Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 192/2023-T
Data da decisão: 2023-12-04  IVA  
Valor do pedido: € 770.253,06
Tema: IVA - Taxa reduzida; Sumos naturais integrados em prestações de serviços de alimentação e bebidas. Art. 18.º CIVA e verbas 3.1 da Lista II e 1.11 da Lista I. Repercussão. Art. 78.º, n.º 5 CIVA.
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SUMÁRIO:

A não aplicação da taxa intermédia de IVA aos serviços de sumos naturais em regime de eat in está inquinada de vício de ilegalidade por violação do princípio da neutralidade do IVA.

 

 

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Raquel Montes Fernandes e
Catarina Belim, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A A..., Lda., sociedade por quotas matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...‑... Lisboa, doravante abreviadamente designada por «A... » ou «Requerente», tendo sido notificada do ato de indeferimento expresso do recurso hierárquico n.º ...2021..., através do Ofício n.º ..., datado de 09‑12‑2022 (o qual foi junto ao processo pela Requerente como documento n.º 1) vem, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), deduzir pedido de pronúncia arbitral imediatamente contra o ato de indeferimento expresso do recurso hierárquico e mediatamente contra os atos de autoliquidação de IVA de 2018, na parte respeitante aos serviços de sumos naturais prestados em regime eat in.

É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 22 de março de 2023.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 12 de maio de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O TAC encontra-se, desde 30 de maio de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 3 de julho de 2023.

Por despacho de 21 de agosto de 2023, o TAC proferiu o seguinte despacho:

“Designa-se o dia 27 de setembro de 2023, pelas 10h00 horas, nas instalações do CAAD, para realização da audiência para produção de prova testemunhal.

Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

Na sequência de requerimento da Requerente foi proferido o seguinte despacho em 8 de setembro de 2023:

“Considerando o requerimento da Requerente de 30-08-2023, designo nova data de audiência para dia 21-9-2023, pelas 10h, nas instalações do CAAD, considerando-se sem efeito o despacho anterior.”

A audiência realizou-se no dia 21 de setembro de 2023.

A Requerente apresentou alegações em 27 de setembro de 2023.

A 17 de novembro de 2023 foi prorrogado o prazo de prolação da sentença, nos termos do artigo 21.º n.º 2 do RJAT, tendo em conta a ponderação, pelo TAC, dos vários elementos juntos pelas partes.

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1      Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

  1. No âmbito da atividade anteriormente descrita, a A... liquidou imposto à taxa normal de IVA sobre os serviços de sumos naturais prestados em regime eat in seguindo de perto as orientações genéricas emitidas pela AT em matéria exclusivamente de direito – in casu, a doutrina administrativa emanada no Ofício‑Circulado n.º 30181, de 06-06-2016, confirmada por informações vinculativas que lhe seguiram, tais como o PIV n.º 10730, por despacho proferido no dia 23-08-2016, ou o PIV n.º 13123, por despacho proferido no dia 22-02-2018; doutrina essa que versa sobre as verbas 1.8 e 3.1. da Lista II anexa ao Código do IVA.
  2. Está em causa, essencialmente, um conjunto alargado de serviços de sumos naturais de frutos, limonadas e infusões frias e quentes, nomeadamente chá verde, que são diariamente prestados pela Requerente nos seus espaços para consumo eat in (ou transmitidos em take-away), incluindo, com maior destaque, o sumo de laranja natural (cujas laranjas são espremidas no local e sem adição de quaisquer outros ingredientes ou aditivos), mas também o sumo de morango e hortelã, sumo de frutos do bosque, sumo de manga natural, sumo de abacaxi e framboesa ou hortelã, sumo de morango e hortelã, sumo de maçã e gengibre, entre outros, cujas fichas técnicas foram juntas ao processo pela Requerente como documento n.º 3.
  3. Tais serviços são adquiridos nas instalações da Requerente por centenas de consumidores numa base diária – em serviço a la carte (com escolha específica de cada elemento), ou em contexto de menu (consumidos juntamente com outros artigos, no menu de pequeno-almoço, lanche ou almoço), para consumo fora (take-away) ou dentro dos próprios estabelecimentos (eat in), e com identificação por tipo de consumo nas próprias faturas emitidas –, assumindo expressão esmagadora o sumo de laranja natural espremido in loco;
  4. Os serviços de sumos naturais têm sido sujeitos pela Requerente à taxa geral de 23% quando prestados em regime eat in, ao contrário do que sucede nos serviços de sumos naturais em regime de take-away, sujeitos à taxa reduzida de IVA
  5. Como quaisquer operadores económicos da área de restauração, a Requerente cobra aos seus clientes preços finais, com IVA incluído. Tomemos o exemplo do designado «menu pequeno-almoço», oferecido aos seus clientes pelo preço final de € 2,50 em 2018[1], com IVA incluído, como demonstram exemplos de 2.as vias de faturas simplificadas juntos ao processo pela Requerente como documento n.º 4.
  6. Desse menu, que é um dos produtos mais icónicos nos seus espaços, faz parte um sumo natural (por simplicidade, reportar-nos-emos sempre ao sumo de laranja natural), uma sandes, pão de Deus ou croissant misto e um café (e, nos últimos anos, ovos mexidos).
  7. A Requerente tem praticado os mesmos preços para os serviços de sumos, tanto em take-away, quando são sujeitos à taxa reduzida de 6%, como em regime eat in, sujeitos à taxa normal de 23%; as bases sujeitas a imposto só variam consoante os serviços de sumos sejam adquiridos singularmente ou em menu, consoante o peso dos restantes artigos que integram o menu (desconto)[2]. Por facilidade de exposição, reportar‑nos‑emos ao preço unitário de € 2,00 do sumo de laranja natural.
  8. No menu de pequeno-almoço disponível em take-away, o sumo de laranja natural é tributado à taxa reduzida de imposto (6%), que equivale a € 2,00 (com IVA incluído), desconsiderando o desconto [o que dá € 1,89 de preço sem IVA]; o consumidor final paga € 2,50 (2018) pela totalidade do produto.
  9. Já no menu pequeno-almoço para consumir dentro das lojas d’A A..., o mesmo sumo de laranja natural é tributado à taxa normal de imposto (23%), o que dá € 1,63 de preço sem IVA; e o consumidor final paga o mesmo preço fixo pelo menu em regime eat-in.
  10. Em ambas as modalidades, o consumidor paga sempre € 2,50 (factos reportados a 2018) pelo menu. O preço final é exatamente o mesmo, independentemente da taxa de IVA aplicada e discriminada na fatura;
  11. A Requerente diminui, assim, a sua margem de lucro no eat-in para que os seus consumidores vejam como neutra a opção de consumir no local ou consumir no exterior.
  12. O mesmo que vem dito vale, mutatis mutandis, para outros serviços a la carte. Fora do menu, em take away, o sumo de laranja natural é vendido a € 2,00 (com IVA a 6% incluído) [o que dá € 1,89 de preço sem IVA]; e no contexto de refeição eat-in, o mesmo sumo de laranja natural é comercializado por € 2,00 (com IVA A 23% incluído) [o que dá € 1,63 de preço sem IVA].
  13. De novo, o consumidor final paga o mesmo preço pelo mesmo produto, a margem da Requerente é que aumenta/diminui, ou seja, a diferença da taxa de IVA é totalmente suportada pela Requerente, e não é repercutida nos clientes.
  14. Esta fixação do preço com IVA incluído é transversal a todos os produtos consumidos/ serviços prestados nas lojas próprias e traduz aquilo que é comum a todos os retalhistas alimentares que exercem estas mesmas atividades de restauração: os preços dos produtos com IVA, seja em menu, seja individualmente, são fixados em função de fatores puramente económicos, como sejam o efeito substituição/concorrência (i.e., se os consumidores optarão por outros operadores ou por outros produtos sucedâneos) e o efeito de elasticidade da procura.
  15. Para a A..., tal como para os demais operadores económicos, o IVA é mais um custo (como a matéria-prima) a ter em conta na fixação dos preços, sendo a margem de lucro sempre condicionada por aqueles fatores, e para o consumidor o IVA faz parte do preço final (como outro custo qualquer), não sendo obviamente recuperável por dedução.
  16. A Requerente tem vindo a sujeitar os serviços de sumos naturais prestados em regime eat in à taxa normal de imposto porque a AT tem vindo a rejeitar a aplicação da taxa reduzida de imposto prevista na verba 1.11 da Lista I ou, até mesmo, da taxa intermédia contemplada na previsão normativa da verba 3.1 da Lista II, ambas anexas ao CIVA, no tocante aos serviços de sumos naturais, quando servidos em regime eat in, quer em serviço a la carte, quer em serviço de menu. Do ponto de vista da AT, quando diluídas numa prestação de serviços de restauração, aquelas bebidas não se encontram compreendidas por qualquer uma dessas verbas (taxa reduzida ou intermédia), logo estão sujeitas à taxa normal de IVA.
  17. Para a Requerente, estas orientações genéricas contêm interpretações ilegais daquelas verbas, posto que não é verdade que estes bens, quando vendidos em regime eat in, não se subsumem em, pelo menos, uma das tais verbas.
  18. A Requerente juntou, igualmente, ao processo, um parecer do Professor José Guilherme Xavier de Basto e da Professora Maria Odete Oliveira sobre a vexata quaestio dos autos, que conclui o seguinte:

“«Ao querer beneficiar, com a taxa intermédia de IVA, os serviços de alimentação e bebidas, pode compreender-se a exclusão das bebidas alcoólicas e dos refrigerantes, mas é de todo incompreensível que se excluam os sumos e néctares, contra os quais, nenhuma medida de saúde pública aconselha a exclusão. O mesmo se poderá dizer das águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias».

