Sumário:
I - A qualificação dada ao procedimento de inspeção pela Autoridade Tributária não é vinculativa, devendo apurar-se, em função dos concretos atos praticados e independentemente do local em que ocorra a análise, se se trata de uma inspeção externa ou interna.
II – A qualificação de uma inspeção tributária como externa, quando tenha sido conduzida como se de inspeção interna se tratasse, apenas será geradora de nulidade dos atos subsequentes em caso de preterição de formalidades essenciais, estando ao invés em causa uma mera irregularidade, sanada, quando seja evidente a oportunidade dada ao sujeito passivo para se pronunciar no decurso do procedimento e para exercer o direito de audição prévia à emissão do relatório final de inspeção.
III – Resulta do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea j), e n.º 2, do Código do IVA, interpretado à luz do Ofício-Circulado n.º 301015, de 24-05-2007, que no caso de prestação de serviços de construção civil a entidades públicas (e, portanto, subjetivamente isentas de IVA nas atividades que prossigam ao abrigo do jus imperii), será de aplicar a regra de inversão de sujeito passivo e auto-liquidação de IVA quando as empreitadas de construção em causa incidam, simultaneamente, sobre atividades de tais entidades que sejam isentas e atividades não isentas de IVA, como sucede, respetivamente, com as atividades conexas com saneamento e com abastecimento de água para consumo humano.
IV – O direito à dedução de IVA depende de estarem indicados e comprovados os elementos estabelecidos no artigo 36.º, n.º 5 do Código do IVA como requisitos formais das faturas, sejam na própria fatura ou através de outros meios. Contendo a descrição da fatura, apenas, a menção a “prestação de serviços”, na ausência de comprovação, sequer indiciária, da veracidade da operação que alegadamente deu origem a tal fatura e que conferiria o direito à dedução, bem como de qualquer outro dos elementos exigidos pelo artigo 36.º, n.º 5, do Código do IVA mesmo que por qualquer outro meio, deve considerar-se o IVA incluído em tal fatura como não dedutível ao abrigo da norma que resulta das disposições conjugadas dos artigos 19.º e 20.º do Código do IVA.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Victor Calvete (Árbitro Presidente), Clotilde Celorico Palma e João Taborda da Gama (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 3 de fevereiro de 2023, acordam no seguinte:
RELATÓRIO
A..., LDA., titular do NIPC..., com o capital social 50.000,00€ e sede na..., n.º ..., ..., ...–... ... (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, alínea e), ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral coletivo, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) relativos ao exercício de 2018, com o seguinte detalhe: liquidação n.º ... (IRC), IVA de janeiro titulado pela liquidação n.º ..., IVA de fevereiro titulado pela liquidação n.º ..., IVA de março titulado pela liquidação n.º ..., IVA de abril titulado pela liquidação n.º ..., IVA de maio titulado pela liquidação n.º..., IVA de junho titulado pela liquidação n.º ..., IVA de agosto titulado pela liquidação n.º..., IVA de setembro titulado pela liquidação n.º..., IVA de outubro titulado pela liquidação n.º ... e IVA de dezembro titulado pela liquidação n.º ..., das quais resulta um valor total a pagar de € 73.622,18, sendo € 37.295,39 a título de IRC e € 36.326,79 a título de IVA.
De acordo com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a) e 6.º, n.º 3, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 3 de fevereiro de 2022, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua Resposta em 8 de março de 2023, tendo deduzido exceção dilatória de cumulação ilegal de pedidos conducente à absolvição da instância, em síntese por entender que, dada a redação do artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, não ser permitida a cumulação de pedidos quando não sejam idênticos os fundamentos de direito subjacentes aos pedidos de anulação, além de ter pugnado, subsidiariamente pela integral improcedência dos pedidos.
Notificada a Requerente para se pronunciar quanto à mencionada exceção, entendeu esta que a mesma não merecia acolhimento.
Por despacho de 2 de maio de 2023, determinou este tribunal que, dados os diminutos pontos de contacto dos fundamentos de facto e de direito que basearam a impugnação das liquidações de IRC e de IVA tal como configuradas pela Requerente, não era admissível a cumulação de pedidos ao abrigo do n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, tendo notificado a Requerente para selecionar se pretendia fazer seguir a presente ação quanto à liquidação de IRC ou quanto às de IVA, uma vez que decidiu o tribunal que se mantinha a sua competência enquanto tribunal coletivo mesmo considerando a inerente diminuição do valor da causa.
Por requerimento de 11 de maio de 2023, veio a Requerente optar pelo pedido relativo à anulação das liquidações de IVA, reiterando ainda o pedido para que fossem notificados os Serviços B...) de Sintra, Almada e Caldas da Rainha no sentido de enviar ao CAAD documentos para prova de factos alegados, notificação essa realizada pelo CAAD.
Após sucessivos adiamentos por razões várias – essencialmente ligadas à disponibilização dos mencionados documentos e disponibilidade de agenda das partes – foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT no dia 24 de novembro de 2023, tendo sido inquiridas as testemunhas apresentadas pela Requerente e, a final e por acordo, dispensadas as partes de apresentar alegações.
