Sumário:
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1- Nos casos de retenção na fonte a título definitivo, o erro sobre os pressupostos de facto e de direito dessa retenção é suscetível de configurar “erro imputável aos serviços” para efeitos de apresentação, no prazo de 4 anos, do pedido de revisão dos atos tributários, nos termos do nº1 do artigo 78º da Lei Geral Tributária.
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2- Relativamente a rendimentos oriundos do trabalho dependente, as CDT’s baseadas no MOCDE acolhem o conceito físico de “fonte” (de “país da fonte”), correspondente ao local onde foi exercida a atividade que originou esses rendimentos, e não o conceito financeiro, correspondente ao local onde se encontra sedeada a entidade pagadora, perfilhado pelo artº 18º do CIRS.
DECISÃO ARBITRAL
A..., NIF..., residente na..., n.º ..., ..., ...-..., Cascais, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
Estão em causa as seguintes liquidações de IRS (retenções na fonte), relativas a rendimentos pagos ao Requerente, feitas pela sociedade B..., NIPC ...:
- Período de 2016-06-01 a 2016-12-31 - € 20.788,00;
- Período de 2017-01-01 a 2017-12-31 - € 39.710,00;
- Período de 2018-01-01 a 2018-06-30 - € 13.333,0
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O pedido
O Requerente pede:
- A anulação de decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa por si apresentado;
- a anulação de tais liquidações (retenções na fonte);
- a condenação da Requerida no reembolso do montante das retenções na fonte, acrescido de juros indemnizatórios.
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O litígio
O Requerente entende, em suma, que tais retenções na fonte, feitas ao abrigo do disposto nos art. 15º, nº 2, e 18º, nº 1, al. a), do CIRS são ilegais por: (i) violação do disposto na CDT Portugal-Dinamarca; (ii) os rendimentos em causa não poderem ser considerados como abrangidos pela segunda das referidas disposições legais; (iii) a situação em causa configurar violação do princípio da livre circulação de trabalhadores, tal como resulta dos art. 18º e 45º do TFUE.
A Requerida sustenta: (i) que o pedido de revisão oficiosa foi intempestivo, pelo que se encontrava impossibilitada de apreciar a legalidade das liquidações (retenções na fonte) em causa; (ii) que tais liquidações (retenções na fonte) foram legais, atento o disposto nas já referidas normas do CIRS.
c) Tramitação processual
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 24-03-2023.
Os árbitros que constituem este Tribunal foram designados, nos termos legais, pelo CAAD, aceitaram tempestivamente as nomeações, as quais não foram objeto de impugnação.
O tribunal arbitral ficou constituído em 06-06-2023.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Por despacho de 28-08-2023 foi dispensada a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs a tal despacho.
d) Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou de irregularidades.
Não foram alegadas exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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O Requerente exerce a sua atividade profissional em Portugal, onde reside, ao serviço da B... .
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Porém, no período entre 01 de Junho de 2016 e 30 de Junho de 2018 residiu na Dinamarca, onde trabalhou ao serviço da C... .
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A situação de não residente durante o período em questão foi devidamente comunicada à AT e por esta considerada.
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Durante o período em que residiu e trabalhou na Dinamarca, o Requerente recebeu da B... os seguintes valores (ilíquidos): € 83.164,56 em 2016; 128.510,14 em 2017; € 53.342,04 em 2018.
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Relativamente a estes valores, a B... procedeu às retenções na fonte ora impugnadas, por considerar estar em causa o pagamento de salários.
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Tais valores foram suportados pela C... (para quem o Requerente se encontrava a trabalhar), a quem foram faturados pela B... .
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Em 2020-10-08, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa, peticionando a anulação das retenções na fonte em causa.
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A AT considerou intempestivo tal pedido relativamente aos anos de 2016 e 2017 e
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No que concerne ao ano de 2018, constatou ter sido apresentado pedido de reembolso internacional nos termos do n.º 7 do artigo 101.º-C do Código do IRS, o qual se encontrava pendente de decisão.
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A fundamentação de tal decisão foi, em resumo, a seguinte (transcrevemos da resposta da Requerida): 27- No caso concreto, as retenções na fonte contestadas são referentes ao período de 2016-06- 01 a 2018-06-30, pelo que tendo o pedido de revisão sido apresentado em 2020-10-08, já se encontram ultrapassados todos os prazos. 28. Sendo que, quanto à segunda parte do nº1 do art. 78º da LGT, com fundamento em erro imputável aos serviços, a tempestividade do pedido depende de reconhecimento do erro por parte dos serviços, conforme nº 3, da referida norma legal. 29. Neste sentido tal hipótese não se verifica, uma vez que foi a entidade pagadora dos rendimentos que efetuou a retenção na sobre os rendimentos de trabalho dependente pagos ao requerente qualificado como residente em território português. 30. Mais, não existiu erro dos serviços, na medida em que a Administração Fiscal limitou-se a receber o imposto retido por comunicação da entidade devedora dos rendimentos, não tendo qualquer intervenção na retenção na fonte efetuada por esta. 31. Assim, verificando-se a intempestividade do pedido, tal obsta à apreciação do mérito das restantes alegações apresentadas pelo requerente.
