Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 145/2023-T
Data da decisão: 2024-01-16  IVA  
Valor do pedido: € 90.066,70
Tema: IVA - Direito à dedução – art. 19.º, n.º 4 do CIVA. Ónus da prova.
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SUMÁRIO:

I – O preço dos veículos automóveis é de difícil determinação, dependendo de inúmeros fatores, pelo que a atividade gira à volta de negócios de ocasião e oportunidades, não sendo possível concluir que uma viatura que é oferecida a preço supostamente mais baixo tem por trás um esquema de fraude, ao invés de constituir simplesmente um bom negócio.

II – Não tendo sido carreados para o processo elementos que permitam concluir que houve um «esforço concertado» dos diversos operadores envolvidos nas transações e qual o benefício que no caso concreto se obteve com o referido negócio e que doutro modo não obteria, no mínimo, face à prova produzida, terá de se ficar numa situação de dúvida sobre a alegada natureza simulada das transações, dúvida essa que, por força do disposto no artigo 100.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, tem de ser valorada a favor da Requerente.

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Jónatas Machado, António Cipriano da Silva, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A... UNIPESSOAL, LDA, contribuinte com o NIF..., com sede na ..., ...-... ..., (Serviço de Finanças de ...), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), apresentar pedido de constituição de tribunal arbitral e pedido de pronúncia arbitral em matéria tributária tendo por objeto a impugnação das liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), respeitantes ao exercício de 2017, e respetivos juros compensatórios devidos, que adiante se identificam, bem como, da decisão proferida no âmbito do processo de reclamação graciosa n.º ..., interposta daquelas liquidações e que foi indeferida na totalidade.

É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 10 de março de 2023.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 27 de abril de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 21 de junho de 2023.

Por despacho de 8 de agosto de 2022, o TAC proferiu o seguinte despacho:

“Designa-se o dia 19 de setembro de 2023, pelas 14h30 horas, nas instalações do CAAD, para realização da audiência para produção de prova testemunhal.

Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

A audiência foi sendo sucessivamente adiada a pedido do Requerente, conforme requerimentos datados de 19 de setembro de 2023, 25 de setembro de 2023, 9 de outubro de 2023, e por uma vez, em 02-10-2023, por impossibilidade superveniente aplicável a um dos membros do coletivo.

A audiência foi realizada no dia 14 de novembro de 2023 e as partes apresentaram as respetivas alegações.

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1      Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

