Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 75/2023-T
Data da decisão: 2024-02-02  IVA  
Valor do pedido: € 609.609,67
Tema: IVA; Autoridade de caso julgado; exceção de caso julgado.
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SUMÁRIO:

I. A exceção de caso julgado tem por objetivo impedir, em nome da segurança e confiança, que uma causa se repita quando já existe uma sentença tornada firme sobre uma primeira causa.

II. A determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva.

 

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DECISÃO ARBITRAL

 

  1. Relatório

A..., associação de direito privado e utilidade pública matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva..., com sede na ..., Rua..., ...-..., Porto vem, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do RJAT e ainda dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, apresentar pedido de pronúncia arbitral contra os contra os atos de indeferimento parcial praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida), dos pedidos de revisão oficiosa de IVA de 2007 e de 2008, que correram termos na DSIVA sob os n.os ...2012... e ...2012... na parte em que a DSIVA não autorizou a A... a incluir nas declarações periódicas dos 4.os trimestres de IVA de 2007 e de 2008, o valor não deduzido corretamente nessas declarações, e que pretendia regularizar no seu campo 40, tendo por referência os 1.os, 2.os e 3.os trimestres de IVA de 2007 e 2008, no valor global de € 609.609,67.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 08-02-2023, na mesma data notificado à AT.

Os árbitros comunicaram a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a sua designação.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 18-04-2023.

A AT em 24-05-2023 apresentou Resposta, em que reiterava tudo quanto consta do processo administrativo, que não juntou.

Por Despacho de 26-05-2023, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

As partes não apresentaram alegações no prazo concedido.

Em 04-10-2023 o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD proferiu o seguinte Despacho: “Com referência ao processo em epígrafe, o Exmo. Prof. Doutor Carlos Lobo, árbitro-adjunto do tribunal arbitral coletivo constituído neste processo, veio renunciar às funções arbitrais invocando para tanto razões que são de considerar como justificativas. Em tal conformidade, nos termos e ao abrigo do disposto do Regulamento de Seleção e Designação de Árbitros em Matéria Tributária (artigo 6.º, n.º 5) determina-se a substituição, como árbitro-adjunto no presente processo, do Exmo. Prof. Doutor Carlos Lobo pela Exma. Dra. Filipa Barros”, que na mesma data foi notificado ao Tribunal e às Partes, que nada disseram.

Em 06-10-2023 foi proferido o seguinte Despacho: “Considerando que em 28-08-2023 por Despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico foi determinada a substituição, como árbitro-adjunto no presente processo, do Exmo. Prof. Doutor Carlos Lobo pela Exma. Dra. Filipa Barros, e por estar a decorrer o prazo para as partes aceitarem essa designação, prorroga-se a prolação da decisão arbitral por dois meses, a contar de 18-10-2023, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT”.

Este Tribunal Arbitral ao verificar os pressupostos processuais da presente ação considerou a possibilidade da procedência da exceção do caso julgado ou da caducidade do direito à ação, as quais são de conhecimento oficioso e obrigatório por parte do tribunal e notificou as partes dessa possibilidade através do Despacho de 27-12.2023, a que a Requerente respondeu em 12 -01-2024.

A 12-01-2024 a Requerente apresentou requerimento em que considera “face aos elementos constantes dos presentes autos, nenhuma das excepcões, consideradas no abstracto como se verifica no despacho arbitral a que se responde, poderia proceder no caso concreto”.

 

  1. Saneamento

O Tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no artigo 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa

 

3. Matéria de Facto

3.1. Factos provados

O Tribunal Arbitral, com base nos documentos juntos aos autos pelas partes e não impugnados, considera provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

  1. A Requerente é uma associação de direito privado e de utilidade pública, sem fins lucrativos, que tem por objeto a reunião dos jovens empresários e o fomento do empreendedorismo, com vista à satisfação de interesses comuns e ao melhor desenvolvimento das suas atividades profissionais, nomeadamente, nas vertentes de formação, informação, apoio técnico e respetiva prestação de serviços; (cfr. art.º 1 do PPA).
  2. A Requerente é sujeito passivo de IVA.
  3. A Requerente a 30-12-2011 apresentou um pedido de revisão oficiosa do IVA no qual peticionou: “a restituição à Requerente do montante de imposto não deduzido, e que deveria ter sido integralmente regularizado a seu favor no campo 40 da Declaração Periódica de IVA referente ao 4.° trimestre de 2007, no valor global de 405.597,36 (quatrocentos e cinco mil, quinhentos e noventa e sete euros e trinta e seis cêntimos)”; (cfr. cópia do pedido de revisão oficiosa, doc. 4 junto com o PPA).
  4. A 27-12-2012 apresentou pedido de revisão do IVA no qual peticionou: “a restituição a Requerente do montante de imposto não deduzido, e que deveria ter sido integralmente regularizado a seu favor no campo 40 da Declaração Periódica de IVA referente ao 4. ° trimestre de 2008, no valor global de 274.929,78 (duzentos e setenta e quatro mil, novecentos e vinte e nove euros e setenta e oito cêntimos); (cfr. cópia do pedido de revisão oficiosa, doc. 5 junto com o PPA).
  5. Em 26-03-2014, a AT indeferiu os pedidos de revisão oficiosa: Não tendo sido respeitados os prazos para o exercício do direito à dedução estabelecidos nos artigos 22° e 23° do CIVA e não sendo aplicável o prazo de quatro anos previsto no n° 2 do art.º 98º do CIVA a uma situação de regularização, conclui-se que a pretensão da requerente – de deduzir imposto suportado em documentos contabilizados no decurso do ano de 2008, pelo facto de ter procedido a uma errada aplicação do "rácio de dedução específico" - deve ser indeferida, em virtude de, em 2012.12.27 (data de apresentação do pedido de revisão oficiosa), também já se encontrar ultrapassado o prazo de dois anos estipulado no nº 6 do artigo 78° da CIVA para regularizar imposto relativo ao ano de 2008”; (cfr. art.º 26 do PPA e doc. 6 junto com o PPA).
  6. A Requerente em 01-07-2014 intentou ação de impugnação judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, que deu origem ao Processo n.º 1508/14.6BEPRT; (cfr. doc. 8 junto com o PPA) pedindo:

“Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, devem ser anulados parcialmente os acto de autoliquidação do IVA relativos,

i) À declaração periódica de IVA relativa ao 4.° trimestre de 2007, na qual foi apurado IVA em excesso no valor total de €405.597,36.

ii) À declaração periódica de IVA relativa ao 4.° trimestre de2008, na qual foi apurado IVA em excesso no valor total de €274.929,78.

- Com a consequente anulação parcial dos referidos actos de autoliquidação que se processe ao reembolso total do imposto pago em excesso pela Impugnante no valor total de €680.527,14.

Peticiona, ainda, a Impugnante que lhe sejam pagos juros indemnizatórios nos termos do artigo 61.° do CPPT”.

  1. A sentença o TAF do Porto de 13-03-2021 no Relatório na identificação das partes e do objeto do litígio menciona:

A..., contribuinte n.º ..., com sede na Rua ..., Rua..., Porto, veio nos termos dos artigos 120.º e seguintes do Código de Processo Tributário, deduzir impugnação judicial do indeferimento do pedido de revisão decidido por extemporaneidade, atinente à autoliquidação de IVA do período de 0712T e 0812T, pedindo a final a anulação parcial dos actos de liquidação de IVA dos sobreditos períodos e o reembolso do imposto pago”.

