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SUMÁRIO:
I – Para além de prever a suspensão do prazo de caducidade do direito à exclusão da tributação dos rendimentos de mais-valias, o legislador atribuiu, no n.º 6 do artigo 50.º da Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro, eficácia retroativa ao início da suspensão.
II – A entrada em vigor da norma que veio determinar a suspensão do prazo para o reinvestimento, previsto na alínea b) do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, durante um período de dois anos, com efeitos a 1 de janeiro de 2020, torna superveniente ilegal o ato tributário objeto da presente ação arbitral.
III – Tendo a Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro, entrado em vigor no dia imediato ao da sua publicação, estava a AT legalmente obrigada a rever o ato tributário impugnado, ficando constituída no dever de indemnizar os Requerentes, a partir daquela data.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
Em 7 de agosto de 2023, A..., com o NIF ... e mulher, B..., com o NIF..., residentes na Rua ..., n.º ..., ..., ..., em Lisboa (doravante designados por Requerentes), vieram, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), não tendo utilizado a faculdade de designar árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD em 9 de agosto de 2023 e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.
A. Objeto do pedido:
Os Requerentes pretendem a declaração de ilegalidade e a consequente anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2022..., referente ao ano de 2018, da quantia de € 38 877,58, a cujo pagamento voluntário procederam em 5 de janeiro de 2023.
Pedem igualmente a declaração de ilegalidade das decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do subsequente recurso hierárquico apresentados com vista à anulação da referida liquidação de IRS, bem como a restituição do indevido, acrescido de juros indemnizatórios.
B. Fundamentação do pedido:
Está na origem da liquidação de IRS impugnada nos autos a correção promovida pela Autoridade Tributária e Aduaneira ao rendimento coletável dos Requerentes referente ao ano de 2018, por desconsideração do reinvestimento por estes efetuado na aquisição de habitação própria e permanente, de que decorreu a consequente tributação da mais-valia apurada com a alienação do imóvel que anteriormente tivera a mesma destinação.
Os Requerentes deduziram reclamação graciosa pugnando pela ilegalidade da referida liquidação de IRS, com a alegação de que, não obstante a escritura pública de compra e venda do novo imóvel ter sido outorgada mais de 36 meses após a venda do primeiro imóvel, tal facto apenas foi motivado pela situação excecional de pandemia que causou um atraso significativo no desenvolvimento das obras de construção, à qual acresceu a significativa demora da emissão da Licença de Utilização por parte da Câmara Municipal de Lisboa.
Mais aduziram os Requerentes que o valor total de realização do primeiro imóvel foi integralmente reinvestido na aquisição do novo imóvel, embora de forma faseada, dentro do referido prazo de 36 meses, por via dos pagamentos efetuados aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda, do sinal e princípio de pagamento, bem como dos subsequentes reforços do sinal.
A decisão de indeferimento da reclamação graciosa, datada de 15 de fevereiro de 2023, assenta nos seguintes dois motivos:
a) “a escritura na qual pretende[m] a concretização do reinvestimento só foi celebrada aos 14-10-2022, logo fora do prazo para o efeito que ocorreu aos 20-06-2021” e;
b) “não se verifica a afetação a habitação própria e permanente por parte do ora reclamante, e do agregado familiar, uma vez que a morada só foi alterada
em janeiro do corrente ano para o reclamante e dependentes, e que a cônjuge não
procedeu à alteração da morada, pelo que se conclui também pela falta de requisito
essencial à exclusão de reinvestimento ora reclamado”.
O recurso hierárquico interposto daquela decisão de indeferimento foi igualmente indeferido.
Entendem os Requerentes que a liquidação de IRS ora em crise, assim como os despachos de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico, assentam em erros de interpretação da matéria de direito levados a cabo pela Autoridade Tributária ao longo de todo o procedimento gracioso, com o que se não conformam.
A considerar-se que o reinvestimento apenas ocorre com a outorga do contrato definitivo de compra e venda – como entende a Autoridade Tributária -, então o prazo de 36 meses previsto no art.º 10.º, n.º 5, alínea b) do Código do IRS, terminaria em 20 de junho de 2021 e estaria ultrapassado à data do contrato definitivo, celebrado em 14 de outubro de 2022.
