Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 174/2023-T
Data da decisão: 2023-10-08  IRC  
Valor do pedido: € 184.924,76
Tema: IRC. Cessão de créditos abaixo do valor nominal. Dedutibilidade da menos-valia contabilizada. Ónus da prova.
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SUMÁRIO:

  1. A contabilidade das empresas, organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, beneficia da presunção de veracidade contida no n.º 1 do artigo 75.º, da LGT, presunção que apenas cessa se verificada alguma das situações previstas no n.º 2 daquele artigo.
  2. “(…) cabe à AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, como factos constitutivos de tal direito, em termos daquele princípio da legalidade, segundo a sua atual compreensão, entendido não como mero limite à atividade da administração, mas como fundamento de toda a sua atividade.”
  3. A falta de fundamentação material quanto aos pressupostos de atuação da AT justifica, nos termos do artigo 163.º, do Código do Procedimento Administrativo, a anulação da liquidação impugnada.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros, Professor Doutor Rui Duarte Morais (árbitro presidente), Dr. Manuel Alberto Soares e Dr.ª Mariana Vargas (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, acordam no seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

A..., S.A., com o NIPC ... e sede na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa (doravante designada por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), não tendo utilizado a faculdade de designar árbitro.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exº Senhor Presidente do CAAD em 20 de março de 2023 e automaticamente notificado à AT nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro. O Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, tendo estes comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

 

A. Objeto do pedido:

A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e a consequente anulação da liquidação adicional de IRC nº 2022..., e acerto de contas no montante de € 184 924,76, referentes ao exercício do ao de 2018, com data limite de pagamento voluntário em 17 de janeiro de 2023.

Cumulativamente, pede a Requerente a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 53.º, n.ºs 1 e 2 da LGT e 171.º do CPPT, no pagamento de indemnização por prestação indevida de garantia para suspender o processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva da mencionada liquidação de IRC.

*

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º, do RJAT, a Requerida fez juntar aos autos Resposta e Processo Administrativo (PA).

 

Nos termos do Despacho Arbitral de 4 de setembro de 2023, não havendo lugar à produção de prova adicional e tendo as partes deixado bem expressas nos articulados as suas posições sobre as questões de direito, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, bem como a produção de alegações escritas, notificando-se a Requerente para, até 15 de outubro, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, dando de tal conhecimento ao processo, data após a qual seria proferida a decisão arbitral.

 

 

II. SANEAMENTO

  1. O Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 30 de maio de 2023, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
  2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  3. O processo não padece de vícios que o invalidem.
  4. Não foram suscitadas exceções que cumpra apreciar e decidir.

 

 

III.        FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e do processo administrativo (PA), fixa-se como segue:

 

  1. Factos Provados:
  1. A Requerente, que exerce a título principal a atividade de “Outras atividades consultoria para os negócios e a gestão”, com o CAE 70220, é a sociedade dominante de um grupo económico tributado, desde 01.01.2018, pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS), do qual faziam parte, no período em análise (2018), as seguintes sociedades (artigo 1.º da PI e pág. 14 do PA):

 

