Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 408/2023-T
Data da decisão: 2024-01-08   Outros 
Valor do pedido: € 375.149,68
Tema: CSR - Contribuição Serviço Rodoviário – Ilegitimidade do requerente (art. 18.º, n.º 3 e n.º 4, al. a), da LGT)
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Sumário:

A requerente não é o sujeito passivo da Contribuição do Serviços Rodoviário; está a jusante do sujeito passivo na cadeia económica; em termos jurídicos, não é um terceiro substituído, nem sofre o imposto por repercussão legal; nem é tão pouco o consumidor. Pelo que não tem legitimidade para a presente ação tributária, nos termos do art. 18.º, n.º 3 e 4, al. a), da LGT.

 

Decisão arbitral

 

Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (Presidente), Prof. Doutor Tomás Cantista Tavares (relator) e Dr. Marcolino Pisão Pedreiro, designados pelo CAAD para formar o Tribunal Arbitral coletivo, constituído em 14/8/2023, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

A... – TRANSPORTES, LDA., titular do número de identificação fiscal …, com sede na Rua …, n.º …, …, … Trofa (doravante A... ou requerente), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n,º 1, al. a), 5.º, n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, al. a), todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), solicitando a declaração de ilegalidade dos atos de repercussão da contribuição do serviços rodoviário (doravante CSR) consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela requerente no período compreendido entre 25/1/2019 e 31/12/2022, e bem assim das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela ATA com base nas DIC submetidas pelas respetivas fornecedoras de combustíveis, determinando-se, nessa medida, a sua anulação com as demais consequências legais, designadamente, com o reembolso à requerente de todas as quantias suportadas a esse título, acrescidas dos respetivos juros indemnizatórios.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT. Os árbitros comunicaram a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a sua designação.

O tribunal arbitral foi constituído em 14/8/2023.

A AT efetuou resposta, por exceções e impugnação. Em relação às exceções, a requerente efetuou resposta escrita, em respeito do contraditório.

Foi dispensada a reunião do 18.º do RJAT, por economia processual e proibição de atos inúteis.

As partes efetuaram alegações escritas, reproduzindo, no essencial as posições apresentadas nas suas peças anteriores.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

1. A Requerente é uma sociedade comercial com sede em território nacional, que exerce, a título principal, atividade de transportes de mercadorias no mercado nacional e internacional.

2. Entre 25/1/2019 e 31/12/2022, a Requerente adquiriu às referidas fornecedoras de combustíveis um total de 7.846.104,02 litros de gasóleo rodoviário gasóleo rodoviário (Docs. 1 a 8 do RI): i) 6.891.790,69 litros de gasóleo rodoviário à B...; ii) 190.533,31 litros de gasóleo rodoviário à C...; iii) 136.500,47 litros de gasóleo rodoviário à D... e iv) 3.734,02 litros de gasóleo rodoviário à E....

3. Essas empresas petrolíferas liquidaram e pagaram ao Estado o valor da CSR em causa.

4. Em 25/1/2023, a requerente apresentou pedido de promoção de revisão oficiosa com vista à anulação das liquidações de CSR dos seus fornecedores (B..., C..., D... e E...) e dos consequentes atos de repercussão consubstanciados nas faturas emitidas pelas fornecedoras referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela Requerente a essas empresas, no referido período de 25/1/2019 e 31/12/2022, no valor total de € 375.149,68.

5. A requerente alega que suportou a quantia global de € 870.917,55 a título de CSR; que recuperou a quantia total de € 495.767,87, ao abrigo do regime de reembolso parcial de impostos sobre combustíveis para as empresas de transportes de mercadorias, pelo que o valor da ação e do seu pedido é apenas a diferença entre esses dois valores, no montante de € 375.149,68

6. A requerente presumiu o indeferimento tácito da reclamação graciosa e, perante isso, deduziu a presente ação arbitral.

 

2.2. Factos não provados

A requerente não logrou provar que suportou o tributo sobre o qual vem efetuar a presente ação arbitral.

Não se provou, igualmente, que as empresas petrolíferas não encetaram quaisquer processos judiciais com vista à eventual devolução do CSR que pagaram ao Estado.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada e com relevância para a decisão (art. 123.º, n.º 2, do CPPT e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. a) e e) do RJAT.

Os factos provados estão assentes pelas partes e constam de documentos (não impugnados pelas partes).

Em relação ao facto não provado, a requerente limitou-se a juntar declarações genéricas dos seus fornecedores de combustíveis, que estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à exata e concreta comprovação, quer dos montantes de CSR repercutidos à requerente pelos períodos em causa (o que permitiria a respetiva conexão aos atos tributários que constituem objeto desta ação arbitral), quer de que a requerente suportou de facto o imposto e em que medida (ou seja, de que não o repassou, por seu turno, total ou parcialmente, aos seus clientes).

Em relação ao último facto não provado, a AT colocou a questão de que os fornecedores de combustíveis estariam a encetar contenciosos com vista ao reembolso de CSR que consideram ilegais, como sujeitos passivos desse tributo – e assim o contencioso da requerente poderia ser uma duplicação de pedidos; e a requerente não logrou provar que  aqueles fornecedores não encetaram esses contenciosos (nem que nunca o encetarão).

