DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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BANCO…, S.A., pessoa colectiva n.º…, com sede na Rua … (de ora em diante "Requerente"), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade das seguintes liquidações de Imposto Único de Circulação: … .
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O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado a 05-03-2014 e aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira, em 06-03-2014.
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Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 22-04-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
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Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 12-05-2014.
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Notificada para o efeito, a Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, por excepção, alegando a cumulação ilegal de pedidos, e por impugnação, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente. Suscita, ainda, a AT o incidente de intervenção principal provocada.
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Notificado para o efeito, a Requerente pronunciou-se por escrito quanto à matéria de excepção alegada pela AT.
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Atenta a circunstância de, no caso, não se verificar qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, as partes prescindiram da realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como da apresentação de alegações, que foram, assim, dispensadas.
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O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
II. DA INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
Na sua resposta a AT suscita o incidente da intervenção principal provocada, não indicando, todavia, qualquer norma legal que sustente essa sua pretensão, nem de qual dos lados da relação jurídico-processual se deveriam colocar os chamados, admitindo-se, contudo, que fosse do lado passivo.
O incidente de intervenção principal provocada, regulado actualmente nos art.ºs 316.º e ss. do Código de Processo Civil, não constitui uma excepção. De facto, não tem o incidente em questão a virtualidade de obstar à apreciação do mérito da causa (o que a constituiria como excepção dilatória – cfr. artigo 576.º/2 do Código de Processo Civil) ou, muito menos, de se constituir causa impeditiva, modificativa ou extintiva do seu direito (o que a constituiria como excepção peremptória – cfr. artigo 576.º/3 do Código de Processo Civil).
Antes, conforme resulta do próprio artigo 316.º do Código de Processo Civil, a intervenção provocada é a faculdade que, no âmbito do processo civil, assiste às partes de, verificados os pressupostos legais, chamar a juízo um terceiro, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
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Antes de prosseguir na apreciação do fundo da questão que agora nos ocupa, cumpre deixar bem claro o quadro em que a mesma concretamente se coloca.
Com efeito, não se pode em altura alguma deixar de ter presente que nos situamos no âmbito da jurisdição arbitral. Uma jurisdição arbitral específica, é certo, mas inquestionavelmente arbitral.
Neste âmbito vigora, plenamente, o princípio da livre condução do processo pelos árbitros, conforme resulta do art. 16.º/1/c) da RJAT, não sendo, portanto, de aplicação automática qualquer norma de natureza processual que não as que, expressamente, resultem daquela lei.
Não quer, evidentemente, o que vem de se dizer significar que as normas processuais ordinárias não contenham conteúdos normativos directamente transponíveis para o processo arbitral, mas tal transposição é sempre, e em qualquer caso, mediada pelo prudente critério dos árbitros, “com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas.” (artigo 16.º/1/c) da RJAT).
Para além de nos situarmos no quadro da jurisdição arbitral, encontramo-nos, obviamente, no âmbito da jurisdição tributária. Daqui decorre, então, que as normas processuais em primeira linha transponíveis para a regulação de questões processuais serão, obviamente as do processo tributário, na sua maioria condensadas no Código de Procedimento e Processo Tributário, que, no respectivo artigo 2.º nos diz que “São de aplicação supletiva ao procedimento e processo judicial tributário, de acordo com a natureza dos casos omissos:
a) As normas de natureza procedimental ou processual dos códigos e demais leis
tributárias;
b) As normas sobre a organização e funcionamento da administração tributária;
c) As normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários;
d) O Código do Procedimento Administrativo;
e) O Código de Processo Civil.”.
Ou seja, decorre do exposto que a lei processual civil é a última no elenco da legislação a aplicar aos casos omissos em matéria procedimental e processual tributária[1].
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De todo o exposto, resulta então, em suma, que a relação processual arbitral tributária é regulada de acordo com o prudente critério dos árbitros “com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas.”, tendo por base as normas processuais tributárias gerais, face às quais o Código de Processo Civil vem em último lugar no que ao preenchimento de casos omissos diz respeito.