  1. Sentença que considerou como factos provados:

“1) Em 27.12.2012, a A... requereu junto do Director-Geral dos Impostos pedido de revisão relativamente ao IVA do 0812T apurado em excesso na declaração periódica de IVA cfr. fls. 1 a 21 do processo de revisão junto aos autos.

 2) Relativamente ao pedido de revisão a que se alude em 1), foi proferida em 21.02.2014 pela Divisão de Administração da Direcção de Serviços do IVA a informação n.º ... de onde decorre o seguinte: “(...) Não tendo sido respeitados os prazos para o exercício do direito à dedução estabelecidos nos artigos 22.º e 23.º do CIVA e não sendo aplicável o prazo de quatro anos previsto no n.º 2 do art.º 98 do CIVA a uma situação de regularização, conclui-se que a pretensão da requerente de deduzir imposto suportado em documentos contabilizados no decurso do ano de 2008, pelo facto de ter procedido a uma errada aplicação do “rácio de dedução específico” - deve ser indeferida, em virtude de, em 2012.12.27 (data de apresentação do pedido de revisão oficiosa), também já se encontrar ultrapassado o prazo de dois anos estipulado no n.º 6 do artigo do artigo 78 do CIVA para regularizar imposto relativo ao ano de 2008 (...)”.

3) Sob a informação a que se alude em 2) recaiu em 25.03.2014 despacho de concordância com o indeferimento proposto cfr. fls. 22 do processo de revisão oficiosa junto aos autos.

4) Em 30.12.2011 a A... requereu junto do Diretor-geral dos Impostos pedido de revisão relativamente ao IVA do 0712T apurado em excesso na declaração periódica de IVA cfr. fls. 2 a 25 do processo de revisão oficiosa junto aos autos.

5) Relativamente ao pedido de revisão a que se alude em 4), foi proferida em 21.02.2014 pela Divisão de Administração da Direcção de Serviços do IVA a informação n.º ... .  Não tendo sido respeitados os prazos para o exercício do direito à dedução estabelecidos nos artigos 22.º e 23.º do CIVA e não sendo aplicável o prazo de quatro anos previsto no n.º 2 do artº 98 do CIVA a uma situação de regularização, conclui-se que a pretensão da requerente de deduzir imposto suportado em documentos contabilizados no decurso do ano de 2008, pelo facto de ter procedido a uma errada aplicação do “ratio de dedução específico – deve ser indeferida , em virtude de, em 2012.12.30 (data de apresentação do pedido de revisão oficiosa), também já se encontrar ultrapassado o prazo de dois anos estipulado no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA para regularizar imposto relativo ao ano de 2007 - cfr. fls. 25 a 31 do processo de revisão oficiosa junto aos autos.

6) Sob a informação a que se alude em 5) recaiu em 25.03.2014 despacho de concordância com o indeferimento proposto cfr. fls. 25 do processo de revisão oficiosa junto aos autos”.

Relativamente à motivação da decisão de facto a mencionada sentença do TAF Porto determinou: “O Tribunal considerou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na analise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, assim como, na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados [cfr. artigo 74º da Lei Geral Tributária (LGT)], também são corroborados pelos documentos juntos, conforme predispõe o artigo 76º n.º 1 da LGT e artigo 362º e seguintes do Código Civil”.

A sentença mencionada teve por base a seguinte fundamentação de direito, que se transcreve, no que concerne ao caso concreto:

a Impugnante deduziu os pedidos relativamente à autoliquidação do 4º trimestre do exercício de 2007 e 2008, fundamentando os seus pedidos no errado enquadramento legal que vinha fazendo relativamente aos subsídios recebidos.

Assim, a causa de pedir dos pedidos de revisão em questão nos presentes autos respeita ao erro na interpretação e aplicação do regime jurídico dos subsídios recebidos pela Impugnante e tal, não contende com erro material ou de cálculo em registos contabilísticos ou declarações adstritas ao cumprimento de obrigações tributárias, mas no denominado erro de direito.

O prazo aplicável para reclamar do IVA entregue, em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito, é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 91.º, n.º 2, actual artigo 98.º, cfr. Acórdão do TCA Norte de 5.03.2020, rec. 00412/12.7BEPRT e ainda no mesmo sentido Acórdão do STA de 17.06.2020, rec. 0443/13.0BEPRT.

Como tal, e no caso presente, o prazo para formular o pedido de revisão, em sede de IVA, é, ao abrigo do disposto no artigo 98.º n.º 2 do CIVA de quatro ano e não de dois, como decidido pela AT.

O direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, de acordo com o estabelecido pelos artigos 7.º e 8.º cfr. n.º 1 do artigo 22.º do CIVA, este é devido e torna-se exigível: a) Nas transmissões de bens, no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente; b) Nas prestações de serviços, no momento da sua realização; c) Nas importações, no momento determinado pelas disposições aplicáveis aos direitos aduaneiros, sejam ou não devidos estes direitos ou outras imposições comunitárias estabelecidas no âmbito de uma política comum cfr. n.º 1) do artigo 20.º do CIVA.

Não obstante o disposto no artigo anterior, sempre que a transmissão de bens ou prestação de serviços dê lugar à obrigação de emitir uma factura ou documento equivalente, nos termos do artigo 29.º, o imposto torna-se exigível: a) Se o prazo previsto para a emissão de factura ou documento equivalente for respeitado, no momento da sua emissão; b) Se o prazo previsto para a emissão não for respeitado, no momento em que termina; c) Se a transmissão de bens ou a prestação de serviços derem lugar ao pagamento, ainda que parcial, anteriormente à emissão da factura ou documento equivalente, no momento do recebimento desse pagamento, pelo montante cfr. n.º 1 do artigo 8.º do CIVA. Assim, respeitando o IVA em questão nos presentes autos aos períodos de 0712T e 0812T, a Impugnante teria de deduzir pedido de revisão até 31.12.2011 e 31.12.2012. Tendo os pedidos sido apresentados em 30.12.2011 e em 27.12.2012 respetivamente (cfr. pontos 4) e 1) da factualidade assente), é notório que a Impugnante deduziu os sobreditos pedidos dentro do prazo por lei permitido. Não obstante o que ficou dito, vem a Impugnante pedir a final a anulação parcial dos actos de autoliquidação de IVA, assim como o reembolso dos montantes pagos em excesso.

No entanto, atendendo às decisões impugnadas, assim como à pretensão formulada, há́ que atender ao poder do Tribunal, na medida em que este deve-se cingir à condenação da AT na apreciação dos requerimentos apresentados, in casu, a apreciação do alegado erro de direito.

Isto porque, os Tribunais não se podem substituir às entidades públicas na formulação de valorações que, por já́ não terem carácter jurídico, traduzem a realização de juízos sobre a conveniência e oportunidade da sua actuação.

Ademais, a própria Impugnante não logrou fazer qualquer prova da sua pretensão, em consonância com a sua causa de pedir.

Assim, e sendo tempestivos os pedidos de revisão oficiosa como aqui já́ foi decidido, por terem sido deduzidos no prazo de quatro anos, deverão ser apreciados os pedidos de revisão, incumbindo à AT, num 1º momento (e não ao Tribunal), a apreciação dos fundamentos invocados. Não o tendo feito, impõe-se a condenação da mesma na apreciação do requerido”.

E determinou: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, condeno a Entidade Demandada a apreciar os pedidos de revisão apresentados pela A.”; (cfr. sentença proferida Processo n.º 1508/14.6BEPRT, doc. 8 junto com o PPA).

