Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 103/2023-T
Data da decisão: 2024-02-26  IRC  
Valor do pedido: € 3.302.045,71
Tema: IRC – Ativos intangíveis. Aplicação do regime do reinvestimento na alienação onerosa de ativos gerados internamente. Pacto de não concorrência.
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SUMÁRIO:

 

  1. Um direito contratual a vender à contraparte (sendo esta obrigada a comprar) determinadas quantidades de um produto, durante certo período, a preço superior ao de mercado, constitui um ativo intangível da empresa vendedora, muito embora as normas contabilísticas não imponham o seu reconhecimento.
  2. Não existindo disposição fiscal em sentido diferente, à alienação deste ativo intangível é aplicável o disposto no artigo 48º CIRC (reinvestimento dos valores de realização).
  3.  A obrigação de não concorrência surge com a celebração do respetivo contrato, não implicando a alienação de um ativo antes existente na esfera do obrigado.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros Rui Duarte Morais, Ana Catarina Guerra Rodrigues Breia e Ana Teixeira de Sousa, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar este TAC Coletivo, decidem o seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede social na ..., ..., ...-..., ..., ..., sociedade dominante do grupo fiscal B..., sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades previsto no (na numeração atual) artigo 69.º e seguintes do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), e

C..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede social no ..., ..., ...-..., ..., ..., vieram, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro, requerer a constituição de TAC.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

I.1 O Pedido

As Requerentes pretendem:

  1. a anulação parcial da liquidação adicional de IRC de 2018 com o n.º 2022... e das liquidações de juros compensatórios com os n.ºs 2022... e 2022..., objeto de acerto de contas no qual se apurou o valor a pagar de €13.763.739,75, processadas em nome da A... .

O montante impugnado é de € 3.302.045,71, correspondente ao valor proporcional da liquidação adicional (IRC no valor de €2.231.801,86, derrama estadual no valor de €531.381,39 e derrama municipal no valor de €159.414,42), e aos juros compensatórios, no valor de €379.448,04.

  1. A condenação da Autoridade Tributaria e Aduaneira (AT) em reembolsar a Requerente do valor do imposto pago em excesso;
  2. A condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal.

I.2 Tramitação

O Pedido de Pronuncia Arbitral deu entrada a 22 de fevereiro de 2023.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os árbitros auxiliares signatários desta decisão; após renúncia da Exma. Conselheira Fernanda Maçãs, foi designado, em sua substituição como árbitro presidente, o Prof. Doutor Rui Morais. Os árbitros nomeados aceitaram tempestivamente as designações, as quais não foram objeto de oposição.

A Requerida, apresentou resposta, defendendo-se por exceção e por impugnação, e juntou o PA.

As Requerentes responderam à exceção em requerimento datado de 22 de setembro de 2023. 

Por despacho de 23 de outubro de 2023, foi decidida a prorrogação, por mais dois meses, do prazo para ser proferida a decisão arbitral,

Por despacho de 6 de novembro de 2023, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT bem como a apresentação de alegações, por desnecessárias.

A Requerente juntou, nos termos do art.º 680º do CPC : i) parecer da autoria da Srª Prof. Doutora Isabel Lourenço e ii) parecer, intitulado memorando, da autoria do auditor do Grupo B... .

Por despacho de 31 de dezembro de 2023, foi decidida a prorrogação, por mais dois meses, do prazo para ser proferida a decisão arbitral.

II. SANEAMENTO

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Adiante se apreciará a exceção deduzida pela Requerida.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

