DECISÃO ARBITRAL
Processo n.º 344/2023-T
SUMÁRIO:
Determina a inutilidade superveniente da lide a revogação integral pela Autoridade Tributária do acto de liquidação de IRS impugnado no processo arbitral, o que constitui causa de extinção da instância nos termos do art. 277.º, al. e) do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
I. Relatório.
a) Partes e pedido de pronúncia arbitral.
1. A..., contribuinte n.º..., com domicílio fiscal em Rua ... nº..., ... - ... ..., Oeiras (a seguir, o “Requerente”) apresentou, em 09.05.2023, em conformidade com os artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), pedido de pronúncia arbitral, em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (a seguir, Requerida ou AT), no qual peticiona a anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) com o n.º 2022... relativa ao ano de 2021 no valor a pagar de €17.116,35 e da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2023... apresentada contra a referida liquidação.
b) Dinâmica processual
2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o signatário, que aceitou o encargo e a cuja designação as partes não apresentaram recusa.
3. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 17.07.2023.
4. O Tribunal foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.3) e encontram-se devidamente representadas.
5. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente peticionou que seja declarada a ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS n.º 2022... relativa ao ano de 2021 no valor a pagar de €17.116,35 e da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2023..., apresentada em relação à referida liquidação, para o que alegou, em síntese, que:
i) o Requerente encontra-se inscrito como Residente Não Habitual (doravante RNH) desde 2021;
ii) em 2021 o Requerente, entre outros rendimentos, obteve no estrangeiro rendimentos de mais-valias mobiliárias de fonte norte-americana, os quais declarou no quadro 9.2 A do Anexo J da mencionada declaração Modelo 3, identificadas com o código G01 ("Alienação onerosa de acções/partes sociais);
iii) em virtude do estatuto RNH de que beneficia, o Requerente entregou a Declaração de IRS referente a 2021 com o respectivo Anexo L, no qual optou pelo método de isenção no que respeita à eliminação da dupla tributação internacional;
iv) consequentemente foi o Requerente notificado da liquidação de IRS nº 2022..., no valor de € 17.116,35;
v) a aludida liquidação enferma, no entanto, de manifesto erro, porquanto não foi aplicado o método da isenção aos rendimentos de mais-valias mobiliárias de fonte estrangeira que foram auferidas pelo Requerente em 2021, conforme estatuído no art. 81º, nº5, nº5, do CIRS;
vi) tendo pelo contrário a AT liquidado o imposto através da aplicação da taxa especial de 28% pervista no art. 72º, nº1, c) do Código do IRS à totalidade das mais-valias mobiliárias (rendimentos de categoria G) auferidas pelo ora Requerente.
6. Notificada a AT, conforme despacho de 17.07.2023, para apresentar resposta nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 17.º do RJAT, por requerimento de 20.09.2023, a mesma veio informar que “em 02/08/2023, a Subdiretora Geral da Área da Gestão Tributária - Impostos Sobre o Rendimento, proferiu Despacho de Revogação do ato de liquidação em dissídio, nos termos aí expostos”. Juntou a Informação da DSIRS onde foi exarado o despacho revogatório.
7. Notificado o Requerente, conforme despacho de 22.09.2023, para se pronunciar sobre a comunicação da revogação do acto apresentada pela Requerida, veio aquele, por requerimento de 04.10.2023, declarar “nada ter a opor ao proposto pela requerida”.
8. Por despacho de 04.10.2023, o Tribunal Arbitral, tendo em atenção que a matéria pendente de apreciação no presente processo respeita à revogação do acto e suas consequências nos autos, relativamente à qual foi exercido o contraditório, dispensou a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, bem como a produção de alegações, e fixou como data para a prolação da decisão final o dia 23.10.2023.
9. Cumpre, pois, proferir decisão em relação à questão da inutilidade superveniente da lide, na qual se centra, atualmente, a cognição que cabe realizar por este Tribunal.
II. Fundamentação
10. As ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão do presente processo, relativamente à questão em apreciação da inutilidade superveniente da lide, são os que constam do relatório antecedente, que aqui se dão por reproduzidos, importando também, já que não se descortina matéria que releve dar como não provada, especificar ainda os seguintes factos provados:
I. O Requerente foi objeto da liquidação de IRS n.º 2022... relativa ao ano de 2021 no valor a pagar de €17.116,35, na qual, apesar da sua qualificação como RNH, foram considerados os rendimentos de mais-valias mobiliárias auferidos nos Estados Unidos da América (doc. n.º 2 junto ao pedido de pronúncia arbitral).