  1. A liquidação ora impugnada teve origem em procedimento de inspeção e colhe os seus fundamentos no Relatório de Inspeção Tributária (RIT), elaborado e notificado pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
  2. Tal procedimento de inspeção teve índole externa, foi dirigido ao exercício de 2017 e teve âmbito geral, tendo permitido, no que se refere ao IVA, apurar correções objetivas, decorrentes de, alegadamente, ter sido, em face do disposto no nº 4 do artº 19º do CIVA, indevidamente deduzido IVA, no montante de € 77.709,90, e correções por recurso à aplicação de métodos indiretos de tributação, as quais, após decisão do pedido de revisão interposto nos termos do artº 91º da Lei Geral Tributária (LGT), foram reduzidas para o valor de imposto de € 29,21.
  3. As liquidações de IVA em causa, respeitando à totalidade das correções, no total de € 77.739,11, foram notificadas ao requerente, conforme os seguintes documentos:
    1. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite de pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de € 11.401,48;
    2. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite de pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de € 390,02;
    3. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/10/2017 a 31/12/2017, no montante de € 24.266,14;
    4. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/01/2017 a 31/03/2017, no montante de € 10.892,67;
    5. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de € 12.948,80;
    6. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de € 17.840,00.
  4. Todavia, o presente pedido abrange, apenas, as liquidações que respeitam às correções objetivas, no total, já referido, de € 77.709,90.
  5. Por seu lado, os juros compensatórios liquidados importam no total de € 12.356,80, conforme os seguintes documentos notificados:
    1. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite de pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de 1.901,70€;
    2. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de 74,66€;
    3. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/10/2017 a 31/12/2017, no montante de 3.563,46€;
    4. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/01/2017 a 31/03/2017, no montante de 1.930,24€;
    5. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de 2.159,79€;
    6. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de 2.726,95€.
  6. Como fundamentação de direito, a AT invoca, unicamente, o nº 4 do art.º 19.º do CIVA, o qual nega o direito à dedução do imposto quando este resulte de operações em que o transmitente não entregue o mesmo nos cofres do Estado e o adquirente tenha ou devesse ter conhecimento de que aquele transmitente não dispunha de adequada estrutura empresarial para realizar as operações em causa.
  7. E, na sua fundamentação a AT dá especial atenção à alteração introduzida pela lei      55-B/2004 ao nº 4 do art.º 19.º do CIVA, para explicar que, face à letra da norma, passou a ser possível não admitir a dedução de IVA sempre que o adquirente tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens não tenha estrutura empresarial adequada para desenvolver aquela atividade, alongando-se em vasta explicação do sentido e objetivos da norma (páginas 37 a 39 – Ponto 2.1.5), para apresentar a sua perfeita adequação ao caso em apreço.
  8. Quanto à fundamentação de facto, a AT menciona, em síntese:
  9. A atuação dos fornecedores do requerente com o único propósito de lesarem o Estado através da apropriação indevida do IVA, colhendo, daí, diretamente um benefício ilegítimo;
  10. As vantagens para o requerente em razão da obtenção de condições de comercialização vantajosas em virtude da fraude cometida pelos fornecedores lhe proporcionar preços mais competitivos;
  11. O gerente do requerente, afirma-se, não ignorava a inexistência de estrutura empresarial daqueles fornecedores, o facto destes se apropriarem do IVA que liquidavam nas faturas em que figurava como adquirente e dos negócios que lhe eram oferecidos não assentarem em pressupostos que estivessem em conformidade com a lei e as regras de mercado, pois dispõe de conhecimentos suficientes para inferir que as viaturas tinham preços mais competitivos porque o IVA liquidado não era entregue ao Estado;
  12. Logo, continua a afirmar-se, o requerente não é alheio à fraude, porquanto tirou dela partido, podendo inferir-se que atuou em conexão e comunhão de interesses, num esquema perfeitamente delineado e organizado, notando-se da parte de todos eles, um esforço concertado para criar, através das faturas emitidas e dos pagamentos realizados, uma aparente legalidade formal. 
  13. Contestando, será de começar por dar a devida saliência ao facto de toda a argumentação expendida pela AT ter sido votada a demonstrar que o requerente e os fornecedores em causa atuaram conluiados no âmbito de um esquema de fraude organizado.
  14. Todavia, nunca a AT apelidou as operações de fictícias, porquanto não refere que existiu utilização de faturas referentes a operações inexistentes, ou passadas por valores diferentes dos efetivamente transacionados ou, ainda, com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das que estavam em causa.
  15. Aliás, a AT, em alinhamento com a aceitação de que as operações existiram, tiveram o valor mencionado e foram realizadas entre os intervenientes em causa, a propósito da tributação operada para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), não colocou em crise a aceitação da totalidade das compras contabilizadas e declaradas pelo requerente.
  16. De facto, pelo quadro da página 48 do RIT, pode verificar-se que as compras declaradas pelo impugnante foram de € 1.511.669,22 e que as mesmas foram consideradas pelo exato montante faturado pelos fornecedores, procedendo a AT, apenas, à correção por acréscimo do valor de € 24.723,53, valor que corresponde à compra de 2 automóveis que não estariam contabilizados, como se justificou nas páginas 42 e 43 do RIT (ponto 2), correção essa que em sede da decisão do pedido de revisão do artº 91º da LGT foi retificada para considerar apenas omitida aos registos a viatura com a matrícula..., no valor de  1.000,00.
  17. E, quando se refere a aceitação de todas as compras contabilizadas pelo requerente, será conveniente, para começar a ter uma apreensão da possível dimensão da suposta fraude e, assim, da sua relevância para o negócio que aquele vem desenvolvendo, dar saliência ao facto de que as compras não integradas no esquema da suposta fraude foram, na sua grande maioria efetuadas aos mesmos fornecedores que a AT considera em conluio com o requerente.
  18. Para tal, atente-se no mapa junto (ANEXO 1), onde se evidencia, de modo discriminado e com identificação dos respetivos fornecedores, a totalidade das aquisições, para constatar que das compras totais de € 1. 511.669,22, apenas € 679.592,67 não se referem aos designados missing traders.  
  19. Deste modo, a AT escudou-se, exclusivamente, no que se refere à fundamentação de direito, no disposto no nº 4 do artº 19º do CIVA.
  20. E, como esta norma implica que o adquirente tem de ser conhecedor de que os fornecedores não têm estrutura empresarial, a AT esforçou-se seriamente em criar um quadro convincente da inevitabilidade desse conhecimento.
  21. Mas, não obstante o brilho da preleção realizada, digna de uma ação de formação sobre a temática da designada fraude carrossel, a AT, na verdade, não passou disso, pois que não introduz qualquer elemento de efetiva prova sobre os factos que invoca, os quais, em rigor, não passam de meras suposições desprovidas de suporte.
  22. Como se demonstrará, a decisão da AT assenta num conjunto de equívocos, pré-juízos e falta de apreensão da efetiva realidade do requerente, carecendo, por isso, de uma cuidada análise.
  23. Assim, a AT inferiu (terminologia que parece especialmente querida da AT e que, afinal, significando dedução ou presunção, nada tem a ver com a necessária prova) que o requerente aproveitou da fraude, porquanto terá aumentado, no que se cuida de insinuar, desmesuradamente a sua atividade, dando a entender que o volume de negócios que conseguiu atingir foi à custa do comportamento fraudulento, já que este lhe permitiu praticar preços abaixo dos de mercado.
  24. No entanto, a AT não tece qualquer comentário, ao que parece, de forma deliberada, à representatividade das aquisições que foram consideradas abrangidas no suposto esquema de fraude no conjunto das vendas globalmente contabilizadas no exercício de 2017.
  25. Se o tivesse feito, perante os elementos da contabilidade a que teve acesso e que, de algum modo, se encontram vertidos no RIT, poderia verificar que as vendas totais declaradas em 2017 atingiram o montante de € 1.310.604,93 e que, nesse mesmo ano, as vendas das viaturas correspondentes às aquisições “fraudulentas” totalizaram € 262.105,72.
  26. Ou seja, o requerente, tendo recorrido praticamente aos mesmos fornecedores, só terá impulsionado o seu negócio à custa da fraude, na presunção da AT, cerca de 25%, o que parece francamente pouco depois do arrazoado de comentários formulados para dar a imagem de fraude generalizada.
  27. Por outro lado, embora a AT não recorra a esse raciocínio, seria expectável, caso o requerente estivesse consciente da fraude e do facto dos preços praticados nas aquisições em causa serem inferiores aos de mercado, como a AT afirma, que tentasse obter uma margem de lucro extra, pois, quem é sabedor de que obteve um bom preço de compra, não vai deixar de querer praticar o preço de mercado, ou um bocadinho inferior, para guardar para si parte dessa margem extraordinária.
  28. E, aí, se a AT tivesse desenvolvido um efetivo esforço investigatório, como lhe competia e serviria para dar consistência às suas suposições, teria constatado que as vendas das viaturas abrangidas pelo esquema da fraude, conforme mapa que constitui o ANEXO 2, possibilitaram uma percentagem de lucro bruto de 8,74%, enquanto as restantes vendas permitiram a obtenção de lucro na correspondente percentagem de 13,50% (ANEXO 3).
  29. Conclui que traçado o enquadramento legal do dever de fundamentação, bem como o seu tratamento doutrinal e jurisprudencial, resta concluir que, como já antes se afirmou, os atos tributários de liquidação de IVA, na parte respeitante à dedução indevida com apoio no nº 4 do artº 19º do CIVA, não se apresentam devidamente fundamentados.

