SUMÁRIO:
Não é dedutível, nos termos do artigo 19.º, n.º 7, do Código do IVA, o imposto suportado pelo cedente com obras de conservação, manutenção, reparação e assistência realizadas em imóvel abrangido por um contrato de cessão de exploração industrial relativamente ao qual a cessionária tenha sido dispensada do pagamento do preço acordado.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. A..., Lda. (doravante abreviadamente designada por “Requerente”), com o número de identificação fiscal e de Pessoa Colectiva ..., com sede na Rua ..., ..., ..., veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.os 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade de liquidações de IVA e de IRC, referentes a 2018, no valor de € 75 100,44.
1.1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 20 de fevereiro de 2023.
1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros, nomeações que foram aceites dentro do prazo legal.
1.3. Notificadas as partes dessas designações, não manifestaram vontade de recusar as mesmas, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
1.4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 3 de maio de 2023.
1.5. Prolatado o despacho determinado pelo artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta e juntou o processo administrativo no dia 5 de junho de 2023.
1.6. Na sua resposta, a Requerida invocou a existência de uma cumulação ilegal de pedidos, tendo o Tribunal, na sequência, determinado a notificação da Requerente quanto a tal questão, por despacho de 16 de junho de 2023.
1.7. Em 29 de junho de 2023, a Requerente respondeu, concordando com a ilegalidade da cumulação de pedidos, solicitando o prosseguimento dos autos para apreciação das ilegalidades relativas às liquidações de IVA.
1.8. Por despacho de 7 de julho, o Tribunal, não obstante a indicação já contida no requerimento apresentado pela Requerente em 29 de Junho de 2023, mas para que não subsistissem dúvidas na sequência do processo quanto à observância de formalidades e de prazos, notificou a Requerente para indicar, no prazo de dez dias, o pedido que pretendia ver apreciado no processo, sob cominação de, não o fazendo, haver absolvição da instância quanto a todos os pedidos, nos termos e para os efeitos do art. 4º, 6 do CPTA, aplicável ex vi art. 29º, 1, c) do RJAT.
1.9. Por requerimento de 24 de julho de 2023, confirmou a Requerente que pretendia ver apreciadas as questões de ilegalidade relativas às liquidações de IVA.
1.10. Dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, foram as partes notificadas para apresentar alegações, as quais não foram, no entanto, produzidas pelas mesmas.
1.11. Considerando os incidentes processuais ocorridos nos Autos, foi prorrogado o prazo previsto no artigo 21.º do RJAT.
2. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades.
II. Fundamentação
4. Matéria de facto
4.1. Factos Provados
Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
4.1.1. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas sujeita ao regime normal de IVA, com periodicidade mensal.
4.1.2. Na sequência da Ordem de Serviço n.º OI2020..., foi instaurado um procedimento de inspeção externa à Requerente relativo ao período de 2018 e abrangendo IRC e IVA, do qual vieram a resultar as seguintes liquidações:
a) IRC
Liquidação n.º 2022..., no valor de € 18.654,13, conforme demonstração de acerto de contas n.º 2022...;
b) IVA
Liquidação n.º 2022... do período de Janeiro de 2018, no montante de €9.870,79, acrescido da importância de € 1.780,52 de juros compensatórios;
Liquidação n.º 2022..., do período de Fevereiro de 2018, no montante de € 7.051,11, acrescido da importância de€ 1.249,49 de juros compensatórios;
Liquidação n.º 2022..., do período de Março de 2018, no montante de € 8.532,95, a que acresce a importância de€ 1.483,95 de juros compensatórios;
Liquidação n.º 2022..., do período de Abril de 2018, no montante de € 3.306,28, a que acresce a importância de € 563,42 de juros compensatórios;
Liquidação n.º 2022..., do período de Maio de 2018, no montante de € 4.782,92, a que acresce a Importância de € 799,86 de juros compensatórios;
Liquidação n.º 2022..., do período de Julho de 2018, no montante de € 1.463,36, a que acresce a Importância de € 234,77 de juros compensatórios;
Liquidação n.º 2022..., do período de Agosto de 2018, no montante de € 8.836,11, a que acresce a importância de € 1.388,60 de juros compensatórios;
Liquidação n.º 2022..., do período de Setembro de 2018, no montante de € 475,74, a que acresce a importância de € 73,04 de juros compensatórios;
Liquidação n.º 2022..., do período de Outubro de 2018, no montante de € 77,35;
Liquidação n.º 2022..., do período de Dezembro de 2018, no montante de € 3.915,01, a que acresce a importância de € 561,04 de juros compensatórios.