  1. Em 20-01-2022 a AT notificou a Requerente para apresentar elementos e prestar esclarecimentos, no âmbito da ação inspetiva credenciada para o efeito pelo despacho DI2021..., tendo por referência os pedidos de revisão oficiosa de IVA de 2007 e de 2008, (cfr.  art.º 27 do PPA e docs. n.º e n.º juntos com o PPA).
  2. Na informação do pedido de revisão oficiosa n.º ...2012... com data de 24-06-2022 consta o seguinte:

“(...) 34. Assim, a priori, a situação descrita pela Requerente é suscetível de configurar um erro na qualificação de operações que levou à limitação do direito à dedução integral do imposto suportado, “nas áreas com atividades integralmente tributadas”, ou seja, o designado «erro de direito», em virtude do recebimento de subsídios não tributados, incluídos no denominador da fração do pro rata específico de cada uma das delas.

35. Não obstante, como referido pelo TAF do Porto, a Requerente “não logrou fazer qualquer prova da sua pretensão, em consonância com a sua causa de pedir”, pelo que se considerou que a DSIVA não dispunha de elementos suficientes que permitissem aferir da aceitabilidade dos valores apurados pela Requerente, revelando-se necessário confirmar se o procedimento adotado se encontra em conformidade com as regras do Código do IVA, tendo em vista a aceitação da dedução do IVA incorrido no período de tributação 0712T.

36. De salientar que, na sentença em apreço, apenas foi considerado tempestivo o pedido de revisão oficiosa do IVA incorrido por referência ao período 0712T. O que significa que, uma vez que não está em causa nos autos a situação vertida no n.º 6 do art.º 23.º do Código do IVA, ou seja, uma correção de uma dedução calculada provisoriamente, considera-se não existir base legal para a dedução, na declaração periódica referente a 0712T, de IVA que tenha sido eventualmente suportado durante outros períodos de tributação de 2007.

37. Para efeitos de cumprimento da sentença judicial que exige à AT a apreciação dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pela Requerente, ao abrigo da al. a) do n.º 2 do art.º 2 do Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), entendeu-se ser de solicitar a colaboração dos Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Direção de Finanças do Porto, com vista a aferir da aceitabilidade dos valores apurados pela Requerente, para efeitos de aceitação da dedução do IVA incorrido no período de tributação 0712T.

38. Em resposta ao pedido de colaboração, foi emitido o Despacho externo n.º DI2021... pelos serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do Porto em 2021-12-13, de âmbito parcial com extensão aos anos 2007 e 2008.

39. Com base nas diligências efetuadas, e nos elementos coligidos que foram facultados pela Requerente, no âmbito do procedimento inspetivo, foi prestada uma informação pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do Porto (anexa à presente), que se dá por integralmente reproduzida.

40. Na referida informação, foram elaborados os quadros 8 (“IVA suportado/IVA deduzido”) e 9 (“Listagem dos documentos IVA suportado e IVA deduzido”) tendo como suporte os documentos remetidos pela Requerente no âmbito da ação inspetiva, e, concretamente, os dados do documento n.º 4 anexo, referente ao «Diário de movimentos de todos os registos contabilísticos associados aos centros de custos “...” e “...” (2007 e 2008)».

41. No Quadro 8, encontra-se agregado o montante global do IVA suportado e do IVA efetivamente deduzido, por ano, nos respetivos centros de custo.

42. O elenco dos registos contabilísticos do IVA suportado e IVA deduzido com as aquisições de bens e/ou serviços diretamente afetos aos eventos “...” e “...”, consta das fls. do documento 4, que estão identificadas no Quadro 9.

43. As referidas folhas correspondem a listagens (IVA suportado e IVA deduzido) que contêm a seguinte informação: n.º do Diário, Diário, Data, Descrição, Débito, Crédito, Conta Origem, Centro, Nome Centro de Custo, IVA, Doc. e N.º Doc.

44. Para além destes elementos, a Requerente apresentou, também, os documentos de suporte que perfazem 70% do total do IVA suportado e, consequentemente, do IVA deduzido (cf. Pág. 11 da informação dos SIT).

45. Considerando que a tempestividade do pedido de revisão oficiosa se circunscreve ao IVA incorrido exclusivamente por referência ao período 0712T, e, uma vez que no Quadro 8 da informação dos SIT consta o total do IVA suportado por ano e não por período de imposto, foram extraídos, das listagens do documento n.º 4, os valores de IVA suportado no período 0712T (v. tabela Excel em anexo à presente informação – “IVA suportado”).

46. Assim, relativamente ao Centro de Custo «Academia Empreendedores», apurou-se um total de IVA suportado, e não deduzido, no período 0712T no valor de € 14.097,48.

47. Quanto ao Centro de Custo “...” apurou-se um total de IVA suportado, e não deduzido, no período 0712T no valor de € 55.613,83.

48. Uma vez que a Requerente deduziu parcialmente o imposto suportado, por aplicação dos rácios de dedução específicos apurados (v. Quadro 7 da informação dos SIT, p. 9), será́ de considerar, do valor total de IVA suportado no período 0712T, no Centro de Custo «Academia Empreendedores», apenas o restante valor não deduzido.

49. Assim, será́ de considerar que a Requerente já deduziu 9,62% de € 14.097,48, ou seja, € 1.356,18, tendo direito à dedução adicional no montante de € 12.741,30.

50. Quanto ao Centro de Custo «... », será́ de considerar que já́ deduziu 22,35% de € 55.613,83, ou seja, 12.429,70, tendo direito à dedução adicional no montante de € 43.184,13.

51. Da referida informação dos SIT, retiram-se, também algumas conclusões de direito, nomeadamente, a confirmação do entendimento da DSIVA, relativamente à impossibilidade legal, na situação vertente da Requerente, de aplicar retroativamente a prerrogativa do art.º 23.º n.º 6 do Código do IVA, para efeitos de dedução integral do imposto incorrido em todos os períodos de 2007.

52. Efetivamente, não está em causa a correção dos rácios específicos aplicados, mas sim um direito à dedução integral, que tem a sua tutela no artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA, e no art.º 78.º, n.º 2 da LGT, vigente à data dos factos, que corresponde ao regime da revisão oficiosa ao abrigo do qual foi efetuado o pedido, mas que se encontra circunscrito ao prazo comum de quatro anos, o que se encontra validado pela sentença em apreço.

53. Em suma, afigura-se ser de reconhecer um erro de direito nas autoliquidações efetuadas pela Requerente, isto é, um erro na qualificação de operações que levou à limitação indevida do direito à dedução do imposto suportado, “nas áreas com atividades integralmente tributadas”, em virtude do recebimento de subsídios não tributados, incluídos no denominador da fração do pro rata específico de cada uma das delas.

54. Não obstante, nos termos do art.º 98.º, n.º 2 do Código do IVA, e do art.º 78.º, n.º 2 da LGT, aplicáveis ao caso, e que fundamentam a procedência parcial do pedido, o pedido de revisão oficiosa é apenas tempestivo para as autoliquidações de IVA do último trimestre de 2007”.

II. JUROS INDEMNIZATÓRIOS

55. De acordo com a al. c) do n.º 3 do art.º 43.º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste.

56. Os juros são contados a partir do termo do prazo de um ano sobre a data da interposição do pedido até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos, nos termos do n.º 3 e n.º 5 do art.º 61.º da LGT.

IV. PROJETO DE DECISÃO

57. Com base na apreciação efetuada na presente informação, e na análise realizada pelos SIT da Direção de Finanças do Porto, propõe-se:

i. O deferimento parcial do pedido de revisão oficiosa dos atos de (auto)liquidação de IVA, referentes ao período 0712T, no valor de € 55.925,43;

ii. Que a Requerente seja autorizada a incluir o valor de imposto a deduzir adicionalmente de €

55.925,43 no campo 40 do Quadro 06 (e no quadro 3 do respetivo anexo – na linha "Outras Regularizações"), de uma declaração periódica de IVA a submeter até ao final do período seguinte àquele em que ocorrer a notificação da decisão;

i. O pagamento de juros indemnizatórios devidos, a que tem direito, por força da al. c) do n.º 3 do art.º 43.º da LGT, conforme referido no capítulo precedente”.