 

II.2      Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

  1. No período de tributação de 2017, a A... «(…) estava registada pelo exercício das atividades principal de “Comércio de veículos automóveis ligeiros – CAE 45110” e secundária de “Comércio de outros veículos automóveis – CAE 45190”, que iniciou com efeitos reportados a 2014/11/19.
  2. Em matéria de IVA, face ao disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), a A..., Unipessoal, Ldª, é um sujeito passivo enquadrado, quanto ao período em análise, no regime normal de periodicidade trimestral, conforme estabelecido na alínea b) do nº 1 do artigo 41º do CIVA.
  3. As liquidações adicionais ora colocadas em crise resultam de uma ação inspetiva credenciada pela Ordem de Serviço Externa OI2019..., datada de 30.12.2019, de âmbito parcial, extensiva ao período de tributação de 2017, levada a cabo pelos Serviços de Inspeção Tributária e Aduaneira (SIT) da Direção de Finanças do Porto (DF Porto), a qual “(…) foi emitida por terem sido detetadas desconformidades relevantes entre as deduções de imposto (IVA) mencionadas nas declarações periódicas e os valores do imposto comunicados à plataforma e-fatura e, com vista à comprovação e verificação do cumprimento das demais obrigações legais de natureza tributária e de informação ou de parecer das quais a inspeção tributária está legalmente incumbida [Artº 12º, nº1, alíneas a) ou b) do RCPITA] (…)”, nos termos e fundamentos constantes do RIT junto aos autos, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais (Cfr. subponto II-2 do RIT, página 2).
  4. Com efeito, pode ler-se no subponto III-2.1 do RIT, a páginas 5 e seguintes que em 2017 “(…) a A... exerceu o direito à dedução de imposto, por montantes que em qualquer dos períodos, superam os valores comunicados pelos fornecedores nacionais à plataforma e-fatura, o que face aos montantes envolvidos, motivou uma análise mais aprofundada da situação.
  5. Acresce que em relação ao ano de 2017, a A... apurou crédito de imposto para os períodos de 17-03T, 17-06T e 17-09, respetivamente nos montantes de € 12 948,80, € 18.517,22 e € 18 127,20 e imposto a entregar para o período de 17-12T, no montante de € 6.301,10 e, no período em análise, não são conhecidos à empresa deduções de imposto suportado em aquisições de ativos fixos nem operações isentas conferindo direito à dedução, efetuadas a jusante da atividade [Quadro 06, Cps. 7 e 8 das DP’s] ou acréscimos significativos de inventários de viaturas adquiridas pelo regime geral de IVA, que justifiquem a situação de crédito revelada pelos dados declarados para os períodos indicados.”.
  6. “No decurso do procedimento inspetivo, foram identificados diversos fornecedores nacionais, que emitiram faturas em nome da A..., as quais evidenciam imposto (IVA) liquidado à taxa normal, incidente sobre o valor da contraprestação recebida ou a receber do cliente [Artº 16º, nº 1 do CIVA], sendo que os emitentes, não apresentam estrutura empresarial compatível com o exercício da atividade pela qual estão registados nem entregaram a prestação tributária liquidada nas faturas emitidas (…)”, tais como: B..., Unipessoal Lda., C..., Unipessoal Lda., D..., Unipessoal Lda., E..., Unipessoal Lda., F..., SA (Cfr. subponto III-2.1.1 do RIT, a páginas 6).
  7. Da página 6 à página 23 do RIT, os SIT desenvolveram, de uma forma particularmente minuciosa, a postura e a conduta comercial adotada por cada uma das indicadas sociedades, o que sustentou a tese de que estas «(...) não dispõem de infraestruturas empresariais adequadas ao exercício da atividade de “comercialização de viaturas”, nem cumprem com as suas obrigações tributárias e apresentam tendencialmente um conjunto de elementos caracterizadores comuns, a saber:

•São sociedades que não revelam fatores produtivos materiais e humanos, próprios ou subcontratados, compatíveis com o exercício em território nacional da atividade de “Comércio de veículos automóveis ligeiros – CAE 45110”. Trata-se de sociedades constituídas juridicamente, para efetuarem aquisições intracomunitárias de viaturas e legalização das mesmas em território nacional, as quais, no ano de 2017, foram depois transacionadas a favor da A... e de outros operadores económicos do setor;

•No processo de constituição de tais sociedades, são identificadas pessoas ou entidades, que em função dos elementos conhecidos, não passam de meros “testas de ferro”, que figuram ostensivamente na estrutura societária de tais entidades, assumindo formalmente a responsabilidade pelo giro comercial, de forma a deixarem no anonimato os principais ou verdadeiros responsáveis e interessados no negócio;

•São invariavelmente sociedades de duração efémera, na sua maioria constituídas sob a forma de sociedades unipessoais por quotas, modelo adotado para restringir o número de pessoas ou entidades envolvidas;

•São sociedades que não possuem nem usam instalações ou meros centros de representação fisicamente identificáveis e os gerentes/administradores não são localizáveis ou facilmente contactáveis, caraterísticas incompatíveis com o efetivo exercício da atividade de “Comércio de veículos automóveis ligeiros – CAE 45110”, que por norma, requerem o prolongamento da relação comercial no período pós-venda [Vg. execução de garantias];

•Em função dos procedimentos inspetivos já efetuados, averiguou-se que tais sociedades, não possuem ou não exibem a contabilidade, estão em situação de incumprimento declarativo e não procedem à entrega ao credor da prestação tributária do imposto (IVA) liquidado nas transações que formalmente efetuam a coberto das faturas emitidas, valor que dessa forma, constitui o ganho dos intervenientes nesse processo fraudulento;

•Nas transações de viaturas efetuadas para a A..., constatou-se que as transações são efetuadas abaixo do custo de aquisição [preço de compra + ISV + encargos adicionais de compra (transporte das viaturas para território nacional, legalização, inspeções e outros)], diferencial que é compensado pelo montante da prestação tributária (IVA) de que as sociedades vendedoras retêm de forma ilegítima e indevida e que constitui o lucro de tais entidades e das pessoas ou entidades envolvidas no processo de aquisição, legalização e comercialização das viaturas;

•Através da supressão ardilosa da margem de lucro, as sobreditas sociedades proporcionam aos adquirentes das viaturas, condições de mercado claramente vantajosas, gerando preços abaixo dos preços médios do setor de atividade para operações equivalentes, anormalmente competitivos ao longo do circuito económico, que decorrem exclusivamente da redução artificial do preço das transações, criando assim uma situação de concorrência desleal para com os demais operadores do setor de atividade, tudo isto à custa do imposto (IVA) liquidado e efetivamente cobrado à empresa adquirente, que não é entregue ao credor da prestação tributária;

• Acresce que os representantes das sociedades vendedoras, comummente denominados de testas de ferro, são pessoas às quais dificilmente se poderá imputar a idealização e concretização do descrito sistema fraudulento, lesivo dos interesses do credor da prestação tributária e o benefício das inerentes vantagens patrimoniais associadas aos negócios;

•Verifica-se ainda que ao tempo, duas das sociedades: – a E..., Unipessoal, Ldª; – e a F..., SA, têm a sede/domicílio fiscal em locais onde funcionam/funcionaram dois gabinetes de contabilidade, respetivamente G..., Unipessoal, Ldª e “H..., Contabilidade” e duas apresentam sócios, gerentes e contabilistas comuns: – a C..., Unipessoal, Ldª; – e a E..., Unipessoal, Ldª.» (Cfr. subponto III.2.1.1 do RIT, a páginas 23 e 24).

