Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 413/2023-T
Data da decisão: 2023-12-27  ISV  
Valor do pedido: € 4.254,64
Tema: ISV – Diferenciação da componente cilindrada e ambiental.
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SUMÁRIO:

 

 O artigo 11.º, n.º 1, do Código do Imposto Sobre Veículos, na redação introduzida pelo artigo 391.º, da Lei 75-B, de 31 de Dezembro, na parte em que estabelece um critério diferenciado para a redução do imposto pelo tempo de uso para a componente cilindrada e para a componente ambiental, permite uma discriminação entre os veículos usados nacionais e os provenientes de países da União Europeia, violando, em consequência, o disposto no artigo 110.º do TFUE.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I. Relatório

 

 

1. A..., Lda.,  (doravante abreviadamente designado por “Requerente”), com o número de identificação fiscal e de pessoa coletiva..., e sede na Rua ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia, veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.os 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade dos indeferimentos dos pedidos de revisão oficiosa relativos aos atos tributários de liquidação de Imposto Sobre Veículos (ISV) praticados pelos Diretores da Alfândega de Freixieiro e da Alfândega de Leixões, peticionando a restituição do montante de € 4 254,64, acrescido dos juros indemnizatórios legalmente devidos.

 

1.1.  O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 5 de junho de 2023.

1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como o signatário como árbitro, nomeação aceite dentro do prazo legal.

1.3. Notificadas as partes dessa designação, não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

1.4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 14 de agosto de 2023.

1.5. Prolatado o despacho determinado pelo artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta e juntou o processo administrativo no dia 19 de setembro de 2023.

1.6. Em 27 de novembro de 2023, foi prolatado despacho dispensando tanto a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e a produção de alegações, nada tendo requerido as Partes na sua sequência.

 

2. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.

 

3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades.

 

 

II. Fundamentação

 

 

4. Matéria de facto

4.1. Factos Provados

Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

4.1.1. A Requerente introduziu em Portugal, junto da Alfândega de Freixieiro, em 2021 e 2022, sete veículos automóveis ligeiros de passageiros, usados, provenientes da União Europeia, tal como resulta das Declarações Aduaneiras de Veículo com os n.os 2021/..., 2021/..., 2021/..., 2021/..., 2022/..., 2022/..., 2022/..., cujos termos aqui se dão por reproduzidos.

4.1.2. A Requerente introduziu em Portugal, junto da Alfândega de Leixões, em 2021 e 2022, nove veículos automóveis ligeiros de passageiros, usados, provenientes da União Europeia, tal como resulta das Declarações Aduaneiras de Veículo com os n.os 2021/..., 2021/..., 2022/..., 2022/..., 2022/..., 2022/..., 2022/..., 2022/... e 2022/..., cujos termos aqui se dão por reproduzidos.

4.1.3. A Alfândega de Freixieiro procedeu à liquidação de ISV, com n.os 2021/..., de 26/07/2021, 2021/... de 11/10/2021, 2021/... de 18/11/2021, 2021/... de 17/12/2021, 2022/...de 21/04/2022, 2022/... de 12/05/2022 e 2022/... de 18/08/2022, num total de € 14 702,89.

4.1.4. A Alfândega de Leixões procedeu à liquidação de ISV, com n.os 2021/..., de 29/03/2021, 2021/..., de 02/08/2021, 2022/..., de 19/01/2022, 2022/..., de 19/01/2022, 2022/... de 04/03/2022, 2022/... de 11/05/2022,  2022/... de 16/05/2022, 2022/..., de 06/10/2022 e 2022/..., de 06/10/2022, num total de € 15 472,17.

4.1.5.  As liquidações e o cálculo dos montantes de imposto foram estribados nos artigos 7.º e 11.º, n.º 1, do Código do ISV, tendo sido aplicadas, conforme resulta do Quadro R das DAV, as reduções previstas nas tabelas A e D para os veículos ligeiros de passageiros, com referência à componente cilindrada e à componente ambiental, de acordo com as características do veículo.