No pedido de revisão oficiosa n.º...2012... com data de 04-07-2022 consta o seguinte:

  1. Em resultado destas diligências AT, em 06-07-2022, notificou a Requerente de dois projetos de decisão nos quais propõe deferir parcialmente os aludidos pedidos de revisão oficiosa “propõe-se que a Requerente seja autorizada a incluir o valor de imposto a deduzir adicionalmente de €55.925,43 no campo 40 do Quadro 06 (e no quadro 3 do respetivo anexo - na linha "Outras Regularizações"), de uma declaração periódica de IVA a submeter até ao final do período seguinte àquele em que ocorrer a notificação da decisão.
  2. Assim, de € 55.925,43 no IVA 0712T € 14.992,04 no IVA 0812T, perfazendo um total de € 70.914,47 acrescido de juros indemnizatórios e indeferir o restante pedido de restituição de IVA de € 347.671,93 no IVA 0712T e € 259.937,74 no IVA 0812T, perfazendo um total de € 609.609,67, projetos que vieram a ser confirmados pelo despacho de indeferimento parcial, notificado pelo ofício de 07-11-2022 da AT e contra o qual é apresentado o presente pedido de pronúncia arbitral, constituindo o seu objeto imediato e as liquidações de IVA que constituem o objeto mediato; (cfr. Docs. 11 e 12 juntos com o PPA).

 

3.2. Factos não provados

Não ficou provado que:

a) A Requerente em 2007 e 2008 estava enquadrada no regime normal trimestral de IVA;

b) As autoliquidações objeto do PPA são declarações de IVA trimestral relativas aos últimos trimestres de 2007 e 2008.

 

3.3. Fundamentação da matéria de facto

O Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria de facto alegada, mas antes selecionar a que interessa à decisão, tendo em conta a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo autor, e decidir se a considera provada ou não provada, conforme artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT.

Tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal deve basear a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência.

Assim, e tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, como prevê o artigo 110.º

do CPPT, relativa à prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para

a decisão, os factos supra elencados.

 

4. Matéria de Direito

Este Tribunal Arbitral ao verificar os pressupostos processuais da presente ação considerou a possibilidade da procedência da exceção do caso julgado ou caducidade do direito à ação as quais são de conhecimento oficioso e obrigatório por parte do tribunal notificou as partes dessa possibilidade através do Despacho de 27- 12.2023, a que a Requerente respondeu.

 

A Requerente apresenta um Pedido como se fora o primeiro, como se não já tivesse sido proferida uma sentença por um Tribunal Administrativo e Tributário, que conheceu do mérito da causa, e pretende que seja proferido Decisão Arbitral que mande regularizar no campo 40 das respetivas declarações periódicas 07/4T e 08/4T tendo por referência os 1.os, 2.os e 3.os trimestres de IVA de 2007 e 2008, sem que para isso junte meios de prova que permitam a este Tribunal conhecer se é um sujeito passivo de IVA integrado no regime normal trimestral, quando é suposto que, atendendo ao volume de negócios, a Requerente estaria em 2007 e 2008 no regime normal mensal.

Em cumprimento do determinado na sentença do TAF do Porto proferida em 13-03-2021 no Processo n.º 1508/14.6BEPRT, a AT deferiu parcialmente os aludidos pedidos de revisão oficiosa por despachos de 04 -11-2022 acima transcritos.

Na sentença do TAF do Porto mencionada, ficou assente a matéria de facto, o pedido, a causa de pedir, foi apreciado o mérito da causa e foi proferida uma sentença.

Nos presentes autos a Requerente no pedido formulado pretende que este Tribunal se pronuncie sobre a relação material controvertida que já foi objeto de conhecimento e decisão judicial pela sentença do TAF do Porto, Processo n.º 1508/14.6BEPRT.

Sentença que também delimitou a posterior intervenção da AT suscitada na apreciação das reclamações graciosas inicialmente apresentadas.

A exceção dilatória de caso julgado obsta ao conhecimento do mérito da causa e implica a absolvição da Requerida da presente instância, nos termos do disposto no artigo 577.º, i) e 278.º, n.º 1, a) do CPC, pelo que se torna necessário analisar a sua procedência a qual terá consequências no conhecimento do mérito do pedido arbitral. Estas normas do Código de Processo Civil são aplicáveis ao processo arbitral tributário, ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Vejamos

 

1. A exceção do caso julgado nos termos do n.º 1 do artigo 581.º do CPC ex vi do artigo 29.º e) do RJAT enuncia os requisitos do caso julgado:

“1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.

2. Para se pronunciar sobre o mérito da ação este Tribunal Arbitral ficaria colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a sentença proferida no Proc. 1508/14.6BEPRT, sentença transitada em julgado e que deu como assentes os factos provados, fez a fundamentação de direito com base nesses factos e delimitou a intervenção posterior da AT, que como tal tem de ser considerada no seu todo, tal como escreveu Miguel Teixeira de Sousa “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”, in Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil”, Edições Ática, págs. 43 e 44.

E, como afirmou o Acórdão do STJ de 29 de Abril de 2010, proferido no Proc. n 102/2001.L1.S1),“é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”, escrevem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 715”.

3. O Acórdão do Supremo Tribunal de 16 de Novembro de 2023, Proc. n.º 1044/18.1T8VNF-A.G1.S1, afirmou que “A interpretação de uma sentença obriga a considerar, além da sua parte decisória, a respectiva fundamentação o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes; para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido apurado tem a devida tradução no texto”.

(...) saber se uma decisão judicial contradiz uma decisão já transitada, proferida no mesmo processo ou num processo anterior, implica naturalmente determinar o âmbito do que não pode ser contrariado - o que é o mesmo que dizer o âmbito do caso julgado -, sob pena de, no mínimo, ineficácia da segunda decisão (n.ºs 1 e 2 do artigo 625.º do Código de Processo Civil). Esta desconsideração da segunda decisão é a protecção última do caso julgado, a considerar quando falhou a barreira da excepção de caso julgado, formal ou material”.

4. O artigo 621.º do Código de Processo Civil esclarece a propósito do alcance do caso julgado que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”. Quanto ao entendimento da jurisprudência é de enunciar o Acórdão do STJ de 12-07-2011 proferido no Proc. 129/07.4TBPST.S1, no que se refere ao disposto no atual artigo 621.º do CPC (artigo 673.º CPC 1961): “(…) 3. A expressão “limites e termos em que julga”, constante do art. 673º do CPC, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção.

4. Tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.

(...)

A expressão “limites e termos em que julga”, constante do artigo 673º, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou dos pedidos formulados na acção.

Vistas as coisas na perspectiva do respeito pela autoridade do caso julgado, ou seja, da aferição do âmbito e dos limites da decisão (“termos em que a sentença julga” – artigo 673º do CPC), tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.

(...) Efectivamente, a decisão não é mais nem menos do que a conclusão dos pressupostos lógicos que a ela conduzem – precisamente, os fundamentos – e aos quais se refere”.