  1. Nesta sequência, foi requerido e autorizado o acesso a documentos bancários, nos termos do artigo 63.º-B da Lei Geral Tributária (LGT), tendo sido detetadas diversas movimentações entre a Requerente e as indicadas sociedades, as quais contribuíram para o apuramento das respetivas conclusões vertidas no subponto III-2.1.2 do RIT, entre as páginas 24 e 32, mormente, nas páginas 31 e 32 onde se encontra vertida a síntese dos seguintes factos:

«Do conjunto dos meios de pagamento cujos comprovantes foram recolhidos [cheques, transferências bancárias e outros], observou-se o seguinte:

•Apenas nos casos da E..., Unipessoal, Ldª e da F..., SA, foi possível associar de forma clara e inequívoca os documentos recolhidos ao pagamento concreto das viaturas identificadas [Mat. ..., Mat. ... e Mat. ...]. Nas restantes situações, os registos contabilísticos revelam um conjunto de pagamentos fracionados, para crédito de conta e, no caso dos cheques, houve recurso à modalidade de “pré-datado” e, por tal motivo, não foi possível fazer a correlação entre cada um dos pagamentos e o valor de cada uma das faturas;

•Conforme matéria anteriormente desenvolvida neste Relatório, apenas no caso das transferências bancárias [uma a 2017/07/14, de € 8 300,00, a favor da C..., Unipessoal, Ldª; e outra a 2017/07/25, no montante de € 6 498,00, a favor da E..., Unipessoal, Ldª], se comprova que os fundos foram canalizados para contas bancárias abertas em nome das empresas emitentes das faturas;

•Quanto ao Cheque Nº..., de € 10 000,00, emitido à ordem da D..., Unipessoal, Ldª e ao Cheque Nº..., de € 6 749,01, emitido em nome da F..., SA, não obstante se tratarem de cheques nominativos, cruzados, emitidos em nome de cada uma daqueles empresas, em ambos os casos, foram endossados e levantados ao balcão por I..., sócio único e gerente da primeira e sem qualquer relação conhecida com a segunda, o que em qualquer dos casos, não comprova que os fundos levantados tenham revertido a favor de qualquer das identificadas empresas;

•Relativamente ao “encontro de contas” com a C..., Unipessoal, Ldª, decorrente da alegada aquisição da viatura Marca Porsche, Mat. ..., os elementos conhecidos não contribuem para dar credibilidade à transação pelo menos nos moldes decorrentes do circuito documental, considerando que foi vendida pela A... por € 60 000,00, a favor da C..., Unipessoal, Ldª [Fatura Nº FA B000/150 de 2017/07/07] e foi por esta transacionada a favor de J..., NIF. ..., por € 52 500,00 [Fatura CFA 2016/57 de 2017/09/04], indicando o adquirente, em resposta ao Ofício de Saída Coletiva Nº 2021S... de 2021/06/15 da Direção de Finanças do Porto, que contactou um indivíduo que identifica simplesmente por K...” através do “Tlm: ...”, contacto que identificamos através da base de dados do Sistema de Informática Tributária, como pertencendo a K..., NIF...., pessoa já referenciada neste Relatório, como estando envolvida num conjunto de negócios e circuitos financeiros relacionados com transações de entidades com as quais não se lhe conhecem quaisquer ligações societárias ou outras;

•No caso dos restantes meios de pagamento, como já foi referido, não se comprova que os fundos sacados tenham revertido a favor das empresas emitentes das faturas com que a A... justifica a aquisição das viaturas identificadas no Ponto III-2.1.1 deste Relatório;

•E não obstante, as diligências efetuadas junto dos beneficiários identificados através do verso dos cheques identificados, não foi possível obter qualquer justificação para a receção dos fundos por parte de cada um deles.»

  1. Perante tais factos retirados da movimentação bancária da A... e que justificam o pagamento das viaturas em apreço por si adquiridas às sociedades supra identificadas, entenderam os SIT notificar a Requerente para vir aos autos esclarecer as seguintes questões:

«a) Esclarecer com detalhe a forma como foram efetuados os negócios, identificando os locais visitados e as pessoas contactadas, que agiram em representação de cada um dos fornecedores, indicando os respetivos contactos telefónicos ou outros;

b) Indicar e descrever por cada uma das empresas, os locais onde estavam expostas as viaturas, os locais de carga ou de início de transporte, a forma como chegaram às instalações da A..., Unipessoal, Ldª, identificando quem as transportou ou entregou e os respetivos contactos telefónicos ou outros;

c) Indicar a forma como as faturas emitidas pelos fornecedores chegaram às instalações da A..., Unipessoal, Ldª e identificar a pessoa a quem foram entregues os meios de pagamento [cheques].”» (Cfr. subponto III-2.1.3 do RIT, a páginas 32).