II. O Requerente deduziu contra a referida liquidação de IRS n.º 2022... reclamação graciosa com o n.º ...2023... (cfr. doc. n.º 1) juntos ao pedido de pronúncia arbitral), alegando o seu estatuto de RNH, reclamação essa que foi indeferida por despacho de 29.04.2022, que se fundamentou, em síntese, em manter “o entendimento do facto de os rendimentos de mais-valias mobiliárias auferidos nos Estados Unidos da América, a competência para a tributação ser exclusiva de Portugal, enquanto Estado da residência, não se aplicando o método de isenção previsto no art.º 81º, n.º 5 do Código do IRS” (vd. o referido doc. n.º 1).
III. Por despacho da Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária-IR, por delegação, datado de 02.08.2023, e exarado na Informação da DSRI de 05.07.2023 proferida no processo ...2023..., foi revogado o acto de liquidação de IRS n.º 2022..., do ano de 2021, com os seguintes fundamentos essenciais (cfr. o documento junto com o requerimento da AT acima indicado, que aqui se dá por integralmente reproduzido):
- “(…) 1. Antes de mais, importa discorrer sobre os factos e o direito, não controvertidos nos presentes autos.
2. Compulsada a base de dados da administração fiscal, verificamos que o requerente encontra-se registado como RNH, durante o período de 2021 a 2030.
3. Nesse sentido, importa salientar que, não obstante a sujeição dos residentes não habituais à regra estipulada no artigo 15º, nº 1 do CIRS.
4. Ou seja, à incidência de IRS sobre a totalidade dos respetivos rendimentos, incluindo os obtidos no estrangeiro.
5. Não é menos verdade, que o contribuinte pode beneficiar dos mecanismos de eliminação da dupla tributação jurídica internacional previstos no art.º 81º do CIRS, relativamente aos rendimentos obtidos fora do território nacional.
6. Apesar de o método previsto no art.º 81.º do CIRS ser, em termos gerais, o método de imputação normal, no caso de RNH é aplicável, relativamente aos rendimentos obtidos no estrangeiro, quando se verifiquem as condições previstas nos n.ºs 4, 5 e 6 do art.º 81.º do CIRS- método da isenção”.
- “(…) 8. Ou seja, o itinerário hermenêutico aponta, imprescindivelmente, para a observação da CDT celebrada entre Portugal e os EUA.
9. Ora, o que o autor propugna, a favor do seu entendimento, respeita ao disposto no Protocolo Anexo à supramencionada CDT.
10. Neste domínio, sendo certo que o dito Protocolo, na correspondente alínea b), do nº 1, prevê, efetivamente a tributação pelos EUA dos seus cidadãos, com base no critério da nacionalidade.
11. É notória a previsão e tributação pela cidadania, configurando-se uma exceção ao preceituado na CDT em causa".
- “(…) Note-se que, pese embora não tenha resultado demonstrado que os EUA tenham efetivamente feito uso do seu poder de tributar, tributando os rendimentos em causa, nem que o Requerente tenha pago naquele Estado imposto respeitante aos rendimentos em causa, a verdade é que tal é, para o caso, irrelevante.
Isto porque a isenção prevista no artigo 81º nº 5 a) do CIRS não exige qualquer tributação efetiva, bastando-se com a possibilidade de tal tributação.
24. É manifesta a relevância da nacionalidade norte-americana, para efeitos de aplicação do método de isenção peticionado.
25. Compulsado o passaporte do contribuinte, válido no período entre 2016 e 2026, junto aos autos da reclamação graciosa sobredita, é visível a respetiva nacionalidade americana.
26. Pelo que não militam razões que obstem à procedência do pedido (…)”.
- “Face ao exposto, da análise aos documentos apresentados pelo sujeito passivo e atendendo à informação recebida das autoridades fiscais da Irlanda confirma-se que deverá ser atendido o pedido do sujeito passivo anulando-se o ato contestado, nomeadamente a não tributação dos rendimentos auferidos no estrangeiro, estando apenas sujeito a tributação em Portugal os rendimentos obtidos no nosso território (cf. disposto no art. 18º do CIRS)”.
11. Resulta desta factualidade dada como provada com base nos documentos acima elencados que, pelo despacho de 02.08.2023, foi revogado (rectius, anulado) o acto de liquidação de IRS n.º 2022... relativa ao ano de 2021 no valor a pagar de €17.116,35, que era sindicado nos presentes autos e que constituía, assim, objecto do presente processo arbitral.
