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DECISÃO ARBITRAL
A árbitra Ana Paula Rocha, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral Singular constituído a 17 de maio de 2023, decide o seguinte:
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RELATÓRIO
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Da tramitação processual
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A..., com o número de identificação fiscal..., e B..., com o número de identificação fiscal..., casados, residentes na Rua..., Porto, – doravante designados como “Requerentes” –, vieram requerer a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo das disposições conjugadas do artigo 99.º, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) com o n.º 2022 ... e da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2022..., relativas ao ano de 2019, no montante total agregado de EUR 4.781,12 (sendo EUR 4.415,77 relativos a imposto e EUR 365,35 relativos a juros compensatórios).
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É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “Requerida” ou “AT”).
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Os Requerentes optaram por não designar árbitro.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD a 10 de março de 2023 e de imediato notificado à AT.
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Ao abrigo do disposto no artigo 6.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como Árbitra do Tribunal Arbitral Singular, tendo a signatária comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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A 27 de abril de 2023 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
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Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído a 17 de maio de 2023.
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Por despacho arbitral proferido a 22 de maio de 2023 nos termos do artigo 17.º do RJAT, a Requerida foi notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional, querendo. Mais foi notificada para, no mesmo prazo, apresentar o Processo Administrativo.
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A 26 de junho de 2023, a Requerida apresentou a sua Resposta e o Processo Administrativo composto pelo Relatório da Inspeção Tributária realizada ao Requerente marido e, bem assim, pelas respetivas notificações aos Requerentes e à sua Mandatária.
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Por despacho arbitral proferido a 3 de julho de 2023, e por tal se perspetivar útil ao apuramento da verdade material ao abrigo das als. c) e e) do art. 16.º do RJAT, o Tribunal Arbitral convidou os Requerentes a juntar aos autos a cópia de um recibo de vencimento emitido pela empresa C..., Lda. ao Requerente marido no ano de 2019 (relativamente a um mês em que tenha existido atribuição de cheque-creche) e a cópia de um ticket-infância atribuído ao mesmo Requerente em tal ano.
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A 12 de julho de 2023, os Requerentes vieram juntar a cópia de um recibo de vencimento emitido em 2019 ao Requerente, a relação de tickets utilizados naquele ano (a qual foi extraída dos registos da própria entidade emitente) e informar que tais tickets assumiram uma forma desmaterializada, juntando uma impressão do site da entidade emitente nesse sentido.
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Notificada para tanto por despacho arbitral proferido a 18 de julho de 2023, a Requerida AT veio exercer o seu direito de contraditório sobre os elementos e informações aportados aos autos pelos Requerentes, concluindo nessa sede que os documentos juntos “não vêm comprovar que os requisitos estabelecidos no D.L. nº 26/99 de 28/01 se encontram preenchidos”.
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Considerando que as Partes não invocaram matéria de exceção nem requereram a produção de prova testemunhal ou pericial, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia do tribunal na condução do processo e na determinação das regras a observar previsto nos artigos 16.º al. c), 19.º e 29.º n.º 2 do RJAT, prosseguindo o processo com alegações escritas facultativas e sendo designado o dia 17 de novembro de 2023 como prazo máximo provável para a prolação da decisão arbitral, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT.
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As Partes nada opuseram relativamente à dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo os Requerentes apresentado alegações escritas, onde essencialmente reiteraram os argumentos e a fundamentação que haviam invocado no Pedido de Pronúncia Arbitral (“PPA”). A Requerida não apresentou alegações.
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Síntese da posição das Partes
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Síntese da posição dos Requerentes:
Como fundamentos do PPA, os Requerentes vêm, em síntese, invocar e defender o seguinte:
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Os vales sociais que os Requerentes “receberam e utilizaram para os fins de auxílio no suporte das despesas incorridas com a educação e acompanhamento dos seus filhos menores, tinham todas as indicações ou condições de validade exigidas” pelo Decreto-lei n.º 26/99, de 28 de janeiro, encontrando-se “mencionada a expressão “vale infância””, “identificada a entidade emissora, a entidade patronal, a entidade aderente, a creche, bem como a identificação do seu utilizador” e mencionado “o respetivo número, a data e o prazo de validade”, “tudo o que não foi colocado em questão pela A.T.”.
