Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 306/2023-T
Data da decisão: 2023-12-18  IMI  
Valor do pedido: € 173.170,00
Tema: IMI. Adicional ao IMI. Valor patrimonial tributário. Segunda avaliação de prédios urbanos. Inimpugnabilidade da avaliação direta.
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Sumário:

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, a impugnação judicial de atos de liquidação de IMI e de AIMI, com fundamento na ilegalidade do cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável, depende do prévio esgotamento dos meios graciosos no âmbito do procedimento de avaliação, e, especificamente, de um pedido de segunda avaliação quanto ao resultado da avaliação direta.

 

 

Decisão Arbitral

I – Relatório

 

1. A..., S.A., titular do número de identificação de pessoa coletiva..., com sede social em ..., freguesia ..., município de Loulé,...-..., vem requerer, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto‐Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de tribunal arbitral para apreciar a legalidade do ato tributário de liquidação do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) n.º 2017..., referente aos anos 2017, e do ato de liquidação de Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI), n.º 2018...,  referente ao ano de 2018, com o valor global a pagar de € 590.025,93, e do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa contra eles deduzido, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

 No âmbito da sua atividade, a Requerente é proprietária de terrenos para construção, tendo sido notificada, relativamente a esses imóveis, dos atos tributários de liquidação de IMI, referente ao ano de 2017, e de AIMI, referente ao ano de 2018, no valor global a pagar de € 590.025,93.

            As liquidações de IMI e AIMI encontram-se sobrevalorizadas, na medida em que tiveram por base, para efeitos de determinação da matéria coletável, os valores patrimoniais tributários resultantes da aplicação de coeficientes de localização, de afetação e/ou de qualidade e conforto, e aplicação da majoração de 25% prevista no n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI sobre o valor de base dos prédios edificados, e, deste modo, nos anos em causa, Autoridade Tributária liquidou um montante de imposto superior ao legalmente devido.

Com efeito, o Código do IMI prevê diferentes métodos de avaliação consoante as espécies de prédios urbanos a considerar, atendendo, quanto aos prédios habitacionais, comerciais, industriais e serviços, nos termos do artigo 38.º, aos coeficientes de afetação, de localização, de qualidade e conforto e de vetustez, e, quanto aos terrenos para construção, nos termos do n.º 1 do artigo 45.º, na redação vigente à data dos factos, ao “somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor dos terrenos adjacentes à implantação”.

 

Havendo de entender-se que a aplicação dos coeficientes de afetação, de qualidade e conforto e de localização, para efeito da determinação do valor patrimonial tributário (VPT) dos terrenos para construção, não tem base legal, e só poderia ser sustentada por integração de lacuna legal com recurso à analogia com o disposto no artigo 38.º do Código do IMI.

Acresce que foi aplicada a majoração de 25% prevista no n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI sobre o valor de base dos prédios edificados, ao invés da utilização do valor médio de construção por metro quadrado.

 O valor médio de construção por metro quadrado é determinado tendo em conta os encargos diretos e indiretos suportados na construção do edifício, tais como os relativos a materiais, mão-de-obra, equipamentos, administração, energia, comunicações e outros consumíveis.

A fórmula do artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI, para determinar o valor base dos prédios edificados, refere-se aos prédios habitacionais, comerciais, industriais e serviços, cujo valor patrimonial tributário é calculado nos termos do artigo 38.º, não sendo aplicável aos terrenos para construção.

 Nestes termos, a determinação dos valores patrimoniais tributários dos “terrenos para construção” detidos pela Requerente em 2017 e 2018, incorre em erro nos pressupostos de facto e de direito.

A Autoridade Tributária, na sua resposta, acolhe o entendimento sufragado pelos tribunais superiores no sentido de que na determinação do VPT dos terrenos para construção, releva a regra específica constante do artigo 45.º do Código do IMI, não sendo de considerar os coeficientes previstos na expressão matemática do artigo 38.º do Código do IMI, tais como os coeficientes de localização, de afetação, de qualidade e conforto, e considera, por conseguinte, não existir qualquer litígio quanto à forma de cálculo aplicável para determinar o VPT dos terrenos para construção.

