Sumário:
I – A fundamentação com indicação das razões de facto e de direito das correções a declarações de rendimentos e as subsequentes liquidações adicionais de IRS é obrigatória, como acontece nos atos tributários em geral.
II – A declaração dos fundamentos dos atos impugnados na Resposta da AT em processo impugnatório é extemporânea e não supre a falta de indicação dos fundamentos de facto e de direito no próprio ato ou na sua formação.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Nuno Maldonado Sousa designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular constituído em 28-02-2023, decide no processo identificado nos seguintes termos:
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Relatório
A..., com domicílio na ... n.º ... ...-... ...- Barcelos, doravante designada por “Requerente”, titular do número de identificação fiscal ..., requereu a constituição de tribunal arbitral ao abrigo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”), regime de que são em especial aplicáveis as suas normas que constam do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, e os termos do artigo 15.º.
A Requerente pretende ver apreciada a liquidação 2022 ... de 25/11/2022 no valor de 2.903,91 € do IRS do ano de 2021, peticionando a sua anulação, a restituição do imposto que alega, entretanto, ter pagado e a satisfação de juros indemnizatórios. Fundamenta o seu pedido na falta de fundamentação das alterações à sua declaração de rendimentos, por errada quantificação e qualificação dos rendimentos que obteve, nomeadamente na falta de consideração pela Autoridade Tributária e Aduaneira de gastos que despendeu para a formação do rendimento, em especial gastos de natureza jurídica, de mediação imobiliária, encargos com garantia bancária e outros gastos análogos.
É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada também pelas formas abreviadas “AT” ou “Requerida”, que apresentou resposta (“R-AT”) em 13-04-2023 em que sustenta a liquidação, com base na natureza dispensável e meramente facilitadora dos serviços jurídicos e na falta de contributo para a valorização considerados como gasto da operação tributada pela Requerente e que só devem ser considerados os encargos “intrínsecos ao bem objeto da transação e que interfiram reflexamente no seu valor de mercado” e falta de imprescindibilidade e necessidade intrínseca dos custos com garantia bancária prestada. Acrescenta ainda que a Requerente não recorreu previamente à via graciosa e que o eventual direito a juros indemnizatórios só poderá ocorrer depois de “ter ficado demonstrado no processo que esse facto está afetado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Tributária”, o que considera não ter ocorrido. Conclui que o pedido do Requerente deve ser julgado improcedente, por não provado e a AT absolvida do pedido.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi feito em 27-12-2022 e aceite pelo Presidente do CAAD no dia seguinte, e que dele notificou a Requerida em 28-12-2022.
O árbitro signatário manifestou a aceitação das suas funções no prazo legal. Em 10-02-2023 as Partes foram notificadas da designação do árbitro para constituir o Tribunal Arbitral e não manifestaram intenção de o recusar, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 28-02-2023 e o prazo para a decisão foi sucessivamente prorrogado e fundamentado pelo Tribunal Arbitral em 14-07-2023 e em 27-10-2023, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT.
No decurso do processo foi realizada em 12-09-2023 reunião com as Partes, representadas pelos seus Ilustres mandatários e foram apresentadas por ambas alegações sob forma escrita.
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Saneamento
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, em subordinação com as normas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado em 27-12-2022 tendo como objeto a anulação de liquidação cujo prazo para pagamento não consta dos autos. Contudo, é possível afirmar com segurança que o documento contendo os fundamentos da correção, que deu lugar à liquidação adicional e necessariamente anterior ao próprio ato, foi notificado à Requerente em 18-11-2022[1] o que significa que entre o conhecimento dos fundamentos do ato e a propositura desta impugnação decorreram 25 dias, prazo só por si inferior àquele que é previsto na norma no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do já referido RJAT.
As partes estão devidamente patrocinadas e a Requerida goza de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo regime e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades pelo que cumpre decidi-lo.