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Mais defendem os Requerentes que “utilizaram tais vales para os fins que legalmente estão determinados: junto da entidade prestadora dos serviços de apoio à educação frequentada pelos dois filhos menores de sete anos dos Requerentes”.
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Nesta medida, os Requerentes entendem que se encontravam totalmente preenchidos “todos os requisitos legalmente exigidos, quer de facto quer de forma”, para que os valores recebidos a título de vales de infância fossem considerados como uma “comparticipação realizada pela empresa nas despesas de educação dos seus filhos menores de 7 anos, a frequentarem creches”, o que não configura um rendimento tributável em sede de IRS (destacando a este respeito que tais valores não foram “objeto de qualquer retenção de imposto sobre o rendimento, nem” de quaisquer “quotizações para a Segurança Social”).
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A este respeito, os Requerentes sublinham que apenas lhes compete “saber e controlar o que receberam”, bem como os critérios de “fundamentação e formalização dos vales”, sublinhando a este respeito que “não sabem, não podem saber e não resulta do RIT de quem se trata os outros alegados trabalhadores que preenchendo os requisitos para igualmente receberem vales de infância não os receberam”, uma vez que os valores pagos a título “de remunerações, de subsídios, de comparticipações ou de compensações, ou de prémios ou de quaisquer benefícios atribuídos pelas entidades patronais aos seus trabalhadores individualmente considerados, apenas são conhecidos da Entidade Patronal e de cada um dos trabalhadores, aquele que os recebe”, não sendo também possível “saber, e muito menos controlar, como a entidade patronal determinou quanto atribuir ou atribuiu nesta comparticipação a cada um dos seus colaboradores”.
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Para os Requerentes, “não pode ser exigido aos trabalhadores que recebem vales de infância, a verificação, junto da sua entidade patronal, se esta cumpre, ou não, com todas as demais condições legais para que possa considerar os custos em que certamente incorre com a aquisição de tais vales, como custos fiscais, majorados ou não, custos contabilísticos ou outra coisa qualquer”, uma vez que os funcionários não têm tal competência nem tal dever fiscal, mais adiantando que “a procura de tais informações violaria até as leis de proteção de dados individuais a que os seus colegas de trabalho têm direito” (mais referindo que não vislumbram “sequer como será que o digno Tribunal Arbitral possa confirmar, ajuizar, de tal asserção. Que contudo é fundamental para a apreciação da conclusão que no caso funciona como pressuposto”).
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Defendem ainda os Requerentes que não lhes podem ser agora imputadas as consequências resultantes das conclusões alcançadas pela AT na inspeção realizada junto da entidade patronal do Requerente marido (a saber, de que “a aquisição de vales de infância não podia ser considerado como custo fiscal, enquanto comparticipações, mas sim considerado como custo fiscal enquanto remunerações”), não só porque os Requerentes “têm na sua posse todos os elementos fundamentadores” do enquadramento fiscal que atribuíram aos tickets infância, mas também porque não são partes legítimas para “recorrer ou impugnar tal decisão que respeita única e exclusivamente à entidade patronal” do Requerente marido.
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Concluindo, pelo exposto, que a liquidação adicional de IRS e a liquidação de juros compensatórios carecem de suficiente fundamentação de facto e de direito, os Requerentes terminam pedindo que aquelas liquidações sejam anuladas, “tudo no valor de 4.781.12 euros, e mais sendo condenada a AT a pagar aos Requerentes os juros legais correspondentes à” prestação de garantia indevida (referindo a este respeito os Requerentes que “para sustar o prosseguimento de execução fiscal inevitável, a seu tempo e quando permitida, os Requerentes prestarão caução sob a forma de depósito do valor que for exigido, previsivelmente o montante de imposto de IRS e juros compensatórios acrescidos de 25% no total de 5.976.40 euros”).