4.1.6. No dia 15 de fevereiro de 2023, o Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa da liquidação junto do Diretor da Alfândega de Freixieiro e outro junto do Diretor da Alfândega de Leixões, pedindo a anulação parcial das liquidações e a restituição dos valores de € 2 040,85 e € 2 213,79, respetivamente, que considerou indevidamente pagos.

            4.1.7. Por despachos, respetivamente, de 16 de Fevereiro de 2023 e de 27 de março de 2023, dos Diretores da Alfândega de Leixões e da Alfândega de Freixieiro, os pedidos de revisão oficiosa foram indeferidos.

            4.1.8. O Requerente efetuou o pagamento do ISV resultante das liquidações supra identificadas.

            4.1.9. O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 4 de junho de 2023.

 

4.2. Factos não provados

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

 

4.3. Motivação da matéria de facto

Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão dos Requerentes.

No caso sub iudicio, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos, junto com o requerimento de pronúncia arbitral e com o processo administrativo.

Para além disso, a decisão da matéria de facto baseou-se no alegado pelo Requerente que não foi questionado ou controvertido pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que, ademais, circunscreveu a questão controvertida ao plano da análise da matéria de direito.

 

5. Matéria de direito

5.1. Questão decidenda

No caso sub judicio está em causa a questão de saber se o ato de liquidação de Imposto Sobre Veículos realizado nos termos do artigo 11.º do Código do Imposto Sobre Veículos, na redação dada pelo artigo 391.º, da Lei 75-B/2020, de 31 de dezembro, tendo em conta distintas percentagens de redução para a componente cilindrada e para a componente ambiental, daí resultando uma menor redução em sede de componente ambiental, que se encontra sujeita a escalões de vetustez mais alargados, padecem, ou não, de ilegalidade determinante da sua anulação, por violação do disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

A Requerente considera que a atual redação do artigo 11.º do CISV, não obstante já permitir a redução da componente ambiental, não elimina a discriminação dos veículos usados provenientes de outros Estados Membros da União Europeia, por prever nessa sede uma desvalorização inferior à aplicada à componente cilindrada. Em sentido oposto, a Requerida considera que a nova redação do n.º 1 do artigo 11.º, do CISV, dada pelo artigo 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, já incorpora as preocupações levantadas pela Comissão Europeia em matéria de compatibilidade com o direito europeu, refletindo a doutrina que resulta do Acórdão do Tribunal de Justiça prolatado no Processo n.º C-169/20, porquanto já prevê na Tabela D, à semelhança do que já sucedia com a componente cilindrada do ISV, que os veículos usados provenientes de Estados–membros da União Europeia beneficiem de um desconto/redução sobre a componente ambiental do ISV.

Vejamos.

 

5.2. Fundamentos de direito

O artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do CISV, estabelece a incidência objetiva do imposto sobre “automóveis ligeiros de passageiros, considerando-se como tais os automóveis com peso bruto até 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor, que se destinem ao transporte de pessoas”, sendo sujeitos passivos do mesmo, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do mesmo diploma, “os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares (…) que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando -se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos”.

Segundo a disposição do artigo 5.º, n.os 1 e 3, do CISV, constitui facto gerador do imposto “o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional (...)” [n.º 1], entendendo-se por “admissão”, a “entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado-membro da União Europeia em território nacional” [n.º 3].

No que interfere com o presente caso concreto, cumpre explicitar ainda que a coleta do imposto é determinada, nos termos do artigo 7.º, do CISV, e do artigo 11.º, do CISV, para os veículos usados, tendo por referência a componente da cilindrada, por escalão em centímetros cúbicos, e a componente ambiental, por escalão de CO2, em gramas por quilómetro. No artigo 11.º, n.º 1, estabelece-se que o “imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional” (itálico aditado), seguindo-se uma tabela em que se encontram associadas percentagens diferenciadas de redução relativamente à componente cilindrada e ambiental, tendo em conta o “tempo de uso” do veículo, considerando-se este o “período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respetivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos” [n.º 2].