5. Como tem sido repetidamente afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, para interpretar uma sentença não basta considerar a sua parte decisória, “cabendo tomar na devida conta a respectiva fundamentação o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes (acórdão de 8 de Junho de 2010, www.dgsi.ptproc. nº 25.163/05.5YLSB.L1.S1). Para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido tem a devida tradução no texto (cfr., com o devido desenvolvimento, o acórdão de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 190-A/1999.E1.S1 e o acórdão de 25 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 351/09.9YFLSB)”.

6. Sobre o caso julgado a doutrina é unanime em afirmar que se forma caso julgado quando uma decisão judicial adquire força obrigatória, por ela não se poder já reclamar nem recorrer por via ordinária. Cfr. Acórdão do STA de 13-01-2022, proferido no Proc. 043/13.4BEPRT, que transcreve o entendimento de Manuel de Andrade, Antunes Varela, Alberto dos Reis, Rodrigues Bastos sobre a exceção do caso julgado: “No entanto, conforme se concluiu acima, a nossa lei consagrou a teoria da consubstanciação, abrangendo-se no caso julgado os factos invocados que eram determinantes para a procedência da primeira ação.

O caso julgado abrange também todas as qualificações jurídicas do objeto apreciado, o que releva é a identidade dos factos com relevância jurídica e não das qualificações que podem ser atribuídas a esse fundamento.

Não obstante o distinto enquadramento jurídico que a autora, agora, faz para basear a sua pretensão, o que é determinante é ter alegado em ambas as ações os mesmos factos essenciais, havendo, por conseguinte, identidade de causa de pedir”.

Como referido por Manuel de Andrade, o caso julgado obsta «a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por uma anterior decisão, e portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados».

Referia igualmente Antunes Varela que «a ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido, antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado como decorre do nº 4 do art.º 581º do CPC existe "(...) identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.”

Como afirmava ainda Alberto dos Reis, no seu Código de Processo Civil Anotado, vol. III, págs. 121, 124, "há que repelir antes do mais a ideia de que a causa petendi seja a norma de lei invocada pela parte. A ação identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstrata da lei, mas pelos elementos de facto que converteram em concreto a vontade legal.

Daí vem que a simples alteração do ponto de vista jurídico não implica alteração da causa de pedir", mais acrescentando que: “o Tribunal não conhece de puras abstrações, de meras categorias legais; conhece de factos reais, particulares e concretos e tais factos quando sejam suscetíveis de produzir efeitos jurídicos, é que constituem a causa de pedir.”

Referiu Rodrigues Bastos - “Notas ao Código de Processo Civil", Volume III, páginas 60 e 61 -, que "(...) enquanto que a força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, a exceção destina-se a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual”.

7. João de Castro Mendes escreveu, in “Direito Processual Civil”, A.A.F.D.L, 1980, III vol. pág. 276: “caso julgado formal traduz a força obrigatória dentro do processo, enquanto o caso julgado material, a sua força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida.

E José Lebres de Freitas, afirma in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 354: “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito”.

8. Também Miguel Teixeira de Sousa, escreveu in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 578: “O caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (art. 659.°, n.º 2, “in fine”, e 713.° n.º 2), que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento ou indeferimento da providência solicitada. Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respetivos caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto o pressupostos daquela decisão”.

9. De salientar que a autoridade do caso julgado não se limita aos contornos definidos nos artigos 580.º e ss. do CPC para a exceção do caso julgado, estendendo-se às situações em que, apesar da ausência formal da tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento do caso julgado esteja notoriamente presente, como acorre nestes autos em que o pedido consiste na anulação do indeferimento do pedido de revisão oficiosa que a Requerente recorta e, não podemos deixar de dar destaque ao facto da Requerente não provar neste arbitral o facto de estar enquadrada no regime trimestral de IVA nem que as declarações de IVA impugnadas são declarações trimestrais e não mensais.

10. Também se refere à autoridade do caso julgado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 2023, proferido no Processo n.º 141/21.0YHLSB-A.L1.S1: “1. Para que uma decisão possa valer com força e autoridade de caso julgado em processo diverso daquele no qual foi proferida, não se exige a repetição em simultâneo dos três elementos de identificação de uma acção, que permitem concluir pela repetição de causas: sujeitos, pedido e causa de pedir.

2. O que fundamenta a especial protecção da força e autoridade de uma decisão transitada, para além do prestígio dos tribunais, é a certeza e segurança na definição dos direitos sobre os quais incide.

3. O relevo deste valor explica os mecanismos que a lei processual prevê para a sua defesa”.

11. Neste sentido o Acórdão do STJ de 21-06-2022, proferido no Proc. 43/21.0YHLSB.L1-A.S1: “Com o caso julgado visa-se, essencialmente, assegurar a certeza e segurança jurídicas que se afiguram indispensáveis à vida em comunidade, impedindo a verificação de decisões judiciais incompatíveis entre si, podendo ser material ou formal, conforme a decisão verse sobre a relação material controvertida ou recaia sobre a relação processual”.

12. No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do STJ, de 09-03-2021, proferido no Proc. 1242/05.8TBBCL-Y.G1.S1, que refere: “VI - Autoridade do caso julgado que não depende da verificação da tríplice identidade prevista no art. 581.º, n.º 1, do CPC, não prescindindo, porém, da identidade de sujeitos e que, em termos de objetos processuais, haja conexão entre o objeto decidido e o a decidir e que o resultado favorável do segundo processo represente uma decisão que contraste com a decisão da antes proferida”.

13. Assim, a determinação do âmbito do caso julgado postula a interpretação prévia da decisão, isto é, a determinação exata do seu conteúdo (rectius, dos seus “precisos limites e termos”).

14. O caso julgado material tem força obrigatória dentro e fora do processo, impedindo que o mesmo tribunal, ou outro tribunal, possa decidir de modo diferente sobre a mesma pretensão (artigo 619.º, n.º 1 do CPC ex vi art. 29.º, n.º1, e) do RJAT).

 Decidiu neste sentido o Acórdão do STA de 28-04-2021, proferido no Proc. 0266/20.0BEFUN: “I -A sentença de mérito proferida por um tribunal tributário (estadual ou arbitral) e transitada em julgado só vincula as partes que intervieram no processo (cf. art. 619.º, n.º 1 do CPC, onde se refere que, após o trânsito, «a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º», sendo um desses limites o subjectivo, nos termos do qual o caso julgado apenas se impõe aos sujeitos que puderam exercer o contraditório sobre o objecto da decisão)”. No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do STJ, de 11-11-2021, proferido no Proc. 1360/20.2T8PNF.P1.S1:

15. Assim, o caso julgado é uma exceção dilatória e que obsta a que um Tribunal conheça do mérito da causa (artigo 576.º, n.º 2 do CPC ex vi art. 29.º, n.º 1, e) do RJAT).

O caso julgado tem por fim evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (cfr. o artigo 580.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, e) do RJAT).

16. Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-12-2017, proferido no Processo 3435/16.3T8VIS-A.C, que refere: “a expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega, tanto constitui caso julgado a sentença que condena como aquela que absolve. O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A primeira manifesta-se através de autoridade do caso julgado, visando impor os efeitos de uma primeira decisão, já transitada (fazendo valer a sua força e autoridade), enquanto que a segunda de manifesta-se através de exceção de caso julgado, visando impedir que uma causa já julgada, e transitada, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou a repetição de decisões, assumindo-se, assim, ambos como efeitos diversos da mesma realidade jurídica.

Enquanto na exceção de caso julgado se exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as ações em confronto, já na autoridade do caso julgado a coexistência dessa tríade de identidades não constitui pressuposto necessário da sua atuação.

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade.”

 

Termos em que face ao exposto decide-se julgar procedente a exceção dilatória do caso julgado, suscitada oficiosamente por este Tribunal Arbitral e em consequência absolver a Requerida da Instância, abstendo-se nos termos legais de conhecer do mérito da ação.