«Basta pensar no diferente tratamento fiscal dado a dois consumidores que resolvem merendar num estabelecimento de pastelaria. Um pede um pastel de nata (um doce nacional de reputação internacional) e um sumo natural de laranja (obtido na hora, por esmagamento mecânico do fruto), enquanto outro quer acompanhar o pastel de nata com uma chávena de chá. Enquanto este último recebe uma factura com IVA de 13%, o primeiro verá a sua factura discriminada – o pastel de nata será taxado a 13%, enquanto o sumo (excluído expressamente daquela taxa na verba pela verba 3.1 da Lista II) se vê taxado a 23%. O bebedor de sumo de laranja é discriminado relativamente ao bebedor de chá, sem que se vislumbre qualquer razão para essa diferença de tratamento».”

(…)

«Não há dúvida que, em princípio, o Estado português pode seleccionar entre as várias bebidas aquelas a que quer dar o benefício da taxa intermédia quando elas constituem um elemento de um serviço de alimentação e bebidas. Tem, porém, ao fazer essa selecção, de atender a um princípio cimeiro de todo o sistema do IVA – o princípio da neutralidade – princípio objecto de aprofundado tratamento pela jurisprudência comunitária. Será que a exclusão da taxa reduzida de 13% dos sumos e néctares, imposta na verba 3.1 da Lista II, quanto esta não exclui desse benefício outras bebidas não alcoólicas, nem objecto de tributação especial (como será o caso do leite, do chá, só para dar dois exemplos) é compatível com o princípio da neutralidade fiscal?».

«A fim de aferir se a discriminação constante da verba 3.1 da Lista II anexa ao CIVA respeita ou não o princípio da neutralidade, há, pois, que avaliar, do ponto de vista de um consumidor médio, se aqueles consumos de sumos e néctares têm propriedades análogas ou satisfazem necessidades idênticas de outros produtos que não foram excluídos daquela verba, e de que se podem encontrar muitos exemplos. Ora, bem nos parece que, na perspectiva desse consumidor médio, não há nada, nesses sumos e néctares, excluídos na verba 3.1 (e assim levados, se seguirmos cegamente a letra da lei, para a tributação à taxa geral de 23%) que os distinga de outras bebidas, como o chá, o café, as bebidas de cereais, de amêndoa, caju e avelã, algumas destas incluídas, quando objecto de transmissão e desenquadradas de uma prestação de serviços de alimentação e bebidas, na Lista I de bens sujeitos à taxa reduzida de 6%.»

«Sem justificação plausível para proceder a essas discriminações, as excepções introduzidas na verba 3.1 da Lista II são pois susceptíveis de ser condenadas por ofensa ao princípio da neutralidade, tal como formulado pelo TJUE, abrindo assim a porta a que se não observe a orientação geral em matéria de isenções e taxas reduzidas, que é a de serem interpretadas restritivamente. No nosso, caso, em homenagem ao cumprimento do princípio da neutralidade, deverá proceder-se, ao invés, a uma interpretação restritiva da excepção, não aplicando àqueles produtos, quando inseridos numa prestação de serviços de alimentação e bebidas, a taxa geral do IVA, de 23%».

  1. A reação tem lugar agora, depois da liquidação do IVA, porque, sendo vinculantes para a própria AT, é evidente que as ditas orientações constrangeram (e constrangem) a Requerente e quaisquer sujeitos passivos em iguais condições a proceder de acordo com o seu teor, sob pena de sofrerem liquidações adicionais e pesadas coimas que, no caso do IVA, estão indexadas ao montante de imposto em falta.
  2. Ora, em cumprimento das ditas instruções administrativas, a Requerente aplicou a taxa normal de imposto nas prestações de serviços de sumos naturais em regime eat in e, como vimos atrás, absorveu totalmente o impacto económico dela decorrente.
  3. Em termos quantitativos, as autoliquidações revelam que o IVA indevidamente liquidado pela Requerente nas prestações de serviços de sumos naturais ascendeu a € 770.253,06 em 2018, que corresponde a 17% do preço-base (a diferença entre a taxa praticada de 23% e a taxa de 6%, conforme consta das tabelas-síntese juntas como documento n.º 5).
  4. Subsidiariamente, o IVA indevidamente liquidado nas prestações de serviços de sumos naturais ascendeu a € 453.090,03, que corresponde a 10% do preço-base (a diferença entre a taxa de 23% e a taxa de 13%, conforme consta das tabelas-síntese juntas ao processo pela Requerente).

II.2      Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

  1. Quanto ao mérito, são três as questões autónomas a considerar: (i) inexistência de erro nas autoliquidações impugnadas; (ii) o imposto entregue pela Requerente não foi por si suportado, mas necessariamente legalmente repercutido aos seus clientes e (iii) inaplicabilidade da verba 3.1 da Lista II anexa ao CIVA.
  2. As autoliquidações que a Requerente vem impugnar respeitam a imposto incluído nas faturas emitidas aos seus clientes, que o suportaram por força do mecanismo da repercussão (cf. artigo 37.º, n.º 1 do CIVA).
  3. Esta repercussão não resulta de uma opção da Requerente, pois, para além do legalmente determinado no artigo 37.º, n.º 1 do CIVA, dispõe-se no artigo 97.º, n.º 3, do mesmo Código que “[a]s liquidações só podem ser anuladas quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente nos termos do artigo 37.º”.
  4. E, por conseguinte, as autoliquidações impugnadas não podem ser anuladas, por se tratar de imposto legalmente repercutido a terceiros.
  5. Importa, desde logo, apreciar que inexiste qualquer erro nas autoliquidações que suporte a sua anulação, uma vez que estas estão em conformidade com as faturas emitidas, não havendo evidência que tais faturas tenham sido corrigidas pela Requerente nos termos legais.
  6. Na apreciação desta questão não está em causa se as operações em causa são eventualmente tributáveis à taxa de 6%, e não à taxa, faturada pela Requerente, de 23%.
  7. Com efeito, daí resulta, não a ilegalidade das autoliquidações efetuadas pela Requerente nas declarações a que alude o artigo 29.º, n.º 1, al. c) do CIVA, mas tão só a ilegalidade das liquidações efetuadas pela própria Requerente nas faturas que emitiu, em cumprimento do disposto no artigo 37.º, n.º 1, do CIVA, liquidações essa cuja correção se impunha à própria Requerente, que não o fez, pois não há evidência que tenha corrigido uma única fatura.
  8. E, assim sendo, não há qualquer erro de facto ou de direito nas autoliquidações que a Requerente pretende parcialmente anular, pois estão conforme àsfaturas por si emitidas, como, de resto, tem sido entendimento da jurisprudência quando chamada a pronunciar-se sobre esta questão, mormente apreciando de situações semelhantes à dos presentes autos, em que também se está perante transmissão de bens / prestações de serviços a consumidores finais e em grande número.
  9. Determina-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 29.º do Código do IVA, na redação à data aplicável, que os sujeitos passivos elencados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º daquele Código têm:
    1. a obrigação de pagamento do imposto, bem como
    2. de emitir fatura por cada transmissão de bens ou prestação de serviços.
  10. Quanto às formalidades das faturas ou documentos equivalentes, prescreve o n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, na redação à data aplicável, que estes devem conter:

«c) O preço, líquido de imposto, e os outros elementos incluídos no valor tributável;

d) As taxas aplicáveis e os montantes de imposto devido».

