DECISÃO ARBITRAL
A árbitra, Sónia Martins Reis, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 14 de Junho de 2023, acorda no seguinte:
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Relatório
A..., com o NIF ..., residente na Rua ..., n.º..., São Pedro do Estoril, doravante designada por “Requerente”, veio deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”), em conjugação com os artigos 99.º e 102.º, n.º 1, alínea d), ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Constitui pretensão da Requerente a anulação da liquidação adicional de IRS emitida sob o n.º ... e juros compensatórios, referente ao ano de 2019, no valor total de € 81.244,86, mas peticionando o pagamento do valor de apenas € 35.762,61, tal como consta do seu pedido arbitral e requerendo, adicionalmente, a anulação do indeferimento da reclamação graciosa apresentada e que foi indeferida pela AT.
Como causa de pedir, a Requerente alegou, em suma, vícios substantivos, em concreto no que concerne ao tratamento fiscal, na esfera dos sócios, no âmbito de uma dissolução e liquidação de uma sociedade.
Que a AT, salvo melhor opinião, considerou que não se tratava de uma mais valia, mas sim de um valor resultante da distribuição de lucros aos sócios e mais concretamente à contribuinte em causa.
Que não é de aceitar os cálculos da liquidação oficiosa n.º 2021... no valor de € 81.244,00, tanto mais que o sujeito passivo já liquidou o valor correspondente ao trabalho dependente no valor de € 11. 406,21.
Reconhece que houve um lapso na declaração de rendimentos do ano de 2019, tendo sido declarado na Modelo 10 em sede de IRC pelo Contabilista Certificado, como a sociedade ainda se encontrasse ativa, mas que já havia sido dissolvida e liquidada.
E que a AT considerou que a sujeito passivo havia recebido tais valores como se se tratasse uma indemnização pela cessação do contrato, ou seja rendimento do trabalho ou indemnização pelo pacto de não concorrência, no que constitui um erro a esta imputável.
E que tal correção só já foi apresentada em 2022, após ter sido feita a correção oficiosa, pois até tal data o lapso não foi detetado, uma vez que a primeira declaração de IRS foi corretamente validada.
Que os elementos da venda constam efetivamente na base de dados da AT. No que diz respeito à dissolução e liquidação, também é dado a conhecer à AT que aquela matrícula é cancelada, pelo que cessam a partir daquela data as obrigações fiscais da sociedade.
Que a mais valia foi efetivamente mal calculada e enquadrada como rendimento de trabalho e não em sede de mais-valias pela AT, peticionando pela anulação da correção oficiosa em sede de IRS para o ano de 2019, devendo apenas ser pago, porque devido, o valor de € 35.762,61.
A Requerente juntou 8 documentos.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 3 de Abril de 2023, tendo sido constituído em 14 de Junho de 2023 e tendo seguido a sua normal tramitação.
Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a árbitra do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As Partes, notificadas dessa designação, em 26 de Maio de 2023, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
A Requerida (ou “AT”) veio contestar pugnando pela extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, porquanto sustenta que foi adjudicado à sócia A..., ora Requerente, a importância de € 327.150,00, na qual está incluída a importância de € 3.070,94 correspondente ao reembolso integral das entradas no capital social e a sua quota-parte nas reservas.
E que a Requerente declarou aquela partilha no Anexo G, quadro 9, campo 9001, com o código Cod.G06, da declaração Modelo 3 relativa ao ano de 2019.
Tendo cometido um lapso, porquanto declarou incorretamente o valor de realização de 165.447,75€, quando deveria ter declarado 324.079,06€.
E que resulta que da entrega da declaração Modelo 10 submetida pela sociedade em 2020-02-10 relativa ao mesmo ano, que estes rendimentos foram declarados como se se tratasse de indemnizações e assunção de obrigações de não concorrência, o que deu origem à instauração de um procedimento de gestão de divergências no SF de Cascais-..., com a posterior emissão de DC e respetiva liquidação oficiosa (liquidação ora impugnada).
Sustenta que a declaração Mod.10 veio a ser anulada em 2022-01-15 na sequência da deteção de erro e posterior correção da situação por parte do contabilista da sociedade, uma vez que não existia a obrigação declarativa na esfera da sociedade, dado tratar-se da distribuição de verbas resultantes da liquidação da sociedade e não “rendimentos provenientes da assunção de obrigações de não concorrência”.