 

Improcedendo o conhecimento do mérito da ação fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nos autos.

 

5. Decisão

Em face do exposto o Tribunal decide o seguinte:

  1. Julgar procedente a exceção dilatória do caso julgado, suscitada oficiosamente por este Tribunal Arbitral e em consequência absolver a Requerida da Instância, abstendo-se nos termos legais de conhecer do mérito da ação.
  2. Condenar a Requerente nas custas do Processo.

 

6. Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do RCPAT, fixa-se ao processo o valor de € 609.609,67 por ser esse o indicado pela Requerente e não contestado.

 

7. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 9 180,00, nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, que ficam a cargo Requerente.

 

Notifique-se

 

Lisboa, 2 de fevereiro de 2024

 

Os Árbitros

 

__________________

(Prof. Doutora Regina de Almeida Monteiro - Presidente)

 

 

_____________________

(Dr. Arlindo José Francisco - Adjunto)

 

 

__________________________

(Dra. Filipa Barros –Adjunto –

Votando vencido conforme declaração junta)

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO

 

Apresentarei de forma sucinta as razões do meu voto discordante.

 

O presente coletivo entende encontrar-se verificada a exceção do caso julgado por considerar que a Requerente já havia apresentado junto do TAF do Porto, em 01.07.2014, um pedido em tudo idêntico ao pedido de pronúncia arbitral ora controvertido, relativamente ao indeferimento de dois pedidos de revisão oficiosa do IVA apurado em excesso nas declarações periódicas relativas ao 4.º trimestre de 2007, e 4.º trimestre de 2008, ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 do artigo 78.º da LGT e do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA.

Importa começar por relembrar o contexto do presente pedido.

Seguindo de perto as orientações genéricas da AT nesta matéria, a Requerente limitou o direito de dedução do IVA, por força do recebimento de subvenções não tributadas e incluídas no denominador da fração do pro rata específico de cada uma das áreas de atividade.

Entretanto, o TJUE no Acórdão de 06-10-2005, processo C-204/03, veio esclarecer que as subvenções não tributadas, destinadas a operações tributáveis, não devem influenciar o pro rata de dedução.

Assim, no contexto de aplicação do método de afetação real com os rácios de dedução específicos, a Requerente entendeu que o direito à dedução do imposto suportado em áreas em que praticara exclusivamente operações tributáveis não poderia ser afetado pelo recebimento de subvenções não tributadas afetas a essas operações, sem prejuízo de essas subvenções virem a integrar o pro rata geral aplicável ao IVA incorrido nos custos que são comuns a toda a atividade. Tendo sido o direito à dedução limitado nessas áreas – por as subvenções não tributadas, ainda que afetas a operações tributáveis, terem influenciado o pro rata geral –, o IVA não deduzido deveria no entender da Requerente ter sido integralmente regularizado a seu favor, o que se operacionalizava no campo 40 nas respetivas declarações periódicas dos últimos períodos dos anos de 2007 e 2008 a que respeitam, nos termos e para os efeitos do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA.

Dessas declarações periódicas, a Requerente apresentou os referidos pedidos de revisão oficiosa de IVA por referência a 2007 e 2008.

A AT indeferiu os pedidos de revisão oficiosa com fundamento em intempestividade, por entender que a regularização em causa deveria ter sido peticionada no prazo de 2 anos, pois estariam em causa erros materiais ou de cálculo, ao abrigo do n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA.

Dessas decisões de indeferimento a Requerente intentou a ação de impugnação judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que deu origem ao processo n.º 1508/14.6BEPRT, tendo o TAF decidido pela tempestividade dos pedidos, e condenado a AT na apreciação dos fundamentos invocados nos pedidos de revisão oficiosa, em sentença transitada em julgado, nos seguintes termos:

A causa de pedir dos pedidos de revisão em questão nos presentes autos respeita ao erro na interpretação e aplicação do regime jurídico dos subsídios recebidos pela Impugnante e tal, não contende com erro material ou de cálculo em registos contabilísticos ou declarações adstritas ao cumprimento de obrigações tributárias, mas no denominado erro de direito (…).

Como tal, e no caso presente, o prazo para formular o pedido de revisão, em sede de IVA, é, ao abrigo do disposto no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA de quatro anos e não de dois, como decidido pela AT (…).

Não obstante o que ficou dito, vem a Impugnante pedir a final a anulação parcial dos actos de autoliquidação de IVA, assim como o reembolso dos montantes pagos em excesso.

No entanto, atendendo às decisões impugnadas, assim como à pretensão formulada, há que atender ao poder do Tribunal, na medida em que este deve-se cingir à condenação da AT na apreciação dos requerimentos apresentados, in casu, a apreciação do alegado erro de direito.

Por conseguinte, os pedidos de revisão oficiosa regressaram à AT para ser objeto de reapreciação nos seus fundamentos, tendo para esse efeito a Requerente apresentado a informação solicitada pelos serviços, designadamente para efeitos da determinação do apuramento do IVA dedutível.

Sucede que em execução da sentença do TAF, (alínea j do probatório) vem a AT apresentar uma Informação Anexa ao Pedido de Revisão Oficiosa, com data de 24-06-2022, referindo, designadamente, o seguinte: “36. De salientar que, na sentença em apreço, apenas foi considerado tempestivo o pedido de revisão oficiosa do IVA incorrido por referência ao período 0712T. O que significa que, uma vez que não está em causa nos autos a situação vertida no n.º 6 do art.º 23.º do Código do IVA, ou seja, uma correção de uma dedução calculada provisoriamente, considera-se não existir base legal para a dedução, na declaração periódica referente a 0712T, de IVA que tenha sido eventualmente suportado durante outros períodos de tributação de 2007.” (sublinhado nosso).

E prossegue a AT na explicação da sua tese: “45. Considerando que a tempestividade do pedido de revisão oficiosa se circunscreve ao IVA incorrido exclusivamente por referência ao período 0712T, e, uma vez que no Quadro 8 da informação dos SIT consta o total do IVA suportado por ano e não por período de imposto, foram extraídos, das listagens do documento n.º 4, os valores de IVA suportado no período 0712T (v. tabela Excel em anexo à presente informação – “IVA suportado”).

46. Assim, relativamente ao Centro de Custo «Academia Empreendedores», apurou-se um total de IVA suportado, e não deduzido, no período 0712T no valor de € 14.097,48.

47. Quanto ao Centro de Custo “...” apurou-se um total de IVA suportado, e não deduzido, no período 0712T no valor de € 55.613,83.

48. Uma vez que a Requerente deduziu parcialmente o imposto suportado, por aplicação dos rácios de dedução específicos apurados (v. Quadro 7 da informação dos SIT, p. 9), será́ de considerar, do valor total de IVA suportado no período 0712T, no Centro de Custo «Academia Empreendedores», apenas o restante valor não deduzido.

49. Assim, será́ de considerar que a Requerente já deduziu 9,62% de € 14.097,48, ou seja, € 1.356,18, tendo direito à dedução adicional no montante de € 12.741,30.

50. Quanto ao Centro de Custo «... », será́ de considerar que já́ deduziu 22,35% de € 55.613,83, ou seja, 12.429,70, tendo direito à dedução adicional no montante de € 43.184,13.

51. Da referida informação dos SIT, retiram-se, também algumas conclusões de direito, nomeadamente, a confirmação do entendimento da DSIVA, relativamente à impossibilidade legal, na situação vertente da Requerente, de aplicar retroativamente a prerrogativa do art.º 23.º n.º 6 do Código do IVA, para efeitos de dedução integral do imposto incorrido em todos os períodos de 2007. (sublinhado nosso).