  1. Mais resultando do n.º 7 do artigo 29.º do Código do IVA, na redação à data aplicável, que: «deve ainda ser emitida fatura ou documento equivalente quando o valor tributável de uma operação ou imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão».
  2. No artigo 44.º do Código do IVA determina-se, em síntese, que a contabilidade deve ser organizada de forma a possibilitar o conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários ao cálculo do imposto, bem como a permitir o seu controlo, comportando todos os dados necessários ao preenchimento da declaração periódica do imposto.
  3. Por sua vez, estabelece-se no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IVA que: «as disposições dos artigos 36.º e seguintes devem ser observadas sempre que, emitida a fatura ou documento equivalente, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo».
  4. Prescrevendo o n.º 3 do artigo 78.º do Código do IVA que: «nos casos de faturas inexatas que já tenham dado lugar ao registo referido no artigo 45.º, a retificação é obrigatória quando houver imposto liquidado a menos, podendo ser efetuada sem qualquer penalidade até ao final do período de imposto seguinte àquele a que respeita a fatura a retificar, e é facultativa, quando houver imposto liquidado a mais, mas apenas pode ser efetuada no prazo de dois anos».
  5. Sendo que, nos termos do n.º 4 do referido preceito normativo: «o adquirente do bem ou destinatário do serviço que seja um sujeito passivo de imposto, se já tiver efetuado o registo de uma operação relativamente à qual o seu fornecedor ou prestador de serviço procedeu a anulação, redução do seu valor tributável ou retificação para menos do valor faturado, corrige, até ao fim do período de imposto seguinte ao da receção do documento retificativo, a dedução efetuada».
  6. Acresce que, verificando-se uma retificação que implique a redução do valor tributável de uma operação ou do respetivo imposto, a regularização a favor do sujeito passivo, conforme resulta do n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA, «só pode ser efetuada quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da retificação ou de que foi reembolsado do imposto, sem o que se considera indevida a respetiva dedução».
  7. Face ao quadro legal exposto, conclui-se, pois, que numa situação como a sub judice, em que se está perante a alteração da taxa de IVA aplicável, impõe-se, sempre:
  • a emissão de documento retificativo de fatura, isto é de notas de crédito e de novas faturas, nos termos do artigo 29.º, n.º 7 do Código do IVA, bem como,
  • a respetiva contabilização da regularização e inscrição no campo 40 da declaração periódica referente ao período a que respeita a regularização, nos termos dos artigos 44.º e 45.º do Código do IVA.
  1. Com efeito, importa não esquecer que o valor tributável da operação e do imposto correspondente são alterados por consequência da alteração da taxa de IVA propugnada pela Requerente.
  2. Dois elementos que são, como se viu, essenciais nas faturas atento o disposto nas alíneas c) e d) do n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA.
  3. E a correção da inexatidão das faturas emitidas pela Requerente quanto à taxa aplicável efetua-se mediante a emissão de notas de crédito e de novas faturas, (com os campos do valor tributável e imposto devido corretos face à nova taxa aplicável), nos termos dos artigos 29.º, n.º 1 e 7, 36.º, 44.º, 45.º e 78.º do Código do IVA, as quais devem ser relevadas no campo 40 da declaração periódica referente ao período em que foi efetuada a regularização e nunca através da substituição ou anulação da declaração periódica relativa ao período correspondente às faturas que se anularam.
  4. Pelo que as autoliquidações referentes aos períodos correspondentes às faturas, cuja taxa a Requerente veio depois concluir estar incorreta, não padecem de qualquer erro, tendo por base a contabilização daquelas faturas com a taxa aí indicada pela Requerente.
  5. Afinal, não pode a Requerente ficcionar um erro que não existiu naquelas autoliquidações, como, de resto, assim já se decidiu no processo arbitral nº 63/2015-T (decisão transitada em julgado), bem como no processo n.º 607/2018-T (sem que, contudo, neste último caso, a decisão tenha, na presente data, transitado em julgado).
  6. Não podendo a Requerente alegar (sem provar, de resto), que houve uma alegada redução da margem de lucro invocada, ou seja, que, supostamente, a Requerente absorveu totalmente o impacto económico da aplicação da taxa normal aos sumos no âmbito da sua atividade de venda e prestação de serviços de alimentação e bebidas, pois como acima se disse, a repercussão do imposto não é uma opção do sujeito passivo, mas antes uma obrigação legal (cf. entre outros o disposto no artigo 37.º, n.º 1 do Código do IVA).
  7. E, assim sendo, nenhuma ilegalidade pode ser assacada às autoliquidações em causa, devendo o pedido arbitral improceder.

 

  1. SANEAMENTO
  2. O TAC é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

  1. A A..., tendo sido fundada há mais de 10 anos (em 2010) agrega já mais de 60 lojas próprias e acima de 1100 colaboradores, sendo atualmente uma das empresas de referência no mercado português, em especial na Área Metropolitana de Lisboa, no sector da panificação e pastelaria.
  2. Desde a sua criação – através de uma fábrica em ..., com a missão de desenvolver uma rede de padarias e pastelarias de bairro tradicionais, enraizadas na cultura portuguesa – até ao ano em curso, sempre orientou a sua estratégia com base em critérios de inovação, portugalidade, qualidade e de desenvolvimento de novos produtos.
  3. A Requerente foi constituída para a exploração da indústria hoteleira, estabelecimentos de restauração e bebidas e atividades afins, nomeadamente, pastelarias, restaurantes, geladarias e snack-bares; fabrico próprio de pastelaria, panificação, salgados, gelados e pizzas.
  4. No âmbito da atividade anteriormente descrita, a A... liquidou imposto à taxa normal de IVA sobre os serviços de sumos naturais prestados em regime eat in seguindo de perto as orientações genéricas emitidas pela AT em matéria exclusivamente de direito – in casu, a doutrina administrativa emanada no Ofício‑Circulado n.º 30181, de 06-06-2016, confirmada por informações vinculativas que lhe seguiram, tais como o PIV n.º 10730, por despacho proferido no dia 23-08-2016, ou o PIV n.º 13123, por despacho proferido no dia 22-02-2018; doutrina essa que versa sobre as verbas 1.8 e 3.1. da Lista II anexa ao Código do IVA.
  5. A Requerente tem praticado os mesmos preços aos seus clientes nos serviços de sumos naturais, tanto em regime de take-away, serviços esses sujeitos à taxa reduzida de 6%, como em regime eat in, sujeitos à taxa normal de 23%.
  6. A Requerente apresentou recurso hierárquico das autoliquidações de IVA de 2018 na parte respeitante aos serviços de sumos naturais prestados em rgime eat in, cujos termos correram sob o procedimento n.º ...2021..., o qual, analisado na Informação n.º 2021 ..., de 2022-12-07, veio a ser indeferido por despacho proferido, em 2022-12-09, pelo Subdiretor Geral da Área de Gestão Tributária – IVA, IEC e ISV, e para cuja fundamentação igualmente se remete.
  7. O IVA liquidado e entregue ao Estado pela Requerente nas prestações de serviços de sumos naturais que corresponde a 17% do preço-base (a diferença entre a taxa praticada de 23% e a taxa de 6%) é € 770.253,06 em 2018 (cfr tabelas-síntese do documento n.º 5 do PPA).
  8. O IVA liquidado e entregue ao Estado pela Requerente nas prestações de serviços de sumos naturais que corresponde a 10% do preço-base (a diferença entre a taxa de 23% e a taxa de 13%) é de € 453.090,03 em 2018 (cfr tabelas-síntese do documento n.º 5 do PPA).

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos e factos não questionados pelas partes.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e testemunhal e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13, “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

IV. 2. Matéria de Direito

 

IV. 2.A. REGIME DA DIRETIVA IVA

A Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de  28 de novembro de 2006 (“Diretiva IVA”) contém a disciplina harmonizada das taxas deste imposto e determina que os Estados-Membros devem aplicar uma taxa normal de IVA fixada numa percentagem do valor tributável, idêntica para as transmissões de bens e para as prestações de serviços, que não pode ser inferior a 15% (v. artigos 96.º e 97.º da Diretiva IVA).

 É, ainda, permitida aos Estados-Membros a aplicação de uma ou duas taxas reduzidas, cuja percentagem não pode ser inferior a 5%, às transmissões de bens e prestações de serviços enumeradas no catálogo fechado constante do Anexo III da Diretiva, concedendo-se a possibilidade de, no caso de transmissões de bens, utilizarem a Nomenclatura Combinada para a delimitação exata das categorias abrangidas (v. artigos 98.º e 99.º da Diretiva IVA). 

A regra geral do direito europeu é, assim, a da obrigatoriedade da taxa normal de IVA, ficando a autorização (e livre margem) conferida ao legislador nacional, para aplicação de uma ou duas taxas reduzidas, circunscrita aos bens e serviços listados no mencionado Anexo III à Diretiva IVA. Com relevância para os autos, prevê-se que os Estados-Membros apliquem, se assim o decidirem, taxas reduzidas às seguintes transmissões de bens ou prestações de serviços:

“1) Produtos alimentares (incluindo bebidas, com exceção das bebidas alcoólicas) destinados ao consumo humano e animal, animais vivos, sementes, plantas e ingredientes normalmente destinados à preparação de alimentos, bem como produtos normalmente destinados a servir de complemento ou de substituto de produtos alimentares;

[…]

12-A) Serviços de restauração e de catering, sendo possível excluir o fornecimento de bebidas (alcoólicas e/ou não alcoólicas)”.

No que se refere aos serviços de restauração e de catering, a autorização para a aplicação de taxas reduzidas foi introduzida pela Diretiva 2009/47, do Conselho, de 5 de maio de 2009, que alterou a Diretiva IVA, tendo em consideração os potenciais efeitos positivos “em termos de criação de emprego e de luta contra a economia paralela”, visando beneficiar e promover “serviços com grande intensidade do fator trabalho” e serviços de restauração e de catering (v. Considerando 2 da Diretiva 2009/47).

Em relação ao fornecimento de bebidas, alcoólicas e/ou não alcoólicas, no âmbito dos serviços de restauração e de catering, o Considerando 3 da Diretiva salienta que pode justificar-se dar a essas bebidas um tratamento diferente do previsto no âmbito do fornecimento de produtos alimentares, razão pela qual contempla de forma explícita que os Estados-Membros tenham a opção de incluí-las ou excluí-las ao decidirem aplicar uma taxa reduzida ao fornecimento dos serviços de restauração e catering a que se refere o Anexo III da Diretiva IVA.