III.1 Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A C... está inscrita como exercendo a atividade de produção de eletricidade de origem térmica (CAE’s 35112, 035301 e 046712), apresentando o seguinte enquadramento fiscal em IRC para o período de 2018: opção pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades previsto no artigo 69.º e seguintes, sendo sociedade dominante a A..., S.A.;
  2. Em 2013, o grupo B... decidiu construir uma fábrica de pellets em Greenwood, Estados Unidos da América.
  3. Para titular tal investimento, foi constituída a D... Inc. (empresa sedeada nos Estados Unidos da América), tendo como sócias a E..., SGPS, S.A, (sociedade, à data, detida pela A...), titular de uma participação de 75%, e a A..., titular da participação remanescente.
  4. O Grupo B... negociou a venda das pellets a serem produzidas em tal fábrica com dois clientes relevantes neste mercado, o principal dos quais a F..., LP, uma sociedade dos Estados Unidos da América.
  5. Em 12 de Dezembro de 2014, fruto dessas negociações, foi celebrado entre a sociedade F..., LP e a D..., Inc. um contrato, designado por “Master Biomass Purchase and Sale Agreement”.
  6. Este contrato assumia a natureza de contrato quadro, relativamente à celebração de transações para a compra, venda, entrega e aceitação de biomassa.
  7. A F..., LP e a D,,,, Inc concretizaram as primeiras transações regidas pelo aludido contrato quadro através da assinatura do “Biomass Fuel Supply Confirmation N1”, em 12 de dezembro de 2014.
  8. Este “Biomass Fuel Supply Confirmation N1” tinha um prazo de validade de 10 anos, com início em 1 de setembro de 2016, renovável por mais 5 anos, e
  9. Previa, entre outros aspetos, uma quantidade mínima (400.000 toneladas) e uma quantidade máxima (500.000 toneladas) de biomassa a ser fornecida à F..., LP, anualmente, durante o período de vigência e
  10.  Previa os critérios de fixação do preço a ser pago pela F..., LP.
  11. Sendo garantido ao vendedor o recebimento do preço pela biomassa fornecida, até uma determinada quantidade, independentemente de o comprador aceitar a entrega do produto em causa (take or pay).
  12. Em 17 de Maio de 2016, ainda antes da conclusão da construção da fábrica e início da produção de pellets, a D..., Inc. cedeu, gratuitamente, à C... a sua posição nos contratos atrás referidos (“Master Biomass Purchase and Sale Agreement” e no “Biomass Fuel Supply Confirmation N1”).
  13. A D... Inc iniciou, ainda em 2016, a produção de pellets e, como acordado, a C... adquiriu essas pellets para subsequente venda das mesmas à F..., LP.
  14. Desde o início da venda de pellets pela C... à F..., LP, no final de 2016, tornou-se evidente que, devido às flutuações de mercado entretanto ocorridas, o preço acordado, tendo em conta o estabelecido no “Biomass Fuel Supply Confirmation N1”, resultava substancialmente superior ao que seria fixado em mercado (spot) para aquele tipo de produto.
  15. As dificuldades inerentes a este negócio para o Grupo B..., decorrentes da sua reduzida experiência na produção de pellets, os problemas encontrados no arranque da nova fábrica, as dificuldades na entrada num novo negócio/atividade numa área geográfica distante e desconhecida e, principalmente, o facto de a totalidade das suas vendas estarem dependentes, quase exclusivamente, de um só comprador, a F..., L.P., o qual por isso exercia a sua capacidade negocial na sistemática rejeição do produto e agravava deste modo as perdas associadas a esta atividade, motivaram a necessidade de reavaliar a continuação do investimento pelo Grupo B... no decurso de 2017.
  16. A A... foi abordada pelo próprio Grupo G... com vista à aquisição da atividade da produção de pellets.
  17. Neste âmbito, em 29 de Dezembro de 2017, a A..., a C... e a D..., Inc., na qualidade de partes vendedoras, e a H..., LLC, enquanto compradora, e ainda, para efeitos garantia, a F..., LP, celebraram contrato designado como “Asset Purchase Agreement”, pelo qual a D... Inc e a A... acordaram em vender à H..., LLC, que aceitou comprar, todos os ativos tangíveis e intangíveis propriedade da D... Inc ou da A... usados em conexão com a fábrica de produção de pellets de madeira em Greenwood e com o negócio aí desenvolvido.
  18. No indicado contrato, foi ainda estabelecida uma cláusula de não concorrência, pela qual, durante um período de 5 anos, a C... concordou, em não se envolver, direta ou indiretamente no negócio de produção de pellets de madeira, em determinados mercados.
  19. O valor total a pagar pelo comprador às partes vendedoras foi fixado em $135.000.000.
  20. À C... foi atribuído o valor de $26.467.064,61, sendo € 11.216.715,88 (câmbio de $13.967.064,61) relativos à cessação antecipada do “Master Biomass Purchase and Sale Agreement” e € 10.038.539,99 (câmbio de $12.500.000,00) ao “pacto de não concorrência”.
  21. A totalidade desse valor foi reconhecido contabilisticamente, na sua totalidade, como mais-valia resultante da alienação de ativos fixos intangíveis, associados a uma relação comercial com clientes e fornecedores, conforme previsto no § 9 da NCRF 6 – Ativos Intangíveis.
  22. Estando em causa a transmissão de ativos intangíveis sem qualquer valor de aquisição associado, considerou-se a mais valia obtida pela C... correspondia ao valor de realização, i.e., ao valor de venda desses ativos intangíveis.
  23. Os registos contabilísticos associados a esta operação foram apenas os relativos ao apuramento da mais-valia obtida com a alienação de ativos intangíveis, sem haver (des)reconhecimento no ativo de balanço da sociedade, por estes ativos terem um custo de aquisição de zero.
  24. A C... invocou a aplicação do regime do reinvestimento da mais-valia em causa (pelo seu valor global), tendo por isso, nos termos do artigo 48.º do Código do IRC, inscrito apenas 50% daquela mais-valia no campo 740 do quadro 7 da sua Modelo 22 de IRC.
  25. Ainda em 2018, a C... procedeu ao reinvestimento, entre outros, em nova caldeira de biomassa.
  26. A AT desenvolveu uma ação de inspeção externa à C..., relativa ao exercício de 2018, tendo esta sociedade sido notificada do Relatório Final de Inspeção em abril de 2022.
  27. Consequentemente, a AT efetuou uma ação de inspeção interna ao Grupo B..., tendo notificado a A... do respetivo relatório em setembro de 2022.
  28. Tal como resulta do RIT:

“Na declaração de rendimentos Mod.22 de IRC do período de 2018, para efeitos de determinação do resultado tributável considerou, nos termos combinados dos artigos 46.º e 48.º do CIRC (…) a) O acréscimo no valor de 10.627.627,94 Euros a título de 50% da mais-valia fiscal no C740 Q07;b) A dedução pelo montante de 21.255.255,87 Euros a título de mais-valia contabilística no C767 Q07.

Considerando que o resultado contabilístico do período incluía o rendimento no valor de 21.255.255,87 Euros (em “outros rendimentos”, conta SNC #787), resulta dos ajustamentos atrás referidos que o resultado tributável inclui o montante de 10.627.627,94 Euros decorrente da empresa invocar o regime do reinvestimento regulado pelo artigo 48.º do CIRC. (…)

Decorre da inscrição do valor de 10.627.627,94 Euros no campo 740 da declaração de rendimentos Mod.22 de IRC do período de 2018, a invocação por parte do sujeito passivo da aplicação do regime da tributação parcial da diferença positiva entre as mais e menos-valias, decorrente da opção pelo reinvestimento do valor de realização, conforme disciplina o artigo 48.º do CIRC. (…)

Da análise à informação constante da declaração IES/DA referente ao período de 2018, verifica-se a inexistência de qualquer valor nos campos destinados a inscrever o montante de redução de ativos fixos tangíveis ou de ativos intangíveis por alienação no período.

Face à incoerência identificada foi solicitado ao sujeito passivo (…) a demonstração da mais-valia sujeita ao regime do artigo 46.º do CIRC que permitisse a aplicação do artigo 48.º do mesmo Código.

Em resposta, a C..., em email de 11-03-2021, refere que a mais-valia é resultante da “transmissão de ativos intangíveis gerados internamente pela C... (ou seja, sem qualquer valor de aquisição associado)”, acrescentando “que o valor da compensação recebida pela C... neste âmbito corresponderia ao valor de “venda”, apurando-se assim uma mais-valia fiscal de valor idêntico àquele valor de venda desses activos intangíveis”»

  1. Neste RIT, a AT concretizou as correções sustentadas a nível individual quanto a algumas das sociedades do Grupo, incluindo a C..., e correções ao cálculo do imposto do Grupo B...  
  2. Entre elas uma correção (acréscimo ao lucro tributável da C..., no montante de € 10.627.627,93, sustentada na aplicação indevida do regime do reinvestimento.
  3. A A... procedeu ao pagamento da totalidade dos valores liquidados relativamente a 2018.

