Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 677/2022-T
Data da decisão: 2023-11-21  IRS  
Valor do pedido: € 30.356,29
Tema: Impugnação de ato de liquidação — Legitimidade ativa — Impugnabilidade do ato tributário objeto do processo arbitral — Regime de tributação dos residentes não habituais.
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DECISÃO ARBITRAL

 

— I —

            A..., contribuinte fiscal n.º..., e sua mulher B..., contribuinte fiscal n.º... (doravante “os requerentes”), vieram deduzir pedido de pronúncia arbitral tributária contra a AUTO­RI­DA­DE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “a AT” ou “a requerida”), peticionando a declaração da ilegalidade e anulação da Liquidação n.º 2022-... referente ao ano de 2021.

Para tanto alegaram, em síntese, que ambos os requerentes são de nacionalidade estrangeira, tendo o requerente marido residido na Bélgica de 2016 a 2020, vindo a estabelecer a sua residência fiscal em Portugal em janeiro de 2021; que, logo em fevereiro desse mesmo ano, celebrou um contrato de trabalho com uma empresa suíça para desempenhar nesse país as funções de diretor de projeto; que em maio de 2022 tentou submeter o pedido da sua inscrição como residente não habitual (“RNH”) durante o ano de 2021 através do Portal das Finanças, mas não logrou concretizá-lo em virtude de o prazo previsto para esse efeito ter expirado em 31-03-2022; que submeteu um pedido de inscrição como RNH para o ano de 2022 que foi indeferido pela AT; que em maio de 2022 ambos os requerentes apresentaram conjuntamente a sua declaração Modelo 3 referente ao exercício de 2021, tendo em consequência sido emitida a correspondente liquidação, da qual resultava um valor de IRS a pagar no montante de €30.356,29; que, considerando que no ano de 2021 se deveria aplicar ao requerente marido o regime fiscal dos RNHs, em 30-06-2022 os requerentes apresentaram uma declaração de substituição relativa ao referido exercício; que foram notificados pela AT de que a declaração de substituição apresentada não seria admissível, pelo que apresentaram nova declaração de substituição, sem lugar à invocação da aplicação do regime RNH, a qual deu origem à correspondente Liquidação n.º 2022-... (doravante “a Liquidação Impugnada”), que prontamente colocaram a pagamento; finalmente, que a Liquidação Impugnada está ferida de ilegalidade na medida em que o requerente marido satisfaz todos os requisitos legais para poder beneficiar do estatuto de RNH no ano de 2021, pelo que a Liquidação Impugnada é, assim, ilegal.

Concluíram peticionando a declaração da ilegalidade e anulação do ato de liquidação de IRS em crise na presente arbitragem e, acessoriamente, a condenação da requerida restituir o quantitativo de imposto pago ao abrigo de tal ato e, bem assim, no pagamento de juros indemnizatórios.

Juntou documentos e procuração forense, declarando não pretender proceder à designação de árbitro. Atribuiu à causa o valor de EUR 30.356,29 e procedeu ao pagamento da taxa de arbitragem inicial.

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            Constituído o Tribunal Arbitral, nos termos legais e regulamentares aplicá­veis, foi determinada a notificação da administração tributária requerida para os efeitos previstos no art. 17.º do RJAT.

            Depois de devidamente notificada, a requerida veio apresentar resposta defendendo-se por exceção e por impugnação. Por exceção invocou que a causa de pedir nos presentes autos centrar-se-ia do direito do requerente marido a beneficiar do estatuto de RNH, o que lhe teria sido negado por ato administrativo em matéria tributária proferido pela AT, circunstância que, assim, implicaria a impossibilidade de se conhecer do objeto da pretensão dos requerentes em virtude da verificação das exceções de caso decidido administrativo, incompetência material da jurisdição arbitral tributária e erro na forma de processo.

            Por impugnação, sustentou que o estatuto de RNH, em face do disposto no art. 16.º, n.º 10, do CIRS, versa sobre um benefício fiscal, dependente de reconhecimento por parte da administração fiscal, por iniciativa do contribuinte; que, assim sendo, para a concessão de tal estatuto devem os contribuintes solicitar a sua inscrição no prazo legal, o que não teria acontecido no caso presente; que, em qualquer caso, o requerente marido não poderia beneficiar da isenção de tributação decorrente do estatuto de RNH por não ter feito a demonstração de que os rendimentos por si obtidos no estrangeiro teriam aí sido objeto de tributação.