Sobre o conceito de prestação de serviços de restauração e de catering, o legislador da União Europeia também procedeu ao seu recorte, na sequência de anterior jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) (processo Faaborg-Gelting Linien, C-231/94, de 2 de maio de 1996). Deste modo, não está na disponibilidade dos Estados-Membros “alterar ou manipular o conceito” (v. CARLOS LOBO, et alii, “O IVA no Sector da Restauração”, Cadernos IVA 2016, pp. 51-72).

Neste âmbito, dispõe o Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 do Conselho, de 15 de março de 2011 (que estabelece medidas de aplicação da Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do IVA), no seu artigo 6.º, o seguinte:

 “1.   Entende-se por «serviços de restauração e de catering» os serviços que consistam no fornecimento de comida ou de bebidas, preparadas ou não, ou de ambas, destinadas ao consumo humano, acompanhado de serviços de apoio suficientes para permitir o consumo imediato das mesmas. O fornecimento de comida ou de bebidas, ou de ambas, constitui apenas uma componente de um conjunto em que os serviços são predominantes. Constituem serviços de restauração os serviços prestados nas instalações do prestador e serviços de catering os serviços prestados fora das instalações do prestador.

2.   Não se consideram serviços de restauração nem de catering, na aceção do n.º 1, o fornecimento de comida ou de bebidas, preparadas ou não, ou de ambas, incluindo ou não o transporte das mesmas, mas sem qualquer outro serviço de apoio.”

Convém relembrar que as disposições dos Regulamentos da União Europeia têm caráter geral e são diretamente aplicáveis, pelo que vigoram em todo o território da União, sem necessidade de transposição de norma mediadora de direito interno (v. artigo 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – “TFUE”).

Assim, a prestação de serviços de restauração e de catering consubstancia um conceito autónomo e uniforme do direito da União Europeia, não podendo o legislador nacional, e menos ainda o intérprete e aplicador, conformá-lo distintamente. Esses serviços caracterizam-se por constituírem um conjunto de elementos, dos quais o fornecimento de comida e/ou bebida é apenas uma componente acompanhada de serviços de apoio destinados a facilitar o consumo no local do fornecimento, num quadro adequado.

Uma prestação de serviços de restauração não deve ser confundida com uma operação de transmissão de bens, ainda que a prestação de serviços possa conter bens, no caso concreto, produtos alimentares e bebidas. Note-se que não estamos sequer perante uma situação exclusiva das refeições, existindo outros serviços em que ocorre fenómeno similar, como, a título de exemplo, sucede com os serviços de reparação de uma viatura ou de um equipamento, que pode envolver, para além do trabalho de reparação (disponibilização de meios humanos e técnicos), a substituição de peças e componentes (meios materiais, i.e., bens corpóreos), sem que esse facto descaracterize a operação e a transmute numa transmissão, total ou parcial, de bens.   

Por transmissão de bens entende-se a transferência onerosa do poder de dispor de um bem corpóreo, como proprietário (v. artigo 3.º, n.º 1 do Código do IVA e 14.º, n.º 1 da Diretiva IVA). O conceito de prestação de serviços abrange qualquer operação que não constitua uma transmissão de bens (v. artigo 4.º, n.º 1 do Código do IVA e 24.º, n.º 1 da Diretiva IVA).

O fornecimento de refeições e bebidas para serem consumidas no local, em estabelecimento de restauração apropriado, com serviços de apoio associados, como sucede na situação em apreço, constitui uma prestação complexa que não se limita à transferência de um bem (in casu, bebidas), combinando diversos elementos de prestação de serviços, pelo que deve ser qualificada como prestação de serviços.

De sublinhar que a possível segregação do serviço entre fornecimento de refeições e fornecimento de bebidas configura uma exceção ao princípio de tributação à mesma taxa de uma operação compósita que representa uma prestação única, exceção acolhida, de forma expressa, pela própria Diretiva IVA no Anexo III, ponto 12-A), ao prever que os Estados-Membros excluam da taxa reduzida, se assim o decidirem, o fornecimento de bebidas, sejam estas alcoólicas ou não.

IV. 2.B. NO CÓDIGO DO IVA

O artigo 18.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA transpõe o princípio geral acima citado de aplicação de uma taxa normal à generalidade das transmissões de bens e prestações de serviços, estabelecendo, em simultâneo, duas taxas reduzidas (uma das quais denominada de “intermédia”) para as operações constantes da Lista I e da Lista II anexas ao Código do IVA (artigo 18.º, n.º 1, alíneas a) e b)).

Com relevância para o tema em exame, o legislador português exerceu a prerrogativa de aplicar a taxa reduzida e a taxa intermédia de IVA a diversos produtos alimentares e bebidas e às prestações de serviços de restauração. Estas últimas, passaram a ser tributadas à taxa normal, com a revogação da verba 3.1 da Lista II operada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, tendo, contudo, sido repristinada a tributação à taxa intermédia com a reintrodução da verba 3.1 pela Lei do Orçamento do Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que produziu efeitos a 1 de julho de 2016), que, atualmente, dispõe o seguinte:

“3.1 - Prestações de serviços de alimentação e bebidas, com exclusão das bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias.

Quando o serviço incorpore elementos sujeitos a taxas distintas para o qual é fixado um preço único, o valor tributável deve ser repartido pelas várias taxas, tendo por base a relação proporcional entre o preço de cada elemento da operação e o preço total que seria aplicado de acordo com a tabela de preços ou proporcionalmente ao valor normal dos serviços que compõem a operação. Não sendo efetuada aquela repartição, é aplicável a taxa mais elevada à totalidade do serviço.”

De igual modo sujeito à taxa intermédia de IVA é o fornecimento de refeições prontas a consumir, seja no regime de take away (pronto a comer e levar), seja no de entrega ao domicílio, como estabelece a verba 1.8 da Lista II, com a particularidade de, ao contrário dos serviços de restauração e catering, configurarem transmissões de bens e não prestações de serviços.

Em relação às bebidas que sejam objeto de transmissões de bens, i.e., sem serviços de apoio associados, são diversas as que beneficiam da taxa reduzida, como o leite (verba 1.4 da Lista I); a água, com exceção das águas de nascente e minerais (verba 1.7 da Lista I); e os sumos e néctares de frutos e de algas (verba 1.11 da Lista I); e também da taxa intermédia, como os vinhos comuns (verba 1.10 da Lista II) e as águas de nascente e minerais (verba 1.11 da Lista II).

Do cotejo das disposições e verbas mencionadas, resultam, em síntese, as seguintes opções do legislador português:

a)            As prestações de serviços de alimentação e bebidas (artigo 4.º, n.º 1 do Código do IVA), enquadradas no direito europeu como serviços de restauração e de catering (artigo 6.º do Regulamento de Execução n.º 282/2011), são tributadas à taxa intermédia, com exclusão expressa das bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias – artigo 18.º, n.º 1, alínea b) do Código do IVA e verba 3.1 da Lista II;

b)          As refeições prontas a consumir no regime de take away e as entregas ao domicílio, em ambos os casos enquadráveis como transmissões de bens (artigo 3.º, n.º 1 do Código do IVA), são igualmente tributáveis à taxa intermédia – artigo 18.º, n.º 1, alínea b) do Código do IVA e verba 1.8 da Lista II;

c)            As prestações de serviços de bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias, são tributadas à taxa normal, por delimitação negativa / exclusão da verba 3.1 da Lista II, com o consequente enquadramento no regime-regra do artigo 18.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA (por não se subsumirem a qualquer outra verba, seja da Lista I, ou da Lista II);

d)           O fornecimento de bebidas sem serviços de apoio, qualificado como transmissão de bens, é tributado à taxa que corresponder a cada bebida na Lista I (taxa reduzida) ou Lista II (taxa intermédia), ou à taxa normal se não tiver cabimento em nenhuma das verbas ali previstas – artigo 18.º, n.º 1, alíneas, a), b) e c) do Código do IVA.

 

 

IV.2.C. Ordem de conhecimento de vícios

De harmonia com o disposto no artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, «na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação» e deverá dar-se prioridade aos «vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos».

No caso em apreço, afigura-se que o vício de ilegalidade por violação do princípio da neutralidade fiscal deverá ser apreciado prioritariamente, pois este vício tem potencialidade para assegurar eficaz e estável tutela dos interesses da Requerente.

IV. 2.D. DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE FISCAL

O princípio da neutralidade

Uma das principais propriedades do sistema do IVA comunitário, que o aconselha como sistema ideal de tributação do consumo, é a sua neutralidade, isto é, a ausência de efeitos de distorção dos comportamentos dos agentes económicos, em especial no que concerne à extensão das cadeias de produção e distribuição.

O princípio da neutralidade encontra-se vertido na Diretiva IVA, sendo sistematicamente invocado pela Comissão Europeia para se opor às legislações nacionais tidas por incompatíveis com as normas do Direito da União Europeia, bem como pelas administrações fiscais e pelos contribuintes dos diversos Estados membros, tendo sido, inúmeras vezes, aplicado pelo TJUE.