 

3. Apreciação de exceções que podem obstar (ou não) ao conhecimento do mérito do presente pedido arbitral

3.1 Introdução e sequência

A questão jurídica material ou de fundo reporta-se à ilegalidade (ou não) da CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, por ser (ou não) um tributo desconforme ao Direito da União Europeia, nomeadamente com o n.º 2 do artigo 1.º da Diretiva 2008/118/CE, de 16/12/2008, tendo por base o entendimento sufragado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia de 7/2/2022, no proc. C-460/21.

Porém, na resposta, a requerida invoca várias exceções (muito bem resumidas na réplica da requerente), que, a proceder alguma, obstam ao conhecimento do pedido – e que, por isso, são de decisão prévia e antecedente:

a) Ineptidão da Petição inicial por falta de objeto e alegada intempestividade dos pedidos de revisão oficiosa que antecedem a presente ação arbitral);

b) Incompetência relativa do tribunal arbitral em virtude da violação da portaria de vinculação e incompetência absoluta em razão da matéria – dado tratar-se de uma contribuição financeira e não de um imposto (e o CAAD só poderia analisar as questões relativas a impostos)

c) Ilegitimidade da Requerente no âmbito da presente ação arbitral;

d) Incidente de intervenção provocada – preterição de litisconsórcio necessário;

A Sentença tem de conhecer, em primeiro lugar, estas questões – as quais, a proceder, algum delas, prejudicam o conhecimento das restantes (das questões materiais suscitadas nos presentes autos) – cfr. art. 608.º do CPC. E seguir-se-á a ordem supra indicada, atenta a sua precedência lógica.

 

3.2. A posição das partes

Efetua-se, de seguida, a súmula dos argumentos das partes, sem prejuízo de mais desenvolvimentos aquando da decisão destes temas na Sentença.

 

3.2.1. Sobre a alegada ineptidão da petição inicial

A requerida invoca, em síntese, que a Requerente não teria cumprido o ónus que sobre si impendia de identificar o objeto da presente ação, na medida em que não juntou aos autos, nem identificou, os atos de liquidação de CSR praticados pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos identificados no artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, concluindo pela consequente ineptidão do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente.

A Requerente riposta, dizendo, em suma, que esses atos estão corretamente identificados (e a AT tem em seu poder toda a informação): os atos de liquidação de CSR efetuados pelos fornecedores, B..., D..., C... e E..., identificados em período temporal determinado e por eles liquidados e pagos e os atos ulteriores de repercussão desse imposto sobre a requerente.

 

3.2.2. Quanto à (in)competência do tribunal arbitral

A requerida argui, em síntese, que a CSR é uma contribuição financeira, pela sua designação, e natureza jurídica – que visa tributar um grupo de sujeitos que presumivelmente mais beneficiam ou causam a atividade de prossecução de interesse público geral das Estradas de Portugal. E assim sendo, o CAAD apenas tem competência para o contencioso de impostos e não de contribuições financeiras, nos termos do art. 2.º do RJAT e sobretudo no art. 2.º da portaria de vinculação.

A requente, por seu turno, entende que a CSR é na realidade um imposto ou uma contribuição especial (que, por lei, são considerados impostos – art. 4.º, n.º 3, da LGT); e, por isso, o tribunal arbitral é competente para resolver o caso dos presentes autos.

 

3.2.3 Quanto ao tema da ilegitimidade da requerente

A requerida invoca a exceção de ilegitimidade da requerente para a presente ação, com base, em síntese, no seguinte: o requerente não tem legitimidade para a presente ação; não é o sujeito passivo desse tributo, nem substituído (terceiro em relação de substituição fiscal); sofre o imposto, não por repercussão legal (o art. 5.º da Lei 55/2007 não remete para o artigo 2.º do CIEC), mas eventualmente como qualquer agente tenta repercutir os seus gastos sobre terceiros (sem cobertura jurídica legitimadora em termos fiscais); e não é sequer o consumidor final. Donde não teria legitimidade, por força do art. 18.º, n.º 3 e 4.º, al. a), da LGT. Não tem, pois, qualquer posição subjetiva legitimadora da intervenção na presente ação, nem conseguiu provar um qualquer interesse legítimo. Para além de que a legitimidade para efetuar revisão oficiosa (ou solicitar a AT para a efetuar) se circunscreveria aos sujeitos passivos, como decorre expressamente do art. 78.º, n.º 1, da LGT.

A Requerente respondeu a esta exceção em requerimento autónomo, com base, em súmula, nos seguintes argumentos: a) a requerente sofre a ablação do imposto por repercussão legal, nos termos do art. 18.º, n.º 4, al. a), da LGT, b) a requerente sofre o imposto por repercussão legal, por interpretação do art. 3.º e 5.º da Lei 55/2007; c) aliás, essa é a lógica do tributo – que sejam os sujeitos a jusante na cadeia dos produtos petrolíferos rodoviários a suportar o imposto; d) o art. 78.º, n.º 7, da LGT refere-se a “contribuintes” que é uma expressão lata e aberta, mais vasta que os sujeitos passivos e confere legitimidade à requerente; e) se a requerente não tivesse legitimidade, tal envolveria a violação do direito da união europeia, pois os repercutidos devem ter a possibilidade de dirigir o seu pedido de reembolso diretamente contra as autoridades fiscais, devendo os Estados Membros, prever, para o efeito, os instrumentos e modalidades processuais necessários; e) nunca haveria o risco de dois pedidos cumulativos do CSR por parte da requerente e fornecedor de energia, porque a AT conhece todos os processos e evitaria isso mesmo.

