Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 288/2023-T
Data da decisão: 2023-10-13  IRC  
Valor do pedido: € 32.006,99
Tema: IRC – Regime Simplificado
Versão em PDF

Sumário:

 

1 - A alínea a) do n.º 1 do artigo 86.º-A do Código do IRC estabelece como requisito da opção pelo regime simplificado que os sujeitos passivos não obtenham no período de tributação imediatamente anterior um montante anual ilíquido de rendimentos superior a €200.000.

 

2 - Assim, à luz do pensamento legislativo expresso naquela norma, a verificação do requisito referente ao rendimento anual reporta-se ao ano anterior.

 

3 – Em consequência, o entendimento expresso na Circular n.º 6/2014, de 28.03, no sentido em que no ano em que se verifica a falta de verificação do requisito referente ao rendimento anual é aplicável o regime geral de tributação, não tem cabimento legal.

 

 

 

Decisão Arbitral

 

  1. RELATÓRIO

 

A..., UNIPESSOAL, LDA. apresentou um pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT), com o objectivo de obter a anulação do acto de liquidação oficiosa de IRC n.º 2023..., relativo ao exercício fiscal de 2019, no valor global de €32.006,99 (Trinta e dois mil euros e seis cêntimos e noventa e nove cêntimos).

 

 

A 18 de Setembro de 2023, a AT respondeu defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado.

 

Foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT).

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

A. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma sociedade unipessoal por quotas, que iniciou a sua actividade em 01.05.2009, constando do registo de contribuintes e para efeitos de IVA como inscrita no regime trimestral, por opção.
  2. Para efeitos de IRC, a Requerente encontra-se, à data, enquadrada no regime simplificado de tributação (com data de enquadramento reportada a 01.01.2023);
  3. A Requerente dedica-se às seguintes actividades:

CAE Principal - 46214 - COM.GROSSO CEREAIS, SEMENTES, LEGUM., OLEAG. OUT.M.-P. AGRÍC. CAE Secundário - 001702 ACTIV. SERV. RELACIONADOS C/ CAÇA E REPOV. CINEGÉTICO  CAE Secundário - 002200 EXPLORAÇÃO FLORESTAL CAE Secundário - 001500 AGRICULTURA E PRODUÇÃO ANIMAL COMBINADAS;

  1.  A Requerente, em 16.07.2020, procedeu à entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC, no Portal das Finanças, identificada com o n.º 2020-...-...-..., relativa ao período de tributação decorrido de 1 de janeiro a 31 de dezembro de 2019, tendo declarado a opção pelo regime simplificado de tributação, no qual se mostrava enquadrada desde o ano de 2014;
  2. Na referida declaração foram declarados rendimentos do período no valor total de €214.541,75, e um volume de negócios no valor total de € 214.106,80, o que deu origem à liquidação nº 2020..., da qual não resultou imposto a pagar;
  3. A coberto da ordem de serviço n.º OI2022..., levada a efeito pelos Serviços de Inspecção Tributária (SIT) da Direcção de Finanças de Évora, foi a contabilidade da Requerente sujeita a uma acção inspectiva, incidente sobre o período de 2019, no que toca a IVA e IRC;
  4. No decurso da sobredita acção, verificaram os SIT, que em 2019, a Requerente indicou na declaração de rendimentos Mod. 22, estar sujeita às regras do regime simplificado;
  5. A 26.01.2023 foi a Requerente notificada do Relatório de Inspecção Tributária (RIT), que se considera para os devidos efeitos como integralmente reproduzido;
  6. Com base no RIT foi emitido, a 6.02.2023, o acto de liquidação n.º 2023..., de IRC do exercício fiscal de 2019, no montante de €32.006,99, cujo data de pagamento terminou a 28.03.2023;
  7. No exercício fiscal de 2018, a Requerente não ultrapassou o limite anual de proveitos de €200.000,
  8. A 20.04.2023, a Requerente apresentou o pedido arbitral.

 

 

B. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

Tendo em conta o pedido formulado, entende-se que a principal questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber se o acto de liquidação oficiosa de IRC devidamente identificado é ou não ilegal, atendendo ao disposto nas alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 86.º-A do Código do IRC e na Circular n.º 6/2014, de 28/3.