O TJUE tem-se preocupado, nomeadamente, em garantir a neutralidade da carga fiscal de todas as atividades económicas, sejam quais forem os seus objetivos ou resultados (que, como salienta, se consegue através do mecanismo das deduções que liberta o empresário da carga do IVA que pagou nas suas aquisições)[3]. O princípio da neutralidade fiscal implica que todas as atividades económicas devam ser tratadas da mesma maneira[4]. O mesmo sucede quanto aos operadores económicos que efetuem as mesmas operações[5]. Prestações de serviços semelhantes, que estão, portanto, em concorrência entre si, não devem ser tratadas de maneira diferente do ponto de vista do IVA[6].

Como nota a mais recente decisão do TJUE em matéria de avaliação da violação do princípio da neutralidade fiscal quando estão em causa taxas de IVA: “No que diz respeito à apreciação da semelhança dos bens ou das prestações de serviços em causa, que cabe sem dúvida ao juiz nacional, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que há que ter principalmente em conta o ponto de vista do consumidor médio. Os bens ou prestações de serviços são semelhantes quando apresentam propriedades análogas e satisfazem as mesmas necessidades do consumidor, em função de um critério de comparabilidade na utilização, e quando as diferenças existentes não influenciem consideravelmente a decisão do consumidor médio de recorrer a um ou a outro dos referidos bens ou prestações de serviços (Acórdão de 9 de novembro de 2017, AZ, C‑499/16, EU:C:2017:846, n.o 31 e jurisprudência referida).”[7]

 

 Violação do princípio da neutralidade pela não aplicação da taxa reduzida de IVA

A Requerente preconiza a aplicação da taxa reduzida de IVA às prestações de serviços de bebidas que sejam sumos naturais, com fundamento na verba 1.11 da Lista I. Para sustentar esta interpretação, a Requerente invoca o princípio da neutralidade do IVA. Argui que um sumo de fruta natural em regime de take away paga 6% de IVA, pelo que a mesma taxa deve ser aplicada à disponibilização desse mesmo sumo para consumo num estabelecimento de restauração, situações que considera equivalentes.

 No entanto, a mencionada verba 1.11 destina-se a bens – “Sumos e néctares de frutos e de algas ou de produtos hortícolas e bebidas de cereais, amêndoa, caju e avelã sem teor alcoólico” – e não contempla a hipótese de serviços.

A interpretação da Requerente não se pode acompanhar por diversas razões, desde logo, dada a falta de suporte na letra da lei (elemento gramatical), indispensável em matéria de incidência fiscal e taxas.  

Neste caso, não se constata qualquer disparidade de tratamento de situações que sejam equivalentes ou comparáveis. De acordo com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o princípio da igualdade de tratamento exige que as situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que as situações diferentes não sejam tratadas de maneira igual, a não ser que tal tratamento seja objetivamente justificado – v. acórdão de 7 de março de 2017, processo RPO, C‑390/15, e jurisprudência aí citada (ponto 41).

Sucede que a Requerente desconsidera a diferença fundamental entre os conceitos de transmissão de bens e prestações de serviços que qualificam diferentes realidades e que constituem conceitos autónomos de direito europeu objeto de tratamento em normas independentes. Uma prestação de serviços de bebidas fornecidas para consumo num estabelecimento de restauração não é uma situação comparável à venda de bebidas em take away, esta última enquadrada, para efeitos de IVA, como uma transmissão de bens. No primeiro caso, como acima se referiu, existe uma componente predominante de serviço, no segundo, estamos perante uma simples transferência do produto, sem serviços de apoio associados e sem a manutenção e disponibilização de instalações para o seu consumo.

Tais operações não só apresentam características materiais distintas como têm enquadramento em diferentes categorias jurídico-tributárias – v. acórdãos do Tribunal de Justiça Faaborg-Gelting Linien, C-231/94, e CinemaxX, C-499/09 –, pelo que se conclui que a não aplicação da taxa reduzida de IVA não viola o princípio da neutralidade e da igualdade de tratamento, atenta a falta de comparabilidade das operações.  

 Violação do princípio da neutralidade pela não aplicação da taxa intermédia

Como se viu supra, a Diretiva IVA prevê a possibilidade de os Estados-Membros aplicarem taxas distintas dentro dos parâmetros estabelecidos nos seus artigos 98.º e seguintes e de os serviços de alimentação e bebidas (de restauração e catering, na terminologia do direito europeu) beneficiarem de taxas reduzidas, independentemente das taxas que sejam aplicadas à transmissão dos elementos que as compõem, quando transmitidos de forma isolada.

É incontrovertido no processo sub judice que a redação da verba 3.1 da Lista II do Código do IVA em vigor à data dos factos em discussão exclui expressamente a aplicação da taxa intermédia a serviços de disponibilização de sumos (naturais ou não) prestados no âmbito de serviços de restauração. É igualmente incontrovertido que a referida disponibilização de sumos (naturais ou não) prestados no âmbito de serviços de restauração não tem cabimento em nenhuma verba da Lista I, nem nas restantes verbas da Lista II do Código do IVA. Como tal, resulta de uma interpretação puramente literal das normas relevantes ser aplicável a taxa normal de IVA a tais serviços. 

 Sendo certo que o legislador europeu permite aos Estados-Membros excluir os serviços de bebidas alcoólicas ou não alcoólicas da taxa reduzida aplicável aos serviços de restauração, tal exclusão deve, em todo o caso, assegurar uma certa sistemática do regime do IVA aplicável nesse Estado-membro, de forma a não comprometer o princípio da neutralidade fiscal. À luz da jurisprudência do TJUE, a possibilidade de os Estados-Membros fazerem uma aplicação seletiva das taxas reduzidas tem como limite a sua conformidade com o princípio da neutralidade fiscal, princípio estruturante e fundamental do sistema comum do IVA.

Nesta sede, já aqui vimos que a mais recente jurisprudência do TJUE determina que o tribunal nacional, para validar se duas prestações de serviços semelhantes estão em concorrência entre si, deve ter em conta o ponto de vista do consumidor médio e considerar que as prestações de serviços são semelhantes quando apresentem propriedades análogas e satisfazem as mesmas necessidades do consumidor, em função de um critério de comparabilidade na utilização, e quando as diferenças existentes não influenciem consideravelmente a decisão do consumidor médio de recorrer a uma ou a outra das prestações de serviços i.e., quando sejam substituíveis entre si do ponto de vista do consumidor médio (cfr. ponto 47 do processo YD, Proc. C‑146/22 e jurisprudência aí citada).

Ora, no caso concreto, este Tribunal entende que existe, invariavelmente, um juízo de comparabilidade na utilização, pelos consumidores médios, das bebidas sumos naturais vs demais bebidas incluídas nos serviços de restauração da Requerente que não caiam na categoria de bebidas alcoólicas e refrigerantes.

Com efeito:

  1. em primeiro lugar, o fornecimento de sumos naturais aqui em causa, efetuado em regime de eat in, ocorre, tal como o fornecimento das demais bebidas em serviço de restauração, no contexto de uma prestação de serviços de alimentação e bebidas (i.e., o seu consumo ocorre durante a experiência de restauração nas lojas da Requerente e não num regime de take away, cuja diferença influenciaria consideravelmente a decisão do consumidor médio de recorrer a uma prestação ao invés da outra);
  2. em segundo lugar, os sumos naturais fazem parte da categoria de bebidas não alcoólicas e não refrigeradas, percecionadas, senso comum, pelo consumidor médio, como não nocivas para a saúde (por oposição ao álcool e refrigerantes) e não merecedoras, em consequência, da taxa mais agravada de IVA quando consumidas no âmbito da mesma experiência de restauração;
  3. em terceiro lugar, é senso comum que os sumos naturais são percecionados como: (i) substituíveis, dentro do grupo de bebidas não alcoólicas e não refrigeradas a que pertencem, pelas bebidas de cafetaria e sem álcool como chá, café, tisanas, bebidas vegetais e água e (ii) fazendo parte do grupo de bebidas não alcoólicas que acompanham, tipicamente, uma refeição (é expressão corrente a pergunta: e para acompanhar a refeição, água, limonada ou um sumo?).
  4. em quarto lugar, é público e notório que o consumidor médio, quando pede um sumo natural em contexto de restauração, visa satisfazer a mesma necessidade que as restantes bebidas não excluídas da norma 3.1 da Lista II, como é o caso da água: obter um produto com composição líquida para o seu consumo humano sem álcool ou dióxido de carbono (refrigerante). Este produto, para além de satisfazer uma necessidade básica em sede de nutrição, representa ainda uma forma de cultura e socialização.

Todos estes elementos apontam para a comparabilidade na utilização, pelos consumidores médios, das bebidas sumos naturais vs demais bebidas incluídas nos serviços de restauração que não caiam na categoria de bebidas alcoólicas e refrigerantes.

Comparabilidade esta, aliás, que veio a ser reconhecida durante a vigência deste processo, pelo XXI Governo de Portugal, na proposta de lei do orçamento do estado para 2024 (Proposta de Lei n.º 109/XV/2) apresentada no dia 10 de outubro de 2023, na qual se preconiza que os sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias passem a beneficiar da taxa de IVA intermédia (de 13%, no Continente) quando vendidos nos restaurantes no âmbito da prestação de serviços de alimentação e bebidas. 

