Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 449/2023-T
Data da decisão: 2024-02-19  IRC  
Valor do pedido: € 24.626,06
Tema: Liquidação adicional de IVA – dedução do custo em sede de IRC
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SUMÁRIO

 

O artigo 23.º-A, n.º 1, do Código do IRC, elenca um conjunto de encargos de natureza fiscal e parafiscal não dedutíveis, incluindo, na sua alínea f), “os impostos, taxas e outros tributos que incidam sobre terceiros que o sujeito passivo não esteja legalmente obrigado a suportar”, aqui se incluindo o IVA que foi liquidado adicionalmente pela AT relativo a vendas feitas pela Requerente.

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Jorge Belchior de Campos Laires, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:

  1. Relatório

A..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na..., ..., Rua ..., ..., ...-... Almada (“Requerente”), requereu a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) sobre o indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentada contra os atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.ºs 2017..., 2018... e 2019..., praticados com referência aos anos de 2016, 2017 e 2018.

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no dia 21/06/2023, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à AT.

O pedido foi comunicado à Requerida no dia 27/06/2023.

Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro singular o signatário em 09/08/2023, sem oposição das partes.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 30/08/2023.

A Requerida foi notificada em 06/09/2023 para apresentar a resposta a que se refere o artigo 17.º do RJAT, o que fez em 11/10/2023, juntando igualmente o Processo Administrativo.

Em 13/12/2023 o Tribunal dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.

Ainda no mesmo Despacho facultou-se às partes a possibilidade de apresentarem alegações escritas, facultativas, por prazo sucessivo de 10 dias, o que a Requerente fez em 05/01/2024. A Requerida apresentou a 19/01/2024, limitando-se a remeter para o já alegado em resposta.

  1. Saneamento

O Tribunal foi regularmente constituído face ao preceituado nos artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º, todos do RJAT.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciária e têm legitimidade.

O presente pedido de constituição de tribunal arbitral tem-se por tempestivo.

  1. Matéria de Facto

 

  1. Factos Provados

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente tem como Código de Atividade Económica 45110 - Comércio de veículos automóveis ligeiros, tendo, no âmbito da sua atividade económica, efetuado aquisições intracomunitárias de veículos usados, os quais comercializava em Portugal (cfr. alegação da Requerente não contraditada pela AT).
  2. A Requerente foi objeto de um procedimento de inspeção a coberto das Ordens de Serviço n.ºs OI2018.../... e OI2019... no qual se apurou, em sede de IVA, que “o sujeito passivo aplica indevidamente o regime da margem a todos os veículos que transaciona, independentemente da compra desses veículos, estar ou não, nas condições previstas no n.º 1 do art.º 3.º do Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão” (cfr. RIT junto como Documento n.º 3 do PPA).
  3. Relativamente ao exercício de 2018, a AT fez uma liquidação adicional de IVA de € 387.648,63 correspondente à diferença entre o IVA que seria devido segundo o regime normal e aquele que foi liquidado pela Requerente (cfr. RIT junto com o Processo Administrativo).
  4. Na autoliquidação de IRC de 2018 a Requerente apurou um valor de imposto a pagar de € 24.626,06 (cfr. Documento n.º 2 junto com o PPA).
  5. O valor de IVA liquidado adicionalmente pela AT relativo ao exercício de 2018 não foi considerado pela Requerente como um gasto dedutível, em sede de IRC, na liquidação de IRC referida no ponto anterior (cfr. facto alegado pela Requerente e não contestado pela AT).
  6. De forma a obter a concordância da AT de que tais encargos fossem dedutíveis em sede de IRC e o consequente reembolso do imposto pago, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa relativamente aos atos de liquidação de IRC dos anos de 2016, 2017 e 2018 (cfr. Processo Administrativo).
  7.  A AT indeferiu o pedido de revisão oficiosa apresentada, determinando a rejeição liminar do pedido de revisão oficiosa relativamente aos atos de liquidação de IRC dos anos de 2016 e 2017 e o indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentada contra o ato de liquidação de IRC n.º 2019..., praticado com referência ao ano de 2018 (cfr. Processo Administrativo).
  8. O Despacho de indeferimento foi notificado à Requerente no dia 23 de março e 2023 (cfr. Processo Administrativo).

 

  1. Factos não Provados

Não existem factos não provados com relevância para a decisão.