No entanto, argumentam os Requerentes que a sua situação tem enquadramento nas medidas já aprovadas pela Assembleia da República no âmbito do plano de intervenção “Mais Habitação”, entre as quais a que estabelece um regime de suspensão do
prazo previsto no art.º 10.º, n.º 5, alínea b) do Código do IRS, “durante um período de dois anos, com efeitos a 1 de janeiro de 2020”.
Nestes termos, tanto o reinvestimento como a afetação do imóvel adquirido a habitação própria e permanente dos Requerentes e restantes membros do seu agregado familiar, teriam sido efetuados em conformidade com as disposições legais aplicáveis à exclusão da tributação dos rendimentos de mais-valias incluídos na liquidação de IRS impugnada.
C. Da resposta Requerida:
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º do RJAT, em 21 de novembro de 2023 a AT apresentou a sua Resposta e fez juntar o processo administrativo, defendendo a manutenção na ordem jurídica da liquidação impugnada, assim como do despacho de indeferimento de 2 de maio de 2023 (recurso hierárquico), por entender que os mesmos consubstanciam uma correta aplicação do direito aos factos.
A Requerida funda a sua resposta nos argumentos que, sucintamente, se passam a indicar:
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Os Requerentes alienaram, em 20/06/2018, o imóvel que haviam adquirido em 05/09/1997, factos que inscreveram no Anexo G da declaração modelo 3 de IRS entregue em 19/04/2019, declarando pretender reinvestir o valor de realização na aquisição de outro imóvel destinado â sua habitação própria e permanente;
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Defendem os Requerentes que realizaram a Escritura Pública de compra e venda do novo imóvel no prazo de 36 meses e que o afetaram à habitação própria e permanente nos 12 meses seguintes;
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Ora, não obstante ter sido celebrado, em 07/06/2018, contrato-promessa de compra e venda do imóvel a adquirir, no qual se estabelece as etapas dos diversos pagamentos à empresa construtora, a escritura na qual os Requerentes pretendem a concretização do reinvestimento, só foi celebrada a 14/10/2022, logo fora do prazo para o efeito, que ocorreu ao dia 20/06/2021;
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Estabelece a alínea b) do n.º 5 do artigo 10.º, do Código do IRS, que “O reinvestimento previsto na alínea anterior [que o valor de realização (…), seja reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para construção de imóvel e ou respetiva construção, ou na ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino (…)] seja efetuado entre os 24 meses anteriores e os 36 meses posteriores contados da data da realização;
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Por outro lado, a alínea a) do n.º 6 do mesmo artigo prescreve que não haverá lugar ao benefício fiscal quando, tratando-se de reinvestimento na aquisição de outro imóvel, o adquirente o não afete à sua habitação ou do seu agregado familiar, até decorridos doze meses após o reinvestimento;
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Ora, o que os Requerentes adquiriram (conforme consta na cláusula 1ª do contrato-promessa outorgado em 07/06/2018 e na escritura outorgada em 14/10/2022) foi um apartamento, sendo aplicável a alínea a) do n.º 6 do artigo 10.º do Código do IRS;
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É certo que o apartamento, na data da outorga do contrato-promessa de compra e venda ainda não estava finalizado; contudo o terreno era do promitente vendedor e foi o promitente vendedor que procedeu à construção do imóvel;
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Ou seja, estamos perante a compra de um apartamento em que, tal como disposto na cláusula 3.7. do contrato-promessa, a tradição só foi concretizada no ato da assinatura do documento de transmissão da titularidade do bem, com a entrega das respetivas chaves;
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Tendo o primeiro imóvel sido alienado em 20/06/2018 e o segundo sido adquirido em 14/10/2022, mediaram cerca de 50 meses ultrapassando, portanto, o prazo de 36 meses estabelecido na alínea b) do n.º 5 do artigo 10º do Código do IRS como limite ao reinvestimento;
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Acresce que também não se verifica a afetação a habitação própria e permanente do Requerente e do seu agregado familiar, dentro do referido prazo, pelo que, se conclui também pela falta do requisito essencial à exclusão de reinvestimento ora reclamado;
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Assim, por estar a Administração Tributária vinculada ao princípio da legalidade previsto no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e concretizado nos artigos 55.º da Lei Geral Tributária e no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo não pode deixar de dar integral cumprimento aos normativos que o legislador ordinário criou, em vigor no ordenamento jurídico, conforme se verificou no caso em apreço;
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Destarte, impugna-se por infundado todo o aduzido no pedido de pronúncia arbitral que contrarie todo o exposto, devendo decidir-se a final que o ato impugnado não padece dos vícios que lhe foram assacados nem de nenhuns outros;
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Nos termos expostos, será de julgar o pedido totalmente improcedente, mantendo-se o ato tributário na ordem jurídica, devendo igualmente improceder o pedido de juros indemnizatórios.