Esta proposta de alteração da verba 3.1 da Lista II tem por base o acordo de concertação social celebrado entre o Governo e os parceiros sociais a 7 de outubro de 2023, sendo o próprio acordo que define que a  alteração é efetuada para fins de “harmonização”: “43. Harmonização da taxa de IVA aplicável nas prestações de serviços no âmbito da restauração, incluindo na verba 3.1 da Lista II anexa ao Código do IVA os sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias.”. Ora, só se harmoniza o que deve ser ajustado e merece ser tratado de forma igual, por estar em concorrência entre si. E, de resto, tal harmonização também é coerente com as autorizações legislativas constantes de anteriores Leis do Orçamento do Estado, através das quais o Parlamento concedia ao Governo o poder de alterar esta verba, tendo em vista a harmonização da sistemática do sistema do IVA. 

Pelo que, pelos fundamentos expostos acima, entende este Tribunal que os atos de autoliquidação de IVA de 2018 contestados estão inquinados do vício de ilegalidade por violação do princípio da neutralidade, ao não aplicarem a taxa intermédia de IVA de 13% constante da verba 3.1. da Lista II do Código do IVA aos serviços de sumos naturais em regime de eat in.

 Repercussão económica do IVA e necessidade de emissão de notas de crédito

Aqui chegados, importa analisar dois pontos importantes que a Requerida alega na sua Resposta:

  1. Na situação sub judice impõe-se sempre a emissão de notas de crédito nos termos do artigo 29.º n.º 7 e 78.º n.º 3 do Código do IVA e a regularização do imposto no campo 40 da respetiva declaração periódica;
  2. As autoliquidações impugnadas respeitam a imposto legalmente repercutido aos seus clientes nos termos do artigo 37.º n.º 1 do Código do IVA, as quais, nos termos do artigo 97.º n.º 3 do Código do IVA, só podem ser anuladas quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente.

 

Em suma, a Requerida invoca que, ainda que se conclua pela aplicação da taxa intermédia de imposto, a devolução do IVA pago a mais ao Estado depende da emissão de notas de crédito aos clientes e comprovativo de conhecimento, por estes, da nota de crédito ou respetiva restituição de imposto.

Este Tribunal entende que os dois pontos invocados pela Requerida estão interligados (as notas de crédito apenas são exigidas na medida em que o sujeito passivo não tiver, per se, o direito ao reembolso do IVA pago a mais ao Estado) e que a resposta aos mesmos foi dada pelo TJUE no recente caso C‑378/21, cuja decisão foi publicada a 8 de dezembro de 2022.

Neste caso, discutia-se se um sujeito passivo que havia liquidado uma taxa de IVA superior à devida em serviços de acesso a um parque de diversões teria direito à restituição do IVA mesmo sem retificar as respetivas faturas, tendo a decisão do TJUE sido afirmativa: “um sujeito passivo, que prestou um serviço e que mencionou na sua fatura um montante de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) calculado com base numa taxa errada, não é devedor, por força desta disposição, da parte do IVA faturado erradamente se não houver um risco de perda de receitas fiscais pelo facto de os beneficiários desse serviço serem exclusivamente consumidores finais que não beneficiam do direito à dedução do IVA pago a montante.” (….) Atendendo à resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão. [sobre se pode ou não a retificação das faturas ser omitida nestes casos].

Ora, atendendo à mais recente decisão do TJUE, este Tribunal concorda e adere à fundamentação apresentada pelo coletivo arbitral no processo n.º 302/2020-T, com plena aderência no caso concreto:

Segundo o Tribunal de Justiça, para assegurar a neutralidade do IVA, compete aos Estados Membros prever a possibilidade de correção de qualquer imposto indevidamente faturado, desde que quem emita a fatura esteja de boa fé. Mais, o Tribunal declara que quando o emitente da fatura eliminou por completo, em tempo útil, o risco de perda de receitas fiscais, o princípio da neutralidade do IVA exige que este imposto possa ser corrigido, sem que esta regularização possa ser (sequer) sujeita pelos Estados Membros à boa fé do emitente. Além disso, esta correção não pode depender de um poder de apreciação discricionário da Administração Fiscal, não sendo como tal considerado o requisito de emissão de documentos retificativos (v. acórdãos Genius Holding, C-342/87; Stadeco, C‑566/07; Schmeink & Cofreth, C 454/98; Karageorgou e o., C‑78/02 a C‑80/02; Reemtsma, C-35/05; e, mais recentemente, Rusedespred, C-138/12, e UAB, C-48/20). Para o Tribunal de Justiça, o facto de o destinatário não dispor do direito à dedução do IVA deve considerar-se que é, em princípio, suscetível de assegurar a eliminação do risco de perda de receitas fiscais (v. acórdão Stadeco, C‑566/07). 

 Ora, no caso concreto, não existe o risco de perda de receita fiscal, dado que os clientes são consumidores finais e os serviços de bebidas em causa estão excluídos do mecanismo da dedução pelo artigo 21.º, n.º 1, alínea d) do Código do IVA – v. acórdãos do Tribunal de Justiça: Schmeink & Cofreth, C-454/98, de 19 de setembro de 2000; Karageorgou e o., C‑78/02 a C‑80/02, de 6 de novembro de 2003; e Stadeco, C‑566/07, de 18 de junho de 2009.

Por outro lado, as medidas que os Estados Membros têm a faculdade de tomar para garantir o exato recebimento do imposto e evitar a fraude não devem exceder o necessário para atingir tais objetivos (proporcionalidade), pelo que não podem ser utilizadas de forma que ponham em causa a neutralidade do IVA, que constitui um princípio fundamental do sistema comum deste imposto. Por consequência, se o reembolso do IVA se tornar impossível ou excessivamente difícil, o princípio da neutralidade e o princípio da efetividade podem exigir que os Estados Membros prevejam os instrumentos e as vias processuais necessárias para permitir ao sujeito passivo recuperar o imposto indevidamente faturado (v. acórdãos Reemtsma, C-35/05; Stadeco, C‑566/07 e Rusedespred) .

Dito isto, o Tribunal de Justiça interpreta que o direito europeu não se opõe a que um sistema jurídico nacional recuse a restituição de impostos indevidamente cobrados em condições suscetíveis de implicar um enriquecimento sem causa dos titulares desse direito. A existência e a medida do enriquecimento sem causa que a restituição do IVA indevidamente cobrado possa gerar para o sujeito passivo, requer uma análise que compete aos órgãos jurisdicionais nacionais efetuar.

Esta análise deve ter em conta todas as circunstâncias pertinentes, nomeadamente se os contratos celebrados estipulam quantias fixas de remuneração para os serviços prestados ou quantias base acrescidas, eventualmente, do imposto aplicável, sendo que no primeiro caso pode não se verificar um enriquecimento sem causa do sujeito passivo (v. acórdãos Stadeco, C‑566/07, Marks & Spencer, C 309/06 e Alakor, C-191/12).

Ficou demonstrado nos presentes autos arbitrais que o preço praticado pela Requerente é o mesmo na modalidade de prestação de serviços (à taxa de 23%) e de take away (à taxa de 13%) pelo que a Requerente acomoda o diferencial da taxa de IVA na sua margem e não o repercute (do ponto de vista económico) aos clientes.

À face do exposto, não pode acompanhar-se a tese da Requerida de que a não emissão de documentos retificativos pela Requerente constitui, sem mais, um facto impeditivo da eventual retificação do IVA, caso esta fosse devida.

Por tudo o exposto, concluindo-se:

  1. pela aplicação da taxa intermédia de IVA às prestações de serviços de sumos naturais em regime de eat in aqui em causa, na medida em que a sua exclusão viola o princípio da neutralidade fiscal pelas razões acima aduzidas;
  2. pela inexistência de risco de perda de receitas fiscais no caso concreto, dado que os clientes da Requerente são, tipicamente, consumidores finais e os serviços de bebidas estão excluídos do mecanismo da dedução pelo artigo 21.º, n.º 1, alínea d) do Código do IVA;
  3. pela inexistência de enriquecimento sem causa da Requerente, na medida em que foi provado que o preço por si praticado é o mesmo na modalidade de prestação de serviços eat in (onde cobra IVA à taxa de 23%) e de take away (onde cobra IVA à taxa de 13%), pelo que a Requerente acomoda o diferencial da taxa de IVA na sua margem e não o repercute (do ponto de vista económico) aos clientes;

este Tribunal entende, em linha com a decisão do TJUE no processo C‑378/21, que a Requerente não é devedora da parte do IVA faturado em excesso sobre os serviços de sumos naturais prestados em regime de eat in (correspondente, portanto, ao diferencial entre a taxa de IVA de 23% aplicada e a taxa de IVA devida de 13%, no valor de € 453.090,03, em 2018).

Em consequência, e por maioria de razão, a não emissão de notas de crédito pela Requerente (e o seu não reporte no campo 40 de declarações periódicas de IVA) não obsta ao direito da Requerente ao reembolso do IVA pago em excesso.

IV.3. SOBRE O REENVIO PREJUDICIAL 

As questões de direito europeu com relevância para a apreciação do mérito respeitam à qualificação das operações de prestação de serviços de bebidas e ao princípio da igualdade de tratamento (neutralidade), que se encontram devidamente aclaradas pela jurisprudência do TJUE acima referenciada e pelo Regulamento de Execução n.º 282/2011.