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Síntese da posição da Requerida:
Na sua Resposta, veio a Requerida AT defender-se por impugnação, invocando e defendendo, em síntese, o seguinte:
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A ação inspetiva instaurada ao Requerente marido decorre dos factos apurados na inspeção que incidiu sobre o IRC do exercício de 2019 da sua entidade patronal (C..., Lda.), na qual “se verificou que foram atribuídos vales de infância a alguns dos funcionários daquela entidade” que, apesar de terem sido considerados abrangidos pelo disposto no artigo 43.º do Código do IRC (e, nessa medida, “isentos de tributação na esfera dos beneficiários, não tendo sido declarado nas DMR’s nenhuma importância com o código A23”), não cumpriam as “condições estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 26/99, de 28 de janeiro”, a saber:
“- os vales de infância não foram atribuídos a todos os trabalhadores elegíveis,
- o valor atribuído aos funcionários elegíveis, apresenta valores mensais e por filho, diferentes, pelo que a sua atribuição dependeu de outros critérios definidos pela empresa”.
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A este respeito, a AT esclarece que as entidades empregadoras podem adquirir os vales-infância “para utilizar como pagamento complementar à remuneração dos funcionários, e não como substituto da remuneração, promoção ou premiação dos trabalhadores, atendendo à vertente social inerente a este mecanismo”. “As empresas que atribuírem os vales-infância nas condições previstas no Decreto-Lei n° 26/99 beneficiam da exclusão tributária prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 2.°-A do Código do IRS, pelo que devem ser identificados na declaração mensal de remunerações (DMR) com o código A23. Nesta medida existem critérios base que as empresas têm de cumprir caso pretendam deduzir os cheques infância como custos com pessoal. (…) E os dois critérios essenciais são:
• Na hora de atribuir os cheques infância, o critério tem de ser igual para todos os trabalhadores que tenham filhos ou equiparados até aos sete anos de idade. (…)
• O valor do cheque infância tem de ser igual para todos os trabalhadores”.
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Por considerar que tais requisitos não foram cumpridos no caso vertente, é entendimento da AT que “não estamos perante um gasto com enquadramento no artigo 43º do CIRC” (realizações de utilidade social), razão pela qual as verbas atribuídas a esse título revestem a natureza de rendimentos do trabalho dependente ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 3 e do n.º 11 do artigo 2.º do Código do IRS. E “tendo em conta que é perfeitamente individualizado o valor atribuído a cada um dos beneficiários, estamos perante rendimentos do trabalho dependente (categoria A – rendimentos em espécie) sujeitos a tributação em sede de IRS, na esfera individual dos trabalhadores”.
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Neste contexto, e tendo sido apurado que ao Requerente marido “foi atribuído o montante de € 9.812,80 a titulo de vales de infância no ano de 2019, referente aos seus dependentes”, e não tendo sido este valor declarado como rendimento na Modelo 3 de IRS referente ao exercido de 2019, houve lugar a liquidação adicional do IRS incidente sobre aquele montante.
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A este respeito, a AT defende que não têm razão os Requerentes quando alegam que não têm a competência, o dever ou a possibilidade de “inspecionar a sua entidade patronal” no sentido de verificar o cumprimento dos requisitos acima referidos, pois que sendo do conhecimento do Requerente marido “a atribuição do benefício designado de “vales de infância”, é da sua responsabilidade informar-se sobre o respetivo enquadramento tributário, com vista ao cumprimento declarativo inerente e ajustado, uma vez que o desconhecimento da legislação não justifica o seu incumprimento”.
