Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 712/2023-T
Data da decisão: 2024-02-21  IRS  
Valor do pedido: € 5.348,28
Tema: IRS – Incompetência Material do Tribunal
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SUMÁRIO

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir a causa em virtude de o pedido do Requerente  não se encontrar previsto no disposto normativo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT.
  2. A incompetência material configura uma exceção dilatória, e determina a absolvição da instância no que a este pedido concerne, nos termos estabelecido na alínea a) do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA, aplicável ex vi alínea c) do 1 do artigo 29.º do RJAT.
  3.  

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Pedro Guerra Alves, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral Singular, constituído em 20-12-2023, decide o seguinte:

 

  1. Relatório

A..., doravante “Requerente”, NIF ..., residente na Rua ..., n.º..., ...-... ..., em 10-10-2023, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‐Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e do artigo 102.º, n.º 1, alínea d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), requereu a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral (“PPA") contra os atos de indeferimento expresso das Reclamações graciosas com os n.º de processo ...2023..., referente ao exercício de 2019, e n.º ...2023..., referente ao exercício de 2020, respeitantes às Demonstrações de Liquidação de IRS  n.º 2020... e n.º 2021..., pretendendo a respetiva declaração de ilegalidade e anulação, bem como o reembolso dos montantes indevidamente pagos, acrescido de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT” ou “Requerida”).

O Requerente fundamenta a sua pretensão, em síntese, nos seguintes termos:

  1. Os pedidos em discussão remetem-nos para a mesma fundamentação legal, os artigos 56.º-A e 87.º do Código do IRS, que tratam dos benefícios fiscais relativos às pessoas com deficiência, e a Lei 80/2021, de 29 de novembro, que clarifica os processos de revisão ou reavaliação do grau de incapacidade, alterando o Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro, reivindicando o princípio da avaliação mais favorável.
  2. E a situação em análise acompanha um contribuinte que já sofreu de incapacidade de 60% (sessenta por cento) e que, atualmente, tem um grau de incapacidade inferior.  
  3. O Requerente foi diagnosticado em junho de 2012, por colonoscopia na sequência de rectorragias, de adenocarcinoma do reto médio.  
  4. A imagiologia revelou que o Requerente tinha um tumor em estádio III e, por essa razão, efetuou, entre julho e agosto de 2012, quimioterapia associada a radioterapia. 
  5. Tendo sido consequentemente submetido a resseção anterior do reto por via laparoscópica. 
  6. A dita cirurgia decorreu sem incidentes, no entanto, no pós-operatório o Requerente efetuou quimioterapia adjuvante com 4 ciclos de quimioterapia.
  7. O Requerente, neste momento, mantém-se em 1ª remissão completa, todavia, é imperativo que mantenha o acompanhamento médico, através de consultas regulares de follow-up, por forma a evitar uma possível recidiva, complicações tardias da terapêutica ou o aparecimento de segundas neoplasias.
  8. Como é evidente, o Requerente sofreu muito ao longo dos últimos anos e continua a sofrer com este infeliz infortúnio que surgiu na sua vida. 
  9. Como consequência natural, o Requerente ficou impedido de trabalhar durante alguns anos em resultado da doença que lhe foi diagnosticada e, mesmo nos dias de hoje, ainda não conseguiu recuperar o ritmo “normal” que tinha antes das adversidades do cancro invadirem a sua vida.   
  10. Tendo ainda esta situação prejudicado gravemente a economia familiar do Requerente, o que forçou o mesmo a fazer vários cortes financeiros, para que mantivesse uma vida digna e sustentável. 
  11. Em 9 de janeiro de 2013, e em consequência da incapacidade do Requerente, foi-lhe passado um Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, no qual foi declarado que o Requerente sofria de uma incapacidade de 60% (sessenta por cento), suscetível de variação futura, com efeitos retroativos desde 2012.
  12. Como tal, dado que o Requerente era portador de uma incapacidade igual ou superior a 60% (sessenta por cento), indicou nas suas declarações de rendimento de IRS referentes aos anos de 2013 e 2017 a sua deficiência, obtendo assim a aplicação dos benefícios fiscais daí decorrentes.
  13. A situação do Requerente deveria ter sido reavaliada em 2017, no entanto, o mesmo só conseguiu solicitar nova Junta Médica em 2020. 
  14. A este respeito, é de salientar que o Requerente se deslocou diversas vezes ao seu Centro de Saúde entre 2017 e 2020, a fim de obter a renovação do seu Atestado de Incapacidade, tendo o referido pedido sido recusado constantemente. 
  15. Tal recusa era recorrentemente justificada ao Requerente com a necessidade do mesmo ter de entregar previamente o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso emitido em 2013, para poder requerer nova junta médica.
  16. Ora sucede que o original do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso emitido em 2013 tinha sido entregue à Autoridade Tributária e Aduaneira e Aduaneira para fazer prova da sua deficiência, não tendo o Requerente guardado consigo nenhuma cópia.
  17. Por esse motivo, sempre que se deslocava ao Centro de Saúde da sua área de residência, o funcionário que o atendia transmitia ao Requerente que não era possível marcar nova Junta Médica sem ter uma cópia do Atestado inicial. 
  18. Ora, por incrível que pareça, nem o Centro de Saúde, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira e Aduaneira cooperaram com o Requerente para o auxiliar em arranjar cópia do primeiro Atestado Médico de Incapacidade Multiuso emitido. Parece incrível, mas é verdade e só revela o quão complexo é o funcionamento dos sistemas públicos.
  19. Foi apenas em 2020, depois de muitas deslocações ao Centro de Saúde e, essencialmente, devido à bondade e intervenção de uma médica do Serviço Nacional de Saúde que lhe conseguiu uma cópia do original do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso emitido em 2013, que o Requerente conseguiu solicitar nova Junta Médica. 
  20. Isto porque o Requerente apesar de diversas tentativas também não conseguiu que a  Autoridade Tributária e Aduaneira e Aduaneira lhe disponibilizasse uma cópia do original do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso que lhe tinha sido entregue. 
  21. Contudo, apesar do Requerente ter efetuado o pedido em 2020, a reavaliação da sua situação e, consequentemente, a emissão do seu novo Atestado Multiuso só ocorreu em 16.03.2022.
  22. Este atraso de dois anos ocorreu por razões que fogem totalmente ao controlo do Requerente, pois, como é de conhecimento geral, as Juntas Médicas para avaliar graus de incapacidade estão com atrasos imensuráveis há anos, a que se juntou a Pandemia Covid-19 para imobilizar todos os serviços de Saúde não urgentes.
  23. Ainda para mais porque a situação do Requerente, i.e. uma reavaliação, não é considerada uma urgência aos olhos do Serviço Nacional de Saúde.
  24. Requerente não tem culpa, nem pode ser responsabilizado pelos atrasos nas marcações das Juntas Médicas, pois afinal, infelizmente, tanto ele como milhares de portugueses estão/passaram pela mesma situação, tendo-se encontrado impossibilitados durante anos de terem acesso aos seus Atestados Médicos de Incapacidade Multiuso, Atestados esses que proporcionam aos seus utentes benefícios fiscais, sociais e económicos.
  25. O novo Atestado Médico de Incapacidade Multiuso do Requerente emitido em 16.03.2022 determinou que o mesmo teria, desde 2017, uma incapacidade de 48% (quarenta e oito por cento)
  26. O Requerente, tendo em conta a retroatividade desde 2017 do seu novo Atestado e tendo conhecimento do princípio da avaliação mais favorável, em 26.04.2022, submeteu declarações Modelo 3 do IRS de substituição relativas aos anos 2019 e 2020 (que se juntam sob a designação de Documentos n.º 7 e 8, respetivamente), com a intenção de que a sua inicial deficiência fiscalmente relevante de 60% (sessenta por cento) fosse considerada.
  27. O reconhecimento dos benefícios fiscais ao Requerente traduzir-se-ia, no entender da Requerente, no reembolso dos montantes de € 2.668,04 e € 2.680,24, para os exercícios de 2019 e 2020, respetivamente.
  28. Na sequência dessas submissões, por despacho da Chefe do Serviço de Finanças, em 28.12.2022, as mesmas foram convoladas em reclamação graciosa, instaurando-se, assim, dois processos de reclamação graciosa, o Processo n.º ...2023..., relativamente, ao IRS de 2019, e o Processo n.º ...2023..., relativamente, ao IRS de 2020.
  29. Ora, foi com grande surpresa e admiração que o Requerente recebeu a decisão da Autoridade Tributária, pois, como suprarreferido, o Requerente tinha conhecimento do princípio da avaliação mais favorável e, para mais, em 2021 e 2022, a Autoridade Tributária e Aduaneira e Aduaneira aplicou-lhe a dedução para pessoas com deficiências, em sede de IRS, não fazendo, portanto, qualquer sentido o então agora entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira. 
  30. Parece que a Autoridade Tributária e Aduaneira não reconhece o princípio da avaliação mais favorável e parece que faz depender a aplicação do benefício fiscal à realização do pedido de reavaliação médica em momento prévio ao término do anterior atestado médico de incapacidade multiuso, escusando-se a justificar a fundamentação da sua decisão, pelo que só por isso deveriam as decisões de indeferimento ser anuladas.
  31. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 10-10-2023, e subsequentemente notificado à AT.