  1. A sociedade B..., SA, foi objeto de um procedimento de inspeção externa, aberto pela OI2019... da Direção de Finanças de Lisboa, de que resultaram correções meramente aritméticas, no montante de € 763 205,99, ao resultado fiscal individual declarado para o exercício de 2018, que passou de um prejuízo de € 551 706,47 para um lucro de € 211 499,52 (págs. 27 e 34 do PA).
  2. As correções resultaram da não-aceitação como custo fiscal da menos-valia decorrente da cedência, efetuada pela B..., SA à sociedade C..., Ld.ª, dos créditos que detinha sobre a sociedade D..., Ld.ª, com sede em Angola (artigos 3.º, da PI e 6.º, da Resposta da Requerida).
  3. Os referidos créditos, no montante de € 782 336,18, respeitavam a serviços prestados à sociedade D..., Ld.ª pela empresa E... (anterior denominação social da B..., SA) e pela empresa F... (empresa objeto de cisão/fusão) (artigos 9.º e 10.º da Resposta da AT).
  4. Para além da B..., outras cinco sociedades de capital nacional detinham igualmente créditos sobre a sociedade angolana e, em 2018-11-12, o montante total de créditos em dívida por parte da D... às sociedades do grupo G... era de € 2 353 773,99 (artigo 10.º da PI e artigos 8.º e 9.º da Resposta da AT).
  5. Em 2018-11-12, foi assinado um Contrato de Cessão de Créditos entre as 6 sociedades de capital português (entre as quais a B...) e a sociedade C..., Ld.ª, com sede em Portugal (artigo 12.º da Resposta da AT).
  6. Através desse contrato, todas as 6 sociedades detentoras dos créditos sobre a empresa angolana cederam os referidos créditos à sociedade  C...Ld.ª (artigo 13.º da Resposta da AT).
  7. O valor total de alienação dos referidos créditos foi de 20 000 000 de Kwanzas, correspondente a € 57 566,00, utilizando o câmbio à data do contrato (artigo 10.º da PI e artigo 14.º da Resposta da AT).
  8. Do valor total obtido com a alienação dos créditos, de € 57 566,00, a parte correspondente aos créditos da B... foi de € 19 130,19, de acordo com a proporção dos seus créditos nos créditos totais (artigo 11.º da PI e 15.º da Resposta da AT).
  9. A B... apurou, com a citada cedência de créditos, uma perda de € 763 205,99 (€ 19 130,19 - € 782 336,18), montante registado na Conta SNC 6878 – Outros Gastos, incluído na rubrica “Outros Gastos”, da Demostração de Resultados (artigos 16.º e 17.º da Resposta da AT).
  10. A cessão dos créditos da B..., SA, à C..., Ld.ª foi contemporânea da venda, pela H..., Ld.ª à I..., Ld.ª, com o NIPC..., da participação social na D..., Ld.ª, pelo valor de € 1,00, (artigos 13.º e 57.º, da PI, facto não contestado).
  11. A I..., Ld.ª, por sua vez, vendeu a participação financeira na D..., Ld.ª, à C..., Ld.ª (artigo 13.º, da PI, facto não contestado).
  12. A D..., Ld.ª registou, nos exercícios de 2017 e de 2018, um valor de capitais próprios negativo que em 31.12.2018, ascendia a 107 258 097,00 Kuanzas, cerca de € 300 000,00 ao câmbio à data (artigos 8.º e 54.º da PI e artigo 29-º da Resposta da AT).
  13. À data dos factos, o capital social da Requerente era detido em 50% pela H..., Ld.ª (pág. 9 do PA e artigo 31.º, da PI) e em 14,82% pela I..., Ld.ª (pág. 10 do PA).
  14. Os Serviços de Inspeção Tributária procederam à análise do Balanço referente às contas dos exercícios de 2017 e de 2018 da sociedade D..., Ld.ª (artigos 22.º a 26.º da Resposta):

b) Da análise ao Ativo destacam-se:

i) Contas a receber, no montante de cerca de € 325.661,00, sem que venha referido quem são as entidades de quem a entidade angolana tem a receber, no ano de 2018;

ii) Disponibilidades no montante de € 392.588,30 no exercício de 2018, verificando-se que o montante nesta rubrica sofreu um incremento, em relação a 2017;

c) Da análise ao Capital Próprio destacam-se as seguintes rubricas:

i) Prestações suplementares - O valor de 2018 é o mesmo que vem de 2017, e ascende a cerca de € 115.150,00, não se conhecendo quais as entidades que efetuaram estas prestações, dado que essa informação não é facultada;

ii) Resultados transitados - Verifica-se que o resultado transitado negativo de 2017 ascende a cerca de € 411.513,00, desconhecendo-se como foi formado, sendo que, no exercício de 2018 sofre um decréscimo na sequência do resultado positivo apurado em 2017.

iii) Resultado do exercício - No exercício de 2017 a sociedade Angolana apurou um resultado positivo de cerca de € 142.995,25 sendo que em 2018, a sociedade apurou um resultado negativo de cerca de € 12.904,00. Ou seja, em 2017, a sociedade apurou um resultado positivo bastante significativo.”.

(…) “a Requerente não facultou a demonstração de resultados, de forma a se verificar como foi apurado o resultado líquido do exercício de 2017 e 2018.”.

Da análise ao Passivo, destaca-se as contas a pagar que representavam em 2017 cerca de € 983.944,85, sendo que em 2018 esse valor sofreu um acréscimo de cerca de € 19.000,00 para cerca de € 1.003.176,37”.

Não foi facultada informação que permita saber quais as entidades, bem como em que anos é que este saldo foi constituído”.

Ou seja, de uma análise ao Balanço da sociedade angolana não é possível aferir quais os factos subjacentes aos valores declarados, tendo em atenção a falta de informação que foi prestada, nem