Quanto ao remanescente do pedido, a Requerente alega, em síntese, que:
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A inspeção tributária a que foi sujeita configurou-se, materialmente, como uma inspeção tributária externa, sem que tivesse sido formalmente notificada de qualquer ordem de serviço, o que geraria nulidade de todo o procedimento subsequente (nos termos dos artigos 49.º n.º 1, 50.º n.º 2 e 51.º n.º 1 do RCPIT e dos artigos 59.º e 69.º n.º 2 da LGT) e, designadamente, das liquidações em crise;
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Ao liquidar adicionalmente IVA à Requerente atinente a diversas empreitadas realizadas a favor dos B... de Sintra, Almada e Caldas da Rainha incorreu a AT em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, uma vez que, tratando-se de operações mistas (i.e. com uma componente sujeita a IVA e outra não sujeita) porquanto as referidas empreitadas terão incluído trabalhos relativos a sistema de saneamento (atividade do dono da obra não sujeita a IVA) mas também relativos a águas para consumo humano (sendo a prestação de serviços conexos sujeita a IVA), é aplicável a regra de inversão do sujeito passivo, pelo que bem andou a Requerente ao não liquidar IVA nas faturas, sendo, ao invés, tal IVA auto-liquidado e entregue ao Estado pelos adquirentes dos serviços, i.e. os referidos B...; e,
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Quanto ao IVA considerado como não dedutível, no valor de € 2.760, incluído numa fatura emitida pela sociedade C... Lda. em 31.12.2018, com o descritivo “Prestação de Serviços”, tal prestação de serviços consubstanciou-se na realização de um evento promocional da empresa, inserindo-se no curso normal da atividade desta, pelo que deve tal valor ser considerado dedutível, encontrando-se por isso a liquidação de IVA relativa ao mês de dezembro de 2018 parcialmente inquinada de vício de violação de lei.
Já a Requerida opõe-se a tal entendimento porquanto entende que:
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O procedimento inspetivo levado a cabo foi, efetivamente, um procedimento de carácter exclusivamente interno, não sendo por isso exigível a notificação de qualquer ordem de serviço e não estando o procedimento ferido de nulidade;
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As empreitadas levadas a cabo pela Requerente sob a égide daqueles diversos B... referiam-se apenas ao exercício de atividades não sujeitas a IVA, pelo que não cabia qualquer inversão de sujeito passivo, devendo ter sido a Requerente a liquidar e cobrar IVA, sendo irrelevante que os adquirentes de tais serviços tenham efetivamente entregue o imposto ao Estado; e,
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Quanto ao IVA não dedutível relativo à mencionada fatura emitida à Requerente pela sociedade C... Lda., em 31.12.2018, inexiste substrato factual e contabilístico de suporte à mesma, não cumprindo a fatura em causa com os requisitos impostos pelo n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, razão pela qual deve manter-se a correção impugnada.
MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
A Requerente é uma sociedade que presta serviços de construção civil, tendo alvará para execução de obras públicas – facto não impugnado, comprovado pelo doc. n.º 15 junto ao Pedido Arbitral e confirmado pela primeira testemunha.
Em 24 de fevereiro de 2016 a ora Requerente celebrou, com os B... de Sintra, o contrato de empreitada de obras públicas de “Construção da estação Elevatória de Águas residuais e da rede de água residuais domésticas na Rua ..., em Cacém” – facto não impugnado e comprovado pelo Doc. n.º 21 junto ao Pedido Arbitral.
Ao abrigo desse contrato, a Requerente prestou aos B... de Sintra serviços de construção civil, que respeitam simultaneamente à atividade relacionada com o abastecimento de água para consumo humano e com atividade de saneamento do B... - facto não impugnado pela Requerida e considerado provado pelo teor do depoimento das primeira e terceira testemunhas.
Relativamente a tal contrato, foi emitidas pela Requerente ao Dono da Obra (B... Sintra), no ano de 2018, a fatura n.º 118/18, a qual contem a menção a “IVA Auto-liquidação”- facto não impugnado e comprovado pelo documento n.º 22 junto ao Pedido Arbitral.
Os B... de Sintra liquidaram o IVA relativo à menciona fatura, tendo-o entregue ao Estado – facto comprovado através de documentos enviados a este tribunal pelo B... de Sintra e recebidos em 24 de maio de 2023, após notificação para o efeito, bem como pelo depoimento da terceira testemunha.
A Requerente celebrou, em 14 de novembro de 2016, com os B... de Almada, um contrato de empreitada de obras públicas denominado “Redes de Saneamento 2016” – facto não impugnado e provado pelos documentos 16 e 17 juntos ao Pedido Arbitral.
Ao abrigo desse contrato, a Requerente prestou ao B... de Almada serviços de construção civil, que respeitam simultaneamente à atividade relacionada com o abastecimento de água para consumo humano e com atividade de saneamento do B...- facto provado pelos documentos 16 e 17 juntos ao Pedido Arbitral.
Relativamente a tal contrato, foram emitidas pela Requerente ao Dono da Obra (B... Almada), no ano de 2018, as faturas n.os 118/58, 118/163 e 118/210, as quais contêm a menção a “IVA Auto-liquidação”- facto não impugnado e comprovado pelos documentos 18 a 20 juntos ao Pedido Arbitral.
Os B... de Almada liquidaram o IVA relativo às mencionas faturas, tendo-o entregue ao Estado – facto comprovado através de documentos enviados a este tribunal pelo B... de Almada e recebidos em 31 de maio de 2023, após notificação para o efeito.
A Requerente celebrou, em 9 de junho de 2017, com os B... das Caldas da Rainha, um contrato de empreitada de obras públicas denominado “Rede de Saneamento em ..., I Fase” – facto não impugnado e provado pelos documentos n.os 23 e 24 juntos ao Pedido Arbitral.
Ao abrigo desse contrato, a Requerente prestou aos B... das Caldas da Rainha serviços de construção civil, que respeitam simultaneamente à atividade relacionada com o abastecimento de água para consumo humano (designadamente para abastecimento das estações elevatórias) e com atividade de saneamento do B... - facto provado pelos documentos n.os 23 e 24 juntos ao Pedido Arbitral, bem como pelo depoimento das primeira, segunda e quarta testemunhas.