O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou o ora signatário como árbitro do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 29-11-2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 20-12-2023, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alíneas a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio.

A Requerida apresentou a sua resposta, defendendo-se por exceção e impugnação , e juntou aos autos o processo administrativo (“PA”) em 29-01-2024, alegando, em síntese, o seguinte:

  1. A Incompetência do CAAD para reconhecer a incapacidade fiscalmente relevante do Requerente. Defende que nos termos do disposto no artigo 2.º do RJAT decorre que a competência do CAAD se circunscreve à declaração de ilegalidade de atos de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.
  2. Ora como taxativamente decorre do PPA, o que o Requerente pretende com a presente lide é que lhe seja reconhecido que detém uma incapacidade fiscalmente relevante desde 2017, não obstante em sede da reavaliação feita em 2022 só lhe ter sido reconhecido 48%, e, consequentemente que sejam anulados os despachos que indeferiram as reclamações graciosas e as liquidações referentes aos anos de 2019 e 2020.
  3. A incompetência material configura uma exceção dilatória, que desde já se suscita, e determina a absolvição da instância no que a este pedido concerne, nos termos estabelecido na alínea a) do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA, aplicável ex vi alínea c) do 1 do artigo 29.º do RJAT.
  4. Nos presentes autos o que está em causa é saber se alguém avaliado em 2013 com uma incapacidade permanente global de 60%, e reavaliado em 2022 com uma incapacidade permanente global de 48%, ou seja, sempre no âmbito da Nova Tabela Nacional de Incapacidades, pode vir a beneficiar do regime transitório contido nos n.ºs 7 e 8 do Decreto-Lei N.º 202/96.
  5. Na situação objeto dos autos, em ambos o atestado multiusos apresentado pelo Requerente a avaliação da incapacidade foi feita com base nos mesmos critérios técnicos consignados na atual Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007.
  6. Não lhe sendo, pois, aplicáveis as normas transitórias constantes dos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, aditadas pelo Decreto-lei n.º 291/2009.
  7. Igualmente não colhe a interpretação decorrente do artigo 4.º-A, norma interpretativa aditada pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, que veio clarificar a salvaguarda de direitos que já tenham sido adquiridos e/ou já estejam a ser exercidos, aplicando-se o princípio da aplicação da lei mais favorável ao avaliado.
  8. Se no caso dos autos se aplicasse a regra geral consagrada no n.º 8 do artigo 13.º do CIRS, em 2017 o Requerente já não teria direito a usufruir do regime fiscal das pessoas com deficiência, considerando que em 31/12/2017 já não reunia os pressupostos para o direito ao regime fiscal das pessoas com deficiência.
  9. Defende a Requerida, que nos anos abrangidos pela reavaliação, 2018 e seguintes, o grau de incapacidade de 48% certificado pelo atestado médico não é fiscalmente relevante porquanto não reúne os pressupostos previstos na lei, nos termos do n.º 5 do artigo 87.º do CIRS, não assistindo ao Requerente o direito à aquisição do regime fiscal das pessoas com deficiência.
  10. Conclui que deve a presente ação arbitral ser julgada improcedente, por não provada, e ser a Requerida absolvida dos pedidos e os atos impugnados serem mantidos na ordem jurídica.

No dia 30-01-2024, por despacho proferido nos presentes autos, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e dele o Requerente foi notificado para apresentar  defesa quanto à exceção invocada pela Requerida na sua Resposta, e foram as Partes notificadas para apresentarem alegações escritas finais facultativas. O  Tribunal indicou a data previsível para prolação da decisão arbitral, com advertência da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente pelo Requerente (v. ata que se dá por reproduzida).