A referida “Tabela D”, tem a seguinte redação:

Componente cilindrada

 

Tempo de uso

Percentagem de redução

Até 1 ano..............................

10

Mais de 1 a 2 anos ............. .

20

Mais de 2 a 3 anos ...............

28

Mais de 3 a 4 anos ...............

35

Mais de 4 a 5 anos ...............

43

Mais de 5 a 6 anos ...............

52

Mais de 6 a 7 anos ...............

60

Mais de 7 a 8 anos ...............

65

Mais de 8 a 9 anos ...............

70

Mais de 9 a 10 anos..............

75

Mais de 10 anos ...................

80

 

Componente ambiental

 

Tempo de uso

Percentagem de redução

Até 2 anos.............................

10

Mais de 2 a 4 anos ............... .

20

Mais de 4 a 6 anos ...............

28

Mais de 6 a 7 anos ...............

35

Mais de 7 a 9 anos ...............

43

Mais de 9 a 10 anos .............

52

Mais de 10 a 12 anos ...........

60

Mais de 12 a 13 anos ...........

65

Mais de 13 a 14 anos............

70

Mais de 14 a 15 anos ...........

75

Mais de 15 anos……………………

80

 

O regime supra referido constitui o reflexo de uma evolução legiferante condicionada pelo direito da União Europeia.

Na origem da redação atual encontra-se a decisão da Nona Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, que, por acórdão de 2 de setembro de 2021, decidiu que “ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE”.

            Já na vigência da atual redação do artigo 11.º do CISV, este CAAD teve oportunidade de apreciar a questão da compatibilidade desta norma com o disposto no artigo 110.º do TFUE. Fê-lo, entre outras, através das decisões tiradas nos processos n.os 372/2021-T e 607/2021-T, onde se concluiu pela violação do direito comunitário, e nos processos n.os 349/2022-T e 481/2022-T, nos quais se decidiu em sentido oposto, considerando-se inexistir tratamento discriminatório face aos veículos provenientes de outros Estados Membros.

            Perfilhamos a jurisprudência vertida nas primeiras decisões referidas.

            A decisão n.º 372/2021-T, encontra-se suportada na seguinte fundamentação:

     “(...) tal como resulta da nova redação passou o sistema de tributação dos veículos usados a contemplar na componente ambiental uma redução, de acordo do tempo de uso. A referida alteração vem sustentada nos termos da proposta de Lei 61/XIV, no sentido que:

“(...) que se procurou salvaguardar os ambiciosos objetivos ambientais do País e a incorporar o essencial das preocupações levantadas pela Comissão Europeia em matéria de compatibilidade com o direito europeu, prevê-se, à semelhança do que já sucede com a componente cilindrada do ISV, que os veículos usados provenientes de Estados –membros da União Europeia passem a beneficiar de um desconto sobre a componente ambiental do ISV, o qual, ao contrário do que sucede com a componente cilindrada, não estará associado à desvalorização comercial dos veículos, mas antes à sua vida útil média remanescente (medida pela idade média dos veículos enviados para abate), por se entender que a mesma é uma boa métrica do horizonte temporal de poluição do veículo, assegurando-se, deste modo, que os carros poluentes serão justamente tributados à entrada em Portugal.”

            Posto isto, no âmbito do presente pedido de pronuncia arbitral, e de acordo com a factualidade dada como provada, Portugal passou a contemplar uma redução sobre a componente ambiental do ISV no cálculo do imposto incidente sobre veículos usados “importados” de outros Estados-Membros. Porém, tal redução não está associada à desvalorização comercial dos veículos, mas antes à sua vida útil média remanescente, o que conduz a que as taxas de redução da componente cilindrada e ambiental não sejam similares, bem como os escalões, de acordo com o tempo de uso, sejam diferentes em cada uma das componentes. Esta circunstância conduz ao agravamento deliberado da componente ambiental, por via da menor redução aplicada às viaturas.