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Mais sublinha a AT que a circunstância de os valores em discussão não terem sido sujeitos a retenção na fonte por parte da entidade patronal “não justifica a sua não inclusão na declaração mod.3, uma vez que era do conhecimento do sujeito passivo ter recebido esse montante além do salário que foi sujeito a retenção”,
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Sendo ainda legítima a correção proposta pela AT, na medida em que esta “dispõe, em geral, de um prazo de 4 anos para efetuar as liquidações, entre as quais as de âmbito adicionais e oficiosas (artigo 45º da LGT). E mais: a AT tem uma atividade fiscalizadora, conforme artigos 44º do CPPT, 63º, 58º da LGT, entre outros”.
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Em conclusão, e por tudo o exposto, veio a AT pugnar pela improcedência do pedido formulado pelos Requerentes por total falta de apoio legal, mais pugnando pelo não reconhecimento de juros indemnizatórios a favor dos Requerentes, na medida em que o “ato de liquidação não enferma de qualquer vício que ponha em causa a sua legalidade e validade”.
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SANEAMENTO
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As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cfr. os artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e o artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
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O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, à face do preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), no artigo 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), no artigo 6.º, n.º 1 e no artigo 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
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O pedido de constituição do tribunal arbitral é tempestivo, porque apresentado dentro do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir da data-limite para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte, ao abrigo do disposto no artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT.
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Não existem exceções a apreciar e o processo não enferma de nulidades.
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Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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QUESTÕES A DECIDIR
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Objeto do pedido e thema decidendum
O PPA submetido pelos Requerentes tem por objeto a liquidação adicional de IRS com o n.º 2022... e a Demonstração de Acerto de Contas n.º 2022..., relativas ao ano de 2019, no montante total agregado de EUR 4.781,12.
Em face do PPA apresentado pelos Requerentes e da Resposta apresentada pela AT, a questão a decidir no presente Processo Arbitral é a de saber se os tickets-infância atribuídos ao Requerente marido no exercício de 2019 devem ou não ser classificados como rendimento de trabalho dependente e tributados em sede de IRS, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 3, alínea b) e n.º 11 e 2.º-A, n.º 1, al. b) do Código deste imposto. Decidindo-se em sentido favorável aos Requerentes, importará ainda analisar se se impõe reconhecer o direito destes a juros pela prestação futura de garantia indevida.
4. MATÉRIA DE FACTO
4.1 Factos provados
Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
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Na sequência da entrega conjunta da declaração de IRS (Modelo 3) referente ao exercício de 2019 dos Requerentes, foi emitida a 20.06.2020 a liquidação n.º 2020 ..., nos termos da qual os Requerentes apuraram um rendimento global de EUR 106.116,70, uma coleta líquida de EUR 27.127,50 e um valor de imposto a receber no montante de EUR 5.744,38 (cfr. o Doc. n.º 3, o art. 1.º do PPA e o art. 3.º da Resposta, cujos teores se dão por reproduzidos);
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Nesse mesmo ano de 2019, a entidade patronal do Requerente marido (C..., Lda.) atribuiu-lhe vales sociais na modalidade de tickets-infância, em formato digital desmaterializado, para fazer face às despesas escolares dos seus dois dependentes com menos de 7 anos de idade (cfr. Docs. juntos pelos Requerentes a 13.07.2023, cujos teores se dão por reproduzidos);
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Tais vales de infância totalizaram, em 2019, o valor global de EUR 9.812,80 (cfr. Docs. juntos pelos Requerentes a 13.07.2023, cujos teores se dão por reproduzidos);
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O valor atribuído a título de tickets-infância não foi sujeito a tributação em sede de IRS (facto admitido por acordo);