Relativamente a tal contrato, foram emitidas pela Requerente ao Dono da Obra (B... Caldas da Rainha ), no ano de 2018, as faturas n.os 118/2, 118/9, 118/50, 118/75, 118/76, 118/92, 118/113, 118/114, 118/136, 118/157, 118/158, 118/178 e 118/208, as quais contêm a menção a “IVA Auto-liquidação”- facto não impugnado e comprovado pelos documentos 25 a 37 juntos ao Pedido Arbitral.
Os B... das Caldas da Rainha liquidaram o IVA relativo às mencionas faturas, tendo-o entregue ao Estado – facto comprovado através dos documentos n.os 38 a 40 juntos ao Pedido Arbitral e dos documentos recebidos por este tribunal do B... das Caldas da Rainha em 23 de junho de 2023, após notificação para o efeito, bem como pelo depoimento da quarta testemunha.
A sociedade C..., Lda. emitiu à Requerente, com data de 31 de dezembro de 2018, uma fatura no valor de € 12.000, acrescida de IVA à taxa de 23%, no valor de € 2.760, com o descritivo “Prestação de Serviços” – facto não impugnado e decorrente dos documentos incluídos no Processo Administrativo (anexo III).
A Requerente foi objeto de uma inspeção tributária ao exercício de 2018, de âmbito parcial (IRC e IVA) levada a cabo pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Leiria (“SIT”), ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2021..., emitida em 2 de março de 2021 – facto não impugnado e decorrente dos documentos incluídos no Processo Administrativo.
Tendo sido notificada do Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) em 4 de agosto de 2022 – facto admitido por acordo.
Os SIT, durante o período de inspeção, não se deslocaram às instalações da Requerente – facto admitido por acordo.
No decurso da inspeção, a Requerente foi notificada pela Requerida para enviar aos SIT diversos documentos para análise, o que fez – facto alegado no Pedido Arbitral e comprovado pelo Processo Administrativo.
O Projeto de Relatório de inspeção foi enviado à Requerente em 27 de junho de 2022 – facto constante do Processo Administrativo.
Com o envio do Projeto de Relatório, a Requerente foi notificada para exercer o direito à audição prévia à emissão do Relatório final de inspeção, não o tendo exercido – facto referido no Pedido Arbitral e na Resposta e comprovado no Processo Administrativo.
A Requerente enviou documentos à Requerida já após a referida notificação, em 25 de julho de 2022.
A.2. Factos dados como não provados
Não se deu como provado:
Que a despesa referida na fatura emitida pela sociedade C... Lda., com data de 31.12.2018 ,“decorreu essencial ao desenvolvimento da atividade da Requerente”;
Que se tratou de um evento promocional realizado nas instalações da Requerente com a receção de clientes e fornecedores, para 200 pessoas a um preço unitário de €60,00, no total de € 12.000,00.
Que a C... Lda. tenha prestado à Requerente o serviço de fornecimento de bens, designadamente catering, no contexto de um evento, no qual tenha sido servida a ementa junta ao Pedido Arbitral como documento n.º 14.
Não existem outros factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
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Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
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Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e testemunhal e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
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Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
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Quanto aos factos expressamente dados como “Não provados”, trata-se de factos alegados pela Requerente sem que tenha sido produzida prova, ainda que indiciária, dos mesmos. Com efeito, o documento n.º 14 junto ao Pedido Arbitral (que consiste numa ementa com definição de valor a pagar por pessoa) não tem quaisquer menções externas que comprovem a sua proveniência (não é sequer impresso em papel timbrado da C... Lda.), não é datado nem refere um local ou data de prestação dos serviços que possa complementar a informação constante da fatura incluída como anexo III ao Relatório de Inspeção constante do Processo Administrativo instrutor e que apenas menciona “Prestação de Serviços”, sem qualquer outra especificação. Por essa razão, com exceção do atinente à própria emissão e conteúdo da mencionada fatura, todos os factos alegados pela Requerente relativamente a esta prestação de serviços têm de dar-se por não provados, com as consequências jurídicas que adiante se definirão.
DO DIREITO
a.Questão prévia: da admissibilidade da cumulação de pedidos e da competência do tribunal coletivo
Como se viu acima nos parágrafos 4a 7do Relatório, o pedido arbitral inicialmente configurado pela Requerente assentava na cumulação de pedidos de declaração de ilegalidade de liquidações de IRC e de IVA, o que, tendo sido suscitado pela Requerida como exceção de cumulação ilegal, motivou que neste Tribunal se tenham discutido dois temas: por um lado, levantou-se a questão de saber se a cumulação efetuada pela Requerente respeitava os parâmetros legais que devem enquadrar a cumulação de pedidos; e, por outro se, sendo a cumulação declarada inadmissível e tendo sido solicitado à Requerente que selecionasse um dos pedidos principais para fazer prosseguir a ação (sendo certo que nenhum dos dois pedidos, isoladamente, teria valor suficiente para ser julgado por tribunal coletivo) devia ou não este tribunal julgar a causa, na medida em que de uma interpretação estrita da lei poderia resultar ser este tribunal incompetente pelo facto de o valor da causa dever determinar, em abstrato, julgamento por tribunal singular.
Vejamos:
Quanto à admissibilidade da cumulação de pedidos:
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Resulta do artigo 3.º, n.º 1 do RJAT que “[a] cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito” (destaques do Tribunal), norma que não sofreu qualquer alteração desde a aprovação deste diploma.