III.2 FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos dados como provados resultam da documentação junta aos autos, nomeadamente do RIT, não tendo originado qualquer controvérsia entre as partes.

 

III.3 FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

IV. MATÉRIA DE DIREITO

IV.1 EXCEPÇÃO da Incompetência do TAC

 

Alega a AT existir incompetência do TAC em razão do valor da causa, concluindo pela sua absolvição da instância.

Em concreto, entende que que o valor da causa é superior a € 10.000.000,00 [isto é, superior ao montante referido no artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/201,1 a que faz menção o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, enquanto limite de vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD].

Neste sentido, a AT considera que: (i) a Requerente contesta o valor da correção de €10.627.627,94, feita relativamente ao montante do lucro tributário declarado pela C...; (ii) se desconhece o impacto de tal correção na liquidação de imposto relativo ao grupo de sociedades encabeçado pela A...; (iii) o valor indicado pelas Requerentes é um valor artificialmente criado pelas estas, que não corresponde ao que estas pretendem impugnar, que é o ato de fixação da matéria coletável.

Apreciando:

A) Possibilidade de anulação parcial de um ato de liquidação

O reconhecimento da divisibilidade do ato tributário está hoje consolidado na jurisprudência: a liquidação pode ser ilegal só em parte, pelo que pode ser anulada também só em parte.

O ato tributário, porque se reconduz a uma quantidade monetária, é uma realidade divisível. O contribuinte que se não conforme com parte (por oposição ao todo) de um ato tributário, pode (e deve) segregar essa parte das demais para efeitos de:

(i) requerer apenas a anulação dessa parte; e

(ii) indicar, em função do valor dessa parte, um valor para a causa.

Isto acontece frequentemente, sem que se conheça oposição da AT a este modo de proceder. Este é, sublinha-se, o único modo de proceder proporcional, porque respeitador do ato tributário na parte em que não haja discordância entre a AT e o contribuinte.

Neste sentido, entre muitos outros, veja-se o acórdão do STA de 02.12.2015, proferido no processo n.º 0754/15 e a decisão do CAAD de 30.11.2020 no Processo n.º 901/2019-T.

B) Fixação do valor da causa

Tal como a Requerente, este TAC entende que a adequada pronúncia sobre esta exceção deve partir do disposto no artigo 97.º-A, do CPPT, aplicável à arbitragem tributária ex vi artigo 29.º, do RJAT, que, no que aqui importa, dispõe o seguinte:

 

                                                           “Artigo 97.º‐A

Valor da causa

1 ‐ Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as acções que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes:

a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende;

b) Quando se impugne o acto de fixação da matéria colectável, o valor contestado;”

Sobre a articulação destas duas alíneas já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, designadamente no acórdão proferido em 14 de outubro de 2020, no processo n.º 062/18 no sentido de que:

“Na senda de Jorge Lopes de Sousa, in CPPT Anotado, vol II, em anotação ao artigo 97º‐A, entendemos que só quando da fixação da matéria tributável não resulte o apuramento de imposto a pagar é que se será de adoptar o critério do “valor contestado” para determinar o valor da ação, e, nos demais casos, o valor a atender condirá com o valor da prestação pecuniária que se pretende ver anulada, o que vale por dizer, que apenas nos casos em que está em causa o acto de fixação da matéria tributável [al. b)] ou o ato de fixação dos valores patrimoniais [al. c)] é que o critério a atender é o “valor contestado”. Por assim ser, quanto às situações abrangidas pela alínea a) do nº1 do artigo 97º‐A do CPPT, é pacífico que as mesmas se atêm à expressão monetária da “utilidade económica imediata do pedido.”

“(…) como é incontroverso, o critério contemplado na alínea a) do nº1 do artigo 97º‐A do CPPT, pressupõe que da fixação da matéria tributável resulte imposto a pagar, de jeito a poder determinar‐se a importância que se pretende ver anulada (…)”

Efetivamente, está hoje consolidado na jurisprudência que o critério para determinar se um ato tributário deve ser total ou parcialmente anulado passa por aferir se a ilegalidade o afeta no seu todo (caso em que deve ser integralmente anulado), ou apenas em parte (caso em que se justifica a anulação parcial).

Neste caso concreto, a Requerente apenas contesta o valor de uma correção relativa à C..., refletida nos atos de liquidação na parte em que se materializaram em imposto a pagar [em concreto em sede de IRC, derramas estadual e municipal, bem como ainda os atos de liquidação de juros compensatórios],

Como tal, a menção pela Requerente ao valor da correção operada à matéria coletável do Grupo, em resultado da correção relativa à C..., visou tão só determinar a proporção, para efeitos de determinação do valor do pedido, do montante do ato de liquidação que estava a ser impugnado (cf. neste sentido, decisão arbitral emitida no processo n.º 270/2020-T de 9 de fevereiro de 2020).

Do exposto, entende este TAC que resulta claro que o valor da liquidação contestado foi apurado de forma correta pela Requerente.

Sendo o valor assim apurado, de €3.302.045,71, está, portanto, abaixo do litígio superior a €10.000.000,00 (valor que de acordo com o artigo 3.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 se indica como o limite da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD). Mesmo admitindo, por mera cautela, que exista algum erro de cálculo por parte das Requerentes, a divergência entre os valores que acabámos de referir dá-nos a total segurança de que nunca será ultrapassado o referido limite da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD

Termos em que se conclui pela improcedência desta exceção.

IV.2 O MÉRITO DA CAUSA

 

Do exposto resulta que a única questão em debate se traduz em saber se o recebido pela C... da F... LP, €21.255.255,87, deve, ou não, ser qualificado como valor de realização pela alienação onerosa de um ativo intangível para efeitos de aplicação do regime de mais ou menos valias, nos termos definidos no artigo 46.º do CIRC. Isto, porquanto, o ativo em causa não havia sido previamente objeto de reconhecimento, como tal, na contabilidade da sociedade.

Da resposta a esta questão resultará a possibilidade de aplicação do regime do reinvestimento previsto no artigo 46.º do CIRC, o qual permite a tributação de apenas 50%, desse rendimento, mediante o cumprimento de determinadas condições[1]. Ou seja, em caso negativo, deverá ter lugar um acréscimo ao lucro tributável, no montante de €10.627.627,94 e, consequentemente, imposto a pagar, (em sede de IRC, derramas estadual e municipal), e juros compensatórios, no valor, tal como estimado pelas Requerentes, de €3.302.045,71.