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Pelo Despacho Arbitral de 23 de novembro de 2023, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, tendo as Partes sido convidadas, nos termos do n.º 1 do artigo 120.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, subsidiariamente aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a produzirem alegações escritas no prazo simultâneo de quinze dias.
Mais se indicou que a prolação da decisão arbitral ocorreria no prazo de 30 dias a contar do termo do prazo para apresentação de alegações e de que, até essa data, deveriam os Requerentes proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD.
Os Requerentes apresentaram alegacões escritas, nas quais reiteraram as razões expressas no pedido de pronúncia arbitral.
A Requerida não produziu alegações.
II. SANEAMENTO
1. O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído em 18 de outubro de 2023, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
3. O processo não padece de vícios que o invalidem.
4. Não foram suscitadas exceções que cumpra apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa fixa-se como segue.
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Factos Provados:
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Por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca celebrada em 5 de setembro de 1997, os Requerentes adquiriram, pelo valor de 17 500 000$00 (€ 87 290,00), a fração autónoma designada pela letra “L” do prédio urbano sito na freguesia de ... e descrito na Quinta Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º..., ao tempo omisso na matriz da referida freguesia, posteriormente inscrito sob o artigo ... e atualmente sob o artigo ... da mesma freguesia, que destinaram a habitação própria e permanente (Doc. n.º 1, junto ao PPA e Resposta da AT);
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Em 7 de junho de 2018, os Requerentes celebraram com a sociedade C..., Lda., um contrato-promessa de compra e venda da fração autónoma destinada à habitação que viesse a corresponder ao apartamento sito no..., ..., ..., do prédio urbano em construção, sito na Rua..., n.º ..., em Lisboa (Doc. n.º 4 junto ao PPA), no qual se estimou que “o prazo das obras de realização do Projeto corresponda a cerca de 22 (vinte e dois) meses com início em Julho de 2018” e de que constavam, designadamente, as seguintes cláusulas:
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“2. PREÇO E PAGAMENTO DO PREÇO/ 2.1 (…) / 2.2 O preço será pago (…) da seguinte forma: 2.2.1 Com a assinatura do presente contrato será paga a quantia de € 31.100,00 (trinta e um mil e cem euros) que somando à quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) paga a título de reserva, perfaz o montante de 36.100,00 (trinta e seis mil e cem euros) que será havida como sinal e princípio de pagamento. 2.2.2 A título de reforço de sinal a quantia de € 72.200,00 (setenta e dois mil e duzentos euros) a ser paga aquando do início das escavações. 2.2.3 A título de reforço de sinal a quantia de 144.000,00 (cento e quarenta e quatro mil euros) a ser paga aquando da conclusão da estrutura em betão do Bloco onde a fração se encontra situada. 2.2.4 A título de reforço de sinal a quantia de 144.000,00 (cento e quarenta e quatro mil euros) a ser paga aquando da conclusão das alvenarias e caixilharias do Bloco onde a fração se encontra situada. 2.2.5 O restante, ou seja, a quantia de € 324.900,00 (trezentos e vinte e quatro mil e novecentos euros) (…) no ato da outorga da escritura pública de compra e venda. (…);
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3. CONSTRUÇÃO DO PROJECTO (…) 3.7 A posse sobre a Fração Autónoma será transferida na data da celebração da escritura pública (…);
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4. ESCRITURA PÚBLICA E CADUCIDADE DO CONTRATO 4.1ª escritura pública de compra e venda da Fração Autónoma terá lugar até 3 (trinta) dias após a emissão do Alvará de Licença de Utilização (…).