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No caso dos autos, a Requerente fundava o pedido de anulação das liquidações de IRC e IVA (i) em vícios do procedimento inspetivo (e caso esse fosse o único fundamento a exceção de ilegal cumulação seria claramente improcedente em face da letra do citado artigo 3.º, n.º 1 do RJAT) mas também (ii) em erros sobre os pressupostos de facto e de direito que imputava às mencionas liquidações, que não eram coincidentes entre si; aliás, como resulta do relatório de inspeção inserido no processo administrativo instrutor, tirando o caso de uma diminuta correção em sede de IVA, os factos que deram origem às correções efetuadas pela AT em sede de IRC e de IVA são totalmente díspares, não se verificando sequer aquela circunstância corrente na prática de um determinado custo não ser fiscalmente aceite para efeitos de IRC, numa parte, e de IVA, noutra.
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E, portanto, afigura-se a este Tribunal que a procedência daqueles pedidos de anulação de liquidações de IRC e de IVA não dependia da apreciação das mesmas circunstâncias de facto (como sucederia caso a questão fosse a de dedutibilidade dos mesmos gastos para efeitos de IRC e de IVA, que desse origem a liquidações adicionais de ambos os impostos), pelo que, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, a cumulação era realmente inadmissível.
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Não olvida este Tribunal que alguma doutrina e jurisprudência arbitral defendem que, sobretudo desde a alteração ao artigo 104.º do CPPT resultante da Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro (do qual passou a constar que na impugnação judicial é admitida a cumulação de pedidos, ainda que relativos a diferentes atos desde que, cumulativamente “a) aos pedidos corresponda a mesma forma processual; e b) A sua apreciação tenha por base as mesmas circunstâncias de facto OU O mesmo relatório de inspeção tributária, OU sejam suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo”, deve ser feita uma interpretação atualista daquele artigo 3.º, n.º 1 do RJAT.
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Com efeito, as referidas alterações ao artigo 104.º do CPPT ocorridas em 2019 tornam, na letra da lei, a possibilidade de cumulação de pedidos mais ampla no processo de impugnação judicial face ao arbitral, o que poderia induzir o intérprete no sentido da mencionada interpretação atualista.
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Sucede, contudo, que a mesma Lei .º 118/2019, de 17 de setembro, também alterou normas do RJAT (concretamente os seus artigos 16.º, 17.º e 27.º), mantendo intocado o artigo 3.º.
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E, mais tarde, tanto a Lei 119/2019, de 18 de setembro, como a Lei 7/2021,de 26 de fevereiro, alteraram quer o RJAT quer o CPPT, deixando o artigo 3.º do RJAT nos mesmos exatos termos.
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Ou seja, o legislador teve múltiplas oportunidades para uniformizar os requisitos de cumulação de pedidos patentes no RJAT e no CPPT, sem que o tenha feito.
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Razão pela qual, fazendo boa aplicação dos cânones constantes dos n.os 2 e 3 do artigo 9.º do Código Civil, de acordo com os quais “2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, se afigura a este Tribunal que, em sede arbitral, ainda que as liquidações adicionais impugnadas resultem do mesmo relatório de inspeção, exige-se um certo grau de identidade fáctica/das circunstâncias de facto – o que é dizer, da causa de pedir.[1]
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Tal identidade fáctica não se verifica no caso dos autos, pelo que se decidiu neste Tribunal, em maioria, julgar procedente a invocada exceção de ilegal cumulação de pedidos e, em consequência, solicitar à Requerente que selecionasse um dos pedidos (i.e., de anulação da liquidação de IRC ou das liquidações de IVA) para ser julgado na presente ação.
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Tendo a Requerente optado por prosseguir com o pedido relativo à anulação das liquidações de IVA, no valor de € 36.326,79, passou a colocar-se a questão de saber se este Tribunal, constituído como coletivo, mantinha competência para julgar a causa.
Quanto à competência deste Tribunal, coletivo, para julgar a causa após a redução do valor em discussão:
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Quanto à competência deste tribunal coletivo, uma vez que a exigência do mesmo serve para conferir mais garantias às Partes (e por oposição ao que sucederia caso, tendo-se constituído tribunal singular, se viesse a determinar um valor superior para a causa que excedesse a respetiva alçada), e que deve a arbitragem reger-se por um princípio de economia processual, é entendimento deste Tribunal que tal competência se mantém.
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Com efeito, desde logo, não é estranha ao RJAT a possibilidade de um processo com valor inferior a duas vezes o montante da alçada do Tribunal Central Administrativo (i.e € 60.000) ser julgado por tribunal coletivo: basta, para tanto, que o requerente opte por designar árbitro, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) (a contrario), do RJAT, caso em que o processo passará por determinação legal a ser julgado por tribunal coletivo.
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Por outro lado, e em sentido totalmente coincidente com o que aqui se entende ser o correto, explica Carla Castelo Trindade na obra já referida, a páginas 278, que “[n]os casos de redução do objecto do processo por força de (a) desistência de parte do pedido ou desistência de um dos pedidos em cumulação por parte do sujeito passivo; ou de (b) revogação de parte do acto ou de um dos actos cuja legalidade se discute por parte da Administração Tributária, a solução passa pela aplicação subsidiária dos critérios de fixação do valor da causa constantes do CPC. Com efeito, não há dúvida de que os artigos 296.° e seguintes do CPC poderão, em determinados casos, complementar aquela disposição, a título de direito subsidiariamente aplicável.
Ora, nos termos do artigo 299.°, n.º 1, do CPC, «[n]a determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta (...)». Deste modo, ainda que de uma eventual redução do objecto do processo pudesse resultar, em teoria, uma incompetência a posteriori do tribunal arbitral colectivo, sendo então competente um tribunal singular, na medida em que o momento atendível para determinação do valor da causa é o momento em que o pedido de constituição do tribunal arbitral é entregue, a alteração para menos do valor da utilidade económica do pedido é irrelevante. À mesma conclusão se chegaria por aplicação da máxima a maiori, ad minus. Tudo porque, em bom rigor, a exigência do tribunal colectivo nos processos em que o valor da causa ultrapasse os € 60.000,00 legalmente impostos, prende-se com razões de segurança jurídica e de atribuir mais confiança às decisões em que o valor é mais elevado e, por conseguinte, está inerente um maior risco” (cit., sublinhados deste Tribunal).