IV.2.1 Posição das partes

 

IV.2.1.1  A posição da AT

A AT defende que o valor recebido pela C..., €21.255.255,87, constituiu um rendimento enquadrável na alínea i) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRC, não podendo ser qualificado como valor de realização para efeitos de mais ou menos valias realizadas, nos termos definidos no artigo 46.º do CIRC, uma vez não teve como contrapartida a transmissão de qualquer ativo intangível reconhecido na contabilidade da sociedade :“ (…) nos termos do artigo 46.º do Código do IRC são apuradas mais/menos-valias de ativos na sequência do seu desreconhecimento em resultado das situações tipificadas no referido normativo. Por conseguinte, não basta que o ativo alienado, eventualmente, preencha os requisitos da definição ínsita no normativo contabilístico, sendo também imprescindível que esteja reconhecido atentas as condições para o respetivo reconhecimento.”

Não se enquadrando como mais-valia, a AT entende que, dados os factos descritos pelo sujeito passivo e a contabilização efetuada [relevada contabilisticamente pela C... como rendimento de 2018 na conta SNC #787 pelo montante de €21.255.255,87], o valor em questão, atribuído à C... no âmbito da operação de venda pelo grupo B... ao Grupo G... “da atividade de produção de pellets”, em razão “da cessação antecipada dos contratos “Master Biomass Purchase Agreement concretizado no “Biomass Fuel Supply Confirmation N.º 1” e “Pacto de não concorrência”, configura um ganho/rendimento que fluiu para a C... no período económico-tributário de 2018, devendo, em conformidade, ser submetido à tributação no período tributário de 2018.

Concluindo ainda que o montante recebido pela C... representa uma compensação, quer pela cessação antecipada de contrato, que existia e tinha condições vantajosas para a  C... [conforme a própria reconhece quando expressamente refere que, no §41.º da p.i., «razão pela qual não é surpreendente que a F..., LP, sabendo das condições favoráveis à C... no “Biomass Fuel Supply Confirmation N1” conhecendo os preços de mercado e a situação de desenvolvimento da fábrica, se tenha aproveitado da circunstância de ser tendencialmente o único comprador de pellets da C...»], quer pela abstenção de (outros) resultados futuros decorrente do acordo de não concorrência [que conforme refere a Requerente a § 52º da p.i., foi imposição da própria F... LP, ou seja, foi do interesse do Grupo G...].

Assim, a AT considerou ser indevida a aplicação do regime do reinvestimento previsto no artigo 48.º do CIRC, devendo haver lugar a acréscimo ao lucro tributável no montante de €10.627.627,94 e, consequentemente, imposto a pagar, [em concreto em sede de IRC, derramas estadual e municipal, bem como ainda os atos de liquidação de juros compensatórios na parte respetiva de que foi notificada a A...],

IV.2.1.2 A posição das Requerentes

Em contraposição, as Requerentes entendem ser aplicável o regime do reinvestimento das mais-valias por entenderem que os referidos montantes resultam da alienação de um ativo intangível gerado pela própria empresa.

Alegam que as normas fiscais que regulam o apuramento das mais e menos-valias não exigem que os ativos intangíveis alienados tenham de, para além de ser assim qualificados, ser reconhecidos como tal no balanço, isto é, serem capitalizados por um valor (bruto ou líquido) diferente de zero.

Defendem que “para o apuramento de uma mais ou menos-valia fiscalmente relevante, basta que estejamos face a ganhos ou perdas decorrentes da transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, entre o mais, de “ativos intangíveis”» e que [n]esta conformidade, o conceito que o Código do IRC “pede emprestado” à contabilidade é aquele de “ativo intangível”, sem qualquer outra qualificação ou especificação”.

Assim, sendo identificável, controlável e separável, um ativo intangível satisfaz a definição de ativo intangível constante na NCRF 6, nos parágrafos 9 a 17.

Neste mesmo sentido é referido que a “qualificação de um ativo intangível, como tal, não depende do cumprimento pelo mesmo dos critérios para que possa e deva ser registado ou reconhecido como tal”, como se retira do §50º da Estrutura Conceptual que integra o SNC e também do §18º da NCRF 6 – Ativos Intangíveis.

A cedência desta posição contratual realizou-se sem o pagamento, pela C..., de qualquer quantia de caixa ou seus equivalentes ou qualquer outra retribuição. E, como tal, o mesmo não foi reconhecido no Balanço da  C... no momento da sua obtenção.

Quanto à qualificação do montante auferido pela Requerente aqui em questão como indemnização, esta discorda de tal qualificação, entendendo que se trata de um montante auferido em razão da alienação de ativos intangíveis, que o pacto de concorrência estabelecido, nos termos do contrato de venda do negócio das pellets, impede a C... de aproveitar, durante o seu período de vigência, a posição que, antes, havia logrado conquistar no mercado.

A título subsidiário, a Requerente C... acrescenta como argumento que, não sendo de considerar que o valor em causa constitui (parte) da mais-valia obtida “com a alienação de ativo intangível, então aquele rendimento deverá ser enquadrado na sua esfera à luz da NCRF 20 – Rédito.  Assim, sendo um influxo decorrente da prestação de um serviço (desempenho de uma tarefa contratualmente acordada durante um período, no caso em apreço, de não concorrência, pelo período de 5 anos), e não uma indemnização como pretende a AT sustentar, circunstância em que deveria ser tributado em 1/5 de 2018 a 2022, que de resto coincide com o influxo monetário da presente operação que só terminou no mês de fevereiro de 2023.”

IV.2.2 Questão a decidir

A) Noção de ativo intangível

Antes de mais, importa ter presente o disposto no artigo 46.º do CIRC, vigente no período de tributação (2018), no relevante para a situação em análise: 

1 – Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere (…), respeitantes a:

  1. (…) ativos intangíveis, (…);

(…)

No caso, estão em causa posições contratuais que a C..., cedeu onerosamente à F... . Importa, pois, começar por esclarecer se tais posições contratuais constituem um ativo (necessariamente intangível).

Como é sabido, o lucro tributável é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período, determinado com base na contabilidade (lucro contabilístico) e, eventualmente, corrigido pela lei fiscal - o chamado princípio da dependência parcial[2].