 

Ora, perante o exposto, o presente Coletivo entendeu que se verifica uma repetição da causa o que conduz à absolvição da instância nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 4, alínea d), do CPTA.

Compulsando os diversos articulados é possível constatar que argumentação da AT vertida na supra referida informação dos SIT, e posteriormente reiterada em sede de resposta ao pedido arbitral, é a de que a regularização do direito à dedução no caso concreto só possa ser exercida dentro do prazo previsto no n.º 6 do artigo 23.º, em derrogação do prazo de quatro anos.

Por conseguinte, nos mais recentes despachos de indeferimento parcial dos pedidos de revisão oficiosa, que constituem a causa de pedir da presente ação, a AT considerou apenas tempestivos os pedidos de revisão oficiosa das declarações periódicas de IVA dos 4.ºs trimestres de 2007 e de 2008, na parte respeitante a estes últimos períodos (0712T e 0812T). Para tal apresentou como justificação um novo argumento, diferente do tipo de intempestividade invocada nos pedidos anteriores, baseada “em erro material ou de cálculo”, e que havia sido objeto da decisão do TAF.

Assim, no presente pedido de pronúncia arbitral, a questão colocada é a de saber se a norma contida no n.º 6 do artigo 23.º do Código IVA poderá ser utilizada, em conjugação com o n.º 2 do artigo 98.º do mesmo diploma, questão que foi levantada pela AT no âmbito da segunda revisão aos pedidos de revisão oficiosa da Requerente e que nunca foi objeto de apreciação pelo anterior julgador.

Aliás, a propósito da apreciação do âmbito de aplicação da norma contida no n.º 6 do artigo 23.º do Código IVA, em derrogação do prazo geral de 4 anos, (conforme defende a AT nesta ação), não se vislumbra ter sido aduzido pelo TAF do Porto qualquer argumentação específica. 

Ora, só nos casos em que exista a possibilidade de repetição do julgamento de uma causa anterior e de reprodução ou contradição do que foi decidido (artigo 580.º, n.ºs 1 e 2 do Código do Processo Civil (CPC)), é que o Tribunal deve julgar procedente a exceção dilatória de caso julgado e abster-se de emitir uma pronúncia quanto ao mérito (artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea i), ambos do CPC).

Nos termos do artigo 581.º do CPC, esta possibilidade de contradição entre decisões verifica-se “quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir” (n.º 1), havendo “identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” (n.º 2), verificando-se “identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” (n.º 3) e ocorrendo “identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico” (n.º 4).

Vejamos:

No presente processo, a Requerente delimita o objeto do pedido por referência à questão de saber se “estavam reunidos os pressupostos para formular os pedidos de revisão oficiosa a 30-12-2011 e 27-12-2012, relativamente aos três primeiros trimestres dos anos de 2007 e 2008, por aplicação conjugada do n.º 6 do artigo 23.º e do n.º 2 do artigo 98.º, ambos do Código do IVA.” (sublinhado nosso)

Deste modo, a eventual anulação das segundas decisões de indeferimento parcial praticadas pela AT relativas ao direito à dedução do imposto não apurado corretamente nos 1.ºs, 2.ºs e 3.ºs dos anos 2007 e 2008, não seria meramente consequencial da anulação julgada pelo TAF relativa à primeira decisão de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pela Requerente, cujos fundamentos, primeiramente apresentados, sequer constituem objeto deste pedido (vide pontos 48.º a 78.º do PPA).

  Ora, os efeitos do caso julgado material poderão projetar-se numa relação processual posterior por duas vias: ou através da invocação da força de caso julgado, que vincula o tribunal a aplicar a definição do direito já transitada em julgado relativamente a uma questão prejudicial que volte a suscitar-se numa outra ação; ou através da invocação de uma exceção dilatória, que impede que o tribunal se pronuncie noutro processo sobre a questão de mérito já anteriormente decidida, e que determina a absolvição da instância (artigos 577º, alínea i), do CPC e 89.º, n.º 4, alínea i), do CPTA).

No primeiro caso, o tribunal limita-se a adotar o conteúdo da decisão anterior relativamente ao aspeto jurídico que se encontra coberto pelo caso julgado; no segundo caso, o tribunal não tem de emitir qualquer pronúncia e declara extinta a instância.

No entanto, o caso julgado, conforme prevê o artigo 581.º do CPC, pressupõe a total identidade do objeto do processo relativamente a um outro já anteriormente decidido, quanto aos sujeitos, quanto ao pedido e à causa de pedir.

A verificação de uma exceção de caso julgado depende, não só de uma identidade de sujeitos e do pedido, mas também do mesmo fundamento substantivo (cfr. artigo 581.º do CPC).

Como bem sublinha Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex-Edições Jurídicas, p. 578:

“[o] caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (art. 659.°, n.º 2, “in fine” [atual artigo 607.º, n.º 3 do CPC], e 713.° n.º 2 [atual artigo 663.º, n.º 2 do CPC]), que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento ou indeferimento da providência solicitada. Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respetivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos.

Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respetivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”. (sublinhado nosso).

 

Retomando a referida doutrina, a mera existência de uma ilegalidade originária comum aos dois processos, consubstanciada na limitação imposta ao sujeito passivo do direito à dedução do IVA em virtude do recebimento de subvenções não tributadas, que eram incluídas no denominador da fração do pro rata específico de cada uma das áreas, não determina por si só, salvo melhor opinião, a verificação dos pressupostos de aplicação de caso julgado.

Em tudo isto, há ainda dois aspetos particulares que importa destacar:

  1. O primeiro é ter havido uma decisão jurisdicional que reconheceu o direito da  Requerente a corrigir, no prazo de 4 anos, o IVA que foi apurado em excesso em virtude de “erro de direito”, anulando o indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado o qual havia sido considerado extemporâneo por se considerar que estavam em causa “erros materiais ou de cálculo”. Ora, cumpria à AT dar execução à referida decisão, dever de execução que não estava dependente de qualquer condição a cumprir pelo sujeito passivo (vide, artigo 100.º da LGT).
  2. O Segundo aspeto a destacar, é que apesar do reconhecimento jurisdicional da existência de uma situação ilegal, a AT não promove a reconstituição da situação tributária substantiva que existiria se o ato ilegal não tivesse sido praticado, e ademais socorre-se em sede de execução de sentença, do novos argumentos de natureza jurídica relativos à “impossibilidade legal, na situação vertente da Requerente, de aplicar retroativamente a prerrogativa do art.º 23.º n.º 6 do Código do IVA, para efeitos de dedução integral do imposto incorrido em todos os períodos de 2007” – argumentos que, em substância, colocam em causa a possibilidade de revisão oficiosa dos atos, que implicariam o reconhecimento de correções anuais (e não trimestrais) dos rácios específicos de dedução, nos termos do artigo 78.º da Lei Geral Tributária, e como igualmente impõem o n.º 1 e n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, isto porque se constatou que foi liquidado imposto superior ao devido por “motivos imputáveis aos serviços”, no âmbito do denominado “erro de direito.” 

 

Decorre do referido, e da leitura dos vários articulados apresentados pelas partes, que o fundo comum entre as duas ações se plasma na existência de um sujeito passivo que, na prática, vê negado, e posteriormente limitado, o seu direito a pedir a revisão do IVA apurado em excesso, em consequência da aplicação de orientações administrativas ilegais. Porém, tal direito é denegado com base em procedimentos administrativos autónomos e assenta em razões de direito diferentes.