De acordo com o entendimento do TJUE, a partir do Acórdão Cilfit, a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando:

a)            A questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; ou

b)           O TJUE já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; ou

c)            O juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente.   

No caso sub judice, verifica-se o preenchimento dos requisitos previstos na alínea c), quanto à margem de liberdade concedida pela Diretiva IVA aos Estados-Membros para fixarem taxas reduzidas aos serviços de alimentação e bebidas e às transmissões de bens (artigo 98.º e Anexo III da Diretiva), e da alínea b), em relação ao princípio da neutralidade (igualdade de tratamento).

Não há, pois, que suspender a instância e proceder ao reenvio prejudicial para o TJUE.

 

 IV.4. Questões de conhecimento prejudicado

 

Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral por vício que assegura eficaz e estável tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento dos restantes vícios imputados às autoliquidações impugnadas (nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

 

IV.5. SOBRE OS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

Ficou assente que o IVA liquidado e entregue ao Estado pela Requerente nas prestações de serviços de sumos naturais em regime de eat in corresponde a 10% do preço-base (i.e., a diferença entre a taxa de 23% e a taxa de 13%), totalizando € 453.090,03 em 2018 (cfr tabelas-síntese do documento n.º 5 do PPA).

O artigo 24.º, n.º 5 do RJAT, ao dispor que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, permite o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT, aplicáveis ex vi artigo 29.º do RJAT.

A obrigação de pagamento de juros indemnizatórios tem o seu fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado, constituindo a contra face dos juros compensatórios a favor da administração fiscal. Assim, a natureza dos juros indemnizatórios é substancialmente idêntica à dos juros compensatórios, sendo, como estes, uma indemnização atribuída com base em responsabilidade civil extracontratual. Os juros indemnizatórios vencem-se a favor do contribuinte, destinando-se a
compensá-lo do prejuízo provocado por um pagamento indevido de uma prestação tributária.

Os requisitos do direito a juros indemnizatórios previsto no artigo 43º, nº. 1, da LGT, são os seguintes:

a) Que haja um erro num ato de liquidação de um tributo;

b) Que o erro seja imputável aos serviços;

c) Que a existência desse erro seja determinada em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial;

d) Que desse erro tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

No entender da Requerida, no caso concreto não são devidos juros indemnizatórios por não se verificar erro imputável aos serviços, uma vez que a AT se limitou a aplicar a lei nacional.

Nesta sede, este Tribunal, em linha com o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, processo 1770/12.9BELRS, de 22.05.2019, entende que, no âmbito do direito tributário, a interpretação de distinguir "erro" de "vício", como defende a doutrina e jurisprudência dominantes, e só relevar aquele, para efeitos de exame do direito a juros indemnizatórios, não é a que melhor garante a aplicação da teoria da reconstituição da situação atual hipotética, em virtude da anulação, total ou parcial, de um ato tributário (cfr. artigo 24.º n.º 1, alínea b) do RJAT e artº. 100, da LGT). É que tal distinção pode conduzir a um tratamento diferenciado dos contribuintes, de forma injustificada.

Assim, tal como sufragado no acórdão acima indicado: “cremos que a interpretação da expressão "erro imputável aos serviços" que melhor se estriba na letra da lei, considerando que a LGT e o CPPT não distinguem os conceitos de "erro" e de "vício", deve reconduzir-se a qualquer "ilegalidade" fundante da anulação, total ou parcial, do ato tributário”. Nesse sentido vai, de resto, o estipulado no artigo 24.º n.º 1, alínea b) do RJAT e artº. 100, da LGT, normas que devem ser concatenadas com a do artigo 43º, n.º 1 da LGT a qual consagra, na lei ordinária, a teoria da reconstituição da situação atual hipotética, em virtude da anulação, total ou parcial, de um ato tributário, na mesma utilizando o legislador a expressão "ilegalidade" como fundamento da dita reconstituição.

           Ora, a expressão "ilegalidade" aqui utilizada comporta, também, a violação do princípio da neutralidade fiscal.

Reconhece-se, assim, à Requerente o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante do IVA liquidado em excesso no valor de € € 453.090,03, desde a data dos respetivos pagamentos até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, artigo 43.º, n.º 1 e CPPT, artigo 61.º), a calcular pela Requerida em sede de execução de sentença.

 

  1. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido (subsidiário) da Requerente nos seguintes termos:

  1. Decreta-se a anulação do ato de indeferimento expresso do recurso hierárquico aqui contestado, interposto do anterior ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa;
  2. Decreta-se a anulação parcial dos atos de autoliquidação de IVA de 2018, no valor de € 453.090,03, correspondente à diferença entre a taxa de 23% liquidada e a taxa de 13% devida nos serviços de sumos naturais em regime de eat in e demais consequências legais;
  3. Reconhece-se à Requerente o consequente direito ao reembolso, pela Requerida, do montante de imposto identificado em b) supra (i.e., € 453.090,03);
  4. Julga-se procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios sobre o valor do IVA liquidado em excesso, i.e., € 453.090,03, condenando-se a AT a pagar à Requerente juros indemnizatórios sobre esse montante desde a data dos pagamentos do imposto em excesso até que ocorra o respetivo reembolso.
  5. Julgam-se improcedentes os demais pedidos da Requerente.

 

 

  1. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 770.253,06, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

 

 

  1. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 11.016,00, a pagar na proporção do respetivo decaimento das partes:  pela Requerente € 4.536,39, na proporção do pedido subsidiário procedente (41,18% do total do pedido), e pela Requerida € 6.479,61  na proporção do respetivo decaimento (58,82% do total do pedido) conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4 de dezembro de 2023.

 

Os Árbitros,

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

Vencido conforme declaração em anexo

 

 

 

(Raquel Montes Fernandes)

 

 

(Catarina Belim)


 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Discordo com o sentido da decisão, pelo que voto vencido, pelas razões que passo a expor.

A Requerente preconiza a aplicação da taxa reduzida de IVA às prestações de serviços de bebidas que sejam sumos naturais, com fundamento na verba 1.11 da Lista I. Para sustentar esta interpretação, a Requerente invoca o princípio da neutralidade do IVA. Argui que um sumo de fruta natural em regime de take away paga 6% de IVA, pelo que a mesma taxa deve ser aplicada à disponibilização desse mesmo sumo para consumo num estabelecimento de restauração, situações que considera equivalentes.

 No entanto, a mencionada verba 1.11 destina-se a bens – “Sumos e néctares de frutos e de algas ou de produtos hortícolas e bebidas de cereais, amêndoa, caju e avelã sem teor alcoólico” – e não contempla a hipótese de serviços.

A interpretação da Requerente não se pode acompanhar por diversas razões, desde logo, dada a falta de suporte na letra da lei (elemento gramatical), indispensável em matéria de incidência fiscal e taxas.  

Antes de mais, não se constata qualquer disparidade de tratamento de situações que sejam equivalentes ou comparáveis. De acordo com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o princípio da igualdade de tratamento exige que as situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que as situações diferentes não sejam tratadas de maneira igual, a não ser que tal tratamento seja objetivamente justificado – v. acórdão de 7 de março de 2017, processo RPO, C‑390/15, e jurisprudência aí citada (ponto 41).

A Requerente desconsidera a diferença fundamental entre os conceitos de transmissão de bens e prestações de serviços que qualificam diferentes realidades e que constituem conceitos autónomos de direito europeu objeto de tratamento em normas independentes. Uma prestação de serviços de bebidas fornecidas para consumo num estabelecimento de restauração não é uma situação comparável à venda de bebidas em take away, esta última enquadrada, para efeitos de IVA como uma transmissão de bens. No primeiro caso, como acima se referiu, existe uma componente predominante de serviço, no segundo, estamos perante uma simples transferência do produto, sem serviços de apoio associados e sem a manutenção e disponibilização de instalações para o seu consumo.

Tais operações não só apresentam características materiais distintas como têm enquadramento em diferentes categorias jurídico-tributárias – v. acórdãos do Tribunal de Justiça Faaborg-Gelting Linien, C-231/94, e CinemaxX, C-499/09 –, pelo que se conclui que a aplicação de taxas distintas não viola o princípio da neutralidade e da igualdade de tratamento, atenta a falta de comparabilidade das operações.  

Neste sentido, compulsa-se a declaração de voto de JOÃO TABORDA DA GAMA na decisão arbitral do processo n.º 139/2020-T, de 15 de abril de 2021:

“Entendo que em sede IVA a qualificação da operação precede a aplicação da taxa. Assim, sendo as operações em causa qualificadas como prestações de serviços (“serviço de alimentação e bebidas”, até nos termos do Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 do Conselho, de 15 de março de 2011), e sendo as prestações de serviços geralmente sujeitas à taxa normal de 23%, considero que a verba 3.1. da Lista II, ao excecionar da previsão as bebidas alcoólicas, os refrigerantes, os sumos e os néctares, faz renascer, quanto a estes elementos do serviço de alimentação e bebidas, a aplicação da regra geral aplicável às prestações de serviços (ou seja, a aplicação da taxa de 23%). Por outras palavras, não é pelo facto de a verba 3.1. prever uma taxa intermédia para as prestações do serviço de alimentação e bebidas, que a qualificação da operação é alterada quanto às componentes excecionadas, transfigurando-as em transmissões desses bens. Assim, não será de aplicar a taxa prevista para os “Sumos e néctares de frutos e de algas ou de produtos hortícolas e bebidas de cereais, amêndoa, caju e avelã sem teor alcoólico” (verba 1.11. da Lista I), já que esta taxa se aplica às transmissões de bens.