  1. A A...  acedeu ao solicitado, contudo, entenderam os SIT que o teor da sua resposta «(…) relativamente a cada um dos fornecedores, é praticamente invariável, mudando apenas os nomes dos representantes e quando indicado, o respetivo contacto telefónico, remetendo-nos para um aparente “negócio ambulante de viaturas”, que manifestamente não é praticado neste setor de atividade (…)» assentando “(…) num conjunto de premissas, em desconformidade com as práticas de negócio do setor de atividade e com a situação concreta de cada uma das empresas fornecedoras (…)” (Cfr. subponto III-2.1.3 do RIT, a páginas 33 e 34).
  2. Pode ler-se ainda, no RIT que os SIT estranham o facto de não terem «(…) sido fornecidos outros detalhes mais pormenorizados relacionados com os negócios efetuados com os sobreditos fornecedores, nomeadamente no que respeita à identificação de eventuais estruturas empresariais alocadas ao exercício da atividade, que neste setor de atividade, por norma incluem espaços de exposição de viaturas, contrastando com o descrito modelo de exibição e de entrega “porta à porta” a que alude a notificada, não sendo pois de reconhecer qualquer credibilidade ao modelo de negócios invocado.» (Cfr. subponto III-2.1.3 do RIT, a páginas 34).
  3. Terminaram este segmento inferindo que fica assim, demonstrado que a Requerente tinha conhecimento da “(…) falta de adequada estrutura empresarial para o exercício da atividade declarada por cada um dos fornecedores, até porque estavam em causa negócios que no seu conjunto envolveram montantes consideráveis e bens usados suscetíveis de prévia avaliação técnica e garantias de idoneidade por parte dos vendedores, que por norma a A... transacionou a coberto de garantia temporária.” (Cfr. subponto III-2.1.3 do RIT, a páginas 34).
  4. Tal conduta comercial levou a que os SIT concluíssem que «(…) através da interposição as sociedades emitentes das faturas identificadas no Ponto III-2.1.1 deste Relatório, a A... recorreu a um esquema comumente designado por “fraude na aquisição intracomunitária de bens”, uma das modalidades da denominada “fraude em carrossel” (…) em que um fornecedor sedeado noutro Estado Membro da União Europeia “conduit company” [Empresa A], faz a entrega de viaturas isentas de IVA [transmissão intracomunitária de bens] a uma sociedade portuguesa “missing trader” [Empresa B], a qual, por sua vez, fatura as viaturas à A..., o “broker” [Empresa C], liquidando o imposto (IVA) e, posteriormente não o entrega ao credor da prestação tributária, sendo o “broker” ressarcido do tributo, através do exercício do direito à dedução, que constitui uma das modalidades de reembolso dos valores pagos.» (Cfr. subponto III-2.1.4 do RIT, a páginas 34 e 37).
  5.  Consequentemente, na senda do n.º 4 do artigo 19.º do CIVA, entendem os SIT que a A... deduziu IVA indevidamente, porquanto “(…) esse direito surge ou é obtido como consequência do seu envolvimento nos descritos circuitos fraudulentos.” (Cfr. Subponto III-2.1.5 do RIT, a páginas 40).
  6. Realizado o Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (PRIT), o mesmo foi devidamente notificado à Requerente para efeitos do exercício do direito de audição, previsto no artigo 60.º da LGT e artigo 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), contudo tal direito não foi exercido, pelo que foi o RIT convertido em definitivo.
  7. Inconformada, apresentou em data, Reclamação graciosa a qual foi instaurada sob o nr. ...2022...  e, por despacho de 2022/11/24, foi indeferida nos termos e com os fundamentos a fls… do PA que aqui se consideram reproduzidos.

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

  1. A liquidação ora impugnada teve origem em procedimento de inspeção e colhe os seus fundamentos no Relatório de Inspeção Tributária (RIT), elaborado e notificado pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
  2. Tal procedimento de inspeção teve índole externa, foi dirigido ao exercício de 2017 e teve âmbito geral, tendo permitido, no que se refere ao IVA, apurar correções objetivas, decorrentes de, alegadamente, ter sido, em face do disposto no nº 4 do artº 19º do CIVA, indevidamente deduzido IVA, no montante de € 77.709,90, e correções por recurso à aplicação de métodos indiretos de tributação, as quais, após decisão do pedido de revisão interposto nos termos do artº 91º da Lei Geral Tributária (LGT), foram reduzidas para o valor de imposto de € 29,21.
  3. As liquidações de IVA em causa, respeitando à totalidade das correções, no total de € 77.739,11, foram notificadas ao requerente, conforme os seguintes documentos:
    1. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite de pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de € 11.401,48;
    2. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite de pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de € 390,02;
    3. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/10/2017 a 31/12/2017, no montante de € 24.266,14;
    4. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/01/2017 a 31/03/2017, no montante de € 10.892,67;
    5. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de € 12.948,80;
    6. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de € 17.840,00.
  4. O presente pedido abrange, apenas, as liquidações que respeitam às correções objetivas, no total, já referido, de € 77.709,90.
  5. Por seu lado, os juros compensatórios liquidados importam no total de € 12.356,80, conforme os seguintes documentos notificados:
    1. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite de pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de 1.901,70€;
    2. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de 74,66€;
    3. Documento nº 2021..., compensação nº 202..., com a data limite pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/10/2017 a 31/12/2017, no montante de 3.563,46€;
    4. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/01/2017 a 31/03/2017, no montante de 1.930,24€;
    5. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de 2.159,79€;
    6. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de 2.726,95€.
  6. No período de tributação de 2017, a A... «(…) estava registada pelo exercício das atividades principal de “Comércio de veículos automóveis ligeiros – CAE 45110” e secundária de “Comércio de outros veículos automóveis – CAE 45190”, que iniciou com efeitos reportados a 2014/11/19.
  7. Em matéria de IVA, face ao disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), a A..., Unipessoal, Ldª, é um sujeito passivo enquadrado, quanto ao período em análise, no regime normal de periodicidade trimestral, conforme estabelecido na alínea b) do nº 1 do artigo 41º do CIVA.
  8. As liquidações adicionais ora colocadas em crise resultam de uma ação inspetiva credenciada pela Ordem de Serviço Externa OI2019..., datada de 30.12.2019, de âmbito parcial, extensiva ao período de tributação de 2017, levada a cabo pelos Serviços de Inspeção Tributária e Aduaneira (SIT) da Direção de Finanças do Porto (DF Porto), a qual “(…) foi emitida por terem sido detetadas desconformidades relevantes entre as deduções de imposto (IVA) mencionadas nas declarações periódicas e os valores do imposto comunicados à plataforma e-fatura e, com vista à comprovação e verificação do cumprimento das demais obrigações legais de natureza tributária e de informação ou de parecer das quais a inspeção tributária está legalmente incumbida [Artº 12º, nº1, alíneas a) ou b) do RCPITA] (…)”, nos termos e fundamentos constantes do RIT junto aos autos, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais (Cfr. subponto II-2 do RIT, página 2).