 

3.2.4 Incidente de intervenção provocada – litisconsórcio necessário;

Segundo a requerente, a título subsidiário, caso o tribunal considere que a requerente tem legitimidade para a presente ação arbitral, vem então suscitar o incidente de intervenção principal provocada dos sujeitos passivos da CSR em causa – pois os sujeitos passivos são os únicos com legitimidade para contestar as liquidações em casa; mas como a requerente não o efetuou (com a intervenção de contrainteressados) e como tal não pode ser impositivo na arbitragem tributária – se essas entidades não se quiserem juntar ao processo, então a presente ação não pode ser julgada, por ser inviável a obtenção de uma solução global e justa para o presente litigio.

A requerente refuta esta argumentação, pois ao defender que possui total legitimidade para a presente ação, como repercutido legal, então não é necessária também a intervenção processual dos sujeitos passivos do imposto. 

 

3.3. Decisão

3.3.1 Quanto à ineptidão do pedido de pronúncia arbitral

Improcede a arguida ineptidão, pois não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do Código de Processo Civil (“CPC”), nomeadamente, a falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, ou a contradição entre estes, nem a falta dos requisitos previstos no artigo 78.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”). A requerente faz referência às liquidações de CSR dos seus fornecedores de gasolina e gasóleo rodoviário, da melhor forma que o pode fazer. E são esses os atos sindicados no processo. Questão distinta é a de saber se a ação proposta tem condições de procedência, o que, porém, constitui discussão alheia à ineptidão e se prende com o mérito.

 

3.3.2 Quanto à competência do tribunal arbitral

O Tribunal é competente para conhecer da ilegalidade de liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), por se tratar de um imposto, em linha com a argumentação constante da decisão do processo arbitral 304/2022-T, de 5 de janeiro de 2023, a que se adere e se reproduz, com a devida vénia.

Início de citação:

Baseando-nos em todas os anteriores contributos jurisprudenciais e doutrinários, mas sobretudo no último acórdão citado do STA, concluímos que não é o simples facto de um tributo ter, desde logo, a designação de “contribuição” (ac. TC nº 539/2015) e nem o facto de esse tributo ter a respetiva receita consignada (ac. TC nº 232/2022), que o qualifica automaticamente como “contribuição financeira”; antes é, para tal, necessário, como judicia o STA, que esse tributo tenha com finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”

Com efeito, o sistema tributário comporta tributos que têm a designação de “contribuições” e são verdadeiros impostos, como se extrai, desde logo, do n.º 3 do art.º 4.º da LGT.

Por outro lado, o sistema tributário comporta igualmente impostos que, ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos (estabelecido no art.º 7.º da Lei de Enquadramento Orçamental[5]), têm a sua receita consignada (vg. ac. TC nº 369/99, de 16.06.1999, proc. 750/98).

Por conseguinte, nem o nomen juris “contribuição”, nem a afetação da receita a uma finalidade específica são suficientes para qualificar um tributo como “contribuição financeira”.

O elemento decisivo para essa qualificação é a existência de uma estrutura de comutatividade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita e os sujeitos passivos do tributo.

A mesma conceção encontra-se plasmada no acórdão do TC nº 232/2022 (de 31.03.2022, proc. 105/22, relator J.E. Figueiredo Dias), em que o tribunal afirma:

“[E]sta linha divisória estabelece-se entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade/causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos (...)”[6]

E o tribunal acrescenta nesse mesmo aresto, com particular importância para a questão que nos ocupa no presente processo:

“(...) acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários”.[7]

Ou seja, para que possamos afirmar estar-se perante uma “contribuição financeira”, é necessário que as prestações públicas que constituem a contrapartida coletiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respetivos sujeitos passivos.

Confrontemos esta construção, totalmente amparada na jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, bem como na doutrina por estes citada, com o decidido no processo arbitral nº 629/2021-T (decisão de 03.08.2022, relator Vítor Calvete) sobre a mesma questão de que se ocupa o presente processo arbitral.

A decisão arbitral cita Filipe de Vasconcelos, nos seguintes termos:

“(...) [O] nexo bilateral que subjaz ao respetivo facto tributário [tem] caráter derivado, já que resulta de uma presunção de benefício ou utilidade na esfera dos sujeitos passivos, por pertencerem ou integrarem, num determinado intervalo de tempo, um grupo, tendencialmente homogéneo de interesses”, (...) “homogeneidade de interesses” e (...) “responsabilidade de grupo (…) que se deve ao facto de os sujeitos passivos deste tipo de tributo partilharem um ónus ou responsabilidade de custeamento ou suporte da atividade pública que não pode atribuir-se isoladamente, mas apenas em face daquela que é a respetiva inserção no grupo a que efetivamente pertencem.”[8]

Cita ainda Suzana Tavares da Silva, nos seguintes termos:

“(...) [A] A. recorre, para a delimitação dos contornos das contribuições financeiras, aos critérios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional Alemão:  “1) incidir sobre um grupo homogéneo; 2) manter uma proximidade com a obrigação tributária e as suas finalidades; 3) corresponder a uma relação encargo/benefício capaz de demonstrar que as receitas geradas são fruídas pelos membros do grupo” (p. 91).”[9]

Concluindo o Tribunal:

“(...) o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas coletivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária.”