            No caso em apreço, conduziu a que a taxa de redução da cilindrada fosse de 65%, enquanto a taxa de redução na componente ambiental fosse somente de 43%, o que representa um diferencial de 22%. Esta diferença continua, tal como sucedia nas anteriores redações da norma legal, a ser sustentada nos objetivos ambientais do Estado português, ou seja, que objetivos de natureza ambiental justificam o distinto tratamento, sem que tal implique a violação do artigo 110.º, do TFUE, por o mesmo dever ser interpretado à luz do artigo 191.º do TFUE.

            Porém, à revelia do direito da União Europeia, o artigo 11.º, n.º 1, do CISV, na redação dada pelo artigo 391.º, da Lei n.º 75-B/2020 de 31 de dezembro, continua a não se mostrar conforme ao artigo 110.º, do TFUE. Na realidade, conforme referido pela jurisprudência da União Europeia, a referida disposição legal não atende à depreciação real do veículo e não permite garantir sempre que o montante do imposto que fixa não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional. Pois, quando um Estado-membro aplica aos veículos usados importados de outros Estados membros um sistema de tributação em que a depreciação real dos veículos é definida de modo geral e abstrato com base em critérios determinados pelo direito nacional, o disposto no Tratado exige que esse sistema de tributação seja organizado de forma a excluir todo e qualquer efeito discriminatório.

            Embora o atual modelo de tributação tenha diminuído significativamente a discriminação que existia entre os veículos usados “importados” e os veículos usados do mercado nacional, a verdade é que não se pode afirmar que tenha sido eliminado qualquer efeito discriminatório. Assim, da aplicação de diferentes metodologias de redução, daquela que se aplica à componente ambiental, resulta a conclusão que não foi excluído todo o efeito discriminatório, que continua a existir à luz da jurisprudência europeia invocada.

            Com efeito, haveria que na componente ambiental, calcular a redução nos termos previstos para a componente de cilindrada, de modo a salvaguardar a depreciação dos veículos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, não ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação. A não ser assim, não se vê como se possa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados.

            Essa perfeita neutralidade pressupõe, à luz da jurisprudência do TJUE, que não possa, em caso algum, ter efeitos discriminatório. Portanto, ainda que esse efeito discriminatório tenha sido efetivamente reduzido (limitado), a verdade é que ele ainda se mantém, entre os referidos veículos usados “importados” e os veículos usados do mercado interno, atenta a menor redução na componente ambiental aplicada no sistema de tributação portuguesa dos veículos automóveis “importados”. Pois, da referida jurisprudência resulta a necessidade de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, das “importações” provenientes dos outros Estados-membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes.

            A Requerida continua a suscitar o princípio da proteção do ambiente consagrado no artigo 191.º do TFUE, no sentido que se deve interpretar o artigo 110.º do TFUE à luz do disposto desse artigo 191.º, sob pena de conflitualidade entre as duas normas. Para além dos preceitos constitucionais referidos, que ficam em crise com uma interpretação discordante com a da Requerida, a verdade é que o artigo 191.º do TFUE teve origem no artigo 174.º daquele Tratado, e também a jurisprudência do TJUE se referiu em diversos momentos às questões ambientais na interpretação do referido artigo 90.º, nomeadamente, no processo C-290/05.

            Por seu turno, do Acórdão do TJUE (C-200/15), de 16-06-2016, resulta que o “artigo (110.º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam (…) a uma imposição superior do produto importado (…)”, sendo que “(…) um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional (…)”.