Por despacho de 14-03-2023, trazido aos autos por requerimento da AT de 16-03-2023 a Subdiretora Geral da Requerida deliberou a revogação parcial do ato impugnado, na parte que se refere à desconsideração dos gastos com mediação imobiliária no valor total de 9.840,00 €; o Tribunal não deixará de ter em consideração esse facto superveniente, em sede de decisão.
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Decisão da matéria de facto
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Matéria assente
Para decidir a ação considera-se assente:
A Requerente adquiriu por escritura de 22 de março de 2005, o prédio rústico, à data inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o artigo..., sito na ..., ..., Barcelos, pelo preço de 84,795,64 €. (PPA, 3.º)
A Requerente procedeu ao loteamento do prédio, pelo que passou a ser constituído por 6 lotes com as seguintes áreas: (PPA, 4º, 8.º e 9.º)
- Lote 1:298 m2 (18,78 %)
- Lote 2: 274 m2 (17,28 %)
Lote 3: 267 m2 (16,84 %)
Lote 4: 259 m2 (16,33 %)
Lote 5: 214 m2 (15,70 %)
Lote 6: 239 m2 (15,07 %)
A soma da área total dos lotes é de 1.586 m2, pelo que a divisão proporcional valor de aquisição de 84.795,64 € resulta na seguinte distribuição: (PPA, 5.º)
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Lote 1: 298 m 2 (18,78%) - 15.924,62 €;
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Lote 2: 274 m2 (17,28%) - 14.652,68 €;
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Lote 3: 267 m2 (16,84%) - 14.279,59 €;
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Lote: 259 m2 (16,33%) - 13.847,13 €;
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Lote 5: 274 m2 (15,70%) - 13.312,90 €;
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Lote 6: 239 m2 (15,07%) - 12.778,70 €.
Em 15 de junho de 2021 a Requerente vendeu o Lote 3, que corresponde ao artigo matricial ... da freguesia de ..., concelho de Barcelos, pelo valor de 40.000,00 €. (PPA, 7.º e 8.º: doc. 1)
Em 11 de outubro de 2021 a Requerente vendeu o Lote 4 que corresponde atualmente ao artigo matricial ... da freguesia de ..., concelho de Barcelos, pelo valor de 40.000,00 € (PPA, 7.º e 9.º: doc. 2)
Na venda dos lotes 3 e 4 houve intervenção de mediador imobiliário com o qual foram despendidos 4.920,00 € relativamente ao Lote 3 e 4.920,00 € relativamente ao Lote 4 (PPA, 10.º: doc. 6, doc. 3 e doc. 4)
Para acompanhamento e realização das escrituras de compra e venda do Lote 3 e do Lote 4, foram prestados serviços jurídicos à Requerente pela Dra. B..., exercendo a atividade de advogada, no valor total de 500,00 €. (PPA, 11.º: doc. 7).
Para levantar o alvará de loteamento a Requerente teve de prestar a garantia bancária ..., emitida pelo Banco Santander Totta, SA, na qual despendeu a quantia de 3.776,66 €, pelo que aplicando a percentagem imputada a cada lote cabe ao Lote 3 (16,84%) 635,99 € e ao Lote 4 (16,33%) 616,73 € (PPA, 12.º, doc. 8).
Por despacho de 14-03-2023 da Subdiretora Geral da Requerida foi revogado parcialmente o ato de liquidação impugnado, na parte que se refere à desconsideração dos gastos com mediação imobiliária no valor total de 9.840,00 €. (requerimento da AT nestes autos, de 16-03-2023).
A Requerida promoveu procedimento de divergência relativamente à declaração de rendimentos de IRS do ano de 2021, que foi aberto pela necessidade dos serviços tributários confrontarem a informação constante do anexo G do modelo 3 com os elementos documentais comprovativos e a inerente realidade e por essa razão foram solicitados os documentos em questão, foi possibilitada a intervenção da Requerente, por via do direito de audição e no âmbito do principio da colaboração entre as partes, culminando na notificação à Requerente das conclusões e do seu não enquadramento no regime pretendido pela Requerente. (15. a 18. da R-AT: PA, I, pp. 5, 7-17, 18-21).