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Assim, pelas razões aduzidas, entendeu este Tribunal ser competente para o julgamento da causa, não obstante a redução do valor efetivamente em discussão.
b.Temas a decidir:
Aqui chegados, e bem definido o objeto atual do processo, são essencialmente três os temas que cumpre a este tribunal abordar e decidir:
A inspeção conduzida pelos SIT à Requerente configura-se, à luz da lei atual, como uma inspeção tributária de carácter interno ou, por força dos atos materiais de inspeção concretamente executados pelos SIT, deve a mesma ser considerada como uma inspeção de carácter externo? E, caso se entenda que a mesma deve, materialmente, considerar-se como inspeção externa, que consequências tem essa alteração de qualificação na validade ou eficácia dos atos de liquidação ora impugnados?
Ultrapassada a eventual ilegalidade da inspeção, as liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos entre janeiro e outubro de 2018 que são aqui impugnadas devem ser anuladas por vício de violação de lei, por dever entender-se que andou bem a Requerente ao aplicar o método auto-liquidação e de inversão do sujeito passivo na faturação das empreitadas realizadas a favor dos B... de Sintra, Almada e Caldas da Rainha em causa nos autos, por se tratar de obras de natureza mista, ou seja, relativas a atividades que conferem e que não conferem direito à dedução (por serem isentas de IVA), ou pelo contrário, cumpriu a Requerida a lei ao liquidar adicionalmente IVA, na medida em que as obras executadas apenas se inserem no âmbito de atividades isentas de IVA?
A liquidação adicional de IVA relativa ao período de dezembro de 2018 deve ser anulada, na medida em que incorpora a não aceitação do IVA deduzido por força da fatura da C..., Lda. emitida à Requerente em 31.12.2018?
Vejamos:
c.Da natureza da inspeção tributária a que foi sujeita a Requerente e consequências dessa qualificação nos atos impugnados
O artigo 13.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”) dispõe (em redação que já era aplicável à data dos factos aqui em causa) o seguinte:
“13.º
Lugar do procedimento de inspeção
Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em:
a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento;
b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”
A qualificação de uma inspeção tributária como interna ou externa não tem efeitos apenas teórico-classificativos, mostrando-se, ao invés, fundamental no que se refere à definição dos direitos e garantias dos contribuintes e ao grau de formalismo inerente a um e outro tipo de inspeções, com reflexos nos atos tributários emitidos em consequência do procedimento inspetivo.
De facto, a necessidade de assegurar formalismos mais estritos no caso de inspeções externas entronca na circunstância de as mesmas serem, entre outros fatores, mais intrusivas e tendencialmente poderem afetar, na prática, a própria atividade da empresa pela presença física de inspetores e necessidade de alocar recursos humanos ao acompanhamento presencial da inspeção e também, com ainda maior relevância, serem aptas a suspender o curso do prazo de caducidade do direito à liquidação de imposto, alargando o período em que o Estado pode exigir dos contribuintes o cumprimento de obrigações tributárias (v. artigo 46.º, n.º 1, da LGT) – neste sentido cfr. Nuno De Oliveira Garcia e Rita Carvalho Nunes, «Inspecção Tributária Externa e a Relevância dos Actos Materiais de Inspecção», in Revista de Finanças Públicas e de Direito Fiscal, Ano IV (2011), n.º 1, p. 251.
E nessa medida, como apontam os citados autores mas também Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira, no seu Regime Complementar Do Procedimento De Inspecção Tributária (RCPIT) Anotado e Comentado, Almedina, (Coimbra:2021), 2.ª Ed., pp. 99-100, a qualificação dada ao procedimento de inspeção pela Autoridade Tributária não é vinculativa, devendo apurar-se, em função dos concretos atos praticados e independentemente do local em que ocorra a análise se se trata de uma inspeção externa ou interna.
Como bem salienta a Requerente, no caso concreto, o dimensão e detalhe do acervo documental da Requente a que os SIT tiveram acesso por força das notificações efetuadas ao abrigo dos artigos 59.º n.º 4 e 63.º da LGT e 10.º e 28.º a 30.º do RCPIT e constantes das pp. 3 a 21 do Processo Administrativo excedem a mera “análise formal e de coerência dos documentos […] detidos [pela AT] ou obtidos no âmbito do referido procedimento”, referida na alínea a) do artigo 13.º do RCPIT, como bem se vê, em particular, pelos documentos contabilísticos e de suporte que foram solicitados à Requerente pelos SIT.
Tenham tais documentos sido analisados nas instalações da Requerente ou dos SIT, afigura-se a este tribunal que o tipo de análise – valores e detalhes de vendas, confirmação da conformidade de documentos de pagamentos, análise de apólices de seguros, cópias de contratos e orçamentos, entre muitos outros, que numa era tecnologicamente menos avançada teriam provavelmente implicado a presença dos SIT nas instalações da empresa Requerente – constitui, materialmente, um exercício inspetivo de carácter externo, sujeito ao regime da alínea b) do artigo 13.º do RCPITA.
O que é dizer que à Requerente assiste razão no que respeita à qualificação da inspeção como externa.
Contudo, tal qualificação não produz os pretendidos efeitos de nulidade das liquidações aqui em causa por falta de notificação do início do procedimento inspetivo.