O Requerente e a Requerida apresentaram as suas alegações respetivamente em 16-02-2024 e em 19-02-2024.

 

  1. Saneamento

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, contado da data da notificação do indeferimento expresso das reclamações graciosas, fixada em 21-07-2023, tendo a presente ação sido proposta em 10 de Outubro de 2023.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Matéria De Facto

§3.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão da causa:

  1. Em 9 de janeiro de 2013, e em consequência da incapacidade do Requerente, foi-lhe passado um Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, no qual foi declarado que o Requerente sofria de uma incapacidade de 60% (sessenta por cento), suscetível de variação futura, com efeitos retroativos desde 2012. Cfr. Doc. 5 do PPA.
  2. O Requerente efetuo o seu pedido de a reavaliação da sua situação e, consequentemente, a emissão do seu novo Atestado Multiuso em 2020, e a emissão do seu novo Atestado Multiuso só ocorreu em 16.03.2022, cfr. Doc 6 do PPA
  3. O novo Atestado Médico de Incapacidade Multiuso do Requerente emitido em 16.03.2022 determinou que o mesmo teria, desde 2017, uma incapacidade de 48% (quarenta e oito por cento). cfr. Doc 6 do PPA
  4. O Requerente, tendo em conta a retroatividade desde 2017, em 26.04.2022, submeteu declarações Modelo 3 do IRS de substituição relativas aos anos 2019 e 2020, aos quais foram atribuídos os números de demonstração de liquidação de IRS  n.º 2020... e n.º 2021... . Cfr. Doc 6e 7 do PPA.
  5. Na sequência dessas submissões, por despacho da Chefe do Serviço de Finanças, em 28.12.2022, as mesmas foram convoladas em reclamação graciosa, instaurando-se, assim, dois processos de reclamação graciosa, o Processo n.º ...2023..., relativamente, ao IRS de 2019, e o Processo n.º ...2023..., relativamente, ao IRS de 2020.
  6. O Requerente foi notificado do indeferimento expresso das Reclamações graciosas em 20-07-2023. Cfr. PA.

§3.2. Factos não provados

Não se consideram não provados quaisquer factos relevantes para o conhecimento da causa.

§3.3. Fundamentação da matéria de facto

Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão a proferir, em função da sua relevância jurídica considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, quanto à matéria de facto, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

  1. Matéria de Direito

§4.1. Delimitação das questões a decidir:

Tendo em consideração a posição das Partes e a matéria de facto dada como assente, as questões a decidir são as seguintes:

  1. Da exceção suscitada pela Requerida de incompetência material do Tribunal Arbitral para reconhecer a incapacidade  fiscalmente relevante do Requerente;
  2. DA ilegalidade das liquidações de IRS dos anos de 2019 e 2020,  e do direito a juros indemnizatórios
  3. .

§4.2. Sobre a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral para reconhecer a incapacidade fiscalmente relevante do Requerente

 

A Requerida defende-se por exceção invocando a incompetência material do tribunal arbitral para conhecer do pedido formulado pelo Requerente, alegando em suma  que o Requerente pretende com a presente lide que lhe seja  reconhecido um grau de incapacidade fiscalmente relevante desde 2017, não obstante em sede da reavaliação feita em 2022 só lhe ter sido reconhecido o grau de 48%, e, consequentemente pretende que sejam anulados os despachos que indeferiram as reclamações graciosas e as liquidações referentes aos anos de 2019 e 2020. Pois só após o reconhecimento da incapacidade fiscalmente relevante é que as liquidações impugnadas poderiam ser anuladas.

Em sede de resposta o  Requerente, alegou, em suma, que na realidade o que está a ser solicitado ao CAAD é que avalie a consequência fiscal da incapacidade de 60% reconhecida em 9 de janeiro de 2013, através de Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, por referência aos dois exercícios em causa, por aplicação do princípio da avaliação mais favorável.

Cumpre apreciar,

Atendendo a que as questões de incompetência são de conhecimento prioritário, nos termos do disposto no artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, passamos de seguida a apreciar a questão.

Tratando-se de invocação de uma matéria enquadrada processualmente como exceção dilatória (artigo 89.º, n.º 1 e 4, alínea a) ), do CPTA, subsidiariamente aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (artigos 89.º, n.º 2, do CPTA e 278.º, n.º 1, do CPC), é de conhecimento oficioso e prioritário, nos termos do artigo 608.º, do CPC, de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT).