Por requerimento apresentado em 05-09-2022 a Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, a que juntou 22 documentos comprovativos, entre eles:(R-AT, 17: PA, I, pp. 55 a PA, II, p. 176)
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Fatura-Recibo dos gastos incorridos com serviços jurídicos prestados pela Dra. B..., onde se pode ler que esses serviços foram prestados “no âmbito da venda dos Lote 3 e do Lote 4” (p. 72);
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Alvará do loteamento da Câmara Municipal de Barcelos n.º .../2008, que licencia a constituição dos lotes 3 e 4 onde, entre outras menções, se pode ler: (PA, II, pp. 130-131)
Foi prestada caução a que se refere o artigo 54.º do Decreto-Lei n.º 555/99 de 16 de Dezembro, no montante de 44.138,00 Euros, mediante garantia bancária n.º..., emitida pelo Banco Santander Totta, S.A., em 21-07-2008
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Notas de débito ou extratos com referência a débitos com comissões ou resultantes da emissão, manutenção e vicissitudes de alteração de valor e extinção da garantia bancária (PA, II, pp. 132-176).
Por ofício da AT de 26-10-2022 a Requerente foi notificada em 27-10-2022 nos termos seguintes: (18. R-AT: PA, I, p. 18)
Fica por este meio notificado de que o Chefe do Serviço depois de analisar o direito de audição, relativamente ao projecto de decisão da apresentação da declaração de IRS do ano de 2021 , decidiu dar deferimento parcial ao solicitado, conforme cópia do despacho que se junta, uma vez que as despesas apresentadas não estão corretas, pelo que tem de apresentar declaração de substituição, no prazo de 15 dias após esta notificação.
Mais fica notificado que, se não cumprir aquela obrigação no prazo que lhe é concedido, os
serviços procederão de imediato à correcção das mesmas, nos termos do art 76 do CIRS.
Na documentação de suporte da decisão referida no facto anterior, elaborada pela AT, subordinada ao tema “Direito de audição nos termos do art.º 60.º da LGT”, pode ler-se, o parecer concordante do chefe de Finanças, Adjunto, o Despacho de deferimento parcial do Chefe de Finanças e ainda, para além do que mais dele consta:
(…)
3 - Assim, e depois de analisados os documentos que veio juntar ao direito de audição, verifica-se que, continuam a não ser consideradas as despesas a designar:
- Despesa de 500,00 € em nome de B..., por prestação de serviços jurídicos;
4 - As despesas com a intervenção imobiliária, nos montantes de 4.920,00€ mais 4.920,00€,
respetivamente, para a venda do artigo ... e ..., porque não coincide a Imobiliária descrita na escritura com a fatura apresentada; e
- As despesas bancárias.
(Facto adquirido por conhecimento do Tribunal durante a instrução, por consulta do PA, I, pp. 19-21).
Por ofício da AT de 15-11-2022 a Requente foi notificada para os seguintes termos:
Da análise efetuada aos documentos/alegações apresentados em sede de audição prévia, relativamente à notificação da(s) divergência(s) identificada(s) na declaração de rendimentos Modelo 3 do ano de 2021 com a identificação ..., não foram comprovados os elementos declarados pelo que por minha decisão de2022-1 1-15 foi determinada a efetivação da(s) seguinte(s) correção(ões):
Retificado os montantes das despesas mencionadas no anexo “G” para os montantes de 7.854,41 € e 7.609,26 €, respetivamente.
Decorrente dessa(s) alteração(ões) aos valores declarados, será V. Ex.ª oportunamente notificado da liquidação do correspondente imposto, da qual poderá reclamar/impugnar nos termos do artigo 140° do Código do IRS e artigos 68º/99º e segs. do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
(Facto adquirido por conhecimento do Tribunal durante a instrução, por consulta do PA, I, pp. 19-21).