 

A este propósito, a Requerente alega no seu pedido de constituição do Tribunal Arbitral, em síntese, o seguinte:

 

  1. A 1.01.2019, a Requerente estava enquadrada no regime simplificado de tributação, tendo sido no decorrer do ano de 2019, pela primeira vez, ultrapassado o limite anual de proveitos de €200.000, previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 86.º-A do Código do IRC;
  2. Não obstante, considera a AT que a Requerente deixou de estar enquadrada no regime simplificado de tributação em 1.01.2019 e não, como resulta, do disposto no na alínea a) do n.º 6 do artigo 86.º -A do Código do IRC, que prevê que os efeitos da cessação do regime simplificado de tributação, em 1.01.2020.
  3. A interpretação prevista na Circular n.º 6/2014, de 29/03 derroga o estabelecido no Código do IRC, uma vez que não tem correspondência na letra da lei.
  4. Se fosse intenção do legislador vincular o sujeito passivo na data e momento concreto da cessação do regime simplificado por ter ultrapassado o montante anual líquido de rendimentos de €200.000, no ano contabilístico da execução, tê-lo-ia dito expressamente e feito constar na letra do artigo 86.º -A do Código do IRC e não o fez, pelo que, não pode ser a AT num Ofício-Circulado a fazê-lo sob pena de ilegalidade.
  5. Termos em que deve o acto de liquidação oficiosa em causa ser anulado.

 

Por sua vez, a AT defende:

 

  1. Para delimitar a matéria em análise, importa ter presente que a opção pelo regime simplificado tem de obedecer às condições cumulativas previstas no n.º 1 do artigo 86.º-A do Código do IRC, de entre as quais se destaca a obrigatoriedade de no período de tributação imediatamente anterior: - não obter um montante anual ilíquido de rendimentos superior a €200.000,00; e, - não apurar um total do balanço superior a €500.000,00;
  2. Dado que o volume de negócios declarado pelo sujeito passivo até ao período de 2018 foi inferior a €200.000,00, foi legítima a opção pelo regime simplificado, até àquele período de tributação de 2018;
  3. É que o n.º 6 do artigo 86.º-A do Código do IRC estabelece que os efeitos da cessação do regime simplificado de determinação da matéria colectável, se reportam ao 1.º dia do período de tributação em que deixe de se verificar algum dos requisitos obrigatórios, o que no caso em análise ocorreu no dia 01.01.2019;
  4. De entre os motivos que estiveram na origem da reforma e na introdução do regime simplificado consagrado pelo artigo 86.º-A do Código do IRC, destaca-se o seguinte: “A reforma propõe um regime simplificado opcional, ao qual só aderem as empresas que assim o entenderem, aplicável a empresas com volume de negócios não superior a €200.000,00 e total de balanço não superior a €500.000,00, abrangendo potencialmente mais de 300 mil empresas (70% do tecido empresarial). Simultaneamente, e de forma a equiparar os dois regimes, altera-se o regime simplificado de IRS nos mesmos moldes (quer em termos de Informação coeficientes, quer em termos de limite máximo de volume de negócios), abrangendo cerca de 160 mil empresários em nome individual.” in, Diário da Assembleia da República da XII Legislatura – 3.ª Sessão Legislativa (2013-2014) de, 14 de Outubro de 2013, II Série-A” (Transcrição constante do número 9 – pág. 14);
  5. O n.º 1 do artigo 86.º-A limita a adesão (por opção) ao regime simplificado aos sujeitos passivos que no ano anterior não tenham ultrapassado aqueles limites e, também com esse mesmo sentido, a alínea a) do n.º 6 do mesmo art.º 86.º-A impõe a cessação do regime simplificado, quando os referidos limites sejam ultrapassados com efeitos reportados ao 1.º dia do próprio período de tributação em que tal ocorra;
  6. Tal expressão (“reportados ao 1.º dia do próprio período de tributação”) não faria sentido, se o legislador apenas pretendesse que a cessação ocorresse a partir do período de tributação seguinte àquele em que deixaram de se verificar os requisitos obrigatórios, onde se encontram incluídos os limites impostos ao volume de negócios e total do balanço declarados;
  7. Neste sentido, logo após a entrada em vigor do Regime Simplificado, com o propósito de esclarecer eventuais dúvidas que o quadro normativo pudesse suscitar, por Despacho nº 77/2014-XIX, de 27 de março do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, foi sancionado o entendimento da AT veiculado através da Circular n.º 6/2014, de 28 de março;
  8. Sobre a cessação do regime, a Circular n.º 6/2014, de 28 de março veio reforçar, no seu ponto 8, que: “O regime simplificado cessa quando: i) O sujeito passivo renuncie a sua aplicação (…); ii) Deixe de se verificar algum dos requisitos referidos nas alíneas a) a e) do nº 1 do art.º 86.ºA; iii) 0 sujeito passivo não cumpra as obrigações de emissão e comunicação das faturas previstas, respetivamente, no Código do IVA e no n.º 1 do art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 198/2012, de 24 de agosto.”
  9. Em face do exposto, falece a pretensão do Requerente, devendo manter-se válida a liquidação ora impugnada, assim como o pagamento dos juros compensatórios.