 

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

A questão de fundo a decidir nos presentes autos passa, em suma, por aferir se nos termos do previsto no n.º 4 do artigo 19.º do Código do IVA, a Requerente não tem direito à dedução do imposto suportado nas faturas emitidas pelos seus fornecedores diretos referidos neste relatório.

Na verdade, e como é referido no RIT “na senda do n.º 4 do artigo 19.º do CIVA, entendem os SIT que a A... deduziu IVA indevidamente, porquanto (…) esse direito surge ou é obtido como consequência do seu envolvimento nos descritos circuitos fraudulentos.” (Cfr. Subponto III-2.1.5 do RIT, a páginas 40). 

Ora, sendo o IVA um imposto de matriz comunitária, impõe-se tecer algumas considerações prévias relativamente à natureza e amplitude do direito à dedução, considerando nesta análise as regras que regem este imposto de acordo com o Direito da União Europeia, com a respetiva transposição a nível interno e com a interpretação administrativa e judicial que sobre as mesmas tem vindo a ser levada a cabo, especialmente pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

Nos relatórios das inspeções tributárias referidos na matéria de facto, a Autoridade Tributária e Aduaneira concluiu, em suma que estão em causa sociedades que não revelam fatores produtivos materiais e humanos, próprios ou subcontratados, compatíveis com o exercício em território nacional da atividade de “Comércio de veículos automóveis ligeiros – CAE 45110”. Trata-se de sociedades constituídas juridicamente, para efetuarem aquisições intracomunitárias de viaturas e legalização das mesmas em território nacional, as quais, no ano de 2017, foram depois transacionadas a favor da A... e de outros operadores económicos do setor.

Como fundamentação de direito, a AT invoca, única e exclusivamente, o nº 4 do art.º 19.º do CIVA, o qual nega o direito à dedução do imposto quando este resulte de operações em que o transmitente não entregue o mesmo nos cofres do Estado e o adquirente tenha ou devesse ter conhecimento de que aquele transmitente não dispunha de adequada estrutura empresarial para realizar as operações em causa.

E, na sua fundamentação a AT dá especial atenção à alteração introduzida pela lei n.º 55-B/2004 ao nº 4 do art.º 19.º do CIVA, para explicar que, face à letra da norma, passou a ser possível não admitir a dedução de IVA sempre que o adquirente tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens não tenha estrutura empresarial adequada para desenvolver aquela atividade, alongando-se em vasta explicação do sentido e objetivos da norma (páginas 37 a 39 – Ponto 2.1.5), para apresentar a sua perfeita adequação ao caso em apreço.

Sendo assim, no entender da Requerida, esta dedução de imposto tem por base operações que foram simuladas e manipuladas, tendo por objetivo lesar o Estado, participando a Requerente neste mecanismo fraudulento, criando artificialmente os pressupostos exigidos para a dedução do IVA e a obtenção dos reembolsos, tendo por base que o sujeito passivo tenha tido ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial suscetível de exercer a atividade declarada.

Na sequência desse entendimento, a Autoridade Tributária e Aduaneira concluiu que, por força do preceituado no n.º 4 do artigo 19.º do CIVA, a Requerente não tem direito à dedução do imposto suportado nas seguintes faturas emitidas, por considerar que as mesmas titulam operações simuladas e manipuladas, tendo em vista lesar o Estado, a saber:

  1. No processo de constituição de tais sociedades, são identificadas pessoas ou entidades, que em função dos elementos conhecidos, não passam de meras “testas de ferro”, que figuram ostensivamente na estrutura societária de tais entidades, assumindo formalmente a responsabilidade pelo giro comercial, de forma a deixarem no anonimato os principais ou verdadeiros responsáveis e interessados no negócio;
  2. São invariavelmente sociedades de duração efémera, na sua maioria constituídas sob a forma de sociedades unipessoais por quotas, modelo adotado para restringir o número de pessoas ou entidades envolvidas;
  3. São sociedades que não possuem nem usam instalações ou meros centros de representação fisicamente identificáveis e os gerentes/administradores não são localizáveis ou facilmente contactáveis, caraterísticas incompatíveis com o efetivo exercício da atividade de “Comércio de veículos automóveis ligeiros – CAE 45110”, que por norma, requerem o prolongamento da relação comercial no período pós-venda [Vg. execução de garantias];
  4. Em função dos procedimentos inspetivos já efetuados, averiguou-se que tais sociedades, não possuem ou não exibem a contabilidade, estão em situação de incumprimento declarativo e não procedem à entrega ao credor da prestação tributária do imposto (IVA) liquidado nas transações que formalmente efetuam a coberto das faturas emitidas, valor que dessa forma, constitui o ganho dos intervenientes nesse processo fraudulento;
  5. Nas transações de viaturas efetuadas para a A..., constatou-se que as transações são efetuadas abaixo do custo de aquisição [preço de compra + ISV + encargos adicionais de compra (transporte das viaturas para território nacional, legalização, inspeções e outros)], diferencial que é compensado pelo montante da prestação tributária (IVA) de que as sociedades vendedoras retêm de forma ilegítima e indevida e que constitui o lucro de tais entidades e das pessoas ou entidades envolvidas no processo de aquisição, legalização e comercialização das viaturas;
  6. Através da supressão ardilosa da margem de lucro, as sobreditas sociedades proporcionam aos adquirentes das viaturas, condições de mercado claramente vantajosas, gerando preços abaixo dos preços médios do setor de atividade para operações equivalentes, anormalmente competitivos ao longo do circuito económico, que decorrem exclusivamente da redução artificial do preço das transações, criando assim uma situação de concorrência desleal para com os demais operadores do setor de atividade, tudo isto à custa do imposto (IVA) liquidado e efetivamente cobrado à empresa adquirente, que não é entregue ao credor da prestação tributária;
  7. Acresce que os representantes das sociedades vendedoras, comummente denominados de testas de ferro, são pessoas às quais dificilmente se poderá imputar a idealização e concretização do descrito sistema fraudulento, lesivo dos interesses do credor da prestação tributária e o benefício das inerentes vantagens patrimoniais associadas aos negócios;
  8. Verifica-se ainda que ao tempo, duas das sociedades: – a E..., Unipessoal, Ldª; – e a F..., SA, têm a sede/domicílio fiscal em locais onde funcionam/funcionaram dois gabinetes de contabilidade, respetivamente G..., Unipessoal, Ldª e “H..., Contabilidade” e duas apresentam sócios, gerentes e contabilistas comuns: – a C..., Unipessoal, Ldª; – e a E..., Unipessoal, Ldª.» (Cfr. subponto III.2.1.1 do RIT, a páginas 23 e 24);
  9. Apenas nos casos da E..., Unipessoal, Ldª e da F..., SA, foi possível associar de forma clara e inequívoca os documentos recolhidos ao pagamento concreto das viaturas identificadas [Mat. ..., Mat. ... e Mat... ]. Nas restantes situações, os registos contabilísticos revelam um conjunto de pagamentos fracionados, para crédito de conta e, no caso dos cheques, houve recurso à modalidade de “pré-datado” e, por tal motivo, não foi possível fazer a correlação entre cada um dos pagamentos e o valor de cada uma das faturas;
  10. Conforme matéria anteriormente desenvolvida neste Relatório, apenas no caso das transferências bancárias [uma a 2017/07/14, de € 8 300,00, a favor da C..., Unipessoal, Ldª; e outra a 2017/07/25, no montante de € 6 498,00, a favor da E..., Unipessoal, Ldª], se comprova que os fundos foram canalizados para contas bancárias abertas em nome das empresas emitentes das faturas;
  11. Quanto ao Cheque Nº..., de € 10 000,00, emitido à ordem da D..., Unipessoal, Ldª e ao Cheque Nº..., de € 6 749,01, emitido em nome da F..., SA, não obstante se tratarem de cheques nominativos, cruzados, emitidos em nome de cada uma daqueles empresas, em ambos os casos, foram endossados e levantados ao balcão por I..., sócio único e gerente da primeira e sem qualquer relação conhecida com a segunda, o que em qualquer dos casos, não comprova que os fundos levantados tenham revertido a favor de qualquer das identificadas empresas;
  12. Relativamente ao “encontro de contas” com a C..., Unipessoal, Ldª, decorrente da alegada aquisição da viatura Marca Porsche, Mat. ..., os elementos conhecidos não contribuem para dar credibilidade à transação pelo menos nos moldes decorrentes do circuito documental, considerando que foi vendida pela A... por € 60 000,00, a favor da C..., Unipessoal, Ldª [Fatura Nº FA B000/150 de 2017/07/07] e foi por esta transacionada a favor de J..., NIF...., por € 52 500,00 [Fatura CFA 2016/57 de 2017/09/04], indicando o adquirente, em resposta ao Ofício de Saída Coletiva Nº 2021... de 2021/06/15 da Direção de Finanças do Porto, que contactou um indivíduo que identifica simplesmente por “K...” através do “Tlm: ...”, contacto que identificamos através da base de dados do Sistema de Informática Tributária, como pertencendo a K..., NIF. ..., pessoa já referenciada neste Relatório, como estando envolvida num conjunto de negócios e circuitos financeiros relacionados com transações de entidades com as quais não se lhe conhecem quaisquer ligações societárias ou outras;
  13. No caso dos restantes meios de pagamento, como já foi referido, não se comprova que os fundos sacados tenham revertido a favor das empresas emitentes das faturas com que a A... justifica a aquisição das viaturas identificadas no Ponto III-2.1.1 deste Relatório;
  14. E não obstante, as diligências efetuadas junto dos beneficiários identificados através do verso dos cheques identificados, não foi possível obter qualquer justificação para a receção dos fundos por parte de cada um deles.

A prova produzida e os elementos consultados não confirmam, porém, as conclusões a que chegou a Autoridade Tributária e Aduaneira.

A questão que se suscita prende-se com o conhecimento que a Requerente tinha, ou devia ter, da fraude ao IVA que os seus fornecedores perpetraram, ou dito de outro modo, da sua conivência com o esquema fraudulento ou, pelo menos, do conhecimento de factos que tornassem suspeitos os ditos negócios. A confirmar-se esse pressuposto, seria aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 19.º acima citado, segundo o qual: “quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial suscetível de exercer a atividade declarada” não pode deduzir o imposto que lhe foi faturado.

Na verdade e de acordo com os depoimentos das testemunhas, testemunhal, designadamente a funcionária da Requerente, L..., M... e as declarações de parte do gerente da Requerente, resulta claramente que inexiste qualquer conluio e muito menos esquema de fraude, existindo efetivamente estrutura empresarial nas empresas dos fornecedores do Requerente e o modelo de negócio é o que resulta dos seus depoimentos.

Os fornecedores em causa são: B...– Unipessoal, Lda, C...– Unipessoal, Lda, D...– Unipessoal, Lda, E... – Unipessoal, Lda, e F...–  Unipessoal, Lda.

Por seu lado, resultou claro que preço dos veículos é de difícil determinação, dependendo de inúmeros fatores, pelo que a atividade gira à volta de negócios de ocasião e oportunidades, não sendo possível concluir que uma viatura que é oferecida a preço supostamente mais baixo tem por trás um esquema de fraude, ao invés de constituir simplesmente um bom negócio.

Aliás, foram claros no sentido que se em determinado momento precisassem de liquidez para a sua tesouraria, venderiam a preço mais baixo, ou se um carro estivesse muito tempo em exposição, sem saída, naturalmente que a solução é baixar o preço, como de resto sucedeu com  a viatura de marca Jaguar, invocada em sede de prova testemunhal.

Igualmente se provou claramente que as compras declaradas pelo impugnante foram de € 1.511.669,22 e que as mesmas foram consideradas pelo exato montante faturado pelos fornecedores, procedendo a AT, apenas, à correção por acréscimo do valor de € 24.723,53, valor que corresponde à compra de 2 automóveis que não estariam contabilizados, como se justificou nas páginas 42 e 43 do RIT (ponto 2), correção essa que em sede da decisão do pedido de revisão do artº 91º da LGT foi retificada para considerar apenas omitida aos registos a viatura com a matrícula 98-40-SL, no valor de  1.000,00.