Tal falta é geradora de mera irregularidade (e não de nulidade), sanada na medida em que foi evidente a oportunidade dada à Requerente para se pronunciar no decurso do procedimento e para exercer o direito de audição prévia à emissão do relatório final de inspeção, como se deu por provado ter sucedido – neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) proferido no âmbito do processo n.º 01095/15, em 29 de junho de 2016, no qual impressivamente se refere que “a falta da notificação prévia prevista no art. 49.º do RCPIT não gera a anulabilidade da decisão do procedimento, degradando-se tal formalidade em mera irregularidade, sem efeitos invalidantes, se ao interessado foi dado conhecimento do procedimento e do seu objecto a tempo de nele participar e se lhe foi dada a possibilidade legal de exercer o seu direito de audição durante o procedimento inspectivo”.
Pelo que improcede o pedido de declaração de nulidade das liquidações impugnadas com fundamento em violação dos artigos 49.º, 50.ºe 51.º do RCPIT e dos artigos 59.º e 69.º da LGT, entendendo-se como sanada a irregularidade assacável ao procedimento inspetivo em causa nos autos.
d.Da validade ou invalidade das liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos de janeiro a outubro de 2018 em causa nos autos, à luz do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea j), e n.º 2, do Código do IVA
Nesta matéria afigura-se que a Lei (v.g. artigo 2.º, n.º 1, alínea j), e n.º 2, do Código do IVA) e a doutrina administrativa aplicáveis (mormente a Informação Vinculativa n.º 116654, com despacho de 2017-07 26, da Diretora de Serviços do IVA e o parágrafo 1.6.4 do Ofício-Circulado N.º 301015, de 24-05-2007) são claras:
Provando-se que se trata de trabalhos de construção civil (como no caso dos autos nunca foi objeto de disputa) prestados a serviços municipalizados (o que também não é disputado que tenha sucedido), o regime de inversão de sujeito passivo e inerente auto-liquidação de imposto pelo dono da obra/serviços municipalizados aplicar-se-á se “se tratar de aquisições de serviços de construção que concorrem, simultaneamente, para atividades sujeitas a imposto e que conferem o direito à dedução e atividades não sujeitas a imposto” (cit., Ofício-circulado n.º 301015, de 24-05-2007).
Ora ficou provado nos autos, tanto por via documental como testemunhal, que independentemente da designação atribuída aos contratos de empreitada celebrados entre a Requerente e os B... de Sintra, Almada e Caldas da Rainha, os trabalhos incidiram, simultaneamente:
sobre as atividades dos três B... conexas com operações de saneamento, com a construção de condutas, melhoria da rede de esgotos, construção de estações elevatórias, etc., (atividade enquadrável na exclusão de tributação prevista no artigo 2.º, n.º 2 do Código do IVA, por se tratar operação realizada “no exercício dos […] poderes de autoridade” da entidade pública) e,
sobre a atividade conexa com o abastecimento de água para consumo humano, designadamente para abastecimento das estações elevatórias construídas - atividade que é sujeita e não isenta de IVA.
Constituindo, portanto, tais empreitadas, verdadeiras operações mistas.
Subsumindo tais factos ao direito aplicável, outra conclusão não pode retirar-se senão a de que bem andou a Requerente, prestadora dos serviços de construção civil, ao emitir as faturas ao abrigo do regime de inversão do sujeito passivo previsto na alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, com indicação de IVA-Autoliquidação,
E tendo, em consequência, os Donos da Obra (B... de Sintra, Almada e Caldas da Rainha) relativamente a cada uma dessas faturas autoliquidado o IVA devido e entregue o mesmo ao Estado, como também resultou provado que sucedeu.
Como corolário, as liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos correspondentes aos meses de janeiro a outubro de 2018 impugnadas nos presentes autos, que incorporam a decisão da Requerida nos termos da qual deveria ter sido a Requerente (e não os Donos da Obra) a liquidar e entregar tal IVA ao Estado), são por este tribunal julgadas ilegais, por assentarem em erro nos pressupostos de facto (desconsideração dos concretos atos executados com base nos contratos de empreitada) e de direito (desaplicação do artigo 2.º, n.º 1, alínea j) do Código do IVA ao arrepio até da própria doutrina administrativa que cumpria à Requerida respeitar).
Razão pela qual, em conformidade, se anulam as mencionadas liquidações, nos termos requeridos no Pedido Arbitral.
e.Liquidação adicional de IVA relativa ao período de dezembro de 2018 - IVA deduzido indevidamente relativamente à fatura da C..., Lda. emitida à Requerente em 31.12.2018
Como se viu acima no elenco de factos provados e não provados, tendo sido colocada em dúvida séria pela Requerida, durante o procedimento inspetivo, a efetiva realização (e detalhes como data e local) do alegado evento promocional organizado pela Requerente a que se referiria a fatura incluída como Anexo III no Relatório de Inspeção constante do Processo Administrativo (i.e., fatura emitida pela sociedade C..., Lda., com data de 31 de dezembro de 2018, no valor de € 12.000, acrescida de IVA à taxa de 23%, no valor de € 2.760), não logrou a Requerente produzir qualquer prova, sequer indiciária, da realização de tal evento.
Como bem referiu a Requerida na sua Resposta, a alínea a), do n.º 2, do artigo 19.º, do Código do IVA, estabelece que “só confere direito à dedução o imposto contido em faturas passadas na forma legal”.