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A fração autónoma identificada em 1. foi alienada pelos Requerentes em 20 de junho de 2018, pelo valor de € 320 000,00, por escritura de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança (Doc. n.º 2 junto ao PPA);
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Em 19 de abril de 2019, os Requerentes procederam à entrega da declaração modelo 3 de IRS referente aos rendimentos do ano de 2018, identificada com o n.º ...-... -..., integrando diversos anexos, entre os quais o anexo G (Doc. n.º 3 junto ao PPA);
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No anexo G da declaração referente aos rendimentos do ano de 2018, os Requerentes inscreveram as datas e valores da aquisição e alienação do imóvel identificado em 1. e despesas e encargos da quantia de € 20 427,74, assinalando, no respetivo Quadro 5 A, a intenção de reinvestir a totalidade do valor de realização na aquisição de outro imóvel destinado à sua habitação própria e permanente (Doc. n.º 3 junto ao PPA);
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Com base na referida declaração modelo 3, foi emitida, em 03/05/2019, a liquidação de IRS n.º 2019..., referente ao ano de 2018, de valor a reembolsar de € 2 145,70 (Resposta da AT);
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Em 21 de maio de 2021, a sociedade promitente-vendedora da fração autónoma identificada em 2 emitiu uma declaração em que informou os Requerentes de que “devido ao contexto pandémico atual, a conclusão da referida obra sofreu atrasos e a outorga da escritura de compra e venda não se poderá realizar no mês de Junho de 2021, como previsto, uma vez que não se encontram reunidos os documentos necessários para a realização da mesma, nomeadamente a Licença de Utilização do imóvel.” (Doc. n.º 11 junto ao PPA);
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Em 21 de outubro de outubro de 2021, a sociedade promitente-vendedora da fração autónoma identificada em 2 submeteu à Câmara Municipal de Lisboa o pedido de Licença de Utilização (identificado com o n.º CML-...-...) do imóvel prometido vender (doc. n.º 12 junto ao PPA);
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A Câmara Municipal de Lisboa emitiu, em 16 de agosto de 2022, o “Alvará de Utilização n.º .../UT-CML/2022 para o prédio urbano em que se integra a fração autónoma a adquirir pelos Requerentes (Doc. n.º 13 junto ao PPA);
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Através da escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca celebrada em 14 de outubro de 2022, os Requerentes adquiriram à sociedade construtora e promitente-vendedora, pelo preço de € 714 831,00 (setecentos e catorze mil, oitocentos e trinta e um euros), a fração autónoma designada pelas letras “AM” do prédio urbano inscrito sob o artigo provisório P... da freguesia da ..., concelho de Lisboa, tendo recorrido a um empréstimo bancário no valor de € 300 000,00 (trezentos mil euros) garantido por hipoteca sobre o mesmo imóvel (Docs. 14 e 15 juntos ao PPA);
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Os Requerentes e os restantes membros do seu agregado familiar submeteram perante os serviços do Instituto dos Registos e Notariado (IRN) pedidos de alteração da sua morada para a fração autónoma a que se refere o número precedente: o Requerente em 27 de dezembro de 2022 (Doc. n.º 17 junto ao PPA), a Requerente em 27 de fevereiro de 2023 (Doc. n.º 18 junto ao PPA) e os dois dependentes, em 9 de dezembro de 2022 e em 27 de dezembro de 2022, respetivamente (Doc. n.º 19 junto ao PPA);
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Em 28 de novembro de 2022, a Requerida emitiu aos Requerentes a liquidação de IRS n.º 2022... e, em 2 de dezembro de 2022, a demonstração do acerto de contas referente aos rendimentos do ano de 2018, de que resultou a nota de cobrança da quantia de € 38 877,58, com data limite de pagamento em 11 de janeiro de 2023 (Docs. 20 e 21 juntos ao PPA);
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Os Requerentes procederam ao pagamento da liquidação de IRS n.º 2022 ... em 5 de janeiro de 2023 (Doc. n.º 22 junto ao PPA);
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Em 5 de fevereiro de 2023 os Requerentes apresentaram reclamação graciosa da liquidação n.º 2022 ... que, instaurada sob o n.º ...2023..., foi indeferida, conforme a notificação efetuada através de ofício do Serviço de Finanças de Lisboa ..., datado de 16 de fevereiro de 2023 (Docs. 23 e 24 juntos ao PPA e PA);
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Da decisão de indeferimento da reclamação graciosa constam os seguintes fundamentos:
(…)
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Os Requerentes interpuseram recurso hierárquico da decisão da reclamação graciosa (registado sob o n.º ...2023...), que foi indeferido por Despacho do Diretor de Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, de 2 de maio de 2023 (Doc. 28 junto ao PPA e PA).