Ora, à luz dos normativos legais supra mencionados, no caso de o autor intentar uma nova ação num momento em que venham a ser invocadas e alegadas novas circunstâncias de que depende o exercício do seu direito (v.g. a verificação por parte da AT da  “impossibilidade legal, (...) de aplicar retroativamente a prerrogativa do art.º 23.º n.º 6 do Código do IVA, para efeitos de dedução integral do imposto incorrido em todos os períodos de 2007 (e de 2008)) o autor pode prevalecer-se do novo pedido sem que lhe seja oponível a exceção de caso julgado, ao abrigo do artigo 621.º do CPC.

Por conseguinte, entendo que o fundamento material da pretensão da Requerente não é de todo coincidente com aquele que fora aduzido na primeira ação que culminou com uma decisão pela tempestividade dos pedidos, dado estar em causa erro na interpretação e aplicação do regime jurídico dos subsídios recebidos pela Requerente, enquadrável no denominado erro de direito.

Assim sendo, no presente caso, não há identidade de pedido, na medida em que a Requerente não pretende reagir de novo contra a decisão da AT de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa com base na existência de um erro material ou de cálculo. A Requerente formula no presente processo um novo pedido contra a decisão da AT, consubstanciada num deferimento parcial referente às regularizações constantes das declarações periódicas de IVA dos 4.ºs trimestres, por inaplicabilidade retroativa do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA.

E também não há identidade de causa de pedir, no ponto em que o pedido apresenta agora fundamentos próprios dirigidos contra a tese da AT de que o n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA veda a possibilidade de recorrer ao mecanismo da revisão oficiosa no prazo de 4 anos, após a respetiva liquidação, nos termos do n.º 1 e n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, (pontos 48.º e seguintes do PPA) fundamentos que não foram mobilizados no processo anterior.

Neste contexto, e salvo melhor opinião, entendo que a exceção de caso julgado não se encontra verificada nos presentes autos. Consequentemente, cumpriria ao Tribunal conhecer do mérito do pedido da Requerente.

  Na hipótese da aplicação tese que subscrevo supra, entendo que sob o ponto de vista do mérito da ação, a Requerente também teria razão.

Com efeito, a posição transmitida pela AT para negar o direito à regularização do IVA da Requerente, aliás mantida em sede de resposta, apoia-se no entendimento de que o n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA, sendo uma disposição especial, se sobrepõe à aplicação do artigo 98.º do Código do IVA, e ao prazo de previsto de 4 anos para a correção de erros de direito que ocorram no âmbito do cálculo do pro rata dos sujeitos passivos mistos. Tal doutrina administrativa mereceu o apoio de algumas decisões produzidas pelo CAAD, as quais, salvo devido respeito, não subscrevo.[1]

Quanto à alegada conformidade de tal doutrina com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é invocado o Acórdão emanado pelo TJUE no processo C-661/18, de 30.04.2020, 

Contudo, ao contrário do entendimento da Requerida, a jurisprudência emanada no processo C-661/18, reafirma que o princípio da efetividade se opõe a uma regulamentação nacional “que é suscetível de privar um sujeito passivo da possibilidade de retificar as suas declarações de IVA quando o pro rata definitivo tiver sido fixado e isso apesar de o prazo de caducidade de quatro anos previsto na referida regulamentação ainda não ter expirado.” (vide ponto 60).

Acresce que, tal como se refere, assertivamente, na decisão arbitral proferida do processo arbitral n.º 919/2019-T[2],  o n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA não se sobrepõe ao n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA, e em nenhum momento exclui a possibilidade de utilizar a revisão oficiosa prevista no artigo n.º 1 do 98.º do Código do IVA, ou indica que o prazo dos ajustamentos constantes do n.º 6 do artigo 23.º, é um prazo de caducidade do direito à dedução, admitindo assim, a contrario, a alteração do método de dedução, em situações de “erro”.

Ademais, não existe qualquer referência no n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA às "disposições especiais" do artigo 23.º do Código do mesmo imposto, e a única condição na sua aplicação é que "tenha sido liquidado imposto superior ao devido por motivos imputáveis aos serviços”, pois o n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA remete para o mecanismo de revisão oficiosa do artigo 78.º da LGT quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido.

Ora, à data dos factos – 2011 e 2012 – o n.º 2 do artigo 78.º da LGT ficcionava que se considera imputável aos serviços, para efeitos da revisão oficiosa, o erro na autoliquidação, sendo a revisão possível no prazo de 4 anos após a respetiva autoliquidação.

Afasta-se, por conseguinte, a tese de que os sujeitos passivos mistos sejam reféns do prazo previsto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA, para correção de deduções incorretamente realizadas por “erro” material ou de cálculo ou “erro de direito”, que impliquem alterações ao pro rata de dedução, pois seria o equivalente a considerar que as “alteração retroativas ao método de dedução” nunca poderiam resultar de “erro”, sendo certo que da jurisprudência constante do Acórdão do TJUE, emitida no processo C-661/18, não resulta tal limitação, nem a mesma se encontra vertida, na lei nacional, sobretudo quando considerada, de forma global, a redação legal dos artigos 23.º n.º 6, 98.º ns.º 1 e 2 do Código do IVA e 78.º ns.º 1 e 2 da LGT, vigente na data dos factos.[3]

A própria jurisprudência do STA tem afirmado que para a correção de “erros” sejam erros materiais ou de cálculo, sejam erros de direito, e designadamente os que culminem numa alteração das percentagens de dedução, ou numa alteração do próprio método de dedução, o prazo legalmente previsto não é o do artigo 23.º n.º 6 do Código do IVA, pois tal equivaleria afirmar que os sujeitos passivos mistos não teriam nunca a possibilidade de corrigir as suas deduções em caso de ocorrência de erro.[4]

Finalmente, e como bem refere a Requerente, seguindo os ditames de grande parte da doutrina e da jurisprudência do TJUE, a vigência de um prazo de quatro anos para exercer a regularização de IVA a favor do sujeito passivo, em situações de erro, é conforme aos princípios da efetividade e da equivalência, sendo de afastar, por desproporcionada e discriminatória, uma solução em que impeça os sujeitos passivos mistos de aceder à regularização das deduções incorretamente realizadas “por erro”, nos casos em que o recurso às regras constantes do artigo 78.º n.º 6 e do artigo 98.º n.º 2 do Código do IVA seria admissível.[5]   

 

 

Filipa Barros

 

 

 



[1] Vejam-se a respeito o Acórdão do CAAD no processo n.º 611/2022-T de 26.06.2023, e o Acórdão do CAAD no processo n.º 649/2022-T de 01.08.2023.

[2] Acórdão do CAAD proferido no processo n.º 919/2019-T de 26.10.2020.

[3] No mesmo sentido, Decisão Arbitral do CAAD, proferida no processo n.º 28/2017-T

[4] A título meramente exemplificativo, vide Acórdão do STA, no Processo n.º 1427/14, de 28-6-2017.

[5] Como exemplo de autores que se pronunciaram a respeito deste tema, veja-se Afonso Arnaldo/Tiago Albuquerque Dias, “Afinal qual o prazo para deduzir IVA? Regras de Caducidade e (In)segurança jurídica”, Cadernos de IVA 2014, Serena Cabrita Neto/Leonardo Marques/Priscila Santos, “A Regularização do IVA em Casos de Erro no Apuramento do pro rata: Questões Processuais”, Cadernos IVA 2015; Alexandra Martins/ André Areias, “Os Prazos para a Regularização de Erros: Análise à Luz dos Princípios da Efectividade e Equivalência”, Cadernos IVA 2017.