            Concluiu pela sua absolvição da presente instância arbitral ou, subsidiariamente, pela improcedência do pedido. Juntou um despacho de nomeação de mandatários forenses e a cópia eletrónica dos processos administrativos relevantes.

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            Notificados para, querendo, exercer o contraditório quanto às exceções, vieram os requerentes sustentar a inexistência de caso decidido administrativo, na medida em que se encontraria ainda pendente junto da Direção de Serviços do Registo de Contribuintes o pedido de reconhecimento do estatuto de RNH com efeitos reportados a 2021; que o indeferimento a que a AT faz referência na sua resposta diz respeito a um pedido de inscrição como RNH com efeitos a partir de 2022, despacho que não impugnou por, na verdade, sempre ter pretendido a sua inscrição com aquele estatuto com efeitos a partir de 2021, e não a partir de 2022; finalmente, que o objeto da presente arbitragem é a impugnação de um ato de liquidação de IRS e não a impugnação do despacho de indeferimento proferido em tal procedimento administrativo tributário.

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            Tendo-se dispensado a realização da reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT, foi ordenada a notificação das partes para, querendo, produzirem alegações escritas quanto à matéria de facto e de direito, tendo ambas as partes procedido à sua apresentação, mantendo no essencial as posições por si já avançadas nos articulados. Os requerentes vieram ainda aos autos demonstrar o pagamento do remanescente da taxa de arbitragem.

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Pelo despacho de 24-05-2023 o Tribunal, de ofício, convidou as partes a, querendo, se pronunciarem acerca da eventual verificação das exceções de ilegitimidade ativa dos reque­ren­tes e de inimpugnabilidade da Liquidação Impugnada, na medida em que, por um lado, o conteúdo dispositivo da Liquidação Impugnada aparenta ser o resultado direto e imediato da própria declaração de rendimentos apresentada pelos requerentes e, por outro lado, a Liqui­da­ção Impugnada é meramente repetitiva do primeiro ato de liquidação proferido pela AT com referência aos requerentes e ao ano de 2021. Respondendo, vieram os requerentes sustentar que o facto de terem procedido à correção da declaração de substituição não significa que se tenham conformado com o teor da correção que introduziram na referida declaração; que se não tivessem procedido a tal correção teriam incorrido em responsabilidade contraordenacional e teriam sido alvo de um procedimento de liquidação oficiosa com os correspondentes juros compensatórios; que, num tal caso, sempre poderiam ter impugnado a liquidação oficiosa assim proferida pelo que, por maioria de razão, também poderiam impugnar a Liquidação Impugnada; finalmente, que a Liquidação Impugnada revogou e substituiu o anterior ato de liquidação proferido quanto ao mesmo exercício, pelo que os requerentes poderiam impugná-la. Subsidiariamente, requereram a ampliação do pedido, para nele incluir também a declaração da ilegalidade da Liquidação n.º 2022-... .

Notificada a requerida para se pronunciar no incidente de modificação objetiva da instância deduzida pelos requerentes, veio aquela opor-se à pretendida ampliação do pedido.

 

 

— II —

As partes gozam de personalidade judiciária e capacidade judiciárias, têm legitimidade ad causam e estão devidamente patrocinadas nos autos.

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            Nos termos do art. 97.º-A do CPPT, o valor atendível, para efeitos de custas, quando se impugne um ato de liquidação será o da importância cuja anulação se pretende.

            Ora, o valor que os requerentes atribuíram à presente arbitragem, tendo presente o regime legal aplicável, foi de EUR 30.356,29, valor que não foi objeto de impugnação por parte da requerida e que, de resto, corresponde ao montante de imposto liquidado pelo ato tributário impugnado. Na ausência de quaisquer outros elementos factuais que permitissem fixar à causa um valor diferente daquele que resulta do acordo das partes, não se antevê motivo para corrigir o montante indicado pelos requerentes e aceite pela requerida.

            Fixa-se assim à presente arbitragem o valor de EUR 30.356,29.