B. Factos não provados:
Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.
C. Fundamentação da matéria de facto provada:
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos dados como provados decorreram da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral e à resposta da Requerida e processo administrativo instrutor.
III.2 DO DIREITO
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A questão decidenda
A questão a decidir prende-se com a tempestividade do reinvestimento do valor de realização do imóvel que havia constituído a casa de habitação própria e permanente dos Requerentes e do seu agregado familiar na aquisição de um outro imóvel a que conferiram a mesma afetação.
Defendem os Requerentes ter procedido ao reinvestimento integral do valor de realização do imóvel “de partida” (o imóvel alienado), ainda que de forma faseada, na compra do imóvel “de chegada”[1] (o imóvel adquirido) dentro do prazo previsto no n.º 5 do artigo 10.º, do Código do IRS, que afetaram à sua habitação própria e permanente dentro do prazo legal.
Por seu turno, como decorre da Resposta da Requerida e das decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico que tiveram por objeto a apreciação da legalidade da liquidação ora impugnada, a AT defende que à data da aquisição do imóvel “de chegada”, já se encontravam esgotados há muito os prazos legais de reinvestimento do valor de realização do imóvel “de partida” e da sua afetação a habitação própria e permanente.
Cumpre apreciar e decidir.
As mais-valias constituem incrementos patrimoniais tributáveis, de acordo com a teoria do rendimento-acréscimo que enforma o Código do IRS.
Por se tratar de rendimentos excecionais, no sentido de que não provêm do exercício de uma atividade produtiva, surgem por vezes de modo inesperado e concentram-se no período de tributação em que são efetivamente realizados, natureza que levou a que o legislador do Código do IRS sentisse a necessidade de ponderar “o regime tributário adequado em face da excessiva gravosidade que a tributação englobada poderia gerar”, prevendo “um específico regime de tributação, envolvendo uma substancial dedução à matéria coletável” (cfr. o ponto 12 do Preâmbulo do Código do IRS).
Este regime específico contempla a exclusão da tributação das mais-valias realizadas com a alienação de imóveis destinados a habitação própria e permanente dos sujeitos passivos ou do seu agregado familiar, segundo um sistema de roll over, exclusão que terá como propósito “eliminar os obstáculos, relacionados com a tributação do rendimento, à mudança de habitação por parte dos indivíduos e famílias que disponham de casa própria”.[2]
Deste modo e, em concretização daquele desiderato, dispõem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º, do Código do IRS, na redação em vigor para o ano de 2018:
“Artigo 10.º - Mais-valias
5 - São excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que verificadas, cumulativamente, as seguintes condições:
a) O valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, seja reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para construção de imóvel e ou respetiva construção, ou na ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal;
b) O reinvestimento previsto na alínea anterior seja efetuado entre os 24 meses anteriores e os 36 meses posteriores contados da data da realização;
c) O sujeito passivo manifeste a intenção de proceder ao reinvestimento, ainda que parcial, mencionando o respetivo montante na declaração de rendimentos respeitante ao ano da alienação;
(…)
6 - Não haverá lugar ao benefício referido no número anterior quando:
a) Tratando-se de reinvestimento na aquisição de outro imóvel, o adquirente o não afete à sua habitação ou do seu agregado familiar, até decorridos doze meses após o reinvestimento;
(…)”
No caso concreto em análise, não subsistem dúvidas de que, tendo em conta a factualidade dada como provada, tendo o imóvel “de partida” sido alienado em 2018 e o imóvel “de chegada”, adquirido em 2022, se encontrava, nesta última data, excedido o prazo para que os Requerentes pudessem beneficiar da exclusão da tributação das mais-valias realizadas.