4.1.3. Relativamente a tais períodos, a Requerente deduziu IVA relativamente a despesas suportadas com obras de conservação, manutenção, reparação e assistência realizadas prédio sito na ..., Lote ..., freguesia e concelho de ... .
4.1.4. A Requerente é titular de um direito de superfície sobre o referido imóvel por um prazo de 10 anos, renovável, que se iniciou no dia 18 de fevereiro de 2011.
4.1.5. No dia 20 de abril de 2015, a Requerente assinou um contrato de cessão de exploração de estabelecimento industrial, ali localizado, com a sociedade B... S.A., no qual se acordou o pagamento de 2.500,00€ mensais a título de retribuição pela cessão de exploração.
4.1.6. O contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, renovável, e com data de produção de efeitos jurídicos de 1 de maio de 2015.
4.1.7. Em 28 de março de 2016, foi realizado um aditamento ao contrato, através da seguinte cláusula única: “Reconhecendo que a segunda outorgante é uma empresa em fase de arranque de laboração, carecendo de maior apoio financeiro nesta fase e que a sociedade primeira outorgante tem um interesse direto no sucesso do negócio daquela, por forma a começar a auferir regularmente as prestações acordadas na cláusula quinte do contrato de cessão de exploração, por esta ser a melhor forma de rentabilizar o espaço cedido, as Partes acordam que a segunda outorgante fica dispensada do pagamento de prestações durante os primeiros dois anos, contados desde 1/5/2015, julgados necessários até ela almejar o equilíbrio financeiro e angariar capacidades para suportar o pagamento das referidas prestações”.
4.1.8. Em 22 de fevereiro de 2018, assinado um 2.º aditamento ao referido contrato, fazendo-se constar dos considerandos que a cessionária “ainda não tinha conseguido alcançar o seu equilíbrio financeiro e assegurar a sua capacidade de satisfazer o pagamento das prestações devidas no âmbito do contrato de cessão de exploração”, pelo que se determinou que a mesma “fica dispensada do pagamento de prestações durante os primeiros quatro anos, contados desde 1 de maio de 2015”.
4.1.9. Em 18 de fevereiro de 2020, foi assinado um 3.º aditamento ao contrato, de teor análogo ao anterior, dispensando-se a cessionária do pagamento da cessão de exploração “durante os seis primeiros anos” do contrato, contados desde 1 de maio de 2015.
4.1.10. As liquidações de IVA foram justificadas com base no artigo 19.º, n.º 7, do Código do IVA, tendo-se entendido que os gastos alvo de análise (...) referem-se a despesas suportados com obras, conservação, manutenção, reparação e assistência de um imóvel e respetivos bens que o integram, o qual é utilizado para fins alheios à empresa, na medida em que o mesmo é utilizado, de forma gratuita (devido ao prazo de carência de rendas concedido pelo sujeito passivo), por outra empresa, a B..., S.A.”.
4.1.11. O pedido de pronúncia arbitral deu entrada no CAAD no dia 16 de fevereiro de 2023.
4.2. Factos não provados
Com interesse para a decisão, consideram-se não provados os seguintes factos:
4.2.1. Que existiram falhas sistemáticas na rede de frio que acarretaram prejuízos sistemáticos para a cessionária.
4.2.2. Que o período de carência tenha sido aumentado como compensação pelos prejuízos e todos os transtornos causados que impediam o cessionário de desenvolver normalmente a sua atividade e obter a necessária liquidez para o cumprimento do contrato.
4.2.3. Que o contrato se encontre a ser regulamente cumprido, na atualidade.
4.3. Motivação da matéria de facto
Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão dos Requerentes.
No caso sub iudicio, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos, junto com o requerimento de pronúncia arbitral e com o processo administrativo, tendo em consideração os pontos alegados pelas partes.