            Portanto, a posição da Requerida, no entender deste tribunal arbitral, importa uma violação ao aludido artigo 110.º, do TFUE e, ao contrário do que defende, não é compatível com o modelo de tributação existente, uma vez que a jurisprudência europeia impõe que tais sistemas de tributação sejam expurgados de qualquer efeito discriminatório, por menor que ele seja, não havendo que aceitar uma discriminação menor face à situação anteriormente vigente. Sendo, por isso, que o atual artigo 110.º do TFUE se opõe a que um Estado Membro aplique aos veículos usados importados de outro Estado-membro um sistema de tributação em que o imposto que incide sobre esses veículos não atenda à depreciação real do veículo e não permita garantir sempre que o montante do imposto que fixa não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional. Nestes termos, não pode este Tribunal arbitral deixar de considerar que, o que deverá aqui relevar, é que o artigo 11.º do CISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110.º do TFUE, não havendo, de acordo com os fundamentos da Requerida, qualquer interpretação desconforme à Constituição, por parte do Requerente, nem quanto ao direito da União Europeia e direito internacional, porquanto os fins que visam não se podem assegurar com base num sistema tributário discriminatório.

            É, que, o artigo 110.º TFUE não permite qualquer derrogação ao princípio da não discriminação, direta ou indireta, no que diz respeito às «importações» de outros Estados‑Membros. Por outro lado, no caso dos veículos registados como novos, a componente ambiental do imposto em causa é coletada apenas uma vez, no momento do registo do veículo em questão, pelo que, consequentemente, o montante a pagar para registar um veículo usado importado excede o aplicável a um veículo usado semelhante já registado em Portugal, o que constitui uma violação do artigo 110.º TFUE.

            Igualmente, neste âmbito não há que comparar a tributação de um veículo usado com a de um veículo novo.

            Embora sob a análise da anterior redação doa artigo 11.º, n.º 1, do CISV, é sintomático o posicionamento do TJUE no acórdão de 2 de setembro de 2021, no âmbito do processo C-169/20, que opunha a Comissão Europeia e a República Portuguesa, em que se discutia, entre o demais, a componente do imposto de registo calculada com base nas emissões de dióxido de carbono e a não consideração da desvalorização do veículo. Nesse concreto contexto, que é atualmente distinto, decidiu-se que:

 “há que declarar que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto em causa previsto no Código do Imposto sobre Veículos, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.”.

            Se é verdade que, na atualidade se veio passar a considerar a desvalorização do veículo, não se pode deixar de citar no entendimento deste tribunal arbitral várias passagens do referido acórdão, que permitem concluir que se continua a violar o artigo 110.º, do TFUE, no sentido que é entendido pelo TJUE:

“o artigo 110.º TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação de mercadorias entre os Estados‑Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas que sejam discriminatórias para os produtos originários de outros Estados‑Membros. Este artigo é violado sempre que a imposição que incide sobre o produto importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculadas de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado” (negrito e sublinhado nosso).

            Assim, o acórdão acabado de citar, decidiu que:

“a cobrança, por um Estado‑Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.º TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional”.

            Ora, é, pois, entendimento deste tribunal arbitral que a atual redação não tem em consideração a depreciação real do veículo, quando aplica distintas taxas de redução, conforme se está na componente de cilindrada ou na competente ambiental. Sendo a viatura a mesma, não se justifica a existência de diferentes depreciações, por efeito da imposição de objetivos ambientais, porque dessa forma se gera, uma vez mais, um fator discriminativo, ainda que de menor dimensão, por continuar a exceder o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.

            Na realidade, a Requerida nem sequer se esforça por demonstrar o contrário, uma vez que continua a remeter a justificação dessa discriminação para fatores de índole ambiental, nomeadamente, para a defesa do meio ambiente, ao abrigo das disposições do artigo 66.º e 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, bem como, do artigo 191.º, do TFUE.

            Com efeito, esta linha argumentativa não permite ultrapassar o entendimento do TJUE sobre o modelo de tributação português dos veículos usados “importados” de outros países da União Europeia, uma vez que defendeu no citado acórdão de 2 de setembro de 2021 que:

“um Estado‑Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional” (negrito nosso).