Estes factos constam dos documentos juntos ao processo, nomeadamente do RIT, não tendo sido objeto de qualquer controvérsia entre as partes.
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Factos não provados
Não existem factos tidos por não provados com relevância para a decisão da causa.
São três as principais questões a apreciar:
- a (in) tempestividade do pedido de revisão oficiosa.
- a legalidade das liquidações (retenções na fonte) impugnadas.
- violação do direito da União Europeia.
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Tempestividade do pedido de revisão oficiosa.
A questão de saber se se deve considerar que uma ilegalidade cometida pelo substituto (a entidade que tem o dever legal de proceder à retenção na fonte) configura um “erro imputável aos serviços” não teve ainda resposta uniformizadora por parte do STA.
A questão tem origem na revogação, operada em 2016, do nº 2 do art. 78º da LGT, segundo o qual se considerava, para efeitos de revisão oficiosa, imputável aos serviços o erro na autoliquidação. Sendo o substituto sujeito passivo da obrigação de liquidar (autoliquidar, em sentido técnico) e pagar o imposto retido na fonte, nenhuma dúvida se suscitava quanto à aplicação a tais liquidações, nomeadamente em termos de prazo, do disposto para os casos de “erro imputável aos serviços”.
Com a revogação desta norma surgiram dois entendimentos diferentes: o sufragado pela AT segundo o qual a palavra serviços significa – dito em termos intencionalmente simplistas - “ela própria”. Do que decorre a conclusão de que, por não ter tido intervenção nas retenções na fonte (no apuramento do montante de imposto assim cobrado), nenhum erro lhe pode ser assacado.
Entendimento diferente é o de que o substituto exerce funções de administração fiscal pois líquida e cobra impostos por imposição legal, ou seja é, materialmente, um “serviço” da administração fiscal; no mesmo sentido, mais relevante nos parece ser o argumento de que nada justifica diferentes graus de garantia para o contribuinte (aquele que suporta o encargo económico do imposto) consoante esteja em causa uma liquidação com origem na AT ou num substituto. Em ambos os casos, diferentemente do que acontece com a autoliquidação stricto sensu, o contribuinte não tem qualquer intervenção direta na liquidação, ou seja, em ambos os casos os erros cometidos não lhe podem ser imputados.
O segundo entendimento é, a nosso ver, o preferível: está em causa uma garantia do contribuinte, matéria que, no particular domínio do direito fiscal, está sujeita a um princípio de estrita legalidade, de reserva de lei formal (art. 103º, nº 2, da CRP). Só a AR ou o Governo devidamente autorizado podem reduzir o âmbito das garantias dos contribuintes.
De onde decorre, no nosso entender, a duvidosa constitucionalidade de interpretações de normas de direito fiscal relativas a garantias dos particulares que, na dúvida, perfilhem o entendimento que, na prática, resulte menos garantístico.
Esta convicção surge reforçada pelo recente acórdão do STA no proc. 087/22.5, de 9 de novembro de 2022. Citamos:
VI - O meio procedimental de revisão do acto tributário não pode ser considerado como um meio excepcional para reagir contra as consequências de um acto de liquidação, mas sim como um meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do acto de liquidação).
VII – Assim, nos casos como o dos autos, em que há lugar a retenção da fonte, a título definitivo, de quantias por conta de imposto de selo, cobrado no âmbito de operações de concessão de crédito, e suportado pelas Recorrentes, o erro sobre os pressupostos de facto e de direito dessa retenção é suscetível de configurar “erro imputável aos serviços”, para efeitos de apresentação, no prazo de 4 anos, do pedido de revisão dos atos tributários, nos termos do nº1 do artigo 78º da Lei Geral Tributária.
De notar que, tal como acontece na situação apreciada pelo STA em tal acórdão, está aqui em causa uma substituição fiscal total, uma vez que o Requerente foi tributado na condição de não residente.
Pelo que se conclui pela tempestividade do pedido de revisão oficiosa relativamente a todos os anos em causa e, consequentemente, pela omissão do dever da administração de apreciar a globalidade do pedido aí formulado, cabendo agora a este tribunal arbitral suprir tal omissão.
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Legalidade das liquidações (retenções na fonte) impugnadas
Na sua resposta, a AT sustenta a legalidade da tributação dos rendimentos em causa invocando o art. 18.º do CIRS, segundo o qual consideram-se obtidos em território português: a) Os rendimentos do trabalho dependente decorrentes de atividades nele exercidas, ou quando tais rendimentos sejam devidos por entidades que nele tenham residência, sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento;(…)
Ou seja, os rendimentos em causa estariam sujeitos a tributação em IRS por terem no nosso país a sua fonte financeira. O que – diremos num breve aparte – é questionável.
O Requerente contrapõe com o disposto no art. 15º da CDT Portugal-Dinamarca (país onde residiu e trabalhou no período em causa), o qual dispõe:
1 — (…) os salários, vencimentos e outras remunerações similares obtidos de um emprego por um residente de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que o emprego seja exercido no outro Estado Contratante.
Como dado por provado, no período em causa, o Requerente residia na Dinamarca, facto que a AT conhecia e aceitou.