Quanto aos factos dados como não provados, cumpre explicitar que não foi produzida qualquer prova que suporte a alegação da Requerente, sendo que a documentação existente nos autos não só não confirma, como verdadeiramente controverte, o alegado. Com efeito, nenhum dos aditamentos ao contrato de cessão de exploração refere a existência de problemas com as instalações que impedissem a cessionária de laborar e, muito menos, a existência de prejuízos sistemáticos daí resultantes. De acordo com um critério de experiência comum, a existência dessa realidade, enquanto determinante contratual, não poderia deixar de estar refletida no teor dos contratos, o que, in casu, não acontece; tão pouco vem demonstrada a situação financeira da empresa cessionária e a existência de quaisquer prejuízos; e, por fim, também não foi apresentada qualquer prova de faturação dos valores devidos por efeito do contrato.
5. Matéria de direito
5.1. Questão prévia – Cumulação de Pedidos
A Requerida suscitou na sua Resposta a exceção da ilegalidade da cumulação dos pedidos formulados no pedido de pronúncia arbitral.
Notificada a Requerente para que se pronunciasse, a mesma reconheceu a ilegalidade da cumulação dos pedidos e, na sequência de despacho do Tribunal, veio dar satisfação à injunção prevista no artigo 4.º, n.º 6, do CPTA, indicando a sua pretensão de ver apreciadas as questões de legalidade relativas ao Imposto sobre o Valor Acrescentado.
Em consonância, apreciar-se-á o pedido indicado, absolvendo-se a AT da instância no que se refere à apreciação da ilegalidade da liquidação de IRC, inicialmente cumulada no pedido de pronúncia arbitral.
5.2. Questão decidenda
No caso sub judicio está em causa a questão de saber se é dedutível o IVA suportado com obras de conservação, manutenção, reparação e assistência realizadas em imóvel abrangido por um contrato de cessão de exploração industrial relativamente ao qual a cessionária tenha sido dispensada do pagamento do preço acordado.
Vejamos.
5.2. Fundamentos de direito
O direito à dedução do IVA suportado constitui um elemento essencial sobre o qual repousa estrutural e funcionalmente o Imposto sobre o Valor Acrescentado. Com efeito, como é consabido, o IVA opera através do método subtrativo indireto por mor do qual um sujeito passivo do imposto poderá deduzir ao valor do imposto que liquida nas suas operações económicas (“outputs”) o valor do IVA que suportou, a montante, nas aquisições de bens e serviços realizadas no exercício da sua atividade (“inputs”), repercutindo-se sobre o adquirente final dos bens ou serviços a carga tributária correspondente ao consumo efetuado – cf., sobre as características gerais do IVA, José Xavier de Basto, A tributação do consumo e a sua coordenação a nível internacional - Lições sobre a harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, CCTF n.º 164, Lisboa 1991, p. 39-73 e, considerando em particular o direito à dedução do imposto, Maria Odete Oliveira, João Seixas Cambão, “Exclusões, restrições, limitações e outras complicações em matéria de direito à dedução no Imposto sobre o Valor Acrescentado”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto, n.º 6, 2015, pp. 42-78, e Clotilde Celorico Palma, “IVA: Dedução de despesas de transportes de trabalhadores”, Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP, n.º 1, 2022, pp. 1-40.
A essencialidade do direito à dedução do IVA remonta à Primeira Diretiva 67/227/CEE do Conselho, de 11 de Abril de 1967, onde se assumiu o objetivo de “criar, por etapas, um sistema comum de imposto sobre o valor acrescentado”, onde se dispunha que “[e]m cada transação, o imposto sobre o valor acrescentado, calculado sobre o preço do bem ou do serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto sobre o valor acrescentado que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço” (artigo 2.º). Esta dimensão estruturante do imposto foi assumida nas diretivas que se seguiram, constituindo o mecanismo da dedução do imposto uma garantia da neutralidade inscrita no ADN do modelo comum de IVA[1].
Em consonância, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sempre tem assinalado que: “o direito a dedução previsto no artigo 168.o, alínea a), da Diretiva IVA faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. Exerce‑se imediatamente em relação à totalidade do IVA que incidiu sobre as operações efetuadas a montante (Acórdão de 2 de maio de 2019, Grupa Lotos, C‑225/18, EU:C:2019:349, n.° 25 e jurisprudência referida)”; “o regime das deduções visa desonerar inteiramente o empresário do encargo do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas atividades estejam, em princípio, elas próprias sujeitas a IVA (Acórdão de 2 de maio de 2019, Grupa Lotos, C‑225/18, EU:C:2019:349, n.° 26 e jurisprudência referida)”; “na medida em que o sujeito passivo, agindo nessa qualidade na data em que adquire um bem ou um serviço, utilize esse bem ou serviço para os fins das suas operações tributadas está autorizado a deduzir o IVA devido ou pago em relação ao referido bem ou serviço (Acórdão de 2 de maio de 2019, Grupa Lotos, C‑225/18, EU:C:2019:349, n.° 27 e jurisprudência referida)” – cf. §§ 22 a 24 do Acórdão de 17 de setembro de 2020, Super Bock Bebidas, processo C-837/19.