É, então, face ao critério assim formulado que haverá que apreciar o pedido de intervenção principal provocada formulado pela entidade demandada.
Ora, conforme decorre de forma meridianamente clara do que vem de se dizer, as normas do Código de Processo Civil, que poderia fundar pedido de intervenção de terceiro formulado por aquela entidade, apenas serão aplicáveis se tal:
a) Não obstar “à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas.”; e
b) Se reconduzir a um caso omisso na legislação processual tributária, não preenchido por qualquer dos diplomas que precede o Código de Processo Civil na hierarquia dos diplomas aplicáveis aos casos omissos estabelecida no Código de Procedimento e Processo Tributário.
Ressalvado o respeito devido a outras opiniões entende-se que não ocorre nem uma nem outra das situações. Senão vejamos.
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Antes de mais, entende-se que a intervenção de terceiros no processo tributário, não constitui um caso omisso, a preencher pelas normas do Código de Processo Civil.
Com efeito, como é do conhecimento geral, o contencioso tributário português parte de uma matriz objectivista, estando estruturado, grosso modo, como um “processo a um acto” (tributário). Ou seja, o contencioso tributário, por norma e tal como acontece no caso sub iudice, tem por objecto um acto tributário cuja legalidade cumpre sindicar.
Em coerência com tal modelo, a legitimidade passiva cabe ao autor do acto, sendo a ele que incumbe defender a legalidade da sua actuação. Daí que, por exemplo, na petição inicial caiba apenas ao A. indicar aquele (artigo 108.º/1 do CPPT), e nada mais a tal respeito.
Por outro lado, a legitimidade activa, caberá aos visados com o acto tributário impugnado, que, no caso de este ser uma liquidação, serão aqueles a quem o imposto liquidado haja sido exigido, para além dos responsáveis solidários, e subsidiários, verificados que sejam os requisitos, respectivamente, dos n.ºs 2 e 3 do artigo 9.º do CPPT.
Compreendidas as coisas deste modo, fácil é de ver que a intervenção de terceiros interessados na manutenção ou na anulação do acto tributário impugnado, deverá ser fortemente restringida, senão mesmo excluída. Não deverá, portanto, a ausência de regulamentação relativa à intervenção de terceiros, no processo tributário ser encarada como uma lacuna, mas como uma deliberada intenção de a excluir, em tudo o que não resulte como admissível nos termos do próprio CPPT.
Aliás, e no que diga respeito ao lado passivo, que parece ser o caso que ora nos ocupa, essa deliberada intenção de excluir a intervenção principal provocada, ressaltará para além do mais, do contraste com as disposições do processo administrativo, onde se dispõe que o autor, para além do mais, deve, na petição inicial, identificar os contra-interessados na manutenção do acto impugnado (artigo 78.º/2/f) do CPTA).
Isto mesmo foi já afirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo em situação análoga, no âmbito do processo 0624/10, em cujo acórdão datado de 17-11-2010 se escreveu que “Atenta a natureza subjectiva do contencioso tributário em geral e a estrutura do processo de impugnação judicial … se não encontra espaço para a defesa de contra-interesses particulares na manutenção do acto impugnado…” (acórdão disponível para consulta na página www.dgsi.pt).
Efectivamente, a atendibilidade de interesses terceiros em relação ao autor do acto impugnado no âmbito do processo tributário, redundaria na profunda subversão da sua estrutura.
Ainda que assim não fosse, devidamente ponderadas as exigências de celeridade que devem orientar as decisões deste tribunal arbitral em matéria de regulação da relação processual, e as previsíveis repercussões do deferimento da pretensão da entidade demandada que ora se aprecia no andamento da marcha processual, sempre se deveria entender que as normas do Código de Processo Civil relativas à intervenção principal provocada, que poderiam fundar a pretensão da entidade demandada nesta matéria, serão, em concreto, inaplicáveis à presente instância arbitral.