            No caso em apreço, não se pode assim considerar, nem tal vem alegado ou demonstrado pela Requerida, que o valor do veículo usado “importado” utilizado pela AT como base de tributação reflete fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional.

            Como bem refere o mencionado acórdão do TJUE (processo C-169/20):

“(...) a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado‑Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.”.

            E a situação analisada pelo referido acórdão, ainda à luz da anterior redação do artigo 11.º, n.º 1, do CISV, não se alterou integralmente com a nova redação, uma vez que não se pode deixar de considerar que não é tomada em consideração em toda a sua amplitude a desvalorização real destes veículos, pelo que não estando garantido que os veículos usados importados de outro Estado‑Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, tal implica a violação do artigo 110.º TFUE.

            Sobre a linha argumentativa da Requerida para justificar a existência de uma taxa de redução menor na componente ambiental, que se funda num objetivo de proteção do ambiente, o TJUE entende que, embora os Estados‑Membros sejam livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados‑Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º  do TFUE

            Por isso, é entendimento do TJUE que:

“(...) se opõe a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da «classificação ambiental» dos veículos, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados‑Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado‑Membro de importação”.

            Ainda que esta decisão se tenha fundado na redação anterior do artigo 11.º, n.º 1, do CISV, que não contemplava nenhuma redução na componente ambiental, a verdade é que a sua atual redação não tem integralmente em consideração, conforme atrás referido, a depreciação dos veículos, pelo que apenas se limita a descriminação, e não se limita de forma plena o  seu efeito discriminatório, o qual não pode ser justificado por razões de política ambiental e de defesa do princípio de defesa ambiental.

            Aliás, a referida e citada jurisprudência da União Europeia, avança como uma solução para contabilizar o artigo 110.º, do TFUE, com os princípios e objetivos ambientais referenciados pela Requerida, nomeadamente, quando refere que:

 “o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado‑Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados‑Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor” (negrito nosso).

            Porém, ao arrepio das indicações dadas pela jurisprudência comunitária, a atual redação do artigo 11.º, n.º 1, do CISV, mantém, ainda que de forma mais limitada, os mesmos problemas que lhe vinham sendo apontados, em violação do Direito da União Europeia, designadamente do artigo 110.º, do TFUE. Pois, um imposto calculado em função do potencial de poluição de um veículo usado, que, à semelhança do imposto em causa, só é integralmente cobrado no momento da importação e da entrada em circulação de um veículo usado proveniente de outro Estado‑Membro, ao passo que o adquirente de um desses veículos já presente no mercado do Estado‑Membro em causa só tem de suportar o montante do imposto residual incorporado no valor comercial do veículo que adquire, é contrário ao artigo 110.º do TFUE.

            Pelo que cai a linha argumentativa das alegações da Requerida nos presentes autos de arbitragem, uma vez que a questão fulcral, tal como reconhece a jurisprudência comunitária, é que “(...) em qualquer caso, (...), tal imposto (...) continuaria a ser discriminatório em relação aos veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro, uma vez que o referido imposto excederia o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares comprados e registados no território nacional”. Logo, a nova redação não ultrapassando integralmente a discriminação apontada, conduz a que referida norma interna continue a violar o artigo 110.º, do TFUE, não havendo que ponderar o facto dessa discriminação ser menos extensa, do que aquela que se encontrava na redação anterior, visto que a jurisprudência comunitária exige a inexistência em absoluto de discriminação.

            De notar ainda que o acórdão de 2 de setembro de 2021, decidiu que embora “(...) ao abrigo do artigo 11.º, n.º 3, do Código do Imposto sobre Veículos, os contribuintes possam optar por um método alternativo de cálculo do imposto em causa, requerendo ao diretor da alfândega que recalcule o referido imposto com base na avaliação efetiva do veículo, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a existência de um método alternativo de cálculo de um imposto não dispensa um Estado‑Membro da obrigação de respeitar os princípios fundamentais de uma norma essencial do Tratado FUE, nem autoriza esse Estado‑Membro a violar esse Tratado”.