Não obstante constituir uma peça central do funcionamento do IVA, o direito à dedução encontra condicionalismos e limitações. Desde logo, por razões endógenas à estrutura do imposto, o direito à dedução pressupõe a existência de uma relação direta e imediata entre uma operação realizada a montante e uma ou várias operações a jusante com direito à dedução (Acórdãos de 8 de junho de 2000, Midland Bank, processo C-98/98, n.° 24; de 22 de fevereiro de 2001, Abbey National, processo C-408/98, n.º 26, e de 8 de fevereiro de 2007, Investrand, processo n.º C-435/05, n.° 23), ou, na falta dessa relação direta e imediata, a consideração de que os custos dos serviços em causa são parte das despesas gerais de um sujeito passivo e, nessa medida, constituem elementos constitutivos do preço dos bens ou dos serviços por aquele fornecidos, entendendo-se que existe aí uma relação direta e imediata com o conjunto da atividade económica do sujeito que autoriza a dedução do IVA suportado nos inputs (Acórdãos de 8 de junho de 2000, Midland Bank, processo C-98/98, n.° 31, e de 26 de maio de 2005, Kretztechnik processo C-465/03, n.° 36). De outra sorte, existem ainda limitações ou exclusões cuja razão de ser repousa numa lógica anti-abuso, aliada às limitações do controlo eficaz das autoridades tributárias, como sucede no âmbito de bens ou serviços que sejam suscetíveis de uma utilização não exclusivamente profissional (cf., v.g., os considerandos da Proposta de diretiva do Conselho que altera a Diretiva 77/388/CEE no que diz respeito ao regime do direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado (98/C 219/11) COM(1998) 377 final - 98/0209(CNS)), ou como no caso em que se proíbe a dedução do imposto relativo a bens imóveis afetos à empresa, na parte em que esses bens sejam destinados a uso próprio do titular da empresa, do seu pessoal ou, em geral, a fins alheios à mesma.
No caso concreto, a AT questiona precisamente a existência do direito à dedução do IVA por considerar que a dispensa de pagamento da retribuição acordada, constitui uma liberalidade e, consequentemente, coloca o exercício do direito à dedução do IVA suportado sob regime constante do artigo 19.º, n.º 7, do CIVA, por se tratar de uma afetação do imóvel a um fim alheio à atividade da empresa.
Como resulta do probatório, a Requerente celebrou um contrato que cabe na noção residual de prestação de serviços prevista no artigo 4.º, n.º 1, do Código do IVA. No entanto, com referência a esse contrato, foram sendo estabelecidos sucessivos períodos de dispensa de pagamento do preço, através de três aditamentos contratuais, não tendo existido faturação de quaisquer valores a título de cessão da exploração do estabelecimento industrial em causa.
Com efeito, o referido contrato produziu os seus efeitos jurídicos no dia 1 de maio de 2015, tendo sido convencionado um primeiro aditamento no dia 28 de março de 2016, no qual se acordou a dispensa de pagamento das prestações nos “dois primeiros anos, contados desde 1/5/2015”. Tratando-se de um contrato anual, ainda que passível de renovação por iguais períodos se não fosse denunciado com a antecedência mínima de 60 dias, a cessionária podia denunciar o contrato após a primeira renovação, ficando a cedente privada de qualquer retribuição devida pela “cessão”, caso tal viesse a acontecer. Esta composição contratual inculca, de forma manifesta, a existência de uma liberalidade relativamente à empresa cessionária, sendo que, com essa liberalidade, verificou-se a afetação material do imóvel a um fim alheio à empresa cedente que sem razão atendível “prescindiu” de receber quaisquer valores, inexistindo qualquer faturação – et pour cause, imposto liquidado – à cessionária. E este juízo acaba por ser confirmado pelos subsequentes aditamentos contratuais que dispensaram a cessionária de qualquer pagamento.