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Fixado que está o valor da causa e uma vez que os requerentes optaram por não proceder à designação de árbitro, dispõe o presente Tribunal Arbitral Singular de competência funcional e de competência em razão do valor para conhecer do objeto da presente arbitragem (art. 5.º, n.º 2, do RJAT).

Há também que concluir pela competência do presente Tribunal em razão da matéria por força do art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT e da vinculação à arbitragem tributária instituciona­lizada do CAAD por parte da administração tributária requerida, tal como resulta da Portaria n.º 112-A/2011, improcedendo assim, por manifestamente infundada, a exceção de incompetência deduzida pela requerida, uma vez que resulta claro que o objeto imediato da presente arbitragem é a apreciação da validade de um ato de liquidação de um tributo, sendo a questão do reconhecimento do estatuto de RNH por parte do requerente marido meramente incidental e instrumental àquela que é a questão decidenda nos presentes autos. Pelos mesmos fundamentos, improcede igualmente a exceção de erro na forma de processo, igualmente invocada pela requerida.

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            Conforme resulta do relatório, nas suas alegações finais vieram os requerentes suscitar  a modificação objetiva da instância, requerendo a ampliação do pedido à pretensão de anulação e declaração da ilegalidade da Liquidação n.º 2022-... .

Em arbitragem tributária, a modificação objetiva da instância é regida em duas sedes normativas. Por um lado, é o próprio RJAT que prevê, no seu art. 20.º, a possibilidade de alteração do pedido quando, no decurso do processo arbitral, haja lugar à substituição do ato tributário impugnado. Por outro lado, pela aplicação supletiva à arbitragem tributária das disposições do CPTA, haverá ainda lugar à possibilidade de modificação objetiva da instância nos casos regulados no art. 63.º (“atos que venham a surgir no âmbito ou na sequência do procedimento em que o ato impugnado se insere”) e no art. 64.º (atos administrativos de segundo grau que procedam à anulação administrativa ou revogação do ato impugnado e à regulação ex novo do seu objeto, bem como atos de sanação, alteração ou substituição do ato impugnado). Excluído de aplicação supletiva no contencioso tributário estará o regime do art. 65.º do CPTA (revogação do ato impugnado sem efeitos retroativos), na medida em que não se afigura admissível, em Direito Fiscal, a revogação em sentido próprio (i.é, com fundamento em inconveniência ou inoportunidade) de atos tributários.

É claro e inequívoco que o objeto da presente instância arbitral, tal como inicialmente delimitado pelos requerentes na sua petição inicial, se dirige apenas à impugnação da Liqui­dação de IRS n.º 2022-... . A pretensão de vir agora impugnar também a Liqui­dação de IRS n.º 2022-... apenas poderia vir a ser validamente enxertada na presen­te causa por via de uma modificação objetiva da instância. E é precisamente por esta­rem cientes dessa realidade que os requerentes vieram deduzir o correspondente incidente proces­­sual.

Uma tal modificação, porém, é manifestamente inadmissível à luz do art. 20.º do RJAT, cujo âmbito de aplicação se cinge àquelas situações em que, na pendência do processo arbitral, a administração tributária substitui o ato impugnado por outro ato incidente sobre os mesmos factos tributários. Não é, manifestamente, esse o caso que se discute.

Por outro lado, o art. 63.º, n.º 1, do CPTA trata da ampliação do pedido à impugnação de novos atos, mas restringe o seu âmbito de aplicação apenas aos atos “que venham a surgir no âmbito ou na sequência do procedimento em que o ato impugnado se insere”, expressão que não pode deixar de se referir a atos venham a ser proferidos, após a impugnação judicial do ato impugnado, no quadro do mesmo procedimento administrativo em que este foi proferido. Estão assim em causa situações em que, depois de impugnado um ato, a administração vem, no âmbito do procedimento administrativo relativo a esse mesmo ato, proferir novos atos com aquele conexos. Conclusão que sai reforçada pela injunção constante do n.º 3 do mesmo preceito legal segundo a qual “deve a Administração trazer ao processo a informação da existência dos eventuais atos conexos com o ato impugnado que venham a ser praticados na pendência do mesmo.” Também não é esta a situação da Liquidação n.º 2022-... que os requerentes pretendem agora impugnar, uma vez que este ato tributário não apenas é anterior à propositura da presente arbitragem, como é anterior ao próprio ato originalmente impugnado nos presentes autos. Manifestamente, o art. 64.º do CPTA é inaplicável à pretensão de modificação do objeto da instância deduzida pelos requerentes.