  1. Motivação da Decisão de Facto

A matéria de facto foi fixada tendo por base a documentação junta com o PPA, bem como os elementos juntos como o Processo Administrativo, não havendo controvérsia entre as partes quanto à matéria fixada no ponto 1 da presente secção.

  1. Matéria de Direito

Em primeiro lugar, importa esclarecer que, pese embora no introito do PPA a Requerente faça referência às liquidações de IRC de 2016 e 2017, o pedido cinge-se à (auto)liquidação de IRC de 2018 e, consequentemente, à parte do indeferimento da revisão oficiosa que versava sobre o exercício de 2018.  

Resumo da Posição da Requerente

A Requerente alega que “por lamentável lapso, aplicou erradamente o regime do IVA, embora esse erro seja, no mínimo, desculpável, dado que estamos perante veículos usados e, como os “bens em segunda mão” beneficiam de um regime de IVA específico, a Requerente, na melhor boa-fé, considerou, tal como a generalidade dos operadores deste setor, que era apenas esse o regime aplicável aos bens em segunda mão”.

Assim, sofreu uma liquidação adicional de IVA, sendo que este gasto não foi considerado na liquidação de IRC de 2018 n.º 2019... .

Segundo a Requerente, “analisando o artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, verifica-se que, na redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, são considerados gastos ou perdas, para efeitos fiscais, todos os que, contabilizados pela sociedade, visem potencialmente a obtenção ou garantia dos rendimentos que vão ser sujeitos a imposto”.

A Requerente alega tratar-se de “IVA suportado pela Requerente, com referência, designadamente, e no que respeita ao exercício de 2018, a IVA no valor de € 387.648,63, que não foi nem podia já ser repercutido nos seus clientes”.

Segundo a Requerente, “no caso em apreço, não nos encontramos perante uma situação subsumível ao artigo 23.º-A, n.º 1, alínea f), do CIRC, porque neste caso o IVA que lhe foi liquidado adicionalmente era devido pela Requerente e não foi, como demonstrado, repercutido em terceiros, ou seja, nos seus clientes, tendo sido suportado exclusivamente pela Requerente”. Daqui conclui “que não estamos perante impostos, taxas e outros tributos que incidam sobre terceiros que o sujeito passivo não esteja legalmente obrigado a suportar (alínea f) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC)”.

Resumo da Posição da Requerida

A Requerida sustenta que “a questão em confronto prende-se com IVA que a empresa não liquidou, quando tinha como obrigação legal proceder a essa liquidação. Caso tivesse aplicado corretamente a lei o IVA em causa teria sido pago pelos clientes, como tal não pode ser considerado um gasto para efeitos fiscais uma vez que não tem enquadramento no disposto no citado art.º 23.º, pois não se trata de um gasto que reúna os requisitos aí exigidos.”

Diz ainda a Requerida que “no presente caso não estamos perante IVA suportado, mas sim sobre IVA liquidado adicionalmente que a Requerente suportou e que, perante a impossibilidade de repercutir este imposto sobre os seus clientes, pretende que o mesmo venha a ser considerado como gasto dedutível na determinação do lucro tributável do período de tributação de 2018 (…) A Requerente só foi confrontada com a obrigação de suportar o IVA liquidado adicionalmente porque não liquidou, em tempo, aos seus clientes, como devia, o imposto que estes deviam suportar, e por isso, este imposto não deve ser aceite como encargo dedutível para efeitos fiscais, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC.”.

A Requerente cita ainda a jurisprudência a favor da sua posição, concretamente o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no Processo n.º 04001/10, de 29/03/2011.

Análise

A questão controvertida tem a sua origem na liquidação adicional de IVA operada pela AT à Requerente, uma vez que esta, na venda de veículos usados, liquidou IVA em valor inferior ao devido, por aplicação incorreta do regime da margem.

A Requerente não contesta a liquidação adicional operada pela AT, mas alega que o valor de IVA liquidado adicionalmente deverá ser considerado um encargo dedutível para efeitos de IRC, porque já não está em condições de o repercutir aos adquirentes dos veículos. 

A regra geral de dedução de gastos para efeitos de IRC é a prevista no artigo 23.º, n. 1, do Código do IRC, nos termos do qual “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, neles se incluindo, na lista exemplificativa apresentada pelo n.º 2 da norma citada, na alínea f), os gastos de natureza fiscal e parafiscal.