Da mesma sorte, as razões que se fizeram constar dos aditamentos para a “dispensa do pagamento” confirmam um claro animus donandi, porquanto as eventuais dificuldades económicas da cessionária – não provadas, de resto –, ainda que pudessem determinar um acordo de pagamentos ou até um perdão de dívida, não seriam, semel pro semper, obstáculo à faturação dos serviços em causa, o que não tendo acontecido, não se deveu, et pour cause, qualquer situação externa à Requerente. Trata-se, em todo o caso, de um contexto que não encontra acolhimento nos usos comerciais, mas que acaba por traduzir-se numa liberalidade sem qualquer conexão com a atividade empresarial do sujeito passivo. Nesta ótica, a Requerida tem razão quando refere que os encargos suportados pela Requerente acabaram por ser incorridos em benefício de uma outra entidade a cessionária, não tendo existido qualquer contrapartida (sujeita a IVA) em favor da Requerente, por opção desta.
Como tem sido reconhecido pelo TJUE, a “Administração Fiscal pode pedir ao sujeito passivo que prove que a sua intenção [de realizar operações tributadas] é confirmada por elementos objetivos e pode, em situações fraudulentas ou abusivas em que o sujeito passivo simulou querer desenvolver uma atividade económica concreta (...) a restituição dos montantes deduzidos, pois tais deduções foram obtidas mediante falsas declarações (v., nomeadamente, Acórdãos de 14 de fevereiro de 1985, Rompelman, 268/83, EU:C:1985:74, n.o 24; de 29 de fevereiro de 1996, INZO, C‑110/94, EU:C:1996:67, n.os 23 e 24; e de 8 de junho de 2000, Breitsohl, C‑400/98, EU:C:2000:304, n.o 39 e jurisprudência aí referida). No caso concreto, confrontado com a existência de uma liberalidade e perante a recusa da dedução do imposto, a Requerente veio invocar que os sucessivos acordos visaram “compensar” a cessionária por prejuízos sofridos e transtornos causados por avarias nos equipamentos, que impediam o cessionário de desenvolver normalmente a sua atividade e obter a necessária liquidez para o cumprimento do contrato. Porém, esta justificação – que surge de forma inédita com o pedido de pronúncia arbitral – não foi dada como provada, sendo que jamais constituiu fundamento dos sucessivos aditamentos contratuais, como seria expectável que acontecesse, pelo que a Requerente não logrou justificar em que medida a sua atuação encontra justificação face à atividade económica da empresa de forma a que a dedução do IVA tivesse respaldo legal; por outras palavras, não provou os pressupostos de facto do exercício do direito à dedução nem conseguiu afastar aqueles com base nos quais a AT estribou a sua liquidação.
Destarte, conclui-se que, tendo o imóvel relativamente ao qual se pretendiam deduzir os valores de IVA suportados sido afeto, no âmbito do contrato de cessão de exploração industrial, a uma finalidade alheia à empresa, qual seja a de proporcionar a um terceiro, durante o período de execução do contrato, a fruição de um estabelecimento industrial sem qualquer remuneração ou contrapartida, não pode existir dedução daqueles valores.
6. Decisão
Atento o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
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Absolver a Requerida da instância relativamente à anulação da liquidação de IRC de 2018, restringindo à apreciação da legalidade da liquidação de IVA, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 6, do CPTA, o pedido que a Requerente pretendeu ver apreciado no processo;
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Julgar improcedente o pedido de anulação das liquidações de IVA relativas aos períodos de janeiro, fevereiro, março, abril, maio, julho, agosto, setembro, outubro e dezembro, de 2018;
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Condenar a Requerente nas custas processuais infra determinadas.
7. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária atribui-se ao processo o valor de € 75 100,44.
8. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2 448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Lisboa, 27 de dezembro de 2023,
Fernando Araújo (Presidente)
Fernando Manuel dos Santos Cardoso
João Pedro Rodrigues
[1] É por esse motivo que alguns autores referem que o exercício do direito à dedução pode mesmo qualificar-se “como obrigação imposta ao sujeito passivo, sob pena de se desvirtuarem as características do imposto e as vantagens que a sua construção jurídica apresenta no funcionamento da economia” – nesse sentido, v. Maria Odete Oliveira, João Seixas Cambão, “Exclusões, restrições, limitações e outras complicações em matéria de direito à dedução no Imposto sobre o Valor Acrescentado”, cit., pp. 47-48, em resposta à questão de saber se o exercício do direito à dedução constitui uma faculdade ou um dever do sujeito passivo do imposto.