Há, pois, que começar pelas normas contabilísticas aplicáveis.

A NCRF 6 - Ativos intangíveis – define, no seu parágrafo 8, ativo intangível como um “ativo não monetário identificável sem substância física”.

A Estrutura Conceptual, que integra o SNC, define, no seu parágrafo 49, um ativo como um recurso controlado pela entidade como resultado de acontecimentos passados e do qual se espera que fluam para a entidade benefícios económicos futuros.

À luz das referidas definições, um ativo intangível, para além da inexistência de substância física que, obviamente, qualquer direito terá, tem as seguintes características:

1) identificabilidade - Segundo o parágrafo 12 da NCRF 6, um ativo intangível e identificável se: a) for separável, ou seja, capaz de ser separado ou dividido da entidade e vendido, transferido, licenciado, alugado ou trocado, seja individualmente ou em conjunto com um contrato, ativo ou passivo relacionado, independentemente da intenção da entidade de o fazer; ou b) resultar de direitos contratuais ou de outros direitos legais, independentemente desses direitos serem transferíveis ou separáveis da entidade ou de outros direitos e obrigações.

2) controlo – o parágrafo 13 da NCRF 6, estabelece que uma entidade controla um ativo se tiver o poder de obter benefícios económicos futuros que fluam do recurso subjacente e puder restringir o acesso de terceiros a esses benefícios. Em geral, a capacidade de uma entidade de controlar os benefícios económicos futuros de um ativo intangível baseia-se, normalmente, em direitos legais sobre o mesmo.

3) existência de benefícios económicos futuros - O parágrafo 17 da NCRF 6 estabelece que os benefícios económicos futuros que fluam de um ativo intangível podem incluir réditos da venda de produtos ou serviços, poupanças de custos, ou outros benefícios resultantes do uso do ativo pela entidade.

Como se refere nas “OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations”, a transferência de ativos intangíveis abrange elementos muito diversos. (cf. seu Parágrafo 9.55 e seguintes), sendo possível encontrar ativos intangíveis que decorrem da celebração de contratos (e.g. em contratos de franchising, conforme resposta ao pedido de informação vinculativa que deu lugar ao processo n.º 2010 001335 - PIV n.º 693, com Despacho da Diretora de Serviços de 2010-05-19).

In casu, verificou-se que, em 12 de Dezembro de 2014, foi celebrado um contrato entre a F..., LP e a D..., Inc., designado por “Master Biomass Purchase & Sale Agreement”, acordando-se igualmente no “Biomass Fuel Supply Confirmation N1”, segundo o qual a F..., LP se comprometeu a comprar e a D..., Inc. se comprometeu a vender a produção de biomassa, em concreto pellets de madeira, imediatamente por período de 10 anos, renovável, por determinado preço e sujeito a regime de take or pay, o qual desde 17 de Maio de 2016, têm como partes a C... e a F..., LP, tendo subjacente para a primeira um evidente ativo intangível.

Este ativo é gerado pela circunstância de existir uma relação comercial com um cliente, baseada num preço de venda da biomassa superior ao de mercado, garantido pelo período de 10 anos e o fornecimento da biomassa ter uma quantidade mínima protegida por cláusula de take or pay (contrato com condições favoráveis à C...).

Como tal, a C... tinha o direito contratual de obter benefícios económicos futuros (a diferença entre o preço de venda previsto no contrato e o valor de mercado da biomassa, o qual se pressupõe suficiente para recuperar com lucro os custos de produção e venda), podendo impedir o acesso de terceiros a esses benefícios.

O facto de este direito ter sido cedido pela D..., Inc à  C... indica que o mesmo é separável.

No caso concreto, a capacidade de obter benefícios económicos do ativo em questão, por parte da C..., decorre, uma vez mais, das próprias condições contratuais estabelecidas no contrato take or pay celebrado, dando-se por verificado o critério do controlo do ativo.

Com efeito, essa capacidade/poder sobre o ativo decorre da obrigatoriedade da F..., LP comprar as pellets na quantidade e pelos preços pré-acordados, superiores aos de mercado, e por um prazo pré-determinado.

Conforme menciona a NCRF 6 (parágrafo 16), para o caso concreto de uma carteira de clientes, os direitos contratuais/legais permitem controlar o relacionamento com o cliente e a sua fidelidade para com a entidade, satisfazendo assim a sua definição como ativos intangíveis.

Nos termos deste parágrafo, também as relações de troca entre a entidade e o cliente - e que efetivamente existem, no caso concreto, entre a C... e a F..., LP - consubstanciam um elemento de prova do relacionamento com os clientes em si mesmo, relevante para a qualificação do recurso como ativo intangível.

Por último, no que respeita ao critério da existência de benefícios económicos futuros, e conforme amplamente demonstrado, a existência dos mesmos é manifesta no caso em apreço, patente essencialmente no produto das vendas de pellets (em face da obrigatoriedade  da   F...,  LP  comprar  determinadas  quantidades,  a determinados preços).

Desta forma, observam-se as condições necessárias para a existência de um activo intangível: a inexistência de substância física, a identificabilidade, o controlo sobre o recurso e a existência de benefícios económicos futuros.

Face ao exposto, conclui-se que o contrato denominado “Master Biomass Purchase & Sale Agreement”, concretizado no “Biomass Fuel Supply Confirmation N1”, detido pela C..., consubstancia-se num ativo intangível.

Aliás, o facto de a H..., LLC ter pago à C..., a quantia de $13.967.064,61 pela cessação do contrato “Master Biomass Purchase & Sale Agreement” evidencia o facto de, pelo menos nesta data e na sua essência, este contrato ter condições favoráveis à C... e, consequentemente, ter subjacente a existência de um ativo intangível.

B) O registo contabilístico dos ativos intangíveis

Importa ter em conta que, diferentemente do que sucede com a maior parte dos restantes ativos, apenas alguns ativos intangíveis são reconhecidos no balanço.

No parágrafo 81 da Estrutura Conceptual do SNC, encontram-se estabelecidos os requisitos para efeitos de registo de um ativo nas demonstrações financeiras: “Um item que satisfaça a definição de uma classe deve ser reconhecido se: (a) For provável que qualquer benefício económico futuro associado com o item flua para ou da entidade, e (b) O item tiver um custo ou um valor que possa ser mensurado com fiabilidade.”