 

Vejamos o que deve ser entendido.

 

A– Interpretação da Lei

 

Resulta do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.

 

Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:

 

 

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

 
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.


3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

 

Assim, prescreve o n.º 1, do artigo 9.º do CC que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas e que é essencial a vontade do legislador, captável no quadro do sistema jurídico, das condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, na especificidade do tempo em que são aplicadas.


No n.º 2 estabelece-se, por seu turno, que a determinação da vontade legislativa não pode abstrair da letra da lei, isto é, do significado da sua expressão verbal.


Por fim no n.º 3, dispõe-se, por apelo a critérios de objectividade, que o intérprete, na determinação do sentido prevalente da lei, deve presumir o acerto das soluções consagradas e a expressão verbal adequada (Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 3ª ed., págs. 58 e 59).


No fundo, o referido normativo expressa os princípios doutrinários consagrados ao longo do tempo sobre a interpretação das leis, designadamente o apelo ao elemento literal, por um lado, e aos de origem lógica – mens legis ou fim da lei, histórico ou sistemático – por outro.


Interpretar uma lei não é mais do que fixar o sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei.[1]


Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva.[2]


Daí que, perante as regras de interpretação da lei que resultam do artigo 9.º do CC, a regra é a de que onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir; mesmo que se possa entender que onde a lei não distingue deve o intérprete distinguir sempre que dela resultem ponderosas razões que o imponham.

 

Afasta-se assim o exagero de um subjectivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador.”[3]

 

No que respeita aos elementos essenciais do imposto, é proibida a integração analógica, estando sob reserva absoluta de lei parlamentar. Mais se entende que, em face do artigo 11.º, n.º 4 da LGT, por maioria de razão, está também vedada a integração de lacunas da lei. Se certa situação não está abrangida pela incidência de um imposto, não pode o intérprete incluí-la, através da criação de uma “norma” específica.

 

Aplicando os princípios referidos, importa atender antes de mais à letra das normas em discussão, que estatuem o seguinte:

 

Artigo 86.º-A(*)

Âmbito de aplicação

1 - Podem optar pelo regime simplificado de determinação da matéria coletável, os sujeitos passivos residentes, não isentos nem sujeitos a um regime especial de tributação, que exerçam a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e que verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições:


a) Tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a (euro) 200 000;

b) O total do seu balanço relativo ao período de tributação imediatamente anterior não exceda (euro) 500 000;

c) Não estejam legalmente obrigados à revisão legal das contas;(Rectificada pela Dec.Rectificação n.º 67-A/2009 - 11/09)

d) O respetivo capital social não seja detido em mais de 20%, direta ou indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, por entidades que não preencham alguma das condições previstas nas alíneas anteriores, exceto quando sejam sociedades de capital de risco ou investidores de capital de risco;

e) Adotem o regime de normalização contabilística para microentidades aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36-A/2011, de 9 de março;

f) Não tenham renunciado à aplicação do regime nos três anos anteriores, com referência à data em que se inicia a aplicação do regime.


4 - O regime simplificado de determinação da matéria coletável cessa quando deixem de se verificar os respetivos requisitos ou o sujeito passivo renuncie à sua aplicação.

 

6 - Os efeitos da cessação ou da renúncia do regime simplificado de determinação da matéria coletável reportam-se ao 1.º dia do período de tributação em que:


a) Deixe de se verificar algum dos requisitos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 1 ou se verifique a causa de cessação prevista no número anterior;

b) Seja comunicada a renúncia à aplicação do regime simplificado de determinação da matéria coletável, nos termos e prazos previstos na alínea b) do n.º 3.