Face ao exposto, indefere-se o pedido de intervenção principal provocada, formulado pela AT.
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Assim, uma vez que, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), e o processo não enferma de nulidades, cumpre proferir
III. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente é uma instituição de crédito com forte presença no mercado nacional.
2- Nas suas áreas de actividade, inclui-se o financiamento ao sector automóvel.
3- Uma parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração - entre outros - de contratos de locação financeira destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.
4- Estes contratos obedecem, de forma geral, a um guião comum, próprio deste tipo de financiamentos: a Requerente, depois de contactada pelo cliente - que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e inclusive o seu preço - adquire o veículo ao fornecedor que lhe seja indicado pelo cliente, e procede, de seguida, à sua entrega ao referido cliente - que assume, pois, a qualidade de locatário.
5- Durante o período que vier a ser estipulado no contrato, este locatário mantém o gozo temporário do veículo - que permanece propriedade da Requerente -, mediante remuneração a entregar à Requerente sob a forma de rendas; podendo vir a adquirir o veículo, para si ou para terceiro, no termo do contrato, mediante o pagamento de um valor residual, ou na vigência daquele, nas condições que estejam previstas.
6- Os veículos automóveis a que se referem as liquidações objecto do presente processo, com as matrículas …, estavam, nos períodos de tributação a aquelas se referem, registados em nome da Requerente.
7- As viaturas acima identificadas, nos períodos das liquidações objecto do presente processo cujo período de tributação se iniciou em data anterior à da respectiva venda, abaixo indicada, estiveram sempre cedidas pela Requerente, em regime de locação financeira, ao abrigo de contratos validamente celebrados.
8- Os locatários dos referidos veículos automóveis decidiram exercer a sua opção de compra, contra o pagamento do contravalor contratualmente devido.
9- Assim, os veículos em questão foram vendidos nas seguintes datas:
…
…
…
…
10- As alienações das viaturas em questão não constavam do registo automóvel, nos anos a que se reportam as liquidações em causa no presente processo.
11- A Requerente procedeu, tempestivamente, ao pagamento das liquidações objecto do presente processo.
12- Por ter procedido ao seu pagamento ao abrigo do regime excepcional instituído pelo Decreto-Lei 151-A/2013, a Requerente apenas pagou o montante devido (e constante dos referidos actos de liquidação) a título de imposto, tendo-lhe sido dispensado o pagamento dos correspondentes juros compensatórios.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto consensualmente reconhecidos e aceites pelas partes, com excepção dos factos a que se reporta o ponto 9, que a Requerida contesta.
Relativamente a estes últimos factos o Tribunal formou a sua convicção a partir da prova documental disponível, livremente apreciada, tendo em conta um juízo de normalidade fundado na experiência comum das coisas.
Efectivamente, sendo disponibilizadas pela Requerente as facturas de venda, bem como os contratos de locação financeira das viaturas em causa (cuja finalidade normal é, justamente, a transmissão da propriedade da viatura pelo locador, no termo do contrato), e tendo em conta que não seria – de todo – normal que as facturas em questão fossem realmente emitidas (e a Requerida não contesta que o hajam sido), suportando a Requerente o IVA e o acréscimo de rendimento correspondente, para mascarar uma transacção fictícia com finalidades que não se adivinham (e que nem a Requerida sugere), não se quedou qualquer dúvida razoável a este Tribunal, no que diz respeito à efectiva ocorrência da venda das viaturas, nos termos dados como provados.
Foi ainda ponderada a circunstância de o ramo de actividade da Requerente – que é público e notório – não ter qualquer espaço para a retenção sistemática de viaturas em segunda mão.
Não se deu como provado ou não provado o teor do artigo 16.º do requerimento inicial, dado o seu carácter conclusivo.