Finalmente, também o art. 265.º, n.º 2, do CPC, posto que a sua aplicação supletiva pudesse ser hipotisada na presente arbitragem, se afigura como fraco suporte para a pretensão modificativa do objeto da instância deduzida pelos requerentes. Com efeito, a faculdade processual que se atribui nesse preceito legal diz respeito apenas à ampliação do pedido quando esta seja “desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.” Não é esse o caso quando se trata de pedidos impugnatórios dirigidos a atos jurídicos distintos inseridos em procedimentos tributários diversos e temporalmente separados.

Além do mais, o objeto do pedido ampliado é cronologicamente anterior e precede o objeto do pedido original: a Liquidação n.º 2022-... foi proferida em 26-05-2022; já a Liquidação n.º 2022-... foi proferida 05-08-2022. É logicamente impossível aceitar que a impugnação da primeira possa ser um normal desenvolvimento ou consequência da impugnação da segunda. É certo que, como referem os requerentes, à data da propositura da presente arbitragem estavam ainda em tempo para impugnar o primeiro ato de liquidação. Mas o ponto é precisamente esse: não deduziram uma pretensão impugnatória com um tal alcance e conteúdo e, à data do requerimento de modificação objetiva da instância, o prazo de 90 dias para a impugnação da Liquidação n.º 2022-... [art. 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT] estava, há muito, expirado, pelo que nem sequer seria convocável um argumento de flexibilização e informalidade processual, na medida em que se tivessem apresentado, nesta última data, a deduzir autonomamente uma pretensão impugnatória contra tal ato de liquidação, o desfecho dessa lide seria inevitavelmente o da absolvição da instância.

Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefiro a pretensão de ampliação do objeto da presente instância arbitral deduzida pelos requerentes.

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            De ofício, o Tribunal suscitou as exceções de ilegitimidade ativa e de inimpugna­bilidade. Convidadas as partes a pronunciarem-se acerca delas, apenas os requerentes vieram fazê-lo, em termos melhor descritos supra no relatório.

            Importa decidir destas exceções, o que se fará conjuntamente.

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            Para o conhecimento destas exceções julgo sumária e indiciariamente provados os seguintes factos:

  1. Com referência ao ano de 2021, os requerentes apresentaram a sua declaração de rendimentos, Modelo 3, em 26-05-2022 (declaração n.º 2021-...), na qual os rendimentos de trabalho obtidos pelo requerente marido foram declarados no Quadro 4 do Anexo J (“rendimentos obtidos no estrangeiro”) [doc. n.º 9 do p.p.a.].
  2. Subsequentemente, em 26-05-2022 a AT emitiu a Liquidação de IRS n.º 2022... da qual resultava um montante total de imposto a pagar no valor de EUR 30.356,29 [doc. n.º 13 do p.p.a.]
  3. Ao ato de liquidação referido em b) correspondeu o Documento de Cobrança n.º 2022-... de que resultava um valor a pagar de EUR 30.356,29, a referência de pagamento n.º ... e o prazo de pagamento de 31-08-2022 [doc. n.º 13 do p.p.a.].
  4. O documento de cobrança referido em c) foi colocado a pagamento pelos requerentes em 29-08-2022 [doc. n.º 17 do p.p.a.]
  5. Considerando que o requerente marido reunia todos os requisitos para beneficiar do estatuto de residente não habitual no ano de 2021, os requerentes apresentaram em 30-06-2022 uma declaração de substituição Modelo 3 (declaração n.º 2021-...) na qual declararam os rendimentos obtidos no estrangeiro pelo requerente marido no Anexo J e também no Anexo L (“residente não habitual”) [doc. n.º 15 do p.p.a.].
  6. Em 04-07-2022 a AT remeteu ao requerente marido um ofício n.º DIV5/... no qual identificava a existência de erro na declaração de substituição referida em e) (“l55 – se nif titular não é residente não habitual”) e se convidava os requerentes a proceder à correção da declaração no prazo de 30 dias, sob a cominação de ser eliminado o registo de apresentação da mesma e se vir a considerar a declaração como não tendo sido entregue, para tanto se invocando o preceituado no art. 3.º, n.º 3, da Portaria n.º 1303/2010 [doc. n.º 14 do p.p.a.].
  7. Nessa sequência, em 01-08-2022 os requerentes procederam à correção da declaração de substituição referida em e) eliminando dela o Anexo L, após o que a mesma foi validada centralmente pelos serviços da AT.
  8. Subsequentemente, em 05-08-2022 a AT emitiu a Liquidação de IRS n.º 2022-... da qual resultava um montante de imposto a pagar no valor de EUR 30.356,29 (a “Liquidação Impugnada”) [doc. n.º 16 do p.p.a.].
  9. Na sequência do ato de liquidação referido em h) a AT emitiu a Demonstração de Acerto de Contas n.º 2022-..., da qual resultava, depois de se proceder ao estorno do pagamento devido pelos requerentes ao abrigo da precedente Liquidação n.º 2022-..., um montante total de imposto a pagar no valor EUR 0,00 (zero euros) [doc. n.º 1 junto com o requerimento de 06-06-2023].