Em 19-11-2022 foi elaborada e considerada para efeitos da liquidação impugnada, declaração oficiosa de rendimentos em IRS, modelo 3, onde consta inscrito que o valor de despesas e encargos considerados relativamente ao Lote 3 foi de 7.854,47 € e relativamente ao Lote 4 foi de 7.609,26 €, totalizando 15.463,73 € (Facto adquirido por conhecimento do Tribunal durante a instrução, por consulta do PA, I, pp. 7-17, maxime p. 14, quadro 4)
Não se constata existir qualquer facto relevante, que tenha sido alegado e que não tenha sido provado.
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Fundamentação da seleção da matéria de facto
Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Os factos dados como provados resultaram do confronto da posição manifestada relativamente a cada facto pelas Partes e da apreciação da prova documental, o que foi feito com base nas regras da experiência, da normalidade e da racionalidade, em conformidade com o previsto no artigo 16.º, alínea e) do RJAT, bem como no artigo 607.º, n.º 5 do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, das quais resulta que o julgador apreciará livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. A prova documental encontra-se identificada relativamente a cada facto, junto ao seu relacionamento. A prova testemunhal promovida pela Requerente foi, aliás, consonante com os factos constantes da documentação e útil para entendimento do contexto em que foram realizados os gastos sub judicio.
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Fundamentação – matéria de direito
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O objeto do litígio e a posição das partes
Constitui objeto do litígio saber se a Requerida fundamentou devidamente as correções que oficiosamente fez à declaração de rendimentos; caso a resposta a esta questão seja afirmativa, aceitando-se por boa a fundamentação, haverá que apurar se os gastos com serviços jurídicos prestados por advogada e custos com a emissão e manutenção de garantia bancária prestada como caução na emissão do alvará de loteamento são considerados encargos com a valorização ou despesas inerentes à aquisição e alienação dos imóveis.
A propósito dos gastos com serviços jurídicos e relacionados com a garantia bancária Requerente afirma que a AT não fundamenta a não consideração destes gastos (16. e 21. do PPA) e que estes sempre seriam necessários à formação do rendimento, afirmando que a prestação da garantia é uma obrigação legal e os serviços jurídicos encontram-se efetivamente ligados à venda dos imóveis, como consta dos recibos da advogada que estão nestes autos e se justificam pela condição da própria pessoa da Requerente que “tendo 71 anos (em 2021) e tendo a 3ª classe de escolaridade se viu obrigada a socorrer da ajuda de uma profissional para tratar da documentação”.
Por seu lado, a Requerida no processo de formação do ato tributário é parca na fundamentação da sua recusa de considerar os gastos referidos, bastando-se com a afirmação que consta reproduzida em S da matéria assente e que apenas conclui que “depois de analisados os documentos que veio juntar ao direito de audição, verifica-se que, continuam a não ser consideradas (…) - Despesa de 500,00 € em nome de B..., por prestação de serviços jurídicos; (…) As despesas bancárias”, certamente com a garantia bancária.
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Apreciação jurídica da questão
Refira-se, antes de mais, que a revogação de atos tributários encontra-se prevista, em geral, na norma do artigo 44.º, n.º 1, alínea d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e a revogação de parte do ato da liquidação pela Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira é legalmente admissível nos termos das normas do artigo 169.º, n.ºs 1, 2, 3 e do artigo 170.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT. Revogado parcialmente o ato, haverá nessa parte, que declarar a inutilidade superveniente da lide.
o0o
Parece claro que a Requerida, no processo de formação do ato de liquidação adicional, não motiva por qualquer forma, nem de facto (não identifica os eventos da vida real) nem de direito (não indica que normas jurídicas usadas) para a sua recusa em não considerar os encargos com a valorização dos bens e as despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição dos bens, nem sequer refere que a sua recusa assenta na falta de enquadramento desses custos com a disciplina legal, que nunca indica qual é.
