram-se observados, de modo suficiente, os pressupostos legais da atuação da AT.

Paralelamente,  o artigo 398.º do CSC estatui que a designação para a administração impede, ope legis, o exercício de funções laborais, pelo que, o facto de a Requerente “B...” continuar, ou não, a exercer  funções laborais sempre seria  irrelevante. A referida interpretação é reforçada  com a teleologia subjacente à redação do artigo 2.º, n.º 4, alínea a), do CIRS: a tributação da compensação correspondente à cessação do exercício das referidas funções.

Se assim não fosse, as possibilidades de manipulação do regime legal (que prevê a tributação pela totalidade das compensações resultantes da  cessação de funções como membros do Conselho de Administração) seria evidente, com recurso à celebração (ou utilização) de um contrato de trabalho que se suspende (nos termos previstos no artigo 398.º do CSC) com a designação e que se extingue com o pagamento da compensação que beneficia, de acordo com o  artigo 2.º, n.º 4,  alínea b), do CIRS, de uma exclusão de tributação  aplicável aos trabalhadores dependentes.

Insiste-se ainda, não colocando os Requerentes em causa a designação de “ B...”, através da ata,  para administradora da sociedade no período, de  31 de maio de 2010 até à liquidação, o efeito jurídico que a lei comina para tal hipótese e a teleologia subjacente à opção legislativa de tributar os valores pagos pela cessação da situação de membro do referido órgão social, o facto de a Requerente ter, ou não, continuado a exercer as funções de diretora de serviços  de recursos humanos e de informática, é irrelevante.

Destaca-se que, no juízo decisório, não há contradição entre o facto de a Requerente “B...” ter continuado a exercer as funções de diretora de serviços de recursos humanos e de informática, a partir de 31 de maio de 2010 até à liquidação, com a designação para vogal do Conselho de Administração, pois há prova  que demonstra a administração e, paralelamente, o vínculo laboral, por força da lei, ficou suspenso.

O montante de 47 405,66 euros  não se encontra excluído de tributação e, nesta medida, a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e a liquidação de IRS dever-se-ão manter na ordem jurídica.

 

III – DECISÃO

 

Termos em que se decide:

 

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido de anulação da liquidação de  IRS  n.º 2022..., com as legais consequências.

 

  1. Condenar os Requerentes no pagamento integral de custas arbitrais.

 

VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 6 910,87 euros, nos termos do artigo 97.º - A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

CUSTAS

 

Custas no montante de 612 euros, em conformidade com o RCPAT e a Tabela I a este anexa e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, a cargo dos Requerentes.

 

Notifique.

 

Lisboa, 26  de março  de 2024

 

O árbitro,

                                                                                               

 

Francisco Nicolau Domingos

 



[1] Teresa Teixeira Motta, Breves notas sobre tributação em IRS das importâncias auferidas pela cessação da relação laboral, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier,  Direito e Justiça, volume III, Universidade Católica Editora, 2015, pp. 567-596.