B. DO DIREITO
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Tendo em vista obstar ao conhecimento do mérito da causa, argui a AT, na sua resposta, a excepção da cumulação ilegal de pedidos, alegando, em suma, que “no caso em apreço, a procedência dos pedidos vários pedidos de anulação não depende in totum da apreciação das mesmas circunstâncias de facto”, já que “relativamente a cada um dos actos de liquidação cuja anulação se pretende, a Requerente invoca uma circunstância factual distinta, consubstanciada numa factura individualizada.”.
Ressalvado o respeito devido, entende-se que no caso a razão pende para o lado da Requerente.
De facto, dispõe o art.º 3.º/1 do RJAT:
“A cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.”.
Do preceito em causa resulta que são pressupostos da admissão da cumulação de pedidos, em sede do processo arbitral tributário, que a procedência dos pedidos dependa essencialmente:
a) da apreciação das mesmas circunstâncias de facto; e
b) da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.
Ora, ressalvada melhor opinião, dizer que a cumulação será admissível quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto, não é o mesmo que dizer que aquela só será admissível quando a procedência dos pedidos dependa da apreciação dos mesmos factos, que é aquilo a que a interpretação pugnada pela AT se reconduz.
Efectivamente, a utilização do advérbio essencialmente e da expressão “circunstâncias de facto”, e não, meramente, “factos”, terá de ter um significado, e esse será o de remeter para uma juízo de analogia entre os factos sub iudice, do qual resulte que aqueles factos detêm, entre si, naquilo que é juridicamente relevante, uma relação de semelhança que implique que o juízo a fazer sobre os mesmos seja de idêntica natureza.
Ora, em concreto, estando em causa a venda de diversos automóveis (e não as facturas, ao contrário do que parece entender a AT; com efeito, o facto será a venda, e factura mero meio de prova) não se pode concluir de outra forma, que não seja ser esse o caso.
Assim sendo, ter-se-á de considerar que os pedidos formulados relativamente às diversas liquidações de IUC em causa nos autos, dependem essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto, bem como da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, pelo que a cumulação dos correspondentes pedidos anulatórios é admissível, nos termos do disposto no artigo 3.º/1 do RJAT, devendo ser, por isso, admitida.
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Em causa nos autos está apurar se a requerente deverá, ou não, ser considerada sujeito passivo de IUC, relativamente a viaturas que adquiriu e sobre as quais celebrou contrato de locação financeira (Leasing), e que alienou sem que tal operação tenha sido devidamente levada ao registo, tendo em conta dois períodos distintos, saber:
i) Nos períodos de tributação em cujo dia inicial vigorou o contrato de leasing;
ii) Nos períodos de tributação subsequentes àquele em que ocorreu a alienação – não registada – da viatura, e onde o referido contrato já se tinha extinguido.
A matéria em causa foi já objecto de várias decisões no âmbito de tribunais arbitrais a funcionar no CAAD[2], na sua maioria no sentido da procedência dos respetivos pedidos, e a cujos fundamentos, de uma forma geral se adere, dispensando-se, por desnecessária e fastidiosa, a sua reprodução, dado que no presente processo não foram adiantados argumentos inovadores, formulando-se, unicamente, as precisões que seguem.
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i)
Dispõe o artigo 3.º do CIUC que:
“1- São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”.
O artigo 4.º do mesmo Código refere que:
“1 - O imposto único de circulação é de periodicidade anual, sendo devido por inteiro em cada ano a que respeita.
2 - O período de tributação corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários, relativamente aos veículos das categorias A, B, C, D e E, e ao ano civil, relativamente aos veículos das categorias F e G.”.
Por fim, o artigo 6.º, também do CIUC, diz-nos que:
“1 - O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. (...)
3 - O imposto considera-se exigível no primeiro dia do período de tributação referido no n.º 2 do artigo 4.º.”
Da conjugação das normas referidas, e tendo em especial consideração o n.º 3 do artigo 6.º, conclui-se que o IUC será um imposto anual, que se vence no primeiro dia do período de tributação, sendo sujeito passivo do mesmo o proprietário do veículo, ou quem lhe seja equiparado.