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A C..., Lda., entidade empregadora do Requerente marido, foi alvo de uma ação de inspeção referente ao IRC do exercício de 2019, no âmbito da qual foi analisado o enquadramento fiscal conferido à atribuição de tickets-infância por parte da empresa naquele exercício, não tendo sido efetuadas correções em sede de IRC (cfr. RIT, os art. 3.º e 4.º do PPA e o art. 3.º da Resposta, cujos teores se dão por reproduzidos);
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Nessa sequência, foi emitida a Ordem de Serviço interna n.º OI2022... com o objetivo de realizar uma inspeção tributária ao Requerente marido por referência ao IRS do exercício de 2019, no âmbito da qual os Serviços de Inspeção Tributária apuraram um rendimento global de EUR 115.929,50, tendo por base as seguintes considerações:
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Das conclusões da inspeção tributária referida em f) resultou a emissão da liquidação adicional nº 2022 ... de 28.10.2022 e do acerto de contas n.º 2022 ... de 3.11.2022 nos termos da qual foi apurada aos Requerentes uma coleta líquida de IRS de EUR 31.543.27 e um valor total a pagar no montante de EUR 4.781,12, correspondente a EUR 365,35 a título de juros compensatórios e a EUR 4.415,12 a título de imposto (cfr. Doc. n.º 1 e n.º 2, cujos teores se dão por igualmente reproduzidos);
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A liquidação adicional e o acerto de contas referidos em g) foram impugnados no contexto do presente processo arbitral, não tendo sido objeto de pagamento por parte dos Requerentes (cfr. o art. 52.º do PPA).
4.2 Factos não provados
Não resulta provado no presente processo arbitral que, em 2019, a C..., Lda. atribuiu tickets-infância a apenas alguns dos seus trabalhadores elegíveis para o efeito nem que o valor atribuído aos trabalhadores que receberam tickets-infância tenha apresentado valores mensais e por filho diferentes entre si.
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Motivação da matéria de facto
Os factos dados como provados fundam-se nos documentos juntos aos autos pelos Requerentes, no Relatório de Inspeção Tributária junto pela Requerida e na posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados.
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão, levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado pelos Requerentes, conforme o artigo 596.º, n.º 1 e o artigo 607.º, n.º 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, e consignar se considera tal matéria provada ou não provada, conforme resulta do artigo 123.º, n.º 2 do CPPT.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
Assim, tomando em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados. No que se refere, em especial, aos factos que se consideraram como não provados, e como se explicará melhor adiante no Ponto 4 da presente decisão arbitral, tal decorre da circunstância de a fundamentação do ato tributário impugnado – e que coincide com a fundamentação do Relatório da Inspeção Tributária realizada ao Requerente marido – consistir numa comunicação aos Requerentes dos critérios legais que, no entender da AT, não se encontravam cumpridos para efeitos de exclusão de incidência dos valores atribuídos a título de tickets-infância em sede de IRS, sem que se encontrem expostas as causas justificativas ou comprovativas de tal incumprimento, como era dever da AT.
4. DO DIREITO
O objeto dos presentes autos prende-se com a questão de saber se os valores de ticket-infância atribuídos ao Requerente marido no ano de 2019 podem ser fiscalmente enquadrados como um rendimento de trabalho dependente, sujeito a tributação em sede de IRS ao abrigo do disposto no artigo 2.º n.º 3 al. b) e n.º 11 do Código do IRS ou, alternativamente, como um vale social, excluído de tributação em sede de IRS ao abrigo do art. 2.º-A n.º 1 al. b) daquele Código.
À data dos factos (2019), os artigos 2.º e 2.º-A do Código do IRS dispunham, nos segmentos que relevam para a discussão do caso sub judice, que:
“Artigo 2.º - Rendimentos da categoria A
(…)
3 - Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente:
(…)
b) As remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídos na remuneração principal que sejam auferidos devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta e constituam para o respetivo beneficiário uma vantagem económica, designadamente:
(…)
11 - Para efeitos da alínea b) do n.º 3, consideram-se rendimentos do trabalho do sujeito passivo os benefícios ou regalias atribuídos pela respetiva entidade patronal a qualquer outra pessoa do seu agregado familiar ou que a ele esteja ligado por vínculo de parentesco ou afinidade até ao 3.º grau da linha colateral, ao qual se equipara a relação de cada um dos unidos de facto com os parentes do outro.