A conclusão a que chegámos acima, com base na jurisprudência quer do Tribunal Constitucional quer do Supremo Tribunal Administrativo, mostra-se plenamente coincidente com a decisão arbitral citada.

Entendemos, assim, que o que distingue uma “contribuição financeira” de um imposto de receita consignada é a necessária circunstância, de, na primeira, a atividade da entidade pública titular da receita tributária ter um vínculo direto e especial com os sujeitos passivos da contribuição. Tal vínculo pode consistir no benefício que os sujeitos passivos, em particular, retiram da atividade da entidade pública, ou pode consistir num nexo de causalidade entre a atividade dos sujeitos passivos e a necessidade da atividade administrativa da entidade pública.

A Contribuição de Serviço Rodoviário não cabe em nenhuma destas hipóteses. Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007).

Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se  inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.

A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.

No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o  grupo dos respetivos sujeitos passivos.

Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.

Nos termos do nº 1 do art.º 20.º da LGT, “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”.

Para que estivéssemos, no caso presente, perante uma situação de substituição tributária, era necessário que os consumidores que pagam o preço dos combustíveis aos revendedores estivessem na posição de “contribuintes”.

Sobre o conceito de contribuintes, o nº 3 do art.º 18.º diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” De onde se retira que o contribuinte é uma das espécies da categoria “sujeitos passivos” e estes são as pessoas (ou entidades) que estão obrigadas ao pagamento da prestação tributária, o que não acontece com os consumidores dos combustíveis.

Concluímos, assim, que não estamos perante uma situação de substituição, pelo que os sujeitos passivos da CSR são igualmente os respetivos contribuintes diretos.

Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.

Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.

É ainda relevante a posição do Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, onde se lê:

 “Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspectos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança.

Com efeito, a contribuição de serviço rodoviário é devida ao Estado, na medida em que é este o sujeito activo da respectiva relação jurídica tributária, pelo que os princípios constitucionais e legais da universalidade e da plenitude impõem a inscrição da previsão da cobrança da sua receita na Lei do Orçamento do Estado de cada ano.

(...)

Face ao exposto, não se antevê suporte legal bastante, face à Constituição e à lei, para a contribuição de serviço rodoviário ser paga directamente a uma sociedade anónima, sem passar pelo Orçamento do Estado. Para além disso, o Tribunal de Contas não pode deixar de assinalar que esta situação leva a uma saída de receitas e despesas da esfera orçamental e, por consequência, da sua execução, o que conduz à degradação, nesta sede, do âmbito do controlo das receitas e despesas públicas.”

A posição do Tribunal de Contas apenas reforça a conclusão do Tribunal, já anteriormente enunciada, de que a CSR é um imposto de receita consignada.

A interpretação que adotamos é igualmente corroborada por Casalta Nabais, J., Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo, Almedina, Coimbra, 2019, p. 15, em que o Autor afirma que “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efectivos impostos, muito embora dada a titularidade activa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal.

Logo, não procede a alegada exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral em virtude da natureza do tributo, uma vez que a competência dos tribunais arbitrais abrange a apreciação das pretensões dos sujeitos passivos referentes a qualquer espécie de tributo, nos termos do art.º 2.º do RJAT; e também não se verifica a falta de vinculação prévia da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais no presente processo, por força do art.º 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que limita essa vinculação prévia às “pretensões relativas a impostos”.

Fim de citação

 

Uma última palavra, neste capítulo, sobre os atos impugnados: o tribunal não pode conhecer os atos de repercussão impugnados (dos sujeitos passivos sobre o requerente), pois não sendo atos tributários, não está prevista a sua sindicabilidade em sede arbitral, conforme indica o art. 2.º do RJAT. No entanto, como foram, em simultâneo, contestados pela Requerente os atos de liquidação de CSR é sobre estes que recai a pronúncia do Tribunal.  

 

Nestes termos, conclui-se que o tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no art. 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.

 

3.3.2 Quanto à ilegitimidade do requerente

Não consta do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, como previsto na closure rule do artigo 29.º, n.º 1 do RJAT, em concreto e de acordo com a natureza dos casos omissos, das normas de natureza processual do Código de Processo e de Procedimento Tributário (“CPPT”), do CPTA e do CPC.

A regra geral do direito processual, que emana do artigo 30.º do CPC, é a de que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar[1], sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (v. artigo 9.º, n.º 1 do CPTA).

A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário[2], cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (“LGT”), como “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.

No domínio tributário, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (v. artigo 1.°, n.º 2, da LGT).

O CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT). No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.” E o art. 78.º da LGT assegura a mesma posição de legitimidade ou ilegitimidade conferida pelas regras gerais sobre o tema.

De notar que, em relação aos responsáveis (sujeitos passivos não originários, tal como os substitutos), o legislador teve a preocupação de justificar a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Quanto aos responsáveis solidários, deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (v. artigo 9.º, n.º 2 do CPPT). No tocante aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (v. artigo 9.º, n.º 3 do CPPT). Em ambas as situações, apesar de não corresponderem à figura do sujeito passivo originário, constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias, o que sucede igualmente com o substituto.

Na situação em análise, a Requerente invoca a qualidade de repercutido legal para deduzir a ação arbitral.