Nem a tal obstaria o facto de a totalidade do valor de realização do imóvel “de partida” ter sido integralmente aplicado, ainda que faseadamente, na aquisição do imóvel “de chegada” dentro do prazo previsto na alínea b) do n.º 5 do artigo 10.º, do Código do IRS, por via do pagamento de um sinal e dos sucessivos reforços do mesmo, uma fez que o contrato-promessa de compra e venda não tem eficácia translativa do direito de propriedade, nem houve tradição do imóvel em data anterior à da realização do contrato definitivo.
Contudo, como frisam os Requerentes, à data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral já se encontravam aprovadas pelo Parlamento as medidas no âmbito do plano de intervenção “Mais Habitação”, em fase de promulgação pelo Presidente da República, entre as quais avultaria um regime de suspensão do prazo previsto no art.º 10.º, n.º 5, alínea b) do Código do IRS.
Esta iniciativa legislativa viria a ser concretizada através da Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro, entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, em cujo artigo 50.º, n.º 6, ficou consignado:
“Artigo 50.º Norma transitória em matéria fiscal
(…)
6 - Fica suspensa a contagem do prazo para o reinvestimento previsto na alínea b) do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, durante um período de dois anos, com efeitos a 1 de janeiro de 2020.
(…)”
O prazo para reinvestimento da mais-valia realizada com a alienação de um imóvel destinado a habitação própria e permanente dos sujeitos passivos de IRS é um prazo de caducidade, cujo decurso faz precludir o direito ao benefício da exclusão da tributação sobre aquele rendimento.
De acordo com o disposto no artigo 328.º, do Código Civil, o prazo de caducidade apenas se suspende nos casos em que a lei o determine, como é o caso da norma transcrita. A suspensão do prazo de caducidade tem por efeito não se incluir na sua contagem o espaço de tempo durante o qual essa suspensão ocorrer, considerando-se que o vencimento do prazo de caducidade é prorrogado pelo tempo em que ficou suspenso[3].
Acresce que, para além de prever a suspensão do prazo de caducidade do direito à exclusão da tributação dos rendimentos de mais-valias, o legislador atribuiu, no n.º 6 do artigo 50.º da Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro, eficácia retroativa ao início da suspensão, reportado a 1 de janeiro de 2020, a vigorar durante um período de dois anos.
Em regra, a lei, e, em especial a lei fiscal impositiva[4], só dispõem para o futuro (artigos 12.º, do Código Civil e 103.º, n.º 3, da Constituição (CRP)); porém, a norma do n.º 6 do artigo 50.º, da Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro, não impõe quaisquer encargos, antes prevê a prorrogação do prazo para o exercício do direito a um desagravamento, não se suscitando, por isso, qualquer questão quanto à sua conformidade constitucional, questão que, de resto, não foi invocada por nenhuma das Partes.
Assim sendo, têm-se por corretos os cálculos efetuados pelos Requerentes nos artigos 52.º e seguintes do pedido de pronúncia arbitral, segundo os quais: “(…) considerando que, entre 20 de Junho de 2018 (data da realização) e 31 de Dezembro de 2019 (véspera da suspensão do prazo), decorreram 18 meses e 10 dias, r[R]estando, por isso, 17 meses e 20 dias de prazo; o[O] prazo previsto no art.º 10.º, n.º 5, alínea b) do Código do IRS, cuja contagem recomeçaria em 1 de Janeiro de 2022, apenas terminaria em 20 de Maio de 2023”.
Conclui-se, assim, que, à data da emissão da liquidação de IRS n.º 2022..., referente aos rendimentos do ano de 2018, ainda não se mostrava esgotado o prazo para reinvestimento da mais-valia apurada pelos Requerentes, assim como, por maioria de razão, não tinha sido ultrapassado o prazo para que os Requerentes afetassem o imóvel adquirido à sua habitação ou do seu agregado familiar.