(…)”.
“Artigo 2.º-A – Delimitação negativa dos rendimentos da categoria A
1 - Não se consideram rendimentos do trabalho dependente:
(…)
b) Os benefícios imputáveis à utilização e fruição de realizações de utilidade social e de lazer mantidas pela entidade patronal, desde que observados os critérios estabelecidos no artigo 43.º do Código do IRC e os 'vales infância' emitidos e atribuídos nas condições previstas no Decreto-Lei n.º 26/99, de 28 de janeiro;
(…)”.
Das normas legais transcritas resulta à saciedade que, em sede de IRS, o enquadramento fiscal dos tickets-infância assenta na inclusão ou exclusão dos valores pagos a este título do âmbito de incidência do imposto. Com efeito, e de acordo com Rui Marques in “As realizações de utilidade social em IRC e IRS”, Wolters Kluwer, 2016, capítulos 10 e 18, “não constituem rendimento tributável para efeitos de IRS, os benefícios imputáveis à utilização e fruição de realizações de utilidade social e de lazer mantidas diretamente pela entidade patronal ou os vales sociais atribuídos por esta última com vista ao pagamento de creches, jardins de infância e lactários. Como vimos, trata-se aqui da gestão direta dos equipamentos ou a concessão do apoio financeiro aos trabalhadores. Mas esta não incidência de imposto depende, por vontade expressa do legislador, da observância dos critérios estabelecidos no artigo 43.º do Código do IRC, conforme resulta da alínea b), n.º 1, do artigo 2.º-A, do Código do IRS”. Se em sede de IRC estamos perante um verdadeiro benefício fiscal (e não um mero desagravamento fiscal de caráter estrutural), do lado dos beneficiários, e por expressa “vontade do legislador, o rendimento não é tributável, em face do disposto no artigo 2.º-A, n.º 1, alínea b), do Código do IRS” (“exceto na parte em que o respetivo montante exceda €1.100 por dependente nos casos dos vales educação, previstos na alínea b), do n.º 1, do artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 26/99, de 28 de janeiro”).
Assim, e considerando que as situações de não sujeição tributária não configuram benefícios fiscais ao abrigo do disposto nos n.º 1 e 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (considerando-se genericamente como situações de não sujeição tributária “as medidas fiscais estruturais de carácter normativo que estabeleçam delimitações negativas expressas da incidência”), importa ter presente o entendimento sufragado pelo TCA Norte nos Acórdãos proferidos a 25.03.2021 no processo n.º 00204/08.8BEMDL e a 3.5.2012 no processo n.º 00209/08.9BEMDL: “de acordo com o entendimento atual do princípio da legalidade administrativa, incumbe à AT o ónus de prova da verificação dos requisitos legais das decisões positivas e desfavoráveis ao destinatário, como sejam a existência dos factos tributários e a respetiva quantificação, isto quando o ato por ela praticado tem por fundamento a existência do facto tributário e a sua quantificação. Assim, incumbe à AT, em sede do procedimento administrativo-tributário de liquidação, indagar sobre a verificação do facto tributável e demais elementos pertinentes à liquidação do imposto, fazendo todas as diligências pertinentes para o efeito, e tal procedimento só pode culminar com a liquidação em sentido estrito quando, face aos elementos constantes do processo administrativo, estiver adquirida a convicção da existência e conteúdo do facto tributário (princípio da verdade material)”. Deste modo, e em articulação com a presunção de veracidade e de boa-fé das declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 75.º da LGT, o que está em causa e se impunha à AT seria, pois, dar cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT, nos termos do qual “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.