Importa começar por notar que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3 da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjetiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

Neste âmbito, assinala Jorge Lopes de Sousa: “nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18.°, n.° 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face do […] respetivo regime legal, a lei exige o pagamento dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende tributar.” – v. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 115.

Jorge Lopes de Sousa assinala ainda que, em matéria tributária, “é de considerar ser titular de um interesse suscetível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser diretamente afetado pelo que nele possa vir a ser decidido, inclusivamente quando esteja em causa uma mera situação de vantagem derivada do ordenamento jurídico, o que será a interpretação que melhor se compagina com o direito constitucionalmente garantido de participação dos cidadãos nas decisões que lhes disserem respeito (art . 267.°, n.° 5, da CRP), como tal se tendo de considerar, necessariamente, todas as que tenham repercussão direta na sua esfera jurídica.” – v. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 120. Raciocínio que, atenta a identidade de razões, deve considerar-se aplicável ao processo judicial tributário.

No entanto, afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas[3] repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (v. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).

Infere-se do articulado da Requerente que esta legitima a sua intervenção processual do facto singelo de lhe ter sido repercutida a CSR pelas empresas distribuidoras de combustíveis, caracterizando-se no artigo 29.º do ppa como um “consumidor” de combustíveis, sobre o qual “recai, nos termos da lei, o encargo daquele tributo”.

Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo. Além de que a Requerente não tem a qualidade de “consumidor” de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”). Na verdade, e começando por esta última parte, a Requerente é uma sociedade que se dedica ao transporte, nacional e internacional, de mercadorias. Desta forma, o combustível adquirido é um fator de produção no circuito económico (de uma cadeia de comercialização de bens), um gasto da atividade de prestação de serviços de transporte realizada pela Requerente, não configurando um consumo final. Nestes termos, se a CSR, conforme alega a Requerente, se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida esta não faz parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos.

Acresce que, nos termos da lei que prevê a CSR [Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto], não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico, pelo que é errónea a afirmação da Requerente de que é sobre si que “recai, nos termos da lei, o encargo daquele tributo [da CSR]”. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1 da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.[4] Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma. Ou seja, o referido art. 5.º, n.º 1, não remete para o art. 2.º do CIEC (que prevê a repercussão legal nos impostos especiais sobre o consumo), mas apenas para as normas desse código que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.

Quer dizer: interessa também assinalar, com relevância para esta questão, que a remissão para o Código dos Impostos Especiais de Consumo efetuada pela Lei da CSR é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”.

Sintetizando sobre o que até aqui se discorreu:

  1. A Lei n.º 55/2007 define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;
  2. A Requerente não é consumidor final, o que significa que os gastos em que incorre são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;
  3. Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis à Requerente, não há razões para crer que esta, no exercício de uma atividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenha também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes, que nem sequer são os consumidores finais (os próprios clientes).

 

Ora, não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., que evidencie um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre si impende.

Contudo, o único facto que a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR. Qualifica esta repercussão, erradamente, como legal, embora não indique onde está prevista essa repercussão que, a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza, a qual, porém, não existe. O paralelismo que a Requerente estabelece entre a CSR e o IVA não tem qualquer suporte jurídico, pois a repercussão neste último imposto tem previsão legal no artigo 37.º do Código do IVA, permitindo o seu controlo e prova, dado que o imposto e respetivo montante são mencionados na fatura emitida pelo fornecedor de bens ou prestador de serviços.

Também não tem qualquer pertinência a equiparação que a Requerente pretende estabelecer entre a CSR e o Imposto do Selo que tanto pode incidir sobre o sujeito passivo originário (em relação ao qual se verifica a capacidade contributiva) como sobre outra entidade. Neste último caso, como sucede de forma paradigmática com as operações financeiras, a doutrina e jurisprudência têm qualificado o fenómeno como substituição tributária sem retenção (v., a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 25 de março de 2015, processo n.º 01080/13). Conforme atrás referido, o substituto é uma espécie do género “sujeito passivo”, logo dispõe de legitimidade ativa para demandar o Estado, além de que, à semelhança do IVA, a liquidação do imposto é perfeitamente controlável através da documentação emitida, pois, nos termos do artigo 23.º, n.º 6 do Código do Imposto do Selo, “nos documentos e títulos sujeitos a imposto são mencionados o valor do imposto e a data da liquidação, com exceção dos contratos previstos na verba 2 da tabela geral [arrendamento e subarrendamento], cuja liquidação é efetuada nos termos do n.º 8.

Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo, contrariamente ao que a Requerente afirma (nas suas palavras o “apontado consumidor de combustível”, que, todavia, na realidade, a lei não aponta …).

Rigorosamente, a Requerente é tão-só um cliente comercial dos sujeitos passivos que liquidaram a CSR. Não é o sujeito passivo dos atos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integra, nem é parte da relação tributária, nem é repercutido legal. Também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:

  • Que a CSR foi repercutida à Requerente, qual o montante e em que períodos;
  • Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que presta aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR e em que medida, por forma a poder sustentar que suportou de forma efetiva o encargo do imposto.

A Requerente limitou-se a juntar declarações genéricas dos seus fornecedores de combustíveis, que estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. Não logrou, por isso, atestar que suportou o tributo contra o qual reage. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente ação arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal da CSR.

Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adotado um conceito irrestrito de legitimidade ativa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o ato de liquidação do imposto, a determinação da sua efetiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade. 

Por fim, em cumprimento do desiderato do direito nacional e da União Europeia, não se diga que a Requerente ficou desprovida de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma ação civil de repetição do indevido instaurada contra os seus fornecedores, se reunir os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspetiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (v. artigo 20.º da Constituição). 

De assinalar adicionalmente que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao atual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação, precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (v. Acórdão de 1 de outubro de 2003, processo n.º 0956/03).

À face do exposto deve julgar-se verificada a exceção de ilegitimidade da Requerente, constituindo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.  

 

3.3.4 Quanto ao litisconsórcio

Perante o que se disse quanto à ilegitimidade, é desnecessário o pronunciamento sobre o tema do litisconsórcio com os sujeitos passivos do imposto, nos termos do art. 608.º do CPC, e porque prejudicada pela decisão dada ao tema da ilegitimidade. 

 

4. Decisão

À face do exposto julga-se verificada a exceção de ilegitimidade da Requerente, constituindo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

 

5. Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 375.149,68.

 

6. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 6.426,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

Notifique-se

Porto, 8 de janeiro de 2024

 

Os Árbitros

 

Dra. Alexandra Coelho Martins (Presidente),

 

 

 

 

Prof. Doutor Tomás Cantista Tavares (relator)

 

 

 

 

(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária)

 

 

Voto de vencido do árbitro Marcolino Pisão Pedreiro

 

Não acompanho a decisão que fez vencimento, no sentido de que a Requerente é parte ilegítima para o presente pedido de pronuncia arbitral, pelas razões que passo a enunciar.

 

Para decisão da questão da legitimidade da impugnante, afigura-se-me ter especial relevo  o seguinte:

  1. De  acordo com o art. 2º  da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto “O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP – Estradas de Portugal, E.P.E., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável
  2. Nos termos  do previsto no artigo 3.º, “a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como está verificada pelo consumo dos combustíveis

 

Daqui resulta  que a lei pretende tributar os consumidores de combustíveis, como utilizadores da rede rodoviária nacional. A repercussão a estes da CSR foi o propósito do legislador pelo que, na minha opinião,  esta repercussão é legal, no sentido de prevista e querida pelo ordenamento jurídico (embora não obrigatória  diferentemente do que sucede em IVA).

Acresce que, com a entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro (diploma que também  extinguiu a CSR), o legislador introduziu no artigo 2.º do CIEC uma referência expressa à imposição legal de repercussão dos impostos especiais de consumo, tendo, no artigo 6.º da referida de Lei, sido atribuída natureza interpretativa a tal alteração legislativa. Tal corresponde ao reconhecimento pelo legislador tributário de que a repercussão sempre decorreu da Lei nos impostos especiais de consumo, no qual se enquadrava materialmente a CRS. Por outro  lado, a repercussão é ainda, no meu entender, num sentido amplo,   atinente à liquidação, cobrança e pagamento a que se refere o art. 5º, nº 1, da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto pelo que, também por esta razão, sempre lhe seria aplicável o art. 2º do CIEC na nova redação com natureza retroativa.

Assim, a natureza legal  da repercussão do imposto que, no meu entender,  já resultava clara dos  arts. 2º e 3º  da Lei n.º 55/2007,  veio a ser (se necessário fosse) confirmado ou reforçada  pelo art. 2º do CIEC, na redação do Redação dada Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro.[5]

A meu ver, e salvo o devido respeito por opinião em contrário,  trata-se, pois, como referido,  de repercussão jurídica, que deve equivaler ao conceito de  “repercussão legal”, expressão que interpreto no sentido de repercussão prevista e querida pelo legislador e que leva a que o imposto seja suportado por  aquele cuja capacidade contributiva   a lei visou tributar.

Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa escreveu o que se segue, ainda antes da alteração legislativa de que resultou a atual redação  do art. 2º do CIEC, e que não continha a referência à repercussão:

Nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele  que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o do direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18º, nº 4, da LGT]. São casos de repercussão legal  os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face dos  respetivos regimes legais, a lei exige o pagamentos dos tributos aos  intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende Tributar” [CPPT, anotado e comentado, Vol. I, 2006, pag. 106 (anotação ao art. 9º)]

Na mesma linha, escreveram   Serena Cabrita Neto e  Carla Castelo Trindade ( também, antes da alteração legislativa de que resultou a atual redação  do art. 2º do CIEC):

Há que referir ainda os casos  de repercussão legal do imposto. Esta verifica-se em se de IVA e de impostos especiais de consumo”. (“CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO”, Volume I, Almedina, 2017, p. 98).

Assim, considero que do art. 18º, nº 4, al. a) resulta, desde logo, a consagração do direito à impugnação por parte dos consumidores/utilizadores de combustíveis, como   repercutidos.

Mesmo que assim não fosse e  se considerasse que os  consumidores de combustíveis utilizadores da rede rodoviária nacional não suportam a CSR  por repercussão legal, consideraria  que,  face ao art. 9º, nºs  1, “in fine”, e 4,  do CPPT, ao princípio da tutela judicial efetiva, a Requerente tem legitimidade processual.