Em conclusão, haverá que continuar a entender, sob a orientação da linha da jurisprudência constante do TJUE, que o Estado português ao desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados, postos em circulação no território português, e adquiridos noutro Estado‑Membro, nomeadamente, por discriminar no âmbito do cálculo do imposto, a taxa de redução que é aplicável à componente ambiental, por confronto à aplicada à componente cilindrada, violou efetivamente o artigo 110.º TFUE.

Em consequência, entende-se que o artigo 11.º, n.º 1, do CISV não está em conformidade com o direito da União Europeia, designadamente com o disposto no artigo 110.º do TFUE (aplicável por força do artigo 8.º, n.º 4 da CRP), pelo que determina este Tribunal Arbitral que será de anular parcialmente o ato tributário de ISV objeto do pedido, porquanto o mesmo padece de ilegalidade na parte em que não considerou aplicável a mesma taxa redução aplicada à componente cilindrada (65%), na taxa redução de ISV relativa à componente ambiental, onde aplicou apenas a taxa de 43%, em violação do disposto no artigo 110.º do TFUE.

(...)”.

Aqui se deixam reiterados tais fundamentos, aos quais se adere.

Em consequência, afastamo-nos da argumentação expendida nas decisões tiradas nos processos n.os 349/2022-T e 481/2022-T, porquanto a mesma acaba por assentar num pressuposto já refutado pela Comissão, qual seja o de que  “a componente ambiental do imposto em causa constitui um tributo distinto e autónomo da componente calculada com base na cilindrada do veículo em questão”, avalizando um critério de depreciação distinto para as referidas componentes. Ora, se nada obsta a que tal suceda do ponto de vista da determinação da matéria tributável do imposto, já se deve entender que, a partir do momento em que o preço de venda incorpora o valor residual do imposto suportado na primeira matrícula, sendo este único, a desvalorização do valor do veículo deve submeter-se a critério uniforme, o que não sucede quando se estabelece um critério diferenciado de desvalorização para a componente ambiental.

Sendo clara e pacífica a jurisprudência do TJUE sobre a matéria e não se colocando particulares dúvidas interpretativas, consideramos inexistir fundamento para levar a questão ao TJUE em sede de reenvio, decidindo-se, pelo exposto, no sentido da procedência do pedido.

           

            5.3. A Requerente peticiona, também, o pagamento de juros indemnizatórios.

O artigo 43.º da LGT, na sua atual redação (resultante, por último, da Lei n.º 9/2019, de 1 de Fevereiro, que lhe aditou a nova alínea d)), estabelece que:

“1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do ato tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

4 - A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5 - No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.”

Tendo em conta a fundamentação subjacente à procedência do pedido, é aqui aplicável o disposto na alínea d) do n.º 3, norma à qual se subsume a presente factualidade, porquanto o “erro” em causa resulta, prima facie, de um “erro do legislador”, realidade essa que agora surge autonomizada para efeitos de determinação de juros indemnizatórios e que é independente do meio processual mobilizado para controverter a liquidação.

Destarte, considera-se apenas existir o dever de pagamento dos juros a partir do trânsito em julgado da presente decisão.

 

6. Decisão

 

Atento o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação parcial das liquidações de ISV contestadas, ordenando-se o reembolso à Requerente das quantias indevidamente pagas; 
  2. Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios desde a data do trânsito da presente decisão até integral pagamento; e, em consequência,
  3. Condenar a Requerida nas custas processuais infra determinadas.

 

7. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária atribui-se ao processo o valor de € 4 254,64.

 

8. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

 

Lisboa, 27 de dezembro de 2023,

 

 

 

 

João Pedro Rodrigues