 

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            Com relevância para o conhecimento da presente exceção inexistem quaisquer outros factos, alegados pelas partes ou do conhecimento oficioso do Tribunal, que se devam considerar como não provados.

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Na decisão da matéria de facto relevante para o conhecimento destas exceões agora em apreço o Tribunal teve em consideração a prova documental junta aos autos pelas partes, em particular os documentos especificados em cada um dos pontos do probatório. Quanto aos factos e) e g) do probatório o Tribunal teve ainda em consideração a confissão factual efetuada pelos requerentes nos seus articulados, em especial nos arts. 17.º a 19.º do pedido de pronúncia arbitral.

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Os factos constantes do probatório permitem concluir pela verificação das exceções de ilegitimidade ativa e de inimpugnabilidade na medida em que, por um lado, o conteúdo dispositivo da Liquidação Impugnada aparenta ser o resultado direto e imediato da própria declaração de rendimentos apresentada pelos requerentes e, por outro lado, a Liquidação Impugnada é meramente repetitiva do primeiro ato de liquidação proferido pela AT com referência aos requerentes e ao exercício de 2021.

Com efeito, os requerentes apresentaram uma primeira declaração em que não invocaram o estatuto de RNH. Na sequência dessa declaração foi emitida uma liquidação de IRS no valor de EUR 30.356,29 [facto b)] e o correspondente documento de cobrança, pelo mesmo valor [facto c)], que os requerentes colocaram a pagamento [facto d)].

Apresentaram seguidamente uma segunda declaração de rendimentos, substitutiva da primeira, em que pretendiam beneficiar do estatuto de RNH para os rendimentos auferidos no estrangeiro pelo requerente marido. Sucede que a AT convidou os requerentes a corrigir essa declaração de substituição, sob o fundamento de que o requerente não poderia beneficiar de tal estatuto. Aparentemente, os requerentes ter-se-ão conformado com essa estatuição administrativa porque procederam à correção da declaração de substituição nos termos indicados pela AT e repetindo ipsis verbis o conteúdo da primeira declaração por si apresentada. De tal sorte que o quantitativo de IRS liquidado na sequência da apresentação, corrigida, dessa declaração de substituição foi rigorosamente o mesmo que já tinha sido liquidado aquando da apresentação da primeira declaração [facto h)] dando lugar àquilo que na gíria tributária se costuma denominar uma “nula de IRS” ou uma “liquidação a zeros”, isto é, um ato de liquidação de que não resulta efetivamente qualquer imposto a pagar [facto i)].

Por conseguinte, a Liquidação Impugnada é o resultado direto e imediato da conduta dos requerentes: são eles quem lhe dá causa, na medida em que o referido ato de liquidação se limita a tributar os factos tributários declarados pelos requerentes de acordo a configuração que eles próprios lhes deram.