É certo, que neste processo arbitral a Requerida sustenta, inovando relativamente à posição prévia à liquidação, que os encargos e despesas em causa não se enquadram nas normas do artigo 51.º, n.º 1, alínea a) do Código do Imposto sobre o rendimento das Pessoas Singulares (“CIRS”), que os gastos não estão intrinsecamente ligados à valorização dos imóveis ou são indispensáveis à transação tributada. Cremos que está fora da causa de pedir da Requerente avaliar se as razões aduzidas pela Requerida devem ser avaliadas por este Tribunal. O pedido de anulação da Requerente assenta, antes de mais, na falta de fundamentação para a recusa na aceitação das despesas, que deram lugar à correção da declaração de rendimentos.
Relativamente à fundamentação dos atos da Administração Pública em geral e da AT em particular, a sua necessidade, extensão, requisitos a observar e vícios que a sua falta gera, são pacíficos em situações com a transparência com que é apresentada nestes autos.
Nos termos da norma do artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) é direito dos cidadãos e está-lhes garantido com a mais alta tutela jurídica do nosso ordenamento, que os atos administrativos, como é a liquidação de impostos, carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem os seus direitos. No sistema fiscal português também a norma do artigo da 77.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 6 da Lei Geral Tributária (“LGT”) impõem que a decisão dos procedimentos seja “sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram”, devendo conter sempre as disposições legais aplicáveis, que têm de ser notificadas ao destinatário do ato.
Neste caso a decisão do procedimento foi comunicada à Requerente sem qualquer fundamento de facto ou indicação das normas jurídicas aplicadas (veja-se T da matéria assente), como também não constava qualquer fundamentação nos relatórios que instruíram e precederam a decisão (veja-se R e S da matéria assente).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) é unânime nesta matéria, afirmando a invalidade dos atos não fundamentados. A necessidade de fundamentação continua a ser sistematicamente realçada, como se pode ver no sumário do recente acórdão do STA de 09-11-2022, no processo 0242/22.8BELRA [Anabela Russo][2]:
I - A imposição constitucional de fundamentação dos actos administrativos em geral, onde se incluem os proferidos em matéria tributária, consagrada no artigo 268.º, n.º 3 da CRP, revela, por um lado, a importância que esta formalidade possui no ordenamento jurídico português e, por outro, permite compreender o motivo que conduziu o legislador ordinário a regular de forma detalhada vários aspectos relacionados com essa formalidade, designadamente a preocupação que teve em densificar, clara e expressamente, o conceito de fundamentação (artigo 152.º do CPA), em regular quase exaustivamente o procedimento de formação da decisão, de exigir, também expressamente, o modo como o administrado deve ser chamado a participar no processo de formação da decisão e os efeitos ou consequências anulatórias que, pelo menos em regra, estão associados à preterição dessa falta de fundamentação (cfr., em especial, artigos 148.º, 151.º, 153.º, 160.º a 163.º do CPA e 60.º e 77.º da LGT).
Nos termos da norma do artigo 163.º, n.º 1 do CPA, aplicável ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, interpretada conjuntamente com a norma do artigo 2.º, alínea d) do CPPT, são anuláveis os “atos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção”. Ao efetuar a liquidação oficiosa de IRS sub judicio, sem fundamentar, de facto e de direito aquele ato, a Requerida violou os citados comandos legais do artigo 268.º, n.º 3 da CRP e 77.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 6 da LGT, e sujeitou o seu ato a crítica e, arguindo a Requerente a sua invalidade, cabe ao Tribunal anulá-lo, nos termos da norma do artigo 163.º-1 do CPA, aplicável nos termos referidos.
É certo que, como já se aludiu, na sua Resposta a Requerida veio esclarecer quais eram os fundamentos de direito e de facto que, na tese agora apresentada, justificavam o ato de correção e subsequente liquidação. Contudo é extemporânea essa fundamentação, visto que nos termos da norma do artigo 151.º, n.º 1, alínea d) do CPA, aplicável nos termos citados, a fundamentação deve constar do próprio ato ou de elementos constantes do procedimento de formação do ato (153.º, n.º 1 do mesmo Código).