Na versão inicial consagrada em 2001, o regime simplificado de tributação era automático para os sujeitos passivos residentes e que exercessem a título principal uma actividade comercial, industrial ou agrícola, logo, o sujeito passivo não podia optar. No regime resultante da actual redacção do Código do IRC, o artigo 86º-A prevê seis alíneas onde constam os pressupostos cumulativos de aplicação. Estes pressupostos são os seguintes: aplica-se aos sujeitos passivos que exercem a título principal a atividade comercial, industrial ou agrícola e que apresentam, no exercício anterior ao da aplicação do regime, um volume de negócios não superior a €200.000; que o total do balanço relativo ao período de tributação imediatamente anterior não exceda os €500.000; que não estejam legalmente obrigados à revisão legal de contas; que o respetivo capital social não seja detido em mais de 20 %, directa ou indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, por entidades que não preencham alguma das condições previstas nas alíneas anteriores, excepto quando sejam sociedades de capital de risco ou investidores de capital de risco; que adoptem o regime de normalização contabilística para microentidades; e, por último, que não tenham renunciado à aplicação do regime nos três anos anteriores, com referência à data em que se inicia a aplicação do do regime.

 

Decorre, assim, da letra da lei que os sujeitos passivos podem optar pelo regime simplificado quando: Não tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a (euro) 200 000;

No caso concreto em análise, encontra-se provado que a Requerente obteve um montante ilíquido de rendimentos inferior a €200.000 em 2018 e superior a €200.000 em 2019.

Também se encontra provado que a Requerente reúne as restantes condições enunciadas em a) a e) do artigo 86.º-A. n.º 1 do Código do IRC, em 2018, não sendo tais factos contestados.

Considerando que, em 2019, o Requerente ultrapassou o valor anual-limite fixado para o regime simplificado de tributação, tem aqui aplicação o disposto no n.º 4 do artigo 86.º-A do Código do IRC, que determina a cessação da aplicação do regime simplificado quando deixem de se verificar os respectivos requisitos.

Como resulta do acima exposto, deixou de verificar-se um dos requisitos, no ano 2019, quando o montante anual de rendimentos do Requerente ultrapassou os €200.000.

Assim, o Requerente, após o apuramento anual do seu rendimento ilíquido, em 31.12.2019, deixou de reunir uma das condições previstas na Lei, no caso a alínea a) do artigo 86.º-A. n.º 1 do Código do IRC, que faz depender a manutenção no regime simplificado da obtenção de um montante anual de rendimento inferior a €200.000.

Sendo o requisito previsto na Lei apurado em função do “montante anual de rendimentos”, a cessação do regime simplificado por falta de verificação do referido requisito só pode reportar-se ao período de tributação ou exercício fiscal em causa.

 

No caso concreto, é, no final de 2019, aquando do apuramento do rendimento anual de 2019 que se conclui que a Requerente não reúne o requisito legal previsto na alínea a) do artigo 86.º-A. n.º 1 do Código do IRC.

 

Prevendo-se no n.º 6 do artigo 86.º-A do Código do IRC que Os efeitos da cessação ou da renúncia do regime simplificado de determinação da matéria coletável reportam-se ao 1.º dia do período de tributação em que: Deixe de se verificar algum dos requisitos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 1 ou se verifique a causa de cessação prevista no número anterior.

Assim, os efeitos da cessação do regime devem reportar-se ao 1.º dia do período de tributação em que se deixou de verificar o requisito previsto na alínea a), no caso concreto em análise.

O requisito previsto na alínea a) Não tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a (euro) 200 000 – só se verifica em 31.12.2019, quando se apura o rendimento anual ilíquido, pois, que se fosse apurado a meio do ano ou reportável ao exacto mês em que se ultrapassa o  valor dos €200.000, a norma não poderia fazer depender a aplicação do regime por referência ao montante anual - (Vide no mesmo sentido - CAAD, Proc. 392/2022-T, de 3.11.2022).

O montante anual é o montante que é apurado ao final de um exercício fiscal. No caso sub judice, o exercício fiscal termina a 31.12 de cada ano.

Verificando-se que o Requerente, em 31.12.2019, deixou de reunir uma das condições para a manutenção no regime simplificado, de acordo com a letra e o espírito das normas em análise, entende-se que, o 1.º dia do período de tributação em que deixou de verificar o requisito é o dia 1.01.2020.

No entanto,

 

B – Circular n.º 6/2014, de 28.03

 

Com base na Circular n.º 6/2014, de 28.03 defende a AT que a tributação do Requerente, segundo o regime simplificado terminou em 1 de Janeiro de 2019.

 

Sobre as orientações genéricas dispõe-se no artigo 55.º do CPPT o seguinte:

 

Artigo 55.º
Orientações genéricas

1 - É da exclusiva competência do dirigente máximo do serviço ou do funcionário em quem ele tiver delegado essa competência a emissão de orientações genéricas visando a uniformização da interpretação e aplicação das normas tributárias pelos serviços.