 

No entanto, baseando-se no acórdão de uniformização de jurisprudência do STA de 23 de fevereiro de 2023 (Processo n.º 0102/22), sustenta que o procedimento de avaliação é um ato autónomo e destacável para efeito de impugnação judicial e, não tendo a Requerente posto em causa o valor patrimonial obtido na primeira avaliação, mediante um pedido de uma segunda avaliação, o mesmo fixou-se na ordem jurídica, não sendo possível dele conhecer nas posteriores liquidações de imposto. Isto é, a errónea qualificação e quantificação do valor patrimonial apenas pode ser conhecida em sede de impugnação da segunda avaliação, e não no âmbito do processo de impugnação judicial dos atos de liquidação do imposto.

 

E, nesse sentido, considera que os atos de liquidação do imposto não são impugnáveis com fundamento em vícios próprios dos atos de fixação do valor patrimonial tributário.

 

Por outro lado, a Requerida entende que, nos termos do artigo 168.º do CPA, os atos administrativos apenas podem ser objeto de anulação administrativa no prazo de cinco anos a contar da respetiva emissão, pelo que se encontra precludido o prazo para anulação administrativa do ato que fixa valor patrimonial tributário, o qual se encontra sanado e produz efeitos jurídicos, nomeadamente, para efeitos de cálculo de IMI.

 

Acrescenta que não é admissível o pedido de revisão oficiosa relativamente a atos de avaliação patrimonial, porquanto estes não são  atos tributários, nem atos em matéria tributária, e não se verifica, por outro lado, qualquer erro imputável aos serviços, e, além disso, o pedido de revisão oficiosa é intempestivo na medida em que devia ter sido apresentado, não no prazo de quatro anos previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, mas no prazo de três anos a que se refere o n.º 4 desse artigo.

 

2. No seguimento do processo, por despacho de 19 de setembro de 2023, foi determinada a notificação da Requerente para se pronunciar sobre a matéria de exceção invocada pela Autoridade Tributária na resposta.

 

A Requerente exerceu o direito ao contraditório por requerimento apresentado em 3 de outubro de 2023, dizendo, em síntese, que o entendimento sufragado no acórdão de uniformização de jurisprudência do STA, de 23 de fevereiro de 2023, não tem aplicação ao caso, uma vez que houve lugar a um pedido de revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória, nos termos do artigo 78.º, n.º 4, da LGT, que poderá ter por objeto atos de fixação da matéria tributável consolidados, por falta de impugnação tempestiva, e que constitui uma possibilidade admitida por lei a título excecional.

 

Acrescenta que restringir ou eliminar a impugnabilidade quando a avaliação de terrenos para construção devia ser efetuada sem aplicação de coeficientes não especificamente previstos, como os coeficientes de localização, de qualidade e conforto e de afetação, implica a violação do princípio da justiça e do princípio da tutela jurisdicional efetiva. E, por outro lado, a possibilidade de revisão oficiosa de atos de avaliação afasta a aplicabilidade subsidiária do artigo 168.º do CPA quanto aos condicionalismos aí previstos para a anulação administrativa dos atos tributários.

 

3. Por requerimento de 17 de outubro de 2023, a Requerente prescindiu da prova testemunhal arrolada no pedido arbitral.

 

Na sequência, por despacho do dia imediato, o tribunal dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações escritas por não existirem novos elementos sobre que as partes se devam pronunciar.

 

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 3 de julho de 2023.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e foram invocadas as exceções da inadmissibilidade e intempestividade do pedido de revisão oficiosa, da inimpugnabilidade dos atos tributários de liquidação e sanação dos vícios dos atos de fixação do valor patrimonial com base no caso decidido, que serão analisadas de seguida.