A este propósito é possível convocar a aplicação subsidiária, e com as necessárias adaptações, do disposto no art. 56.º do CPTA, na medida em que aí se dispõe que “[n]ão pode impugnar um ato administrativo com fundamento na sua mera anulabilidade quem o tenha aceitado” (n.º 1) e que a “[a] aceitação tácita deriva da prática, espontânea ou sem reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar” (n.º 2). Com efeito, tendo a AT notificado os requerentes de que o requerente marido não poderia beneficiar, em 2021, do estatuto de RNH e tendo pré-anunciado a sua intenção de rejeitar a apresentação da declaração de substituição, os requerentes aparentemente conformaram-se com a essa decisão administrativa e, sem que nos autos esteja patenteada qualquer manifestação contemporânea de reservas, anuíram ao convite da AT e procederam à correção da declaração de substituição, eliminando o Anexo L que dela constava. De sorte que, na sequência desse seu comportamento, apresentaram uma declaração de substituição cujo teor era em tudo idêntico à precedente declaração de rendimentos que aquela visava substituir.

Ora, se os requerentes não tivessem aceitado a referida estatuição administrativa, nem com ela se tivessem conformado, teriam à sua disposição a via da impugnação jurisdicional da decisão de rejeição da declaração de substituição através da propositura de uma ação administrativa de impugnação de atos administrativos em matéria tributária (ou, eventualmente, de uma ação de intimação para um comportamento). Não o tendo feito — e, mais do que isso, tendo anuído, sem aparentes reservas, ao convite da AT e deliberadamente procedido à correção da declaração em causa —, os requerentes aceitaram aquela estatuição administrativa e conformaram-se com a não aplicação do estatuto de RNH ao requerente marido.

De resto, inexistia qualquer necessidade premente de os requerentes anuírem, ainda que a contragosto ou irresignados, ao convite da AT: a sua situação fiscal relativa ao ano de 2021 estava já regularizada com a apresentação (validada) da declaração de rendimentos original e com o consequente ato de liquidação de 26-05-2023. A concretização, pela AT, da admonição de que a declaração de substituição seria rejeitada e eliminada da plataforma informática em nada alteraria o status quo ante relativo à situação fiscal dos requerentes, que não passariam em tal eventualidade a ser considerados contribuintes relapsos na medida em que em relação a eles se encontravam já vigentes, para o ano 2021, uma declaração de rendimentos e um ato de liquidação de IRS.

Não procede assim o argumento dos requerentes de que a rejeição da declaração de substituição, que apresentaram em 30-06-2022, teria por consequência uma liquidação oficiosa e acarretaria responsabilidade contraordenacional e a liquidação de juros compensa­tó­rios. Pelo contrário, se a AT viesse a proferir um ato definitivo de rejeição da declaração de substituição (e note-se que só não o fez porque os requerentes aderiram espontaneamente ao convite que lhes foi endereçado e corrigiram motu proprio a referida declaração), a consequência seria exatamente a mesma que se teria verificadose não tivessem apresentado qualquer declaração de substituição: a declaração de rendimentos 26-05-2022, já validada centralmente e aceite, permaneceria em vigor e a situação tributária deles requerentes seria regulada pela Liquidação n.º 2022-... . De resto, os requerentes laboram em manifesto equívoco quanto ao pagamento que efetuaram em 29-08-2022, na medida em que este pagamento não foi feito ‘à ordem’ do segundo ato de liquidação, mas sim ‘por conta’ do imposto liquidado na primeira liquidação emitida na sequência da declaração de rendimentos primitivamente apresentada, como se alcança de forma incontroversa a partir do confronto das referências de pagamento constantes dos documentos n.os 13 e 17 juntos com o p.p.a.

Ora, o contencioso tributário, à semelhança de resto do que sucede no contencioso de atos administrativos, não é um processo de tutela da legalidade objetiva, mas antes um processo dirigido à tutela de direitos e interesses subjetivos: para que haja legitimidade ativa é necessário que o ato seja lesivo da esfera jurídica do impugnante e que essa lesão não tenha sido causada ou aceite pelo próprio impugnante, salvo naturalmente no caso de direitos indisponíveis. Assim se compreende a estatuição do art. 56.º do CPTA, da qual decorre “a aceitação do ato administrativo, enquanto requisito negativo de legitimidade” (RUI MACHETE, “Sanação do ato administrativo inválido”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. vii, Lisboa, 1996, p. 341).