Neste sentido, refere-se na norma que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais; (redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, autorizou o Governo a legislar “no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, de modo que o processo arbitral tributário constituísse “um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), concretizou a mencionada autorização legislativa com um âmbito mais restrito do que o inicialmente previsto, não contemplando uma competência alternativa à da ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, e “instituiu a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no seu art.º 2.º” fazendo depender a vinculação da administração tributária de “portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.

Dado o carácter voluntário da sujeição à jurisdição arbitral, numa segunda linha “a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que a Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o art. 4.º, n.º 1 do RJAT estabelece que “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça”.

Na referida portaria estabelecem-se condições adicionais e limites de vinculação tendo em conta a especificidade das matérias e o valor em causa.

Os autores Sérgio Vasques e Carla Castelo Trindade, em Cadernos de Justiça Tributária n.º 00, Abril/Junho de 2013, no artigo “O âmbito material da arbitragem tributária”, referem que “nos termos da alínea a) do n.º 1, os tribunais arbitrais têm competência para apreciar as pretensões que se prendam com a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta. O âmbito material da arbitragem tributária, recortado por esta alínea, corresponde ao previsto no artigo 97.º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), estando-se perante questões que podem simultaneamente ser objecto de arbitragem e impugnação judicial. De facto, pode ler-se neste preceito do CPPT que o processo judicial tributário compreende “a impugnação da liquidação dos tributos, incluindo os parafiscais e os actos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta”.

Assim, a competência dos tribunais arbitrais prevista no RJAT é taxativa, razão pela qual é o mesmo competente para decidir questões relacionadas apenas com a ilegalidade dos actos acima indicados.

Retomando os autos, o pedido formulado pelo Requerente versa sobre a impugnação do indeferimento expresso das Reclamações graciosas com os n.º de processo ...2023..., referente ao exercício de 2019, e n.º ...2023..., referente ao exercício de 2020, respeitantes às Demonstrações de Liquidação de IRS  n.º 2020... e n.º 2021..., sobre as quais à Requerente alega que não foram reconhecidos os benefícios fiscais relativos às pessoas com deficiência,  a Lei 80/2021, de 29 de novembro, que clarifica os processos de revisão ou reavaliação do grau de incapacidade, alterando o Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro, reivindicando o princípio da avaliação mais favorável.

As reclamações graciosas aqui impugnadas, não são sobre atos de liquidação, ou, sobre os atos de liquidação de IRS submetidos anteriormente pela Requerente relativos aos anos de 2019 e 2020, mas sim, sobre os pedidos de substituição das declarações de rendimentos dos anos de 2019 e 2020, submetidos pelo Requerente, convolados pela  AT em  reclamação graciosa para ambos, com vista a  determinar se o Requerente preenchia ou não os requisitos para o reconhecimento da incapacidade.

Neste sentido, para as declarações de substituição entregues pelo Requerente, não foram  emitidos atos de liquidação de Tributos,  ou outro ato acto tributário previsto no artigo 2.º do RJAT.

Conclui-se, assim, não estarmos perante uma declaração de ilegalidade de um qualquer acto tributário, previsto no artigo 2.º do RJAT.

Em conclusão, é este Tribunal Arbitral, materialmente incompetente, para apreciar e decidir o pedido objeto do litígio sub judice, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, o que consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT e artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT, que obsta ao conhecimento do pedido e à absolvição da instância da AT, nos termos dos artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a) do CPC, ex vi artigo 29.º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT.

Procedendo a exceção da incompetência absoluta em razão da matéria deste Tribunal Arbitral, fica prejudicado o conhecimento das demais questões que se suscitam nos presentes autos.

§4.3. Questões de conhecimento prejudicado

Procedendo a exceção de incompetência material, fica prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas Requerente, nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

  1. Decisão

De harmonia com o exposto, decide-se em:

  1. Julgar procedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral e em em consequência  absolver a Requerida da instância, com as legais consequências, nomeadamente em matéria de custas.

 

 

  1. Valor do Processo

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 5.348,28, indicado pelo Requerente e não contestado pela Requerida.

 

  1. Custas Arbitrais

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612.00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo do Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2024

 

O Árbitro

 

Pedro Guerra Alves,