Face ao exposto, afirma que não restam dúvidas que a Requerente declarou no campo correto o valor atribuído em resultado da partilha da sociedade por quotas B..., Ldª, NIPC... no Anexo G, quadro 9, campo 9001, com o código Cod.G06, da declaração mod.3 relativa ao ano de 2019, e que os rendimentos declarados na Modelo 10 submetida pela sociedade em 2020-02-10, em que estes rendimentos foram declarados como se tratassem de indemnizações e assunção de obrigações de não concorrência, se tratou de mero lapso.
Pelo que, afirma, a Direção de Serviços do IRS considerou que deve ser anulada a liquidação oficiosa n.º 2021..., devendo ser emitido DC em que conste o valor de realização de 324.079,06€ e o valor de aquisição de 71.702,77€ atribuído em resultado da partilha, mantendo-se o preenchimento do quadro 9A, tendo, por despacho de 04/08/2023 da Sra. Dr.ª..., por subdelegação de competências da Senhora Subdiretora-Geral da DIRS, sido revogado parcialmente o ato tributário impugnado.
Por despacho do Tribunal Arbitral, de 21 de Setembro de 2023, a Requerente foi notificada para informar sobre o interesse no prosseguimento do procedimento arbitral, não tendo respondido ao mesmo.
Por requerimento de 20 de Outubro de 2023, a Requerida veio juntar cópia das notificações efetuadas ao mandatário da Requerente, Sra. Dra. A..., dando-lhe conhecimento da decisão de revogação parcial do acto.
O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 14 de Junho de 2023, seguindo-se a notificação prevista no artigo 17.º, n.º 1 do RJAT.
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Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.
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Fundamentação
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Dos Factos
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se consideram provados:
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A..., com o NIF..., residente na Rua ..., n.º..., São Pedro do Estoril, aqui Requerente, veio deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”), em conjugação com os artigos 99.º e 102.º, n.º 1, alínea d), ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) peticionando a anulação da liquidação adicional de IRS emitida sob o n.º... e juros compensatórios, referente ao ano de 2019, no valor total de € 81.244,86, mas peticionando o pagamento do valor de apenas € 35.762,61, tal como consta do seu pedido arbitral e requerendo, adicionalmente, a anulação do indeferimento da reclamação graciosa apresentada e que foi indeferida pela AT – cf. registo de entrada no SGP do CAAD e pedido de pronúncia arbitral (“PPA”).
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Em 11 de Abril de 2023, a Requerida foi notificada da apresentação do pedido de pronúncia arbitral – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.
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Na sua contestação a Requerida veio informar o Tribunal da junção do despacho de 04/08/2023 da Sra. Dr.ª..., por subdelegação de competências da Senhora Subdiretora-Geral da DIRS, ditando a revogação parcial do ato tributário impugnado, no sentido do sustentado pela Requerente no seu PPA – “a Direcção de Serviços do IRS considerou que deve ser anulada a liquidação oficiosa nº 2021..., devendo ser emitido DC em que conste o valor de realização de 324 079,06€ e o valor de aquisição de 71 702,77€ atribuído em resultado da partilha.” – cf. Resposta da Requerida.
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A Requerente, no artigo 24.º do seu PPA, reconhece como valor de realização da partilha o valor de € 327.150,00, menos o valor de capital social e reservas - cf. PPA
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Por requerimento de 20 de Outubro de 2023, a Requerida veio juntar cópia das notificações efetuadas ao mandatário da Requerente, Sra. Dra. A..., dando-lhe conhecimento da decisão de revogação parcial do ato – cf. requerimento da AT constante do SGP do CAAD.
Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Em virtude da anulação administrativa parcial do ato pela Requerida, apenas subsiste como eventual matéria contraditória a determinação do valor da realização atribuído em resultado da partilha, nada mais havendo a apreciar. A convicção da árbitra alicerçou-se na prova documental junta aos autos, não tendo sido identificados factos não provados com relevância para a decisão da causa.
2. De Direito
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Anulação ou “Revogação” do Ato Tributário Impugnado - Impossibilidade Superveniente da Lide
O ato tributário sindicado, que constitui o objeto principal desta ação, foi anulado administrativamente.