No caso em espécie, estaremos também reconduzidos a uma posição em que a ilegitimidade ativa anda de par com a perda (ou inexistência) de interesse em agir: a estatuição exatora resultante da Liquidação Impugnada é, sem tirar nem por, o resultado dos factos tributários que os requerentes declararam e de acordo com a configuração que os requerentes lhes deram. Foi a conduta dos requerentes que deu causa ao teor da Liquidação Impugnada, na medida em que esta se limita a aplicar aos factos por eles declarados o regime jurídico-tributário que resulta da lei fiscal. Não é, assim, configurável a existência de um qualquer interesse direto em impugnar por parte de quem obteve da administração fiscal um ato tributário que corresponde precisamente aos factos tributários que declarou.

Mais uma vez: nada obrigava os requerentes a anuírem ao convite da AT e a eliminarem o Anexo L da declaração de substituição que tinham apresentado — poderiam ter impugnado contenciosamente a eventual decisão administrativa de rejeição dessa declaração substitutiva ou, até, deduzir uma intimação para um comportamento visando a injunção da administração fiscal a processar e liquidar a referida declaração. Porém, não adotaram nem um nem outro desses comportamento e, aparentemente, aceitaram e anuíram ao convite da AT  corrigindo, propria manu, a sua declaração de substituição.

Por conseguinte, os requerentes carecem de legitimidade para impugnar a Liquidação Impugnada na medida em que, por um lado, ela é o resultado causal e direto das suas próprias condutas (i.é, da declaração de rendimentos que apresentaram e, depois, corrigiram) e, por outro lado, ao terem voluntariamente corrigido a declaração de substituição terão aceitado expressamente a sugestão administrativa de considerar que o requerente marido não preenchia os requisitos necessários para poder beneficiar do estatuto de RNH no ano de 2021.

Finalmente, não é também imaterial a circunstância de a Liquidação Impugnada não ter tido, em si mesma, qualquer efeito lesivo da esfera dos requerentes. Em boa verdade, deste ato tributário não resulta qualquer ablação patrimonial na esfera jurídica dos requerentes: o montante de IRS que nesta se líquida é precisamente o mesmo que já se havia liquidado na precedente Liquidação n.º 2022-... de 26-05-2022. E tanto assim é que a Liquidação Impugnada veio a resultar num documento de cobrança nulo — ou seja, daquilo que vulgarmente se denomina “Nula de IRS” —, não resultando assim daquele ato de liquidação qualquer encargo pecuniário adicional para os requerentes (nem, acrescente-se, qualquer redução dos prejuízos reportados para exercícios subsequentes) face ao precedente ato tributário relativo ao mesmo ano de 2021. Torna-se assim evidente que o ato que impugnaram na presente arbitragem não comporta qualquer lesividade autónoma e própria e, nessa medida, os requerentes não retirariam da procedência desta arbitragem qualquer utilidade pessoal, imediata e direta nas suas esferas patrimoniais o que, a retas contas, é acaba por ser a definição de legal do conceito de legitimidade adjetiva (art. 26.º, n.º 2, do CPC).

Por último, não pode deixar de vigorar um princípio de autorresponsabilidade por parte dos contribuintes: não é aceitável que, como diz o adágio popular, se queira ao mesmo tempo sol na eira e chuva no nabal. Não podem os requerentes, por um lado, aceder ao convite da AT e corrigir a declaração de rendimentos e, por outro lado, colocar em causa o resultado direto e imediato desse comportamento que quiseram adotar, sob pena de se estar perante um verdadeiro caso de atuação em venire contra factum proprio. Se os requerentes entendiam ter direito a apresentar uma declaração de rendimentos sob o estatuto de RNH e acompanhada de Anexo L, deveriam tê-lo discutido no local e momento próprio, que era o da sindicância jurisdicional da decisão administrativa que viesse a ser proferida a rejeitar essa sua declaração fiscal. Não o tendo feito, e tendo mesmo acatado a sugestão administrativa, não se podem valer de uma pretensa ilegalidade que mais não é do que o resultado direto e causal do seu próprio comportamento.

Uma derradeira referência à circunstância de, conforme informam os requerentes, ainda se encontrar em discussão em sede procedimental tributária a pretensão administrativa de ver reconhecido ao requerente marido o estatuto de RNH a partir de 2021. Se tal pretensão vier a ser acolhida, naturalmente que dessa decisão terão de ser extraídas as necessárias consequências — seja por via de um procedimento de revisão oficiosa instaurado por iniciativa da AT, seja no puro plano da reconstituição da situação atual hipotética — quanto à manutenção e sobrevigência do ato tributário ora impugnado. Será, pois, esse o remédio jurídico que os requerentes têm à sua disposição para o agravo que reclamam lhes ter sido infligido com o não reconhecimento do estatuto de RNH ao requerente marido.