No mesmo sentido, os parágrafos 18 e 21 da NCRF 6 estabelecem que um recurso que se subsume à definição de ativo intangível deve ser reconhecido no balanço se, e apenas se “a) for provável que os benefícios económicos futuros esperados que sejam atribuíveis ao ativo fluam para a entidade e b) o custo do ativo possa ser fiavelmente mensurado”.

O custo de um ativo intangível é definido, no parágrafo 8 da NCRF 6, como a quantia de “caixa ou seus equivalentes paga ou o justo valor de outra retribuição dada para adquirir o ativo no momento da sua aquisição ou construção, ou, quando aplicável, a quantia atribuída a esse ativo aquando do reconhecimento inicial de acordo com os requisitos específicos de outras NCRF”.

O ativo intangível da C... que está subjacente ao contrato denominado “Master Biomass Purchase & Sale Agreement”, foi por esta “adquirido” em 17 de maio de 2016, na sequência da cedência à C... da posição contratual da D..., Inc. e refere-se “adquirido” por ser essa a realidade individual da C..., a única relevante em termos fiscais, já que em termos do Grupo B... trata-se de um ativo gerado internamente.

Pois bem: in casu, ainda que fosse possível considerar que este ativo intangível se enquadra no primeiro critério de reconhecimento no balanço, uma vez que seria provável a obtenção dos benefícios económicos futuros associados ao mesmo, a cedência desta posição contratual[3] realizou-se sem o pagamento, pela C..., de qualquer quantia de caixa ou seus equivalentes ou qualquer outra retribuição, e sem a assunção prevista de qualquer passivo para satisfazer o contrato.

E, nesta medida, na falta de outra NCRF que estabeleça a quantia a atribuir a este ativo intangível, pode-se concluir que não existindo um custo fiavelmente mensurado, isto é, os critérios de reconhecimento não se encontravam cumpridos.

Logo este ativo não podia ser reconhecido no balanço da C...  no momento da sua obtenção, ou, se quisermos, foi reconhecido ao valor de zero.

Neste mesmo sentido conclui o parecer da Prof. Doutora Isabel Lourenço, anexo ao processo:

“ (…) O ativo intangível da C... que está subjacente ao contrato denominado “Master Biomass Purchase & Sale Agreement” foi adquirido em 17 de maio de 2016, na sequência da cedência à C... da posição contratual que a D... tinha com a F... .

A cedência desta posição contratual realizou-se sem o pagamento, pela C..., de qualquer quantia de caixa ou seus equivalentes ou qualquer outra retribuição. Assim, na ausência de outra NCRF que estabeleça a quantia a atribuir a este ativo intangível, o mesmo não deve ser reconhecido no Balanço da C... no momento da sua obtenção (por não se verificar o segundo critério de reconhecimento).

Mas o facto do ativo intangível não ser reconhecido no Balanço não significa que ele não existe.

Face ao exposto, conclui-se que o contrato denominado “Master Biomass Purchase & Sale Agreement” detido pela C... tem implícito um ativo intangível, mas o mesmo não é reconhecido no seu Balanço em virtude de não cumprir os critérios de reconhecimento”. (…)

Acresce referir que do parágrafo 50 da Estrutura Conceptual do SNC resulta que as definições de ativos do SNC incluem aqueles que não são contabilisticamente reconhecidos como tal, ou seja aqueles que, preenchendo os requisitos para que sejam considerados ativos, não sejam como tal reconhecidos.

Mais longe ainda vai o parágrafo 18 da NCRF, erroneamente invocado pela AT (cf. p. 16 do RIT individual da C...), onde o legislador contabilístico é claro ao distinguir a “definição de ativo intangível (ver parágrafos 8 a 17)” do “critérios de reconhecimento de ativos (ver parágrafos 21 a 23)”.

Face ao exposto, conclui-se que o contrato denominado “Master Biomass Purchase & Sale Agreement” (concretizado no “Biomass Fuel Supply Confirmation N1”) em que é parte a  C..., sendo para esta um ativo intangível, como vimos no ponto anterior, não deveria ser (como não foi) reconhecido no seu balanço em virtude de não cumprir os critérios de reconhecimento, designadamente por não ser mensurável e sem valor.

C) A inexistência de normas fiscais de ajuste

 

Não existem normas fiscais que consagrem um conceito fiscal de ativo intangível diferente do preconizado pelas normas contabilísticas anteriormente analisadas e que acrescentem algo ao conceito contabilístico.

Há que frisar o facto de estarmos no domínio da hipótese (da abrangência) de um benefício fiscal, ou seja, em domínio regido pelo princípio da tipicidade estrita. O mesmo é dizer que deve ser conferida especial relevância ao elemento literal da norma fiscal, ao facto de o legislador não se ter expressamente afastado do conceito contabilístico de ativo intangível.

A letra da lei assume-se, assim, como o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, a função de “eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei” (cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1993, pp. 187 ss.).

Também como refere Oliveira Ascensão (cf. O Direito, Introdução e Teoria Geral,
Lisboa, 2001, p. 392), “a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento
irremovível de toda a interpretação. Quer dizer que o texto funciona também como limite de
busca do espírito. Os seus possíveis sentidos dão-nos como que um quadro muito vasto, dentro do qual se deve procurar o entendimento definitivo da lei. Para além disto, porém, não se estaria a interpretar a lei mas a postergá-la, chegando-se a sentidos que não encontrariam na letra qualquer afinidade”.

Neste âmbito, e segundo Domingos Pereira de Sousa[4]:

A Constituição portuguesa estabelece no artigo 103.º, n.º 2 que “Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”. E o n.º 3 dispõe que “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”.

 Estas exigências da Constituição têm sido entendidas pela doutrina tradicional da legalidade no sentido de que os elementos contidos na norma tributária devem ser de tal modo precisos e determinados na sua formulação legal, que o órgão de aplicação do direito não possa introduzir critérios subjetivos de apreciação na sua aplicação concreta.

Como tal, a lei criadora do tributo deve, por isso mesmo, conter todos os elementos idóneos para estabelecer o conteúdo da prestação, por forma a excluir todo o “arbítrio” por parte dos Governos ou da AT nestas matérias.