Nestas circunstâncias, o pedido de anulação da liquidação de IRS ficou sem objeto, pois com a anulação administrativa, os respetivos efeitos jurídicos constitutivos são destruídos com eficácia retroativa, de acordo com o artigo 171.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), verificando-se uma impossibilidade superveniente da lide. Como refere a Decisão Arbitral no processo n.º 31/2013-T, do CAAD, de 4 de novembro de 2013, “torna-se impossível juridicamente anular o que já não existe”.
Importa ter em conta que o conceito de “revogação” até à entrada em vigor do novo CPA, em 8 de abril de 2015, na sequência da aprovação do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, abrangia quer a revogação anulatória com fundamento em ilegalidade, quer a revogação por razões de oportunidade e mérito.
Com o novo CPA, o conceito de revogação administrativa ficou restrito a esta segunda modalidade. Conforme prevê o atual artigo 165.º do CPA, sob a epígrafe “Revogação e anulação administrativas”, a revogação é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade (n.º 1), e a anulação administrativa é o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade (n.º 2). É neste último segmento que se insere o ato que eliminou a liquidação de IRS em causa nos autos.
Deste modo, a revogação a que se reporta o artigo 79.º da LGT corresponde ao que hoje, à luz do CPA, se denomina de “anulação administrativa”, cujo regime consta dos artigos 163.º “Atos anuláveis e regime da anulabilidade” (anteriores artigos 135.º e 136.º); 166.º “Atos insuscetíveis de revogação ou anulação administrativas” (anterior artigo 139.º) e 168.º “Condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa” (cujo n.º 2 corresponde ao anterior artigo 141.º), todos do CPA.
Em face do exposto conclui-se que a anulação administrativa comunicada pela Requerida no processo dá satisfação à pretensão anulatória do ato tributário de IRS em crise, retirando à lide arbitral o seu objeto principal, pelo que, nesta parte, julga-se extinta a instância processual, com a absolvição da AT da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.
Porque se trata de uma anulação parcial poderia, justificadamente, subsistir a dúvida quanto ao facto de a AT referir na sua contestação que a Requerente tinha declarado incorretamente o valor de realização atribuído em resultado da partilha na sua Declaração Modelo 3 entregue em 29.06.2020, com referência ao ano de 2019.
Mas também aí não se observa matéria controversa entre Requerente e Requerida, porquanto, como reconhece a primeira no seu PPA, o valor de realização é o mesmo que sustenta a AT na sua resposta, pelo que também aqui não se reconhece disputa entre as Partes, sendo que o valor de imposto reconhecido pela Requerente como devido (€ 35.762,61) é o que resulta do afirmado pela AT na sua resposta ao considerar que se deve manter o quadro 9A preenchido pela Requerente, dado o facto de a sociedade ser uma PME.
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Responsabilidade para Efeitos de Custas
De acordo com o regime geral em matéria de custas, a impossibilidade ou inutilidade da lide é imputável à Requerida, que anulou o ato tributário ilegal após a apresentação do pedido de pronúncia arbitral pela Requerente, tendo a respetiva comunicação aos autos ocorrido após o decurso do prazo de 30 dias previsto no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT, solução que se extrai do cotejo dos artigos 4.º, n.º 5 do RCPAT, 12.º, n.º 2 do RJAT, e 527.º e 536.º, n.º 3 do CPC, neste último caso por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
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Decisão
À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
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Julgar extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide.
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Condenar a Requerida nas custas do processo, por ter dado azo à ação.
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Valor da Causa
Fixa-se ao processo o valor de € 35.762,61, por ser aquele que corresponde ao valor da liquidação adicional de IRS cuja anulação parcial se pretende, nos termos do disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1 alínea a) do RJAT, e do artigo 3.º, n, º 2, do RCPAT.
Assinala-se, como referido na decisão arbitral n.º 178/2019-T, de 20 de abril de 2020, que a determinação do valor da causa atende ao momento em que a ação é proposta (v. artigo 299.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), sendo irrelevantes, como afirma Jorge Lopes de Sousa, “as modificações de valor que possam advir da revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada ou de desistência ou redução de pedidos” – v. Guia da Arbitragem Tributária, Coord.: Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, p. 153.
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Custas
Fixa-se o montante das custas em € 1.836,00, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, uma vez que lhe é imputável a causa de extinção da instância.
Notifique-se.
Lisboa, 2 de Janeiro de 2024.
A árbitra,
Sónia Martins Reis