Efetivamente, parece-me que, face a estas regras e princípios, alegando a Requerente ter suportado por repercussão um imposto cujo regime jurídico visa  tributar a sua capacidade contributiva, não existe fundamento jurídico  para que lhe seja negado  o direito de invocar a sua ilegalidade e impugnar o tributo na jurisdição fiscal, com base em pretensa ilegitimidade processual, tanto mais  que, nos termos do art. 7º do CPTA, aplicável ex vi art. 29º, nº 1, al. c) do RJAT e por força do princípio da tutela judicial efetiva “Para efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”.

 

Questão distinta, será, em sede de apreciação do mérito da causa,  a questão da prova da efetiva repercussão e de quem suportou efetivamente o imposto. [6]

 

Porém, na  decisão  considera-se que:

Também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:

  • Que a CSR foi repercutida à Requerente, qual o montante e em que períodos;
  • Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que presta aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR e em que medida, por forma a poder sustentar que suportou de forma efetiva o encargo do imposto.

A Requerente limitou-se a juntar declarações genéricas dos seus fornecedores de combustíveis, que estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. Não logrou, por isso, atestar que suportou o tributo contra o qual reage. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente ação arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal da CSR. “

 

Não entendo que para que a impugnante seja considerada parte legitima seja necessário que a Requerente demonstre que o imposto lhe foi repercutido, afigurando-se-me que tal demonstração é apenas relevante para apreciação do mérito da causa.

 

Para aferição da legitimidade, no meu entender,   releva apenas a relação controvertida tal como é configurada pela Requerente (art. 30º, nº 3, “in fine” CPC) ou, em termos substancialmente equivalentes, na expressão do CPTA, “o autor é parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida” (art. 9º, nº 1, do CPTA).

Como explicam Mário Aroso de Almeida-Carlos Alberto Fernandes Cadilha:

“Através da mesma fórmula verbal ­– e à semelhança do que já sucedera com a nova redacção dada ao nº 3 do artigo 26º do CPC (resultante da reforma de 1996) – o artigo 9º, nº 1, toma posição explícita sobre a velha querela relativa ao critério de determinação da legitimidade, dando agora como assente que a legitimação processual é aferida pela relação controvertida tal como é apresentada pelo autor.” [7] (COMENTÁRIO DA CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS, Almedina, 2ª edição revista – 2007).

 

Ainda que se entendesse que a legitimidade não é aferida pela relação controvertida tal como apresentada pelo autor e que a mesma não deve abstrair da efetiva titularidade do direito, conforme se discutia no domínio do CPC de 1961[8], entendo que, face às declarações apresentadas, subscritas pelos  fornecedores de combustível, em que estas genericamente declaram ter repercutido o Imposto à Requerente e que não foram objeto de impugnação nem de contraprova por parte da Requerida, em conjugação com as regras da experiência e da indicação da própria lei que aponta no sentido de    que o imposto deve ser suportado pelo contribuinte que utiliza o combustível, e na ausência de indicação de qualquer elemento fáctico concreto em sentido contrário por parte da Requerida, seria, pelo menos para aferição da legitimidade, suficiente para que se considerasse, a meu ver, feita prova bastante da repercussão.

Na verdade, à luz das regras da experiência não se vislumbra qualquer razão para que os fornecedores de combustíveis procedessem à declaração de que repercutiram o tributo a quem a própria indica que o deve suportar, caso tal declaração não correspondesse à realidade. A circunstância das declarações serem genéricas, e não fornecimento a fornecimento e, em algumas delas, não constar período temporal,  deve ser entendido, no meu modo de ver, no sentido de que se reportam a todas os fornecimentos de combustíveis efetuados por essas entidades  à Requerente. Mas, a não se entender assim, considero  sempre poderia o Tribunal, ao abrigo da al. e) do art. 16º do RJAT e do art. 99º, nº 1, da LGT, notificar a Requerente para juntar aos autos documentos complementes com os elementos julgados necessários  ou  diretamente aquelas entidades declarantes a fim de serem prestados os esclarecimentos adicionais julgados pertinentes (sobre a sintonia entre a al. e) do art. 16º do RJAT e do art. 99º, nº 1, da LGT, cfr. Jorge Lopes de Sousa, GUIA DA ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA, Coord. Nuno de Villa-Lobos-Tânia Carvalhais Pereira, Revisto e atualizado, 2ª Ed., 2017, pag. 188).

 

Por outro lado, também não é de considerar, no meu entendimento,  que incumbe ao impugnante demonstrar que “o preço dos serviços de transportes que presta aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR”.

 

Conforme consta da decisão proferida pelo TJUE no processo de 7.02.2022 no C‑460/21:

 

 

 

“46

.O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C‑441/98 e C‑442/98EU:C:2000:479, n.o 42).”

 

 

 

No meu entender, por identidade de razão relativamente ao sujeito passivo (senão mesmo  por maioria dado que, como referido, o imposto está configurado para ser suportado pelo utilizador/consumidor de combustíveis, por repercussão) estas considerações são aplicáveis ao repercutido no caso de, por reconhecimento do sujeito passivo ou por outro meio de prova, ter ficado demonstrada a repercussão do imposto para o contribuinte cuja capacidade contributiva a lei visa tributar. 

 

É esta a solução que decorre, também, do artigo 74º, nº 1 da Lei Geral Tributária e do artigo 342º, nº 2, do Código Civil.