Pode a técnica legislativa adotada em 2016 não ser a melhor, mas os elementos relativos à occasio legis são absolutamente claros em ter tido essa redação como objetivo minorar a perda de receita fiscal que a promessa política de “baixar o IVA da restauração” iria acarretar se cumprida na sua integralidade. Aliás, a sujeição à taxa normal da parte do preço da refeição relativo às bebidas referidas corresponde a uma interpretação corrente e, ao que se sabe, incontroversa da lei fiscal (pode por exemplo ver-se o Relatório da UTAU da Assembleia da República Relatório UTAO n.º 27/2020 Impacto económico-orçamental da Proposta de Alteração n.º 6C à POE/2021, novembro de 2020, que analisa uma Proposta de Lei do PCP que, precisamente, “pretende eliminar as exclusões inscritas na atual redação da Verba 3.1 da Lista II anexa ao Código do IVA, designadamente as referentes as bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias. Na situação atual, estas bebidas são tributadas à taxa normal”

Como se viu supra, a Diretiva IVA prevê que os Estados-Membros apliquem taxas distintas dentro dos parâmetros estabelecidos nos seus artigos 98.º e seguintes e que os serviços de alimentação e bebidas (de restauração e catering, na terminologia do direito europeu) beneficiem de taxas reduzidas, independentemente das taxas que sejam aplicadas à transmissão dos elementos que as compõem, quando transmitidos de forma isolada. Sem que a tal se oponha o princípio da neutralidade, pois os produtos componentes e a prestação de serviços em que se integram constituem operações com características distintas.

Isto significa que a taxa de IVA da transmissão dos alimentos e bebidas pode ser diferente, e é-o com frequência, da taxa de IVA aplicável aos serviços de restauração que impliquem o consumo desses alimentos e bebidas, podendo essa taxa ser superior ou inferior, em função das escolhas do legislador.  

A título ilustrativo, veja-se o caso do salmão fumado que é vendido no supermercado com IVA à taxa normal e, caso seja integrado numa refeição servida num restaurante, é tributado, em conjunto com os demais elementos, à taxa intermédia, beneficiando de uma redução de taxa.

Por outro lado, o vinho, que é tributado à taxa intermédia como transmissão de bens, se for fornecido num estabelecimento (restaurante ou bar), passa a integrar uma prestação de serviços tributada em IVA à taxa normal, por ser expressamente excluído da verba 3.1 da Lista II, sofrendo um incremento de tributação.

No tocante aos produtos como o café, o chá e os batidos de fruta e cereais, que  beneficiam da taxa intermédia como serviços de bebidas, dada a sua não exclusão da verba 3.1 da Lista II, segundo a Requerente, estão em concorrência direta com os sumos naturais, pelo que estes últimos não deveriam ter uma tributação superior, quando objeto de uma prestação de serviço de bebidas. De novo, importa notar que não estamos perante operações (neste caso, de transmissão de bens) com as mesmas características. É que apesar de serem todos bebidas de cafetaria, são produtos com propriedades distintas (a título de exemplo, o café não é sucedâneo de um sumo de frutas), o que nos conduz à conclusão de que o parâmetro da neutralidade não impõe a igualdade de taxas que a Requerente reclama. Tal como o vinho e a cerveja, que são ambos bebidas alcoólicas, têm taxas diferentes.

Aliás, a seguir-se a posição da Requerente, as prestações de serviços de refeições e bebidas perderiam autonomia e teriam de seguir as taxas dos produtos que as compõem, pois sempre que se verificasse uma diferença de taxas entre a transmissão do produto e a prestação do serviço resultaria violado o princípio da neutralidade, solução que se afasta liminarmente.

A ponderação de motivos extrafiscais que, segundo a Requerente, militam no sentido do favorecimento da tributação dos sumos de frutas naturais, nomeadamente em relação aos benefícios para a saúde face a outras bebidas, inscreve-se no plano das opções de política legislativa e de considerações de lege ferenda, que não cabe à jurisdição apreciar, nem constitui critério válido de decisão, que, em matéria de incidência fiscal (taxas de imposto), é a lei vigente.

À face do exposto, não poderia acolher-se o entendimento da Requerente, que constitui uma interpretação ab-rogante do artigo 18.º, n.º 1 do Código do IVA, desprovida de suporte legal, pois a prestação de serviços de bebidas não tem enquadramento em qualquer das verbas da Lista I e II e nas alíneas a) e b) do n.º 1 do citado artigo 18.º.

Nestes termos, atenta a exclusão das prestações de serviços de bebidas - sumos e néctares - da verba 3.1 da Lista II e o não enquadramento dessas prestações de serviços em qualquer outra verba da Lista I e II, conclui-se pela aplicação do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA às operações em causa, sendo as mesmas passíveis de IVA à taxa normal em vigor, e não à taxa reduzida ou à taxa intermédia, pelo que soçobra a pretensão da Requerente, não padecendo as autoliquidações de IVA, na parte impugnada, de vício invalidante, nem se identificando erro imputável aos serviços, nomeadamente no que se refere ao teor do Ofício-Circulado n.º 30181, de 6 de junho de 2016.

Entretanto durante a vigência deste processo, o Governo apresentou a proposta de orçamento do estado para 2024 (Proposta de Lei n.º 109/XV/2), na qual preconiza que os sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias passam a beneficiar de uma taxa de IVA intermédia, de 13%, quando vendidos nos restaurantes.

Trata-se de facto de uma harmonização do imposto no âmbito desta atividade económica, que hoje em dia pratica taxas diferentes consoante o tipo de bebidas. No caso dos sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias, as taxas são diferentes das praticadas nos supermercados, onde os sumos, néctares e águas naturalmente gaseificadas suportam a taxa reduzida, de 6%. Já as águas gaseificadas adicionadas têm IVA a 23% no supermercado. 

A harmonização que o Governo agora vai levar a cabo resulta do acordo de rendimentos assinado este sábado com os parceiros sociais e foi inscrita na proposta de Orçamento do Estado para 2024, que foi entregue pelo Executivo no Parlamento no dia 10 de outubro.

Não obstante esta alteração, com vigência determinada para o ano de 2024, não entendemos que a mesma possa aplicar-se retroativamente para os anos anteriores, não só por não ter natureza interpretativa, como também por representar uma mudança clara de política legislativa nestes produtos – o que, in totum, apenas vem confirmar o que vigorou entre 2016 e 2023 – a diferenciação de taxas de IVA nos sumos e néctares.

Ainda sobre o eventual conteúdo interpretativo da norma, refira-se aliás que são de natureza interpretativa as leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adotado. Assim, para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários dois requisitos, a saber: (1) que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e, (2) que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. 

Assim sendo, se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora. É na verdade o que sucede com esta alteração.

Pelo exposto e como argumento adicional, esta nova norma proposta, em nosso entender, só vem reforçar, assim, o entendimento de que o legislador quis diferenciar a tributação dos mesmos produtos entre 2016 e 2023, o que nos levaria a concluir pela improcedência total do pedido.

           

O Árbitro vencido,

           

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 



[1] O menu de pequeno-almoço, inicialmente comercializado pelo preço de € 2,50, nos últimos anos registou dois aumentos. O primeiro porque a oferta dos pães se tornava maior (mais opções), e um segundo porque o menu passou a incluir ovos mexidos (acompanhado por uma fatia de pão artesanal), em substituição dos pães. Os preços dos sumos e néctares de frutos mantiveram-se inalterados a € 2,00 (copo normal). Cfr., nomeadamente, Acórdãos de 14 de fevereiro de 1985, Caso Rompelman, Proc. 268/83, Rec., p. 655, n.º 19, de 22 de junho de 1993, Caso Sofitam, Proc. C-333/91, Colect., p. I-3513, n.º 10, e de 6 de abril de 1995, Caso BPL Group, Proc.C-4/94, Colect., p. I-983, n.º 26.

 

[3]

[4] Acórdão de 20 de junho de 1996, Caso Wellcome Trust, Proc.C‑155/94, Colect., p. I‑3013, n.º 38.

[5] Acórdão de 7 de setembro de 1999, Caso Gregg, Proc. C-216/97, p. I-4947, n.º 20.

[6] Veja-se, designadamente, Acórdãos de 12 de junho de 1979, Caso Nederlandse Spoorwegen, Proc. 126/78, Rec., p. 2041, de 11 de outubro de 2001, Caso Adam, Proc. C‑267/99, Colect., p. I‑7467, n.º 36, de 23 de outubro de 2003, Caso Comissão/Alemanha, Proc. C‑109/02, Colect., p. I‑12691, n.º 20, e de 26 de maio de 2005, Caso Kingscrest Associates e Montecello, Proc. C‑498/03, Colect., p. I‑4427, n.º 41.

[7] Acórdão de 5 de outubro de 2023, Caso YD, Proc. C-146/22, n.º 47.