Na verdade, AT escudou-se, exclusivamente, no que se refere à fundamentação de direito, no disposto no nº 4 do art.º 19º do CIVA. E, como esta norma implica que o adquirente tem de ser conhecedor de que os fornecedores não têm estrutura empresarial, a Requerida, conforme alega a Requerente, esforçou-se seriamente em criar um quadro convincente da inevitabilidade desse conhecimento. No entanto, é nossa convicção que a Requerida não introduz qualquer elemento de efetiva prova sobre os factos que invoca, os quais, em rigor, não passam de meras suposições desprovidas de suporte. Senão vejamos e concordando com a argumentação pertinente e prova da Requerente:

  1. A AT inferiu que o requerente aproveitou da fraude, porquanto terá aumentado, no que se cuida de insinuar, desmesuradamente a sua atividade, dando a entender que o volume de negócios que conseguiu atingir foi à custa do comportamento fraudulento, já que este lhe permitiu praticar preços abaixo dos de mercado - no entanto, a AT não tece qualquer comentário, ao que parece, de forma deliberada, à representatividade das aquisições que foram consideradas abrangidas no suposto esquema de fraude no conjunto das vendas globalmente contabilizadas no exercício de 2017.
  2. Se o tivesse feito, perante os elementos da contabilidade a que teve acesso e que, de algum modo, se encontram vertidos no RIT, poderia verificar que as vendas totais declaradas em 2017 atingiram o montante de € 1.310.604,93 e que, nesse mesmo ano, as vendas das viaturas correspondentes às aquisições “fraudulentas” totalizaram € 262.105,72.
  3. Ou seja, o requerente, tendo recorrido praticamente aos mesmos fornecedores, só terá impulsionado o seu negócio à custa da fraude, na presunção da AT, cerca de 25%, o que parece francamente pouco depois do arrazoado de comentários formulados para dar a imagem de fraude generalizada.
  4. Por outro lado, embora a AT não recorra a esse raciocínio, seria expectável, caso o requerente estivesse consciente da fraude e do facto dos preços praticados nas aquisições em causa serem inferiores aos de mercado, como a AT afirma, que tentasse obter uma margem de lucro extra, pois, quem é sabedor de que obteve um bom preço de compra, não vai deixar de querer praticar o preço de mercado, ou um bocadinho inferior, para guardar para si parte dessa margem extraordinária.
  5. E, aí, se a AT tivesse desenvolvido um efetivo esforço investigatório, como lhe competia e serviria para dar consistência às suas suposições, teria constatado que as vendas das viaturas abrangidas pelo esquema da fraude, conforme mapa que constitui o ANEXO 2, possibilitaram uma percentagem de lucro bruto de 8,74%, enquanto as restantes vendas permitiram a obtenção de lucro na correspondente percentagem de 13,50% (ANEXO 3).  

Neste âmbito, conclui-se em linha com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (“TCAN”), de 18 de maio de 2017, no processo 00377/04.9BEPRT, que não foram carreados pela AT elementos “que permitam concluir que houve um «esforço concertado» dos diversos operadores envolvidos nas transações e qual o benefício que no caso concreto a sociedade Recorrente obteve com o referido negócio e que doutro modo não obteria, pois que não se deteta qualquer elemento que estabeleça a necessária conexão entre a cadeia mencionada e a ora Recorrente”.

No mínimo, face à prova produzida, que aponta em sentido contrário ao afirmado pela Autoridade Tributária e Aduaneira no relatório de inspeção, terá de se ficar numa situação de dúvida sobre a alegada natureza simulada das transações, dúvida essa que, por força do disposto no artigo 100.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, tem de ser valorada a favor da Requerente.

No sentido preconizado se pronuncia, de igual modo, a jurisprudência consolidada do TJUE que se opõe a que seja “seja recusado a um sujeito passivo o direito de deduzir o imposto sobre o valor acrescentado relativo a uma entrega de bens pelo facto de, tendo em conta as fraudes ou as irregularidades cometidas a montante ou a jusante desta entrega, se considerar que esta entrega não foi efetivamente efetuada, sem que esteja demonstrado, à luz de elementos objetivos, que esse sujeito passivo sabia ou deveria saber que a operação invocada para fundamentar o direito a dedução fazia parte de uma fraude ao imposto sobre o valor acrescentado cometida a montante ou a jusante na cadeia de fornecimento, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.” (sublinhado nosso) – acórdão Bonik, C-285/11, de 6 de dezembro de 2012. No mesmo sentido, e a título ilustrativo, v. ainda os acórdãos Optigen, C-354/03, de 12 de janeiro de 2006, e Axel Kittel, C-439/04, de 6 de julho de 2006.

Nesta matéria, o Direito Europeu, encontra-se estabilizado e clarificado pela jurisprudência do TJUE acima referenciada, pelo que não se suscitam dúvidas interpretativas passíveis de originar um reenvio prejudicial nos termos previstos no acórdão Cilfit .

Pelo exposto, conclui-se que as liquidações impugnadas, que assentam nas correções referidas nos relatórios das inspeções tributárias, enfermam de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto, que justifica a sua anulação (artigo 163.º do CPA, subsidiariamente aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT).

Devendo os atos impugnados ser anulados com fundamento em vício de erro sobre os pressupostos de facto, que assegura eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil, a apreciação das restantes questões colocadas pela Requerente, relativamente à legalidade daqueles atos, incluindo os juros compensatórios.

  1. DECISÃO

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular as seguintes liquidações:
    1. Documento nº 2021 ..., compensação nº 2021 ..., com a data limite de pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de € 11.401,48;
    2. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite de pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de € 390,02;
    3. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/10/2017 a 31/12/2017, no montante de € 24.266,14;
    4. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/01/2017 a 31/03/2017, no montante de € 10.892,67;
    5. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de € 12.948,80;
    6. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de € 17.840,00.
  3. Anular as seguintes liquidações de juros compensatórios:
    1. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite de pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de 1.901,70€;
    2. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de 74,66€;
    3. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 27/12/2021, referente ao período 01/10/2017 a 31/12/2017, no montante de 3.563,46€;
    4. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/01/2017 a 31/03/2017, no montante de 1.930,24€;
    5. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/04/2017 a 30/06/2017, no montante de 2.159,79€;
    6. Documento nº 2021..., compensação nº 2021..., com a data limite pagamento a 08/02/2022, referente ao período 01/07/2017 a 30/09/2017, no montante de 2.726,95€.
  1. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 90.066,70, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

  1. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 2.754,00, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi julgado totalmente procedente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

Lisboa, 16 de janeiro de 2024.

 

Os Árbitros,

 

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

 

 

(Jónatas Machado)

 

 

(António Cipriano da Silva) 

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.