 

II – Saneamento

 

Inimpugnabilidade dos atos tributários de liquidação

 

5. A Autoridade Tributária invoca a exceção da inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI e de AIMI decorrente de se terem consolidado na ordem jurídica os atos de fixação do valor patrimonial tributário, por falta de oportuna reação contra a avaliação direta dos prédios, por parte do sujeito passivo, mediante um pedido de uma segunda avaliação.

 

A Requerente, no âmbito da sua atividade, em 31 de dezembro de 2017 e 1 de janeiro de 2018, era proprietária, entre outros, de 36 terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ..., do município de Loulé.

 

No cumprimento das obrigações estabelecidas nos artigos 120.º, n.º 1, 135.º-G, n.º 1, e 135.º-H, n.º 1, do Código do IMI, a Requerente procedeu, nos prazos legalmente previstos, ao pagamento do IMI incidente sobre a totalidade do seu património, incluindo o imposto imputável aos terrenos para construção, no montante de € 210.579,84, bem como ao pagamento do AIMI, incluindo o imposto imputável aos terrenos para construção, no montante de € 280.773,18.

 

A cobrança do imposto teve por base os valores patrimoniais tributários constantes dos atos de liquidação direta do imposto, tal como resulta dos documentos juntos ao pedido arbitral, e que não foram objeto de uma segunda avaliação por iniciativa do contribuinte, como prevê o artigo 76.º, n.º 1, do Código do IMI.

 

A questão da impugnabilidade judicial dos atos de liquidação de IMI ou de AIMI, quando o contribuinte deixar precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário ainda na fase procedimental, foi apreciada no acórdão o STA, de 23 de fevereiro de 2023, no Processo n.º 0102/22, tirado em recurso para uniformização de jurisprudência incidente sobre a decisão arbitral proferida no Processo n.º 652/2021-T, que estava em oposição com a decisão arbitral proferida no Processo n.º 852/2021-T.

 

O acórdão de uniformização de jurisprudência não pode deixar de considerar-se jurisprudência consolidada na aceção do artigo 152.º, n.º 3, do CPTA, não só porque se destinou a resolver um conflito de julgados entre decisões arbitrais no que respeita àquela específica questão de direito, e foi obtido por unanimidade, como também porque segue na linha do acórdão do STA de 13 de julho de 2016 (Processo n.º 0173/16), e, nesse sentido, revela estabilidade de julgamento (cfr., quanto ao conceito de jurisprudência consolidada, os acórdãos do Pleno do STA de 18 de setembro de 2008, Processo n.º 02121/08, de 30 de junho de 2021, Processo n.º 0131/20, e de 20 de outubro de 2021, Processo n.º 07/21).

 

O tribunal não pode, por conseguinte, deixar de seguir o entendimento sufragado no referido acórdão de uniformização de jurisprudência, em que se conclui nos seguintes termos: “deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável”.


            A questão carece de ser analisada à luz das disposições dos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, que são do seguinte teor:

.

Artigo 76º

Segunda avaliação de prédios urbanos

 

1 - Quando o sujeito passivo, a câmara municipal ou o chefe de finanças não concordarem com o resultado da avaliação direta de prédios urbanos, podem, respetivamente, requerer ou promover uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias contados da data em que o primeiro tenha sido notificado.

[…]

 

Artigo 77º

Impugnação

 

1- Do resultado das segundas avaliações cabe impugnação judicial, nos termos definidos no Código de Procedimento e de Processo Tributário.

2- A impugnação referida no número anterior pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, designadamente a errónea quantificação do valor patrimonial tributário do prédio.

3- A iniciativa da impugnação a que se refere o n.º 1 cabe ao sujeito passivo, à câmara municipal ou à junta de freguesia, quando esta última seja beneficiária da receita.