Contudo, e pese embora a repartição do ónus da prova nos termos acabados de descrever, o que se verifica no contexto do presente processo arbitral é que a AT não invocou nem reuniu elementos suficientes para abalar a presunção de veracidade da declaração de IRS entregue pelos Requerentes por referência ao exercício de 2019, e na qual os valores recebidos pelo Requerente marido a título de tickets-infância foram considerados como valores sem caráter remuneratório ao abrigo do disposto no artigo 2.º-A do Código do IRS não tendo, como tal, sido sujeitos a tributação em sede deste imposto.
Na verdade, a fundamentação do ato tributário impugnado – e que coincide com a fundamentação do Relatório da Inspeção Tributária realizada ao Requerente marido – consiste na mera comunicação aos Requerentes dos critérios legais que, no entender da AT, não se encontravam cumpridos para efeitos de exclusão de incidência dos valores atribuídos a título de tickets-infância em sede de IRS, sem que se encontrem expostas as causas justificativas ou comprovativas de tal incumprimento, como era dever da AT. Com efeito se, no entender da AT, os tickets-infância não cumpriam as “condições estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 26/99, de 28 de janeiro” por não terem sido “atribuídos a todos os trabalhadores elegíveis” e terem ascendido a “valores mensais e por filho, diferentes”, impunha-se a exposição e justificação dos motivos concretos que conduziram a tais considerações, informando de forma cabal os Requerentes sobre tais circunstâncias. Contudo, não se vislumbra naquele Relatório de Inspeção Tributária qualquer referência, ainda que de forma anonimizada, à existência de outros trabalhadores da C..., Lda. também elegíveis para efeitos de atribuição dos tickets-infância (com a referência do respetivo n.º de filhos, das suas idades e do grau de escolaridade frequentado em 2019), dos motivos pelos quais tais trabalhadores eram elegíveis, do eventual exercício de renúncia à atribuição de vales sociais ou dos valores diferentes que alegadamente foram atribuídos a cada funcionário, cuja concreta demonstração teria de constar do RIT, tal como resulta do disposto no artigo 77.º da Lei Geral Tributária e, entre outros, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido a 2.2.2022 no processo n.º 03014/11.1BEPRT.
O Relatório da Inspeção Tributária realizada ao Requerente marido apresenta, pois, as conclusões aparentemente decorrentes da análise realizada pela AT no contexto de uma outra inspeção tributária (v.g., a inspeção realizada à C..., Lda.), inspeção essa na qual os Requerentes não puderam exercer o respetivo direito de defesa nem de contraditório, por não assumirem, aí, a posição de entidade inspecionada. E se não puderam exercer tais direitos em sede desse procedimento inspetivo, o que se verifica é que também não o puderam fazer agora, uma vez que o Relatório da Inspeção Tributária realizado ao Requerente marido funcionou como uma espécie de extensão do Relatório referente à sua entidade empregadora sem que, contudo, lhe tivessem sido anexados quaisquer documentos ou argumentos que, ainda que de forma anonimizada, permitissem sustentar as conclusões formuladas pela AT sobre critérios atinentes aos demais trabalhadores da Empresa (documentos e argumentos esses aos quais os Requerentes sempre teriam dificuldade de aceder por motu proprio, desde logo, por questões inerentes à confidencialidade e proteção de dados de natureza pessoal).
Poderia colocar-se a questão de saber se o conhecimento do teor do relatório da inspeção tributária realizada à empresa não poderia ser feito a posteriori, já no contexto do presente processo arbitral. Contudo, e novamente sem entrar em questões relativas à confidencialidade dos dados que constam de tal relatório, importa sublinhar que o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão proferido a 22 de março de 2018 no âmbito do processo n.º 0208/17, decidiu já que “a fundamentação dos actos administrativos e tributários à posteriori não é legalmente consentida, cfr. os acórdãos do STA, de 26/3/2014, proc. nº 01674/13 e de 23/4/2014, proc. nº 01690/13, sendo que a validade do acto terá necessariamente que ser apreciada em função dos fundamentos de facto e de direito que presidiram à sua prática, irrelevando os que posteriormente lhe possam ser “aditados””. Neste mesmo sentido, o Supremo Tribunal Administrativo veio ainda aduzir, a 27 de junho de 2016 no âmbito do processo n.º 043/16, que “o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respectiva validade em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados pelo autor a posteriori na pendência de meio impugnatório. (…) A não ser assim, o interessado ver-se-ia surpreendido em juízo com a invocação de uma realidade diferente daquela que lhe foi dada a conhecer e isso representaria uma inadmissível contracção do seu direito de recurso”.