Em concreto, verifica-se que, no primeiro grupo de casos em apreço, o proprietário do veículo era a Requerente.
Contudo, verifica-se, igualmente, que as viaturas em causa, no período que ora nos ocupa, se encontravam cedidas a terceiros, ao abrigo de contratos de locação financeira.
Deste modo, constata-se o preenchimento das previsões, quer do n.º 1, quer do n.º 2, do artigo 3.º do CIUC.
A questão que se coloca, então, é a de saber se a verificação daquele n.º 2 afasta ou não a sujeição resultante do n.º 1.
Não sendo questão de solução linear, podendo elaborar-se argumentos quer num quer noutro dos possíveis sentidos de resposta, entende-se que a resposta a dar deverá ser positiva, ou seja que no caso de existir um “equiparado” a proprietário, a sujeição deste (do proprietário) ver-se-á afastada, sendo apenas o “equiparado” sujeito passivo do imposto.
Esta resposta impor-se-á, julga-se, essencialmente e para além do mais, por razões de coerência do sistema, tendo em conta, sobretudo, que no caso do IMI (cfr. artigo 8.º/2 e 3) a sujeição a imposto por não-proprietário afasta a sujeição do proprietário.
Assim, não obstante a distinta – e, porventura, pouco feliz – terminologia utilizada no CIUC, tendo em conta os critérios interpretativos formulados no artigo 9.º do Código Civil, e em especial a falta de motivos para que um legislador razoável regule em termos distintos a equiparação à propriedade nos casos do IUC e do IMI, entende-se que, efectivamente, a definição do sujeito passivo daquele imposto se fará, alternativamente (e não cumulativamente), nos termos do n.º 1 ou do n.º 2 do artigo 3.º do respetivo Código.
Este entendimento, de resto, é reforçado pela obrigação consagrada no artigo 19.º do CIUC, que impõe “às entidades que procedam à locação financeira” a obrigação “fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados.”. Naturalmente que esta obrigação apenas se compreenderá, na perspectiva de que as entidades locadoras vejam a sua sujeição afastada por força da locação, já que, se assim não fosse, aquela não faria sentido, uma vez que a AT poderia sempre cobrar o imposto em causa à locadora, entidade que será, de resto e por regra, mais solvente que o locatário.
Deste modo, estando os veículos em questão em regime de locação financeira, o sujeito passivo do respetivo IUC será o locatário, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, e não a Requerente, enquanto proprietária, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo.
Não obsta ao que vem de se concluir, a circunstância de a Requerente poder não ter dado o devido cumprimento ao disposto no atrás referido artigo 19.º do CIUC. Com efeito – e como é bom de ver – a sanção pelo incumprimento de qualquer obrigação que a esse respeito caiba ou coubesse à requerente, ter-se-ia sempre que procurar em sede do Regime das Infracções Tributárias, e não, naturalmente, na sujeição a um imposto.
Incorreram, assim e face ao exposto, as liquidações a que se refere a presente parte em erro de direito, devendo, como tal, ser anuladas.
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ii)
Quanto ao segundo grupo de situações – que se reporta aos períodos de tributação subsequentes àquele em que ocorreu a alienação, não registada, da viatura – a questão que se coloca é a de saber se não tendo sido registada a transferência de propriedade da Requerente para os adquirentes das viaturas, se deverá, ou não, considerar aquela sujeito passivo do IUC correspondente.
Estamos aqui para lá da vigência do contrato de locação financeira, numa situação em que apenas está em causa a aplicação do já transcrito n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, e não já do seu n.º 2.
Concretamente, trata-se de saber se a estatuição legal de que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”, visa onerar, sem mais, com a sujeição ao imposto, o titular do registo sobre a viatura, ou se, antes, este registo apenas faz presumir a propriedade, sendo esta última situação jurídica o objecto da incidência do imposto.