Segundo Alberto Xavier, verifica-se na norma tributária Portuguesa o fenómeno da tipicidade fechada ou taxativa (elevado grau de determinação conceptual ou de fixação do conteúdo) e “que se opõe quer à integração analógica, quer à existência de normas “incompletas», «elásticas», ou «de borracha», como alguns as designaram. Em Direito tributário, a legalidade teria de conceber-se em termos muito “severos”, por forma a garantir-se que a norma tributária encerra na sua letra, simultaneamente, tudo o que pode ser pedido pelo Estado ao contribuinte e tudo o que este tem de dar àquele”.

No mesmo sentido o acórdão do STA de 29.01.2020, proferido no processo n.º
03104/11.0BEPRT 0772/18, refere que no Direito Fiscal vigora o princípio da tipicidade, que se traduz no brocardo latino nullum tributum sine lege, ou nullum vectigal sine lege, paralelo àquele outro, vigente no Direito Penal, nullum crimen sine lege. Ou seja, como não há crime que não corresponda a uma definição legal, a um tipo legal, também não haverá imposto, nem isenção, que não corresponda a uma definição legal, a um tipo legal.

Como tal, a tributação só pode resultar da verificação concreta de todos os pressupostos tributários, como tais previstos e descritos, abstratamente, na lei de imposto. Se não se verificar um dos pressupostos, já não é possível a tributação, por obediência a este princípio da tipicidade do imposto - cf. Soares Martinez, Manual de Direito Fiscal, 1987, p. 105 e 106.

Assim, considerar, como faz a AT, que, para a aplicação do disposto no artigo 46º do CIRC, é necessário estarmos perante um “activo intangível que preencha os requisitos que impõem o seu reconhecimento no balanço”, extravasa a letra da lei e não é, por esta, uma interpretação permitida.

Caso o legislador tivesse querido limitar a aplicação do artigo 46.º do CIRC aos casos de alienação de “ativos intangíveis que preencham os requisitos que impõem o seu reconhecimento no balanço”, tê-lo-ia dito, expressamente, à semelhança do que fez relativamente a outras situações[5].

D) Natureza do rendimento associado ao “pacto de não concorrência”

 

O pacto de concorrência estabelecido nos termos do contrato de venda do negócio das pellets, impede a C... de realizar um determinado conjunto de ações relacionadas com a atividade produtiva e de comercialização daquele produto, por um período de 5 anos.

Aqui chegados, importa analisar o caso particular da qualificação da natureza do rendimento associado ao “pacto de não concorrência”.

Em geral, a obrigação de não concorrência é uma prestação de facto material negativo[6], na categoria de non facere[7], infungível[8], indivisível e de execução continuada.

Surgem duas alternativas para que possamos falar na existência da obrigação de não concorrência: por um lado, a via contratual, por outro, a admissão de uma obrigação implícita de não concorrência, suportada em determinados fundamentos invocados pela doutrina[9].

Relativamente à primeira alternativa, uma vez que foi esta a adotada pelas partes: “os contraentes podem, ao abrigo da liberdade contratual, estabelecer uma obrigação de não concorrência explícita”.

Para Cassiano dos Santos (Ob. Cit, pp. 332-333), tal estipulação é possível desde que se limite a cobrir e concretizar a obrigação implícita de não concorrência. Se esta for além da obrigação implícita, terá de respeitar sempre os princípios da liberdade económica e da concorrência, pois, estes só podem ser colocados em questão desde que se verifique uma justa causa.

Haverá, pois, que aferir se existe, efetivamente, e face às circunstâncias existentes, um interesse digno de proteção [que seja apto a justificar eventuais limitações aos princípios referidos anteriormente, bem como se este compreende o direito de potenciar a operação de um negócio], ou se este resulta de uma operação de qualquer outra natureza [em resultado de uma ação normal ou ocasional, básica ou meramente acessória].

Em geral, os “pactos de não concorrência” apenas são implementados quando o antigo proprietário tem capacidade real para competir no mercado, de forma que não seja comprometida a função lucrativa associada ao negócio.

Em regra, tal ocorre nas seguintes circunstâncias: i) o negócio adquirido é baseado em serviços ou conhecimento, e não é intensivo em capital; ii) o antigo proprietário possui conhecimentos técnicos especiais (como informações sobre fórmulas ou processos secretos); iii) o antigo proprietário mantém relações de longa data com fornecedores e/ou produtores; e/ou iv) o antigo proprietário tem uma excelente reputação, resultando em muitos clientes fiéis.

Ora, nenhuma destas situações ocorrem no caso em questão: como resulta do dado como provado em l) e m), a C... nem sequer estava verdadeiramente presente no mercado, pois que a sua atividade consistiria apenas em adquirir pellets à D... (uma sociedade do mesmo grupo) e em as revender à F... ao abrigo de contratos de compra já firmados.

Assim sendo, nem tão pouco se verificam as características associadas à definição de um ativo intangível, enunciadas na secção V.2.2.A.

Como tal, entende-se que este “pacto de não concorrência”, no valor de €10.038.539,99 (câmbio de $12.500.000,00), tem, simplesmente, a natureza de um rendimento, que tendo fluido para a C... se encontra, natural e integralmente, sujeito a tributação em 2018.

De todo o modo, sempre se dirá que sempre escaparia ao poder de sindicância deste TAC a questão, suscitada pelas Requerentes, de a tributação deste montante, em nome do princípio da periodização do lucro, dever acontecer ao longo dos cinco anos de vigência da pretensa obrigação de não concorrência. A este tribunal cabe apreciar a legalidade das correções praticadas pela AT que deram origem às liquidações impugnadas e não outras possíveis formas de contabilização de réditos obtidos pelo sujeito passivo, que não aquela por ele adotada, pois cabia a este o auto-apuramento do lucro.

Mais, a alteração de uma autoliquidação implicaria, desde logo, uma reclamação necessária que, naturalmente, não teve lugar no caso em apreciação.

Em conclusão, o TAC entende ser de manter a correção efetuada pela AT no valor de €5.019.270,00.