2 - Somente as orientações genéricas emitidas pelas entidades referidas no número anterior vinculam a administração tributária.

3 - As orientações genéricas referidas no n.º 1 devem constar obrigatoriamente de circulares administrativas e aplicam-se exclusivamente à administração tributária que procedeu à sua emissão.

 

As orientações genéricas ou administrativas consistem em regulamentos internos, de carácter genérico, nas quais a AT procede à uniformização da interpretação de normas tributárias.

Como resulta da sua própria natureza, as Circulares não são vinculativas nem para os particulares nem para os tribunais.

 

Na verdade, Atento o primado da lei sobre as orientações administrativas (princípio da legalidade), as regras estatuídas nas circulares da Administração Tributária, têm que respeitar o quadro normativo legislativo de referência – normas jurídicas primárias –, que lhe é prevalente. E quando aquelas estabelecem um sentido normativo que não tem acolhimento na norma legislativa que pretensamente é interpretada, estão afinal a derrogá-la e a criar norma jurídica inovatória inválida. – Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 14.03.2013.

 

Com relevo para a Decisão da causa, prevê-se na Circular n.º 6/2014 que decorre do artigo 86.º-A do Código do IRC que, no ano em que o montante ilíquido dos rendimentos ultrapassar o limite legal de €200.000, nesse mesmo ano, os sujeitos passivos não podem ficar abrangidos pelo regime simplificado, ficando automaticamente enquadrados no regime geral.

 

Com base no entendimento expresso na referida Circular entende a AT que o Requerente ficou automaticamente integrado no regime geral de tributação, em 2019, por ter sido nesse ano que deixou de se verificar o limite previsto na alínea a) do artigo 86.º-A do Código do IRC.

 

Sucede que, conforme melhor descrito em A., a alínea a) do n.º 1 do artigo 86.º-A do Código do IRC estabelece como requisito da opção pelo regime simplificado que os sujeitos passivos não obtenham no período de tributação imediatamente anterior um montante anual ilíquido de rendimentos superior a €200.000.

 

Assim, à luz do pensamento legislativo expresso naquela norma, a verificação do requisito referente ao rendimento anual reporta-se ao ano anterior. No caso concreto, tendo cessado a verificação do requisito em 2019, tal facto determinará o enquadramento do Requerente, no regime geral, em 2020, quando se verificar que no ano anterior, isto é, em 2019, cessou a aplicação do regime simplificado, por falta de cumprimento do requisito previsto na alínea a) do artigo 86.º-A do Código do IRC.

 

Com efeito, a Requerente manteve o enquadramento no regime simplificado, no ano 2019, uma vez que no ano 2018, cumpre os requisitos previstos no artigo 86.º-A do código do IRC.

 

Assim, entende-se que ubi Lex non distinguit nec nos distinguere debemos, não sendo possível extrair da alínea a) do artigo 86.º-A do código do IRC o entendimento expresso na Circular no sentido de que, no ano em que se verifica a falta de verificação do requisito previsto, é aplicável o regime geral de tributação.

 

Em consequência, o facto da Requerente ter ultrapassado o limite referente ao rendimento anual de €200.000, em 2019, não determina a aplicação do regime geral de tributação, em 1.01.2019.

 

Em face de todo o exposto, conclui-se que, em 2019, a Requerente reunia todos os requisitos legais que lhe permitiam optar pelo regime simplificado de Tributação.

 

Em consequência, impõe-se a anulação do acto de liquidação de IRC sub judice e dos actos de liquidação de juros compensatórios correspondentes, assim como o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios do Requerente, uma vez que a ilegalidade do acto de liquidação é imputável a erro da Requerida, nos termos previstos no artigo 43.º e 100.º da LGT.

 

IV. DECISÃO

Termos em que este Tribunal Arbitral decide julgar totalmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos actos tributários identificados nos autos, no valor de €32.006,99 (Trinta e dois mil e seis Euros e noventa e nove cêntimos).

 

V. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €32.006,99 (Trinta e dois mil e seis Euros e noventa e nove cêntimos).

 

VI. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €1.836, conforme a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Lisboa, 13 de Outubro de 2023

 

 

A Árbitro,

 

 

Magda Feliciano

 

 

 

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

 



[1] Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, págs. 21 a 26

[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais do Direito Civil, vol. 1º, 6ª ed., pág. 145

[3] Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp. Pag. 189, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1993