O n.º 6 do mesmo artigo 19.º impõe que “[p]ara efeitos do exercício do direito à dedução, consideram-se passadas na forma legal as faturas que contenham os elementos previstos nos artigos 36.º ou 40.º, consoante os casos”, norma que cuja interpretação apenas fica completa com o conteúdo do n.º 5 do artigo 36.º do mesmo diploma, no qual, para o que aqui releva, se determina que: “5 - As faturas devem ser datadas, numeradas sequencialmente e conter os seguintes elementos: a) Os nomes, firmas ou denominações sociais e a sede ou domicílio do fornecedor de bens ou prestador de serviços e do destinatário ou adquirente, bem como os correspondentes números de identificação fiscal dos sujeitos passivos de imposto; b) A quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável;[…]; f) A data em que os bens foram colocados à disposição do adquirente, em que os serviços foram realizados ou em que foram efetuados pagamentos anteriores à realização das operações, se essa data não coincidir com a da emissão da factura” (sublinhados dos signatários).
Por fim, a título de enquadramento, refira-se ainda a norma constante da alínea a), do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA, nos termos da qual “[s]ó pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações” de “[t]ransmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas”.
Ora, a fatura a que nos vimos referindo apenas contém a indicação “Prestação de Serviços”, sem qualquer especificação e, instada a fornecer informações adicionais e documentação de suporte, a Requerente bastou-se com a mera alegação de realização de um evento (sem dizer em que data ou local), com contornos combinados por e-mail que nunca juntou, e no qual teria sido servida uma ementa que consta de um documento sem qualquer indicação de proveniência externa, designadamente da sociedade C..., Lda., emitente da fatura.
Este tribunal entenda, na senda da legislação e jurisprudência europeia [v.g., artigo 226.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 e, exemplificativamente, acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferido em 15/09/2016, relativamente ao processo C-516/14 (Barlis 06 - Investimentos Imobiliários e Turísticos. S.A. vs Autoridade Tributária e Aduaneira)], que a dedução de IVA é um elemento essencial e estrutural no sistema deste imposto e que os formalismos legalmente exigidos para as faturas não devem impedir excessivamente tal dedução quando seja possível comprovar, por meios acessórios, a veracidade das operações bem como os elementos que deveriam constar das faturas (como se decidiu no Processo Arbitral n.º 3/2014-T, em 06 de dezembro 2016, que havia dado origem ao mencionado acórdão do TJUE).
Contudo, no caso dos autos e relativamente à fatura concretamente em causa cujo IVA foi considerado como não dedutível pela Requerida, há que reconhecer que não só a fatura não cumpre com os mínimos requisitos exigidos pelo artigo 36.º n.º 5 do Código do IVA como a Requerente não logrou, por qualquer outro meio, comprovar tais requisitos (designadamente a extensão e natureza dos serviços prestados, bem como o local e data de realização) e mesmo a própria existência dos serviços titulados pela fatura emitida pela C..., Lda. à Requerente em 31 de dezembro de 2018.
Razão pela qual bem andou a Requerida, em obediência à norma que resulta das disposições conjugadas do artigo 19.º, n.º 2 e n.º 6, 36.º, n.º 5 e 20.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA, ao desconsiderar o IVA deduzido pela Requerente por força de tal fatura e, consequentemente, ao liquidar adicionalmente IVA no montante de € 2.760 não aceite, acrescido de juros compensatórios, através da liquidação relativa ao período de dezembro de 2018 aqui impugnada e que, em consequência, entende este tribunal ser de manter na ordem jurídica, improcedendo nesta parte o pedido arbitral.
DA DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido arbitral e, concretamente:
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Absolver a Requerida da instância quanto ao pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IRC impugnada, por ter sido julgada procedente a exceção de ilegal cumulação de pedidos;
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Julgar procedente o pedido arbitral na parte em que requer a anulação das liquidações adicionais de IVA impugnadas e relativas aos seguintes períodos do exercício de 2018: IVA de janeiro titulado pela liquidação n.º ..., IVA de fevereiro titulado pela liquidação n.º ..., IVA de março titulado pela liquidação n.º ..., IVA de abril titulado pela liquidação n.º ..., IVA de maio titulado pela liquidação n.º..., IVA de junho titulado pela liquidação n.º ..., IVA de agosto titulado pela liquidação n.º ..., IVA de setembro titulado pela liquidação n.º ... e IVA de outubro titulado pela liquidação n.º ..., liquidações essas anuladas por este tribunal;
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Absolver a Requerida do pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação adicional de IVA relativo ao período de dezembro de 2018, correspondente à liquidação n.º ...;
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Condenar cada uma das partes no pagamento da taxa de arbitragem, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 90% para a Requerida e 10% para a Requerente.
VALOR DO PROCESSO
Não obstante este tribunal ter considerado procedente a exceção de ilegal cumulação de pedidos que conduziu, na prática, a uma redução do valor efetivamente em discussão no processo, de € 73.622,18 para € 36.326,79, o funcionamento deste tribunal envolve custas que devem ser suportadas pelas partes – e daí que o Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária estabeleça regras próprias para cálculo do valor do processo, mais próximas do princípio de que o valor da ação é aquele que existe no momento em que ela é proposta (artigo 299º CPC).
Deste modo, tal como se decidiu no processo arbitral n.º 649/2021-T que aqui se acompanha na íntegra, “não obstante o Tribunal basear a sua decisão no reconhecimento de que o valor da causa, para efeitos de competência, é inferior àquele inicialmente atribuído pela Requerente, é este último que terá que servir de referência ao cálculo das custas. Vale aqui o entendimento fixado na decisão proferida no Proc. 151/2013-T: «O facto de o valor do litígio, para efeitos de determinação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ser o que resulta da aplicação subsidiária do CPPT, não obsta a que seja outro o valor para efeitos de custas, pois trata-se de matéria que tem a ver exclusivamente com as receitas do CAAD, que é uma entidade privada, e, como se disse, a regulamentação do regime de custas foi deixada pelo artigo 12.º do RJAT, na sua exclusiva disponibilidade, ao estabelecer que «é devida taxa de arbitragem, cujo valor, fórmula de cálculo, base de incidência objetiva e montantes mínimo e máximo são definidos nos termos de Regulamento de Custas a aprovar, para o efeito, pelo Centro de Arbitragem Administrativa»”.