Ora, verifica-se a inutilidade superveniente da lide quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por ter sido atingido por outro meio o resultado que a parte visava obter, o que implica, em conformidade com o disposto no art. 277.º, al. e), do Código de Processo Civil (CPC), a extinção da instância.
Na verdade, atenta a revogação, rectius anulação administrativa (cfr. art. 165.º do Código do Procedimento Administrativo) do acto de liquidação sindicado, a pretensão do Requerente e a resolução do correspondente litígio por este Tribunal deixa de assumir relevância, pois o efeito peticionado de desaparecimento da ordem jurídica do acto impugnado foi alcançado por outra via, a anulação administrativa, do que decorre que o prosseguimento dos autos não envolve a esse respeito quaisquer consequências para o Requerente.
A extinção da instância, em consequência da revogação do acto, como resulta do relatório antecedente, não é, aliás, controvertida, dado que ambas as partes subscrevem esse desfecho processual.
Termos em que se decide julgar a presente instância arbitral extinta por inutilidade superveniente da lide nos termos do art. 277.º, alínea e) do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
12. Impõe-se, seguidamente, apreciar a responsabilidade quanto a custas decorrente da decisão de extinção da instância, em cumprimento do determinado pelo art. 22.º, n.º 4 do RJAT e pelo art. 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária.
Antes do mais, note-se que, não obstante a possibilidade de revogação do acto prevista no art. 13.º, n.º 1 do RJAT, tal previsão não tem aplicação ao caso, porquanto o exercício das faculdades administrativas aí previstas tem que ser realizado no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral (cfr. n.ºs 3 e 4 do art. 10.º do RJAT). Dado que a AT foi notificada do presente processo em 16.05.2023, conforme resulta da referência constante do sistema de gestão processual do CAAD, conclui-se que o prazo estabelecido no indicado art. 13.º, n.º 1 já tinha decorrido na data do despacho revogatório. Daí que se tenha verificado a constituição do Tribunal Arbitral e o início do processo arbitral em conformidade com o art. 15.º do RJAT, sendo, pois, neste âmbito processual (que é alheio à previsão do art. 3.º-A do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, que se reporta ao procedimento arbitral) que cabe decidir a “fixação do montante e a repartição pelas partes das custas diretamente resultantes do processo arbitral” (n.º 4 do art. 22.º do RJAT).
Em matéria de custas, o art. 536.º do CPC, aplicável por força do art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT, estabelece que: “Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas” (n.º 3) e que: “Considera-se, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior e salvo se, em caso de acordo, as partes acordem a repartição das custas” (n.º 4).
Como se explica no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 13.05.2021, proc. n.º 01640/17.4BEBRG: “para gerar a sua responsabilização pelas custas, a imputação ao réu do facto causal da inutilidade superveniente não terá de configurar uma imputação subjetiva, traduzida na eventual censura ético-jurídica pela sua reação tardia à pretensão deduzida na ação, sendo suficiente que essa imputação seja objetiva, isto é, que o facto que retira utilidade à lide seja do domínio do réu”.
Pois bem, não se pode deixar de concluir que é imputável à Requerida a inutilidade superveniente da lide porquanto isso resultou da anulação administrativa do acto sindicado, portanto, de um acto no estrito domínio da AT, o qual se fundou na não aceitação da aplicação do art. 81º, nº5, CIRS (cfr. facto provado n.º III).
Nestes termos, como a inutilidade superveniente da lide é objectivamente imputável à Requerida, dado o acto praticado de anulação administrativa da liquidação sindicada no decurso da presente instância, é responsável pela totalidade das custas, em conformidade com o previsto nos citados n.ºs 3 e 4 do art. 536.º do CPC.
III. Decisão
Termos em que se decide:
-
julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide por falta de objeto, nos termos do art. 277.º, al. e) do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT;
-
condenar a Requerida nas custas arbitrais, em conformidade com o art. 563.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
IV. Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, fixa-se ao processo o valor de €17.116,35 (dezassete mil, cento e dezasseis euros e trinta e cinco cêntimos), que constitui a importância da liquidação objecto do pedido de pronúncia arbitral.
V. Custas
De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €1.224,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, conforme acima decidido.
Notifique.
Lisboa, 13 de Outubro de 2022.
O Árbitro
(Luís Menezes Leitão)