Aliás, é esta a posição jurisprudencial comum, como se pode ver no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 02-02-2022, [Anabela Russo], processo n.º 01867/11.2BELRS[3], onde se sumariou:
Se o Impugnante só toma conhecimento da integral fundamentação de facto e de direito das liquidações impugnadas - particularmente das concretas operações aritméticas que determinaram o valor liquidado e os concretos normativos legais que as suportam - no âmbito do processo de Impugnação Judicial há que concluir que o acto de liquidação padece de falta de fundamentação formal determinante da sua anulação.
Pelas razões expostas é procedente o pedido anulatório da Requerente.
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O pedido de restituição do imposto pago e de juros indemnizatórios
A Requerente termina o seu PPA peticionando ser dever da Requerida “restituir o imposto indevidamente pago pela reclamante, e ainda proceder ao pagamento de juros moratórios e indemnizatórios”.
No seu PPA a Requerente não afirma, nem prova através da junção de recibo, ter pagado o imposto apurado na liquidação adicional. Como é sabido é ónus da Requerente apresentar no seu PPA a exposição das questões de facto e de direito objeto do referido pedido de pronúncia arbitral e os elementos de prova dos factos indicados e a indicação dos meios de prova a produzir (artigo 10.º, n.º 2, alíneas c) e d) do RJAT, em paralelismo com a disciplina aplicável no processo de impugnação judicial, em especial com a estatuição na norma do artigo 108.º, n.º 1 do CPPT.
Aliás, nem na Resposta da AT consta qualquer referência a este facto, nem o processo administrativo contém qualquer informação sobre o pagamento do imposto liquidado adicionalmente.
O PPA que não contenha factos que consubstanciem a causa de pedir conducente ao pedido que é formulado naquela peça, é, nessa parte, inepto, nos termos da norma do artigo 186.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT. Há, pois, que concluir pela ineptidão do PPA, que gera a invalidade parcial por omissão, na parte atinente ao pedido de restituição do imposto pago e de juros indemnizatórios, que constituindo exceção dilatória, nos termos da norma do artigo 576.º, n.º 2 do CPC origina a absolvição da instância da Requerida, nessa parte, nos termos do artigo 278.º, n.º1, alínea e) do mesmo Código.
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Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos invocados este Tribunal Arbitral decide:
I – Julgar a inutilidade superveniente da lide na parte correspondente à revogação parcial do ato de liquidação pela Subdiretora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos que constam do seu despacho de 14-03-2023, incorporado nestes autos;
II – Considerar procedente o pedido anulatório da Requerente e anular a liquidação sub-judicio, na parte remanescente à que se referiu em I;
III – Absolver a Requerida da instância, na parte referente ao pedido restituição do imposto pago e de juros indemnizatórios formulado pela Requerente.
IV – Condenar a Requerida no pagamento das custas.
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Valor do processo
Nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e cumprindo com a previsão do artigo 306.º, n.º 2 do CPC e do artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) e alínea e) do RJAT, fixa-se ao processo o valor de € 2.903,91, que corresponde ao valor a pagar da liquidação impugnada e é aquele que a Requerente indica no endereço do seu PPA.
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Custas
Em 28-09-2023 a Requerente juntou aos autos cópia de mensagem de correio eletrónico dirigido a departamento que não se encontra devidamente identificado da Segurança Social, em que afirma enviar pedido de apoio judiciário acompanhado de toda a documentação inerente. Contudo, nestes autos apenas constam a citada cópia do email e a primeira página de formulário que indica ter 4 páginas, não contendo qualquer assinatura nem outra documentação. A junção, que é notoriamente incompleta, contém requerimento que não é dirigido a este Tribunal e é ininteligível e é por isso juridicamente inexistente para este processo, nada havendo a decidir nesta sede.
o0o
O valor da taxa de arbitragem é fixado em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e fica a cargo da Requerida, por esta ter causado a demanda, nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável nos termos citados no capítulo anterior.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de dezembro de 2023
O árbitro,
Nuno Maldonado Sousa
[1] Cfr. aviso de receção no processo administrativo, parte 1, p.6.
[2] Acessível em www.dgsi.pt
[3] Acessível em www.dgsi.pt