 

A remissão para o CPPT, que consta do artigo 77.º, n.º 1, do Código do IMI, deve entender-se como feita para o artigo 97.º desse Código, que enumera as situações em que há lugar à impugnação judicial, no âmbito do processo judicial tributário, e entre as quais se conta a “impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais”, a que se refere o artigo 97.º, n.º 1, alínea f), desse Código. E, por outro lado, a regra desse mesmo preceito do Código do IMI está em consonância com o disposto no artigo 134.º, n.º 7, do CPPT, segundo o qual a impugnação de atos de fixação dos valores patrimoniais “só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação”. 

 

O que decorre da interpretação conjugada dos artigos 76.º, n.º 1, e 77.º, n.º 1, do Código do IMI é que do resultado das segundas avaliações cabe impugnação judicial e, por outro lado, a segunda avaliação de prédios urbanos, em que se incluem os terrenos para construção, pode ser requerida pelo sujeito passivo ou pela câmara municipal ou promovida pelo chefe de finanças, quando não concordarem com o resultado da avaliação direta de prédios urbanos.

 

A segunda avaliação corresponde, neste contexto, a uma forma de impugnação administrativa da avaliação direta, e consignando a lei que é da segunda avaliação que cabe impugnação judicial, não pode deixar de concluir-se que a utilização prévia desse meio de tutela administrativa constitui uma condição de acesso à via contenciosa.

 

    Importa fazer notar, a este propósito, que o CPA veio clarificar a distinção entre reclamações e recursos necessários e facultativos, dizendo que as reclamações e os recursos administrativos são necessários e facultativos, conforme dependa, ou não, da sua prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios contenciosos (artigo 185.º, n.º 1), havendo de entender-se que a segunda avaliação corresponde a uma reclamação administrativa necessária destinada a permitir a ulterior impugnação do ato de liquidação.

       Como se refere ainda no acórdão de uniformização de jurisprudência, citando o acórdão do STA de 12 de janeiro de 2011 (Processo n.º 0758/10), não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida.

 

6. Alega, no entanto, a Requerente que o acórdão de uniformização de jurisprudência do STA, de 23 de fevereiro de 2023, não tem aplicação ao caso, uma vez que houve lugar a um pedido de revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória, nos termos do artigo 78.º, n.º 4, da LGT, que poderá ter por objeto atos de fixação da matéria tributável consolidados, por falta de impugnação tempestiva, e que constitui uma possibilidade admitida por lei a título excecional.

 

Fundamenta a sua posição na decisão arbitral proferida no Processo n.º 769/2022-T e na decisão arbitral, em idêntico sentido, proferida no Processo n.º 511-2022-T.  

 

Naquela primeira decisão arbitral afirma-se, no essencial, o seguinte.

 

O referido acórdão uniformizador não se pronuncia especificamente sobre a situação de revisão oficiosa prevista no n.º 4 do artigo 78.º, em que se preveem exceções à inimpugnabilidade de atos de fixação da matéria tributável consolidados, pelo que importa apreciar a possibilidade de revisão neste condicionalismo. Estas questões estão conexionadas pelo que se apreciaram conjuntamente.

[…]

Diferente da questão da impugnabilidade dos atos de liquidação de IMI com fundamento em ilegalidade, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, é a da possibilidade da revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, prevista no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, que a Requerente pediu, e que é um afloramento do dever de revogação de atos ilegais, que emerge do princípio a legalidade da atuação da Administração Tributária (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT).

[…]

 Por isso, tem de se concluir que a revisão da matéria tributável admitida pelo n.º 4 do artigo 78.º da LGT tem necessariamente por objeto atos de fixação da matéria tributável «consolidados», por falta de impugnação tempestiva.

Trata-se de uma possibilidade admitida a título excecional, como expressamente se refere n.º 4 do artigo 78.º, e só constitui exceção porque afasta a aplicação da regra da inimpugnabilidade dos atos «consolidados» por decurso dos prazos normais de impugnação.

Assim, tem de se concluir que a normal consolidação que decorre da não impugnação das avaliações nos prazos legais não é obstáculo à aplicação do n.º 4 do artigo 78.º e, pelo contrário, é um pressuposto prático da sua aplicação, pois a sua utilidade só existe quando o ato a rever está consolidado.