Todavia, nem todos os gastos de natureza fiscal e parafiscal são dedutíveis em sede de IRC. Assim, o artigo 23.º-A, n.º 1, do Código do IRC elenca um conjunto de encargos desta natureza não dedutíveis, como seja o próprio IRC, as tributações autónomas, as derramas, a contribuição sobre o setor bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético, bem como, na alínea f), “os impostos, taxas e outros tributos que incidam sobre terceiros que o sujeito passivo não esteja legalmente obrigado a suportar”.

O artigo 27.º do Código do IVA dispõe o seguinte:

1 - A importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da fatura, para efeitos da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços.

2 - Nas operações pelas quais seja emitida uma fatura nos termos do artigo 40.º, o imposto pode ser incluído no preço, para efeitos do disposto no número anterior.

3 - A repercussão do imposto não é obrigatória nas operações referidas na alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º e nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 4.º

Conforme se depreende da regra acima, o IVA deve ser obrigatoriamente repercutido ao adquirente dos bens, salvo as exceções previstas na lei e que não têm qualquer aplicação a este caso.

De onde se conclui que, para o caso que nos ocupa, o IVA incidente sobre a venda de viaturas deve obrigatoriamente ser repercutido ao adquirente das viaturas, pelo que é de concluir que se trata de um imposto que incide sobre terceiros, os adquirentes (sujeitos passivos de facto), e não sobre a Requerente.

A Requerente sofreu o encargo do imposto por via de liquidação adicional promovida pela AT, uma vez que, enquanto sujeito passivo do imposto (de direito), é responsável em caso de IVA não liquidado.

A questão que se coloca é a de saber se essa responsabilidade determina que, para efeitos de IRC, o IVA em causa passe a ser considerado um imposto que a empresa está “legalmente obrigada a suportar”, de forma a não ser abrangida pela exclusão da dedução imposta pelo citado artigo 23.º-A do Código do IRC.

Sobre idêntica questão, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (Processo n.º 04001/10, de 29/03/2011), citado pela Requerida, explica que “não fora (a empresa) ter deixado de, no tempo adequado, acionar o mecanismo, imposto por lei, para fazer incidir o tributo em causa sobre os terceiros obrigados ao efetivo pagamento e a obrigação tributária, que lhe exigiu a AT, jamais teria nascido, por mero efeito do exercício da sua atividade comercial. Obviamente, constatada a omissão da impugnante, exigir-lhe o pagamento do imposto em falta tornou-se imperativo legal, pelo que, nesse circunstancialismo, ficou legalmente, não autorizada, mas, compelida a suportá-lo, por via de liquidação adicional, não podendo, de modo algum, em consonância com a motivação antes expressa, esta obrigatoriedade ser utilizada para subverter o sentido literal e axiológico do art. 41.º n.º 1 al. c) CIRC (norma correspondente ao atual artigo 23.º-A, n.º 1, f), do Código do IRC).

Refere ainda o Acórdão que tal posição “permite evitar que o Estado seja, potencialmente, defraudado, prejudicado, no montante de receita devida. É que, estando, em qualquer caso, assegurado o seu direito a receber o IVA devido, se fosse permitido à empresa, obrigada a pagá-lo por não haver procedido à sua correta liquidação, cobrança e entrega, concretizar a posterior dedução do montante exigível como custo do exercício, o valor do lucro tributável seria menor do que o suscetível de se apurar não fora a falta de cumprimento das obrigações fiscais sobre si pendentes; isto é, se tudo tivesse decorrido no respeito pela lei, o Fisco receberia o IVA devido e mais IRC”.

A presente decisão segue e acompanha a jurisprudência do citado Acórdão, pelo que improcede a pretensão da Requerente de reembolso do IRC pago na autoliquidação de IRC de 2018, bem como o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.

  1. Decisão

De harmonia com o exposto, decide o Tribunal Arbitral julgar totalmente improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral.

  1. Valor do Processo

Nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, quando seja impugnada a liquidação o valor da causa é o da importância cuja anulação se pretende. Fixa-se como valor do processo o indicado pela Requerente de € 24.626,06.

 

  1. Custas

Custas no montante de € 1.530,00, a cargo da Requerente, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 19 de fevereiro de 2024

O Árbitro,

 

 

Jorge Belchior de Campos Laires