Concedendo-se que formulação legislativa não é aqui, uma vez mais, tão feliz como poderia ser, entende-se, todavia, que será, de facto, a propriedade do veículo automóvel o objecto de incidência do imposto, não se devendo considerar o IUC como um “imposto sobre o registo”[3].
Neste sentido, aliás, e para além de tudo aquilo que muito doutamente foi expendido nas decisões para as quais aqui, oportunamente, se remeteu, basta ver que o registo não é o único índice de propriedade utilizado no Código. Assim, no artigo 6.º/1, também já transcrito, refere-se que “O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional”. Ou seja, a matrícula ou registo, não serão, em si mesmos, o objecto de incidência do imposto, mas antes meros meios de atestar a propriedade dos veículos.
Deste modo, e apurando-se in casu, que, efectivamente, os veículos a que se reportam as liquidações em causa, referentes a períodos posteriores à vigência dos contratos de locação financeira que sobre eles incidiram, foram vendidos pela Requerente, não sendo, como tal, no início dos períodos em questão, sua propriedade, não deverá ser esta sujeita ao correspondente IUC, devendo também estas liquidações ser, atento o erro de facto e de direito que lhes subjaz, anuladas.
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Cumula a Requerente com o pedido anulatório do acto tributário objecto dos presentes autos, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios sobre a quantia por si paga na sequência da notificação das liquidações ora anuladas.
É pressuposto da atribuição de juros compensatórios que o erro em que laborou a AT lhe seja imputável[4].
Os contratos de locação financeira, para além de serem registados, devem ser comunicados à AT ao abrigo do artigo 19.º do Código do IUC - no momento em que era devido o imposto.
Sucede que, no caso, nada se apurou quer quanto ao registo dos contratos de locação financeira, quer quanto ao cumprimento pela Requerente da obrigação que lhe assistia, por força do artigo 19.º do CIUC.
Tratando-se, tais factos, de matéria que favoreceria a Requerente, deveria a mesma ter procedido à sua oportuna alegação e prova. Não tendo cumprido esse seu ónus, nem resultando os mesmos de qualquer elemento probatório disponível no processo, não poderão os mesmos ser atendidos.
Deste modo, não se tornando possível formular o juízo de censura indispensável à condenação da AT em juros indemnizatórios, deverá o correspondente pedido ser desatendido.
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Alega a AT que não deverá ser responsabilizada pelas custas do presente processo arbitral, por ter sido a Requerente quem deu causa à acção.
Afigura-se, contudo, que não lhe assiste razão.
Efetivamente, no processo tributário arbitral a AT é notificada do pedido arbitral e pode, nos termos do artigo 13.º/1 do RJAT, proceder à revogação do acto tributário contestado. Pelo menos aí, a AT teve conhecimento dos fundamentos alegados pela Requerente, e que conduziram à presente decisão arbitral, e optou por prosseguir com a via litigiosa.
Daí que deva ser responsabilizada pelas custas.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Indeferir o incidente de intervenção principal provocada, suscitado pela AT;
b) Julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, anular os actos tributários objecto dos presentes autos e condenar a AT a restituir à Requerente o imposto pago;
c) Absolver a AT do pedido de condenação em juros indemnizatórios;
d) Condenar a AT nas custas do processo, no montante de €612,00, tendo-se em conta o já pago.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €3.223,97, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa
3 de Dezembro de 2014
O Árbitro
(José Pedro Carvalho)
[1] O mesmo ocorrendo no contexto do RJAT (cfr. artigo 29.º/1/e)).
[2] Cfr. processos 14/2013T, 26/2013T, 27/2013T, 73/2013T e 170/2013T, 256/2013T, 286/2013T, 289/2013T e 294/2013T, todos disponíveis em www.caad.org.pt.
[3] O que sempre se teria de concluir seguindo-se a tese sustentada pela AT, atenta a inadmissiblidade de presunções inilidíveis, em matéria de incidência de tributos (como é o caso), decorrente do artigo 73.º da LGT.
[4] Cfr. artigo 43.º da LGT.