 

Por último, salvo o devido respeito por opinião em contrário, entendo que improcede a tese  de que está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva, invocando-se para o efeito que a possibilidade do ressarcimento da Requerente ser efetivado ação civil de repetição do indevido instaurada contra os seus fornecedores, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10.

Mesmo que se entendesse que o direito de acesso à justiça relativa à jurisdição fiscal  pudesse ficar satisfeito por um acesso sucedâneo à jurisdição civil numa ação interposta contra entidade que se limitou a cumprir lei vigente e que, em princípio, nenhum ganho obteve (apenas repercutiu o que previamente pagou ao Estado), no caso do Direito Português, face ao artigo 476º do Código Civil, afigura-se que tal possibilidade, na prática, não existe, na medida em que não ocorre nenhuma das situações previstas no mesmo.

Com efeito, dispõe o art. 476º, nº 1, do CC que “Sem prejuízo do disposto acerca das obrigações naturais, o que for prestado com a intenção de cumprir uma obrigação pode ser repetido, se esta não existia no momento da prestação.”

Acontece que a obrigação de pagar, no momento da prestação, estava vigente na ordem jurídica, o que, no meu entender, desde logo, inviabilizaria a pretensão.

Por outro lado, sendo a repetição do indevido um caso particular da figura do enriquecimento sem causa e não havendo enriquecimento do sujeito passivo por ter pago o imposto ao Estado que cobrou ao repercutido, sempre estaria inviabilizada a repetição, também por esta razão.

Por ultimo, afigura-se-me, também, que a subsidiariedade prevista no art. 474º CC sempre constituiria, ainda,  fundamento de inviabilidade da restituição.

Nesta medida o que decorre, no meu entender, do referido acórdão, é que o princípio da efetividade impede  que um  Estado‑Membro se possa  opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, uma vez que, no caso concreto, a legislação portuguesa não prevê, na prática e com efetividade, a possibilidade do repercutido obter a devolução do imposto do sujeito passivo.

Tal constitui, na minha opinião,  mais um fundamento para a improcedência da exceção em causa.

As considerações precedentes referentes à viabilidade de ação de repetição do indevido não partem do pressuposto do sujeito passivo  ter previamente obtido da Requerida a devolução do imposto alegadamente repercutido à Requerente, ou ter proposto ação com tal desiderato, circunstâncias  que não foram alegadas no processo, nem parece que sejam plausíveis atentas as declarações dos fornecedores de combustíveis constantes do processo. A mera hipótese teórica  de tal poder ocorrer não pode, a meu ver, prejudicar o direito de acesso à justiça do Requerente, que não pode ficar  condicionado a eventualidades que de si não dependem. Por outras palavras, o direito de acesso à Justiça por parte da Requerente não pode ficar condicionado por um  eventual exercício prévio de tal direito por parte do sujeito passivo.

 

Pelas razões expostas, entendo que deveria ter sido declarada a legitimidade processual da   Requerente e julgada improcedente a exceção em causa.

 

Marcolino Pisão Pedreiro

 

 



[1] Ou em contradizer, no caso da entidade demandada.

[2] Ou, nalguns casos específicos de sindicabilidade autónoma no processo impugnatório, um ato de fixação da matéria coletável (v. artigos 2.º do RJAT e 97.º do CPPT).

 

[3] No caso, a Requerente é uma empresa sob a forma societária.

[4] Atente-se ainda que o artigo 93.º-A do Código dos Impostos Especiais de Consumo, regime para o qual remete o artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, que cria a CSR, prevê o reembolso parcial de imposto incorrido para o gasóleo e gás profissional utilizado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros, precisamente por não ser um consumo final, mas tão-só um consumo intermédio no circuito produtivo de bens e serviços.

[5] Confirmando também, a meu  ver, no caso das empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros que estas são repercutidas (conclusão extensível a qualquer contribuinte que proceda ao consumo dos combustíveis em causa)  estabelece o art. 93º-A do CIEC que “1 – É parcialmente reembolsável o imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos suportado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros, com sede ou estabelecimento estável num Estado -Membro, relativamente ao gasóleo classificado pelos códigos NC 2710 19 43 a 2710 19 48 e 2710 20 11 a 2710 20 19 e relativamente ao gás classificado pelos códigos NC 2711 11 00 e 2711 21 00, quando abastecido em veículos devidamente licenciados e destinados exclusivamente àquelas atividades.”Vd. nota 4 da presente decisão. Retiramos, todavia, conclusão diversa pois que, se a lei considera que o imposto foi suportado pelas empresas  em causa, tal implica, necessariamente, o reconhecimento legal de  o imposto lhes foi  repercutido.

 

[6]a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos” (nº 44 da decisão do TJUE proferida no processo C‑460/21).

 

[7] O art. 26º do CPC referido corresponde ao atual art. 30º do CPC.

[8] Questão que a doutrina considera hoje ultrapassada. Para além dos autores citados anteriormente no âmbito do direito processual administrativo, em sede de processo civil veja-se José Lebre de Freitas, INTRODUÇÃO AO PROCESSO CIVIL, Coimbra Editora, 3ª Ed. 2013, pag. 102-102, nota 7 e António Santos Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luis Filipe Pires de Sousa, CÓDIGO DE  PROCESSO CIVIL ANOTADO, Vol. I, 2ª Ed., 2020, vol. I, pag. 63.