Trata-se de uma solução legal resultante da ponderação concomitante dos princípios da segurança jurídica (que justifica a inimpugnabilidade por decurso do prazo normal de impugnação) e da justiça, admitindo-se o sacrifício do primeiro em situações em que a sua aplicação se reconduz a uma injustiça grave, ostensiva e inequívoca, como definida no n.º 5 do artigo 78.º da LGT.

Mas, esta possibilidade de revisão da matéria tributável no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, admitida como exceção à regra da inimpugnabilidade de atos «consolidados» está prevista em termos mais restritos do que aqueles em que podem ser tempestivamente impugnados os atos de liquidação, pois, por um lado, só a injustiça grave ou notória é fundamento de revisão (e não qualquer ilegalidade), e , por outro lado, o prazo é os «três anos posteriores ao do ato tributário», em vez dos quatro previstos no n.º 1, mesmo que o erro seja imputável à Administração Tributária, e a revisão é afastada quando o erro for imputável a comportamento negligente do contribuinte.

Desta perspetiva, a possibilidade de revisão de atos «consolidados» não é contraditória com o regime de impugnação previsto no artigo 134.º, antes o complementa, mantendo, como regra, a preclusão do direito de impugnar atos de fixação de valores patrimoniais quando não seja observado o regime aí previsto, mas admitindo o afastamento desse regime quando existam razões excecionais que, na perspetiva legislativa, justificam que ele não seja aplicado.

 

Analisando a argumentação constante da citada decisão arbitral, cabe referir, em primeiro lugar, que o pedido de revisão oficiosa deduzido pela Requerente contra os atos de liquidação de IMI e de AIMI não foi formulado nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 4, da LGT e com fundamento em injustiça grave ou notória, mas antes com base em erro imputável aos serviços, ao abrigo do disposto no artigo 78.º, n.º 1, dessa Lei (cfr. documento n.º 1 junto ao pedido arbitral).

 

E mesmo que se entenda que o pedido de revisão oficiosa, ainda que fundado em erro imputável aos serviços, poderia ser convolado pela Administração em revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, nos termos do artigo 78.º, n.º 4, da LGT, o certo é que o pedido de revisão foi apresentado em 30 de setembro de 2022 e reporta-se à liquidação de IMI referente ao ano de 2017, que data de 6 de abril de 2018, e à liquidação do AIMI referente ao ano de 2018, que data de 30 de junho de 2018 (cfr. documentos n.º 3  e 9 juntos ao pedido arbitral).

 

O que significa que mesmo que houvesse lugar à convolação, não tinha sido cumprido o prazo de três anos previsto naquele preceito, para efeito de ser efetuada a revisão com um tal fundamento, considerando que esse prazo se conta a partir do ato tributário.

 

E ainda que se considere a regra do artigo 78.º, n.º 7, da LGT, pela qual o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária interrompe o prazo da revisão oficiosa, a interrupção ocorreu já depois de ter transcorrido o prazo de três anos fixado no n.º 4 desse artigo. Destinando-se a interrupção a inutilizar todo o prazo que até aí tenha decorrido, começando a correr um novo prazo a partir do ato interruptivo, é claro que não pode considerar-se restabelecido o prazo de três anos para a revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória quando o prazo inicial se encontrava já esgotado à data do facto interruptivo. 

 

Como é de concluir, não só não foi invocada pela Requerente a existência de injustiça grave ou notória, como não foi cumprido o prazo de três anos dentro do qual seria possível a revisão oficiosa com esse fundamento. E, assim sendo, não é possível extrair da referida norma do artigo 78.º, n.º 4, da LGT - que não teve qualquer aplicação ao caso - a conclusão de que se encontra afastada a regra da inimpugnabilidade dos atos consolidados por falta de tempestiva impugnação administrativa.