Procede assim a exceção de ilegitimidade ativa, obstativa do conhecimento do mérito da pretensão deduzida.

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Por outro lado, também é de convocar ao caso a aplicação supletiva do art. 53.º, n.º 1, do CPTA, na medida em que o ato de liquidação impugnado nos presentes autos se limita a reiterar, com os mesmos fundamentos, a decisão tributária contida na anterior Liquidação n.º 2022-..., sem que em relação a esta última se vislumbre qualquer conteúdo inovatório. Assim, a Liquidação Impugnada constitui um ato meramente confirmativo de um precedente ato de liquidação que não foi objeto de impugnação administrativa ou jurisdicional por parte dos requerentes e, como tal, é autonomamente inimpugnável (no sentido de que os atos tributários sem conteúdo inovatório são inimpugnáveis, cfr. Ac. STA 16-09-2021, P.º 2064/11.2BELRS).

A esse propósito é inequívoco que o ato impugnado nos presentes autos é a Liquidação n.º 2022-... de 05-08-2022, conforme se pode facilmente alcançar a partir do formulário informático de propositura da presente arbitragem, no qual o objeto do pedido arbitral vem expressamente circunscrito à impugnação de tal ato de liquidação. Por outro lado, como se decidiu supra, a pretensão de ampliação do objeto da instância foi indeferida, pelo que a apreciação da validade e legalidade da Liquidação n.º 2022-... está arredada do objeto deste processo arbitral.

Assim, o ato impugnado na presente instância arbitral — rectius, o único ato tributário impugnado nesta arbitragem — limita-se a reiterar ipsis verbis o conteúdo de um precedente ato tributário, sem qualquer carácter inovatório ou novidade na motivação fáctico-jurídica. Isto é, e com apelo à fórmula legal, a Liquidação n.º 2022-... reitera, com os mesmos fundamentos, a decisão de exação já contida na Liquidação n.º 2022-... .

Trata-se assim de um ato meramente confirmativo de um precedente ato de liquidação e, como tal, inimpugnável nos termos do art. 53.º, n.º 1, do CPTA, aplicável subsidiaria­men­te ao contencioso tributário.

Desse modo, procede também a exceção de inimpugnabilidade do ato de liquidação objeto da presente arbitragem.

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Na procedência das duas exceções ora em apreciação, tem a requerida de ser absolvida da presente instância arbitral, com a consequente extinção da mesma, como se decidirá a final, conforme resulta do art. 89.º, n.º 4, als. e) e i), do CPTA, supletivamente aplicável no âmbito da arbitragem tributária.

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Com a procedência das exceções de ilegitimidade ativa e de inimpugnabilidade do ato obje­to da presente arbitragem fica prejudicado o conhecimento da exceção de caso decidido administrativo, também deduzida na sua resposta pela administração tributária requerida.

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Tendo sido os requerentes a dar causa à extinção da presente instância arbitral, são eles os responsáveis pelas custas respetivas — art. 12.º, n.º 2, do RJAT e arts. 4.º, n.º 5, e 6.º, al. a), do Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária do CAAD.

Assim, tendo em conta o valor de EUR 30.356,29 atribuído ao presente processo arbitral em sede de saneamento, por aplicação da l. 6 da Tabela I anexa ao mencionado Regulamento, há que fixar a taxa de arbitragem em EUR 1.836,00, em cujo pagamento se condenará a final os requerentes.

 

 

— III—

            Assim, pelos fundamentos expostos, e na procedência das exceções dilatórias de ilegitimidade ativa e de inimpugnabilidade do ato objeto da presente arbitragem, absolvo a requerida Autoridade Tributária e Aduaneira da instância arbitral e, em consequência, condeno os requerentes A... e B... nas custas do presente processo arbitral tributário, fixando a taxa de arbitragem em EUR 1.836,00.

 

Notifiquem-se as partes.

Registe-se e deposite-se.

 

CAAD, 21 de novembro de 2023.

 

O Árbitro,

 

 

(Gustavo Gramaxo Rozeira)