Como dado por provado, no período em causa o Requerente exerceu a sua atividade profissional na Dinamarca, país que deve ser considerado como sendo, também, o país da fonte dos rendimentos.
Na realidade, a CDT Portugal - Dinamarca, tal como a generalidade das CDT baseadas no MOCDE, relativamente a rendimentos oriundos do trabalho dependente, acolhe um conceito físico de “fonte” (de “país da fonte”), correspondente ao local onde foi exercida a atividade que originou esses rendimentos, e não o conceito financeiro (correspondente ao local onde se encontra sedeada a entidade pagadora) perfilhado pelo artº 18º do CIRS.
Citamos dos Comentários ao art. 15º do MOCDE:
1. Paragraph 1 establishes the general rule as to the taxation of income from employment (other than pensions), namely, that such income is taxable in the State where the employment is actually exercised. Employment is exercised in the place where the employee is physically present when performing the activities for which the employment income is paid.
2.2 The condition provided by the Article for taxation by the State of source is that the salaries, wages or other similar remuneration be derived from the exercise of employment in that State. This applies regardless of when that income may be paid to, credited to or otherwise definitively acquired by the employee.
Não podendo Portugal ser havido como “país da fonte” relativamente aos rendimentos em causa por força da disposição convencional (por não ter sido aqui exercida a atividade profissional que originou o pagamento de salários a um não-residente), cai pela base tese da AT de ver esta situação abrangida pelo disposto pelo artº 101º-C do CIRS, nomeadamente nos seus nº 1 e 2[1].
Mesmo que assim não se entenda, sempre haveria que ter em conta que:
- esta tese da AT corresponde a um outro fundamento possível para a recusa de apreciação da do pedido de revisão oficiosa, o qual teria de ter sido invocado na fundamentação da decisão de indeferimento e não na resposta presentada neste processo arbitral (não são admissíveis quaisquer formas de fundamentação a posteriori).
- nada ficou provado quanto ao facto de ter sido ou não cumprido o constante de tal norma.
- um eventual incumprimento do Requerente sempre seria irrelevante uma vez que o pedido de revisão oficiosa foi feito ao abrigo do nº 1 do artº 78º da LGT (“erro imputável aos serviços”) e não do seu nº 3 (“injustiça grave ou notória”), sendo que só para este caso a lei impõe que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.
De todo o modo, o erro sempre é de imputar ao substituto, à B..., pois tinha, indiscutivelmente, conhecimento de que o Requerente não estava ao seu serviço durante o período em causa, residindo e trabalhando na Dinamarca, o que excluía (e não dispensava) a obrigação de retenção na fonte, apesar da sua declaração de que tais valores tinham a natureza de salários.
Pelo que há que concluir que os rendimentos em causa, embora formalmente pagos por uma sociedade com sede em Portugal (que não era a devedora dos mesmos), não podem ser tributados no nosso país por a tal se opor o disposto na CDT aplicável, norma de origem internacional, que, por tal, prevalece sobre o disposto em contrário na lei interna.
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Outros vícios
Tendo o tribunal considerado procedente o primeiro dos vícios invocados pelo Requerente resulta prejudicada a necessidade de apreciação dos demais.
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Juros indemnizatórios
Tendo procedido o seu pedido, o Requerente tem direito a, para além do reembolso do indevidamente pago, a receber juros indemnizatórios.
Porém, tal como preconizado no Ac. do STA – Pleno – de 04-03-2020, pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação e vindo o acto a ser anulado, mesmo que em processo arbitral instaurado após o indeferimento tácito daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano, computado da apresentação do pedido de revisão, e não desde a data em que opera o dito indeferimento tácito (cfr.artº.43, nºs.1 e 3, alínea c), da L.G.T.).
Sendo que, por identidade de razão, tal entendimento abrangerá também os casos de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa.
Termos em que se conclui pela total procedência dos pedidos, anulando-se as liquidações (retenções na fonte) impugnadas, com todas as demais consequências legais.
Valor: € 73.831,00
Custas arbitrais, no montante de € 2.448,00 a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.
20 de novembro de 2023
Os árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
Sofia Quental
Marcolino Pisão Pedreiro
[1] 1 - Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRS, no todo ou em parte, consoante os casos, relativamente aos rendimentos referidos no artigo 71.º quando, por força de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação celebrada por Portugal, a competência para a tributação dos rendimentos auferidos por um residente do outro Estado contratante não seja atribuída ao Estado da fonte ou o seja apenas de forma limitada.
2 - Nas situações referidas no número anterior, os beneficiários dos rendimentos devem fazer prova perante a entidade que se encontra obrigada a efetuar a retenção na fonte da verificação dos pressupostos que resultem de convenção para evitar a dupla tributação, de um outro acordo de direito internacional, ou ainda da legislação interna aplicável, através da apresentação de formulário de modelo a aprovar por despacho do membro do Governo responsável pela área das finanças, acompanhado de documento emitido pelas autoridades competentes do respetivo Estado de residência que ateste a sua residência para efeitos fiscais no período em causa e a sujeição a imposto sobre o rendimento nesse Estado.