 

 7. Defende a Requerente, com apoio na citada decisão arbitral proferida no Processo n.º 769/2022-T, que a revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória pode ter lugar após o decurso do prazo de impugnação contenciosa dos atos de fixação da matéria tributável, e, sendo admitida a título excecional, afasta a regra da inimpugnabilidade dos atos consolidados.

 

É esta agora a questão que cabe dilucidar.

 

Como resulta do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, a revisão dos atos tributários pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, com fundamento em qualquer ilegalidade, no prazo de reclamação administrativa, ou por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços, devendo entender-se como tal o erro material, o erro de facto ou o erro de direito (cfr. acórdão do STA de14 de março de 2012, Processo n.º 01007/11).

 

Entende-se também, por efeito do disposto no n.º 7 desse artigo 78.º, que a revisão oficiosa pode ser desencadeada pelo sujeito passivo mediante requerimento dirigido ao órgão competente da Administração Tributária e com base nos mesmos pressupostos legais: no prazo de quatro anos e com fundamento em erro imputável aos serviços. O que se tem entendido como uma decorrência do princípio da justiça e da verdade material.

 

A revisão dos atos tributários, oficiosamente ou a pedido do sujeito passivo, na medida em que permite o reconhecimento pela Administração da existência de ilegalidade na prática do ato tributário, constitui um procedimento administrativo de segundo grau com um efeito equivalente aos dos procedimentos impugnatórios, como seja a reclamação graciosa, mas com a falada distinção quanto ao fundamento, que pode abarcar qualquer ilegalidade, caso o pedido de revisão seja interposto no prazo de dois após a liquidação, ou fundar-se em erro imputável aos serviços, quando seja apresentado para além desse prazo (neste sentido, os acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 429/2020-T e 840/2021-T).

 

O n.º 4 do artigo 78.º igualmente permite que o dirigente máximo do serviço autorize, excecionalmente, nos três anos posteriores ao do ato tributário, a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte. 

O subsequente n.º 5 do mesmo artigo esclarece que “apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional”. 

 

Como refere Joaquim Freitas da Rocha, a revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória constitui uma válvula de escape do sistema para situações absolutamente excecionais, que não podem reconduzir-se a questões de ilegalidade - que poderão constituir fundamento de revisão nos termos do n.º 1 do artigo 78.º -, mas a situações de mérito, conveniência ou oportunidade, em que a Autoridade Tributária goza de um espaço autónomo de valoração e apreciação e que se integra no domínio da discricionariedade administrativa (Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5.ª edição, Coimbra Editora, pág. 227). 

 

A excecionalidade do pedido de revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória relaciona-se, por conseguinte, com o objeto da revisão, e não com o pretenso afastamento dos prazos gerais de impugnação administrativa ou contenciosa. De resto, o argumento mobilizado pela Requerente, no sentido de que a revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória pode ser apresentada após o decurso do prazo de impugnação contenciosa dos atos de fixação da matéria tributável, não tem, em si, qualquer relevância, visto que a revisão com fundamento em ilegalidade ou erro imputável aos serviços, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, igualmente pode ser deduzida no prazo de reclamação administrativa ou no prazo de quatro anos, muito para além do prazo de impugnação judicial, que se encontra fixado em três meses (artigo 134.º, n.º 1, do CPPT). E, desse modo, não se descortina qualquer distinção, a esse título, entre os diferentes mecanismos de revisão oficiosa, e não é a circunstância de a lei consignar um prazo de três anos para revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória que pode ter o efeito jurídico, que a Requerente lhe atribui, de invalidar os pressupostos processuais legalmente estabelecidos para a impugnação judicial dos atos de liquidação.

 

Importa reter, por outro lado, que o pedido de revisão oficiosa com base no disposto no artigo 78.º, n.º 4, da LGT apenas poderia relevar se a Autoridade Tributária tivesse reconhecido, no âmbito do procedimento, a existência de injustiça grave ou notória do ato tributário. E o que se verificou é que a Administração não se pronunciou no prazo legalmente previsto, permitindo que o contribuinte pudesse presumir o indeferimento tácito.