E) O regime do reinvestimento dos valores de realização

Finalmente, importa ter presente o disposto no artigo 48.º do CIRC, vigente no período de tributação (2018), nas partes que poderão ser úteis para a situação em análise, e que é do seguinte teor:

Artigo 48.º

Reinvestimento dos valores de realização

1 – Para efeitos da determinação do lucro tributável, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias, calculadas nos termos dos artigos anteriores, realizadas mediante a transmissão onerosa de ativos fixos tangíveis, ativos intangíveis e ativos biológicos não consumíveis, detidos por um período não inferior a um ano, ainda que qualquer destes ativos tenha sido reclassificado como ativo não corrente detido para venda, ou em consequência de indemnizações por sinistros ocorridos nestes elementos, é considerada em metade do seu valor, quando: (Redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro. Conforme Declaração de Retificação n.º 18/2014, de 13 de março)

a) o valor de realização correspondente à totalidade dos referidos ativos seja reinvestido na aquisição, produção ou construção de ativos fixos tangíveis, de ativos intangíveis ou, de ativos biológicos não consumíveis, no período de tributação anterior ao da realização, no próprio período de tributação ou até ao fim do 2.º período de tributação seguinte; (Redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro. Conforme Declaração de Retificação n.º 18/2014, de 13 de março)

b) os bens em que seja reinvestido o valor de realização:(Redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro)

1) não sejam bens adquiridos em estado de uso a sujeito passivo de IRS ou IRC com o qual existam relações especiais nos termos definidos no n.º 4 do artigo 63.º; (Redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro)

2) sejam detidos por um período não inferior a um ano contado do final do período de tributação em que ocorra o reinvestimento ou, se posterior, a realização. (Redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro)

2 – No caso de se verificar apenas o reinvestimento parcial do valor de realização, o disposto no número anterior é aplicado à parte proporcional da diferença entre as mais-valias e as menos-valias a que o mesmo se refere.

3 – Não é suscetível de beneficiar do regime previsto nos números anteriores o investimento em que tiverem sido deduzidos os valores referidos nos artigos 40.º e 42.º.

4 – (Revogado) (Revogado pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro)

5 – Para efeitos do disposto nos n.os 1 e 2, os sujeitos passivos devem mencionar a intenção de efetuar o reinvestimento na declaração a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 117.º do período de tributação em que a realização ocorre, comprovando na mesma e nas declarações dos dois períodos de tributação seguintes os reinvestimentos efetuados. (Redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro)

(…)

Este TAC entende que:

  1. a C...], com   cessação do contrato “Master Biomass Purchase & Sale Agreement”,  realizou  a transmissão onerosa de um ativo intangível (em termos contabilísticos e fiscais) gerado internamente, dando, por esta razão, origem a uma mais-valia enquadrável no artigo 46.º do CIRC;
  2. foi devidamente invocada a aplicação do regime do reinvestimento da mais-valia apurada [tendo por isso, nos termos do artigo 48.º do Código do IRC, inscrito apenas 50% daquela mais-valia, no campo 740 do quadro 7 da sua Modelo 22 de IRC];
  3. ainda em 2018, a C... procedeu àquele reinvestimento, entre o mais, em nova caldeira de biomassa, nada tendo sido alegado quanto à verificação de factos integrantes das exceções previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 48º CIRC. 

IV.2.3. juros indemnizatórios

 

A Requerente pede ainda a condenação da AT no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributaria, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do ato tributário, há́, assim, lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributaria e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em valor a apurar em execução de sentença-

  1. DECISÃO

Pelo supra exposto, decide-se:

  1. Anular o parcialmente a liquidação impugnada (incluindo no relativo às derramas estadual e municipal e a juros compensatórios) na parte em que reflete a correção de €5.608.357,94 ao resultado tributável da C... relativa à cessão do contrato “Master Biomass Purchase & Sale Agreement” (correção no sentido de se considerar como rendimento tributável a totalidade do valor recebido a tal título).
  2. Julgar, no mais, improcedente o pedido (mantendo-se, por legal, a correção no relativo ao valor recebido a título de “pacto de não concorrência”).

Caberá à Requerida, em execução de sentença, apurar o montante do imposto indevidamente pago, a ser devolvido, bem como o valor dos juros indemnizatórios a que a Requerente tem direito.

VALOR DO PROCESSO

Fixa-se em € 3.302.045,71, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

  1. CUSTAS

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 42.228,00, a serem pagas pelas partes na proporção do respetivo decaimento, que foi de 47% para as Requerentes e 53% para a Requerida.

26 de fevereiro de 2024

 

 

Rui Duarte Morais

 

 

Ana Catarina Guerra Rodrigues Breia (relatora)

 

 

Ana Teixeira de Sousa

 

 

 



[1] A AT não questiona ou põe em causa verificação de qualquer uma das demais condições plasmadas no artigo 48.º do Código do IRC.

 

[2] Tomás Tavares – Da relação de dependência parcial entre a contabilidade e o direito fiscal na determinação do rendimento tributável das pessoas coletivas. Ciência Técnica Fiscal n.º 396, páginas 131-133 e 136.

[3] Estaremos neste caso perante um ato de transferência. Os ganhos resultantes desta afetação têm a particularidade de se considerarem obtidos apenas no momento da ulterior alienação onerosa dos bens em causa, ou da ocorrência de outro facto que determine o apuramento de resultados em condições análogas. Uma vez que a exigibilidade do imposto está subordinada ao «princípio da realização», só pode ocorrer com a posterior alienação onerosa do bem ou com a verificação de outro facto de efeito equivalente.

[5] Tal com o artigo 45.º-A do CIRC, em que a possibilidade de beneficiar do regime aí previsto de dedução, em 20 anos, do correspondente custo de aquisição é condicionada a “quando reconhecidos autonomamente, nos termos da normalização contabilística, nas contas individuais do sujeito passivo”.

[6] Obrigação de se abster de um comportamento do devedor.

[7] Obrigação de não fazer.

[8] Visto que a prestação não pode ser realizada por pessoa diferente daquele que possuí o dever de não concorrência, uma vez que tal está intimamente ligado às qualidades do alienante.

[9] De acordo com a doutrina e jurisprudência, existem vários e diversos fundamentos que suportam e servem de base a esta obrigação. Desde logo, a obrigação de garantia existente nos contratos de compra e venda (o dever de o alienante entregar a coisa alienada e assegurar o gozo pacífico dela), a boa-fé no cumprimento dos contratos,

a concorrência leal devida no comércio, o princípio da equidade, os usos do comércio e a garantia contra a evicção, isto porque, similarmente ao que se passa na maior parte dos ordenamentos estrangeiros, não existe regulamentação específica que sustente a obrigação de não concorrência.