Fixa-se assim, designadamente para efeitos de custas, o valor do processo em € 73.622,18nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar em 90% pela Requerida, no valor de € 2.203,20, e em 10% pela Requerente, no valor de € 244,80, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2024
Os Árbitros,
_________________________
Victor Calvete (Presidente), vencido em parte, nos termos da declaração de voto anexa.
_________________________
Clotilde Celorico Palma, vencida nos termos da declaração de voto anexa
_______________________
João Taborda da Gama
Declaração de voto: No ponto 6 do Relatório escreve-se o seguinte sobre a continuidade dos autos depois de se ter rejeitado, por maioria, a cumulação inicial de pedidos: “…uma vez que decidiu o tribunal que se mantinha a sua competência enquanto tribunal coletivo mesmo considerando a inerente diminuição do valor da causa.”.
Essa continuidade processual teve o meu desacordo, por implicar uma desconsideração das regras legalmente fixadas quanto à repartição de competências entre os tribunais arbitrais singulares e colectivos (alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 5.º do RJAT). Acrescento que tal contraria a jurisprudência do CAAD nas situações em que o valor apurado excede o da competência do tribunal arbitral singular – vg, processos ns. 365/2019-T, 99/2022-T, 337/2022-T e 122/2023-T – e, por identidade de razão, devia abranger as decisões em que o valor apurado não atinge o da competência do tribunal arbitral colectivo – embora aqui, as decisões nem sempre vão nesse sentido: v., além das referidas pela AT, as proferidas nos processos ns. 649/2021-T e 233/2022-T (tendo votado vencido nesta última por entender, como aqui, que não são admissíveis quaisquer comportamentos, dos Requerentes ou da Requerida, por mais inocentes que se apresentem, que interfiram na repartição de competências fixada pelo legislador – incluindo quanto ao valor).
Victor Calvete
Declaração de voto
Salvo o devido respeito, não nos revemos na posição relativa à cumulação de pedidos.
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º10/2011, de 20 de Janeiro (Cumulação de pedidos, coligação de autores e impugnação judicial)
“1 A cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes atos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.”
No presente Processo a Requerente veio suscitar questões de ilegalidade relativamente a dois tipos de impostos, a saber, IRC do ano de 2018 e IVA do ano de 2018, resultantes de um único relatório de inspeção tributária.
A questão da admissibilidade da cumulação de pedidos na arbitragem, reconduz-se a uma opção interpretativa:
- Caso se opte por uma interpretação literal, aplica-se o artigo 3.º do RJAT nos termos em que foi formulado, admitindo agora na arbitragem menos situações de cumulação do que no processo judicial.
- Caso se opte por uma interpretação teleológica, que tenha em consideração as razões subjacentes às opções legislativas e a coerência do sistema jurídico, exigida pela sua unidade e a atualização da perspetiva legislativa, concluir-se-á que, como antes, se deverão admitir no RJAT todas as situações previstas no CPPT.
Ora, em nosso entendimento, a identidade absoluta de questões de facto e de direito não é imprescindível para ser admitida a cumulação.
A cumulação de pedidos é admitida por razões de economia processual e celeridade, pelo que numa interpretação teleológica do artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, deve ser admitida quando há suficiente identidade entre os pedidos que permita concluir que valem aquelas razões.
Se o legislador entende, na sua nova perspetiva atualizada em 2019, que, nas condições processuais existentes, há mais vantagens do que inconvenientes em admitir a cumulação e coligação quando está em causa o mesmo relatório da inspeção, como é que se pode entender que nos processos arbitrais o mesmo legislador continue a entender que sucede o inverso, quando estão em causa tipos de processos impugnatórios essencialmente idênticos?
Numa perspetiva que tenha em conta a unidade do sistema jurídico, fazendo recurso a uma interpretação atualista da lei, idênticas possibilidades de cumulação de pedidos devem ser aplicadas também ao contencioso arbitral, não devendo deixar de se admitir no processo arbitral a cumulação de pedidos em todas as situações em que é admissível no processo de impugnação judicial. Com efeito, o legislador do RJAT admitia todas as situações de cumulação previstas na anterior redação do CPPT. Como tais situações aumentaram com a alteração legislativa entretanto ocorrida, somos de entendimento de que aumentaram igualmente as do RJAT.
Em conformidade com o previsto na atual redação do artigo 104.º do CPPT, é admissível a cumulação e pedidos quando:
– lhes corresponda a mesma forma processual;
– a sua apreciação tenha por base as mesmas circunstâncias de facto ou o mesmo relatório de inspeção tributária, ou sejam suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo;
Por outro lado, não obsta à cumulação ou à coligação referida a circunstância de os pedidos se reportarem a diferentes tributos, desde que todos se reconduzam à mesma natureza, à luz da classificação prevista do n.º 2 do artigo 3.º da Lei Geral Tributária.
Isto é, não é exigida, pelo artigo 104.º do CPPT, a identidade de questões de direito, o que decorre da admissibilidade de cumulação de pedidos relativos a tributos diferentes.
Ora, no caso em apreço, afigura-se-nos que se verificam os requisitos da cumulação.
Termos em que se nos afigura que improcede, assim, a exceção da cumulação ilegal suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
A Árbitra
Clotilde Celorico Palma
[1] Neste sentido, cfr. Carla Castelo Trindade, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, Almedina, (Coimbra: 2016), pp. 138-139.