 

E foi precisamente por ter ocorrido o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que a Requerente se viu obrigada a lançar mão do meio processual de impugnação judicial, mediante a apresentação de pedido de pronúncia arbitral, para assim obter a anulação contenciosa dos atos de liquidação de IMI e de AIMI com base em erro na fixação do valor patrimonial tributário.

 

No entanto, a impugnação judicial não pode deixar de se encontrar sujeita aos respetivos requisitos processuais de impugnabilidade, e, designadamente, ao prévio esgotamento dos meios graciosos previstos no procedimento de avaliação dos prédios, e, especialmente, ao pedido de segunda avaliação a que se refere o artigo 76.º, n.º 1, do Código do IMI e de cujo resultado o subsequente artigo 77.º, n.º 1, faz depender a impugnabilidade do ato tributário.

 

8. Como se deixou exposto, a Requerente não deduziu um pedido de revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória, nos termos do artigo 78.º, n.º 4, da LGT, mas antes um pedido de revisão oficiosa com base em erro imputável aos serviços, ao abrigo do disposto no artigo 78.º, n.º 1.

 

E, além disso, a Administração, no âmbito do procedimento, não se pronunciou no prazo legal, dando origem a um indeferimento tácito.

 

Ora, dificilmente se poderia compreender em que termos é que a inércia da Administração, tendo ocasionado a presunção de indeferimento, para efeito do interessado poder recorrer à via judicial, pode justificar a preterição dos requisitos de impugnabilidade. Um ato tácito de indeferimento corresponde ficticiamente a um ato expresso de indeferimento para o aludido efeito de impugnação judicial e, em qualquer caso, a impugnação judicial do ato tácito ou expresso está subordinada aos mesmos pressupostos processuais, incluindo no que se refere aos requisitos de impugnabilidade.

 

Por outro lado, a Administração, não tendo apreciado o pedido de revisão, não se pronunciou sobre a existência de injustiça grave ou notória. Nem o tribunal pode substituir-se à Administração, no âmbito do procedimento administrativo, para dar como verificada a situação excecional que, com esse fundamento, permitiria proceder à revisão dos atos de fixação do valor patrimonial tributário.

 

Em suma, não se vê se que modo é que uma suposta injustiça grave ou notória, que não foi verificada pela Administração, nem o tribunal pode verificar, ou a simples invocação do artigo 78.º, n.º 4, da LGT – que, como se disse, não serviu sequer de fundamento ao pedido de revisão oficiosa formulado pela Requerente – pode afastar a regra da impugnabilidade dos atos consolidados por falta de oportuna impugnação administrativa.

 

Alega a Requerente que o STA, no acórdão de uniformização de jurisprudência o STA, de 23 de fevereiro de 2023, tirado no Processo n.º 0102/22, não se pronunciou especificamente sobre a situação da revisão oficiosa do n.º 4 do artigo 78.º da LGT.

 

Ora, o STA não se pronunciou nem tinha de se pronunciar sobre essa questão, mas antes apreciar o conflito de jurisprudência entre duas decisões arbitrais quanto à questão de saber se a falta de impugnação administrativa do valor patrimonial tributário através de uma segunda avaliação, nos termos dos artigos 76.º, n.º 1, e 77.º, n.º 1, do Código do IMI, preclude a possibilidade de arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que serviu de matéria coletável.

 

E o Tribunal uniformizou a jurisprudência em termos de se considerar exigível, como requisito de impugnabilidade dos atos de liquidação, o prévio esgotamento dos meios graciosos no âmbito do procedimento de avaliação, e é essa orientação a que cumpre dar seguimento.