E dúvidas não existem quando à aplicabilidade destas considerações no contexto do processo arbitral tributário. Precisamente neste sentido, pode ler-se na decisão arbitral proferida a 9 de julho de 2020 no âmbito do processo n.º 826/2019-T que “o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele], pelo que os actos têm de ser apreciados tal como foram praticados”. Como tal, “a fundamentação ou a remissão para documentos [que contenham essa fundamentação] têm de integrar-se no próprio acto e serem contemporâneas dele, não relevando para apreciação da validade formal do acto fundamentos invocados posteriormente” (podendo ainda ser consultada, entre outras, a decisão arbitral proferida a 10 de setembro de 2021 no processo n.º 772/2020-T).
Como tal, o acervo de eventuais fundamentos do ato tributário que pudessem ser agora trazidos ao processo arbitral por via da junção do Relatório da inspeção tributária realizada à C..., Lda. nunca poderiam ser tomados em consideração, não só porque o tratamento da questão em análise em sede de IRC é matéria que não pode nem deve ser analisada neste concreto processo arbitral, mas também porque tais fundamentos não constam expressamente do Relatório da inspeção tributária realizada ao Requerente marido, indo mais além do que ali ficou dito, o que configuraria uma fundamentação subsequente do ato tributário (composta por evidências alheias aos aqui Requerentes e com as quais estes apenas se iriam confrontar já em sede de decisão judicial), de onde resultaria a prolação de uma decisão arbitral verdadeiramente inovatória.
Como tal, encontra-se justificado o pedido de anulação da liquidação adicional de IRS com o n.º 2022... e da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2022..., relativas ao ano de 2019, no montante total agregado de EUR 4.781,12, com fundamento na respetiva ilegalidade. Contudo, e uma vez que, in casu, os Requerentes não procederam ao efetivo pagamento dos montantes ilegalmente liquidados nem procederam à prestação indevida de qualquer garantia bancária, não há lugar à condenação da Requerida AT no pagamento de juros, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º n.º 5 do RJAT, do artigo 43.º n.º 1 da LGT e dos artigos 61.º, n.º 5 e 171.º do CPPT.
De harmonia com o disposto no artigo 24.º al. b) do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT.
5. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados, decide-se:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral em conformidade com o exposto e, em consequência, anular a liquidação adicional de IRS com o n.º 2022... e a Demonstração de Acerto de Contas n.º 2022..., relativas ao ano de 2019, no montante total agregado de EUR 4.781,12;
b) Julgar improcedente o pedido de juros pela prestação futura de garantia indevida, absolvendo-se a AT deste pedido.
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Valor: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do CPC (aplicável ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do CPC), no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de EUR 4.781,12 (quatro mil, setecentos e oitenta e um euros e doze cêntimos).
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Custas: Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em EUR 612 (seiscentos e doze euros). Bem assim, e ao abrigo do disposto nos artigos 12.º n.º 2 e 22.º n.º 4 do RJAT e no artigo 527.º n.º 1 e 2 do CPC, as custas do presente processo ficam a cargo dos Requerentes e da Requerida, respetivamente, na proporção de 10% e de 90%.
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Notifique-se.
Porto, 16 de novembro de 2023.
A Árbitra,
Ana Paula Rocha
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