Deste modo, a entrada em vigor da norma que veio determinar a suspensão do prazo para o reinvestimento previsto na alínea b) do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, durante um período de dois anos, com efeitos a 1 de janeiro de 2020, torna superveniente ilegal o ato tributário objeto da presente ação arbitral, justificando a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
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Do pedido de juros indemnizatórios
O processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 – primeira parte, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), devendo entender-se incluídos na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os poderes que, na impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, entre os quais o de apreciar pedidos de juros indemnizatórios.
O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º, da Lei Geral Tributária (LGT), cujo n.º 1 determina que os mesmos são devidos quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso em apreço, não se afigura ter havido qualquer erro da Requerida na emissão da liquidação de IRS n.º 2022..., referente aos rendimentos obtidos pelos Requerentes no ano de 2018, nem na prolação das decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do subsequente recurso hierárquico, pois tais atos decorreram da correta aplicação da lei, a que a AT está vinculada por força do disposto no artigo 266.º, da CRP e concretizado nos artigos 55.º, da LGT e 3.º do CPA.
A ilegalidade superveniente da liquidação impugnada, motivada pela entrada em vigor da norma que veio estabelecer a suspensão do prazo para reinvestimento a que alude o n.º 5 do artigo 10.º, do Código do IRS, não é, no entanto, equiparável à prevista no artigo 43.º, n.º 3, alínea d), da LGT, que consagra o direito a juros indemnizatórios “Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”.
De facto, inexiste qualquer decisão judicial que tenha declarado a inconstitucionalidade ou a ilegalidade do n.º 5 do artigo 10.º, do Código do IRS, que se mantém em vigor, embora a “norma transitória em matéria fiscal” contida no n.º 6 do artigo 50.º, da Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro, tenha determinado a suspensão do prazo ali previsto, durante um período de dois anos.
Não fica a Requerida, por tal motivo, obrigada ao pagamento de juros indemnizatórios com a extensão peticionada pelos Requerentes.
Todavia, tendo a Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro, entrado em vigor no dia imediato ao da sua publicação, data anterior à da constituição do Tribunal Arbitral, estava a AT legalmente obrigada a rever o ato tributário impugnado, ficando constituída no dever de indemnizar os Requerentes, a partir daquela data.
Reconhece-se, pois, o direito dos Requerentes a juros indemnizatórios sobre o valor da liquidação impugnada, desde 7 de outubro de 2023, até ao processamento da respetiva nota de crédito, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, da LGT.
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito enunciados supra, decide-se:
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Declarar a ilegalidade e determinar a anulação da liquidação de IRS n.º 2022..., da quantia de € 38 877,58;
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Condenar a Requerida na restituição da quantia de € 38 877,58, indevidamente paga;
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Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios aos Requerentes sobre a referida quantia, desde 7 de outubro de 2023, até ao processamento da respetiva nota de crédito.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 38 877,58 (trinta e oito mil, oitocentos e setenta e sete euros e cinquenta e oito cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 1 836,00 (mil, oitocentos e trinta e seis euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se.
Lisboa, 9 de janeiro de 2024.
O Árbitro,
Mariana Vargas
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º, do D.L. n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990
[1] As expressões “imóvel de partida” e “imóvel de chegada” são utilizadas com o sentido indicado, por José Guilherme Xavier de Basto, “IRS – Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, Coimbra Editora, 2007, págs. 412 e ss.
[2] Cfr. Paula Rosado Pereira, “Manual de IRS”, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 227.
No mesmo sentido, Rui Duarte Morais, “Sobre o IRS”, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 137.
[3] Neste sentido, quanto ao regime da suspensão do prazo de prescrição, aplicável nos casos de suspensão do prazo de caducidade, cfr. o Prof. Carlos Alberto da Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1991, pág. 375.
[4] Cfr., entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 121/2012, processo n.º, em cuja fundamentação se consignou que “(…) É neste sentido que deve ser entendida a opção do legislador constituinte de, na revisão constitucional de 1997, consagrar no artigo 103.º, n.º 3, a regra da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável. Com esta alteração constitucional não se visou explicitar uma simples refração do princípio geral da proteção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a atividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impostos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstrato de grave violação daquela confiança. (…)”