 

9.  Requerente alega ainda, sem qualquer outro desenvolvimento, que a restrição da impugnabilidade dos atos de liquidação, com fundamento no cálculo ilegal do valor patrimonial tributário, viola o princípio da tutela jurisdicional a que se refere o artigo 268.º da Constituição, e o princípio da justiça mencionado no artigo 55.º da LGT.

 

O citado artigo 268.º articula-se com o artigo da 20.º da Lei Fundamental, que garante o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional e, que num sentido mais abrangente, integra, fundamentalmente, um direito geral de ação e ainda o direito a prazos razoáveis de ação e de recurso, além do direito a um processo justo, no qual se incluirá, naturalmente, o direito da cada um a não ser privado da possibilidade de defesa perante os órgãos judiciais na discussão de questões que lhe digam respeito.

 

É, no entanto, de assinalar que a consagração do princípio da tutela jurisdicional efetiva não impede que a dedução de certos tipos específicos de pretensões continue a depender do preenchimento de determinados pressupostos processuais, impostos no propósito de proteger outros valores que cumpre articular com o do interessado em lançar mão da via judicial. Isso sucede sobretudo no domínio da impugnação de atos administrativos e tributários, que continua, desde logo, a depender da observância de prazos e também pode depender, quando lei especial o determine, da prévia utilização de vias de impugnação administrativa necessária (cfr. o artigo 185.º do CPA).

 

Uma coisa é, na verdade, a possibilidade que os interessados têm de deduzir, qua tale, as pretensões cuja dedução em juízo seja necessária à obtenção de uma tutela jurisdicional efetiva e outra é a eventual imposição de condicionamentos ao exercício do direito de acesso à justiça, justificados pela necessidade de acautelar outros interesses, como os da segurança e certeza jurídica ou da própria economia processual. E no caso das reclamações necessárias, como seja o pedido de uma segunda avaliação dos prédios urbanos, a exigência legal justifica-se como um meio de autocontrolo administrativo, que permite a revisão da primeira avaliação por entidade supostamente mais habilitada, que poderá evitar a litigiosidade judicial (cfr. neste sentido, Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 5.ª edição, pág. 50; Vieira de Andrade, Comentários à Revisão do Código de Procedimento Administrativo, Coimbra, 2016, pág. 399, e Lições de Direito Administrativo, 2.ª edição, Coimbra, pág. 193; e, na jurisprudência, o acórdão do TC n.º 564/2008, e a jurisprudência nele citada).

 

Por identidade de razão não se verifica a violação do princípio da justiça. O princípio da justiça, na apreciação de um litígio concreto, configura-se como um meio de atingir a verdade na tributação e de assegurar a justa composição do conflito, mas não pode significar que o juiz deva decidir em detrimento das formas e regras procedimentais que se encontram legalmente estabelecidas (cfr, neste sentido, Joaquim Freitas da Rocha, ob. cit., pág. 255).

 

Termos em que se entende dar como verificada a invocada exceção de inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI e AIMI.

 

Questões de e conhecimento prejudicado

 

10. Face à solução a que se chega, julga-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

 

Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

11. Sendo de rejeitar, por inimpugnabilidade, os pedidos principais de liquidação de atos de liquidação de IMI e de AIMI, é improcedente o pedido de reembolso do imposto liquidado e do pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide:

 

  1. Julgar procedente a exceção de inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI, referente ao ano de 2017, e de liquidação de AIMI, referente ao ano de 2018, impugnados, e absolver a Autoridade Tributária da instância;
  2. Absolver a Autoridade Tributária do pedido de reembolso do imposto liquidado e do pagamento de juros indemnizatórios.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 173.170,00, que a Autoridade Tributária não questionou e corresponde ao valor das liquidações de imposto a que se pretendia obstar, face ao disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, que fica a cargo da Requerente

 

Notifique.

 

Lisboa, 18 de dezembro de 2023,

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

 

Carlos Fernandes Cadilha (relator)

 

A Árbitro vogal

 

 

Cristina Aragão Seia

 

A Árbitro vogal

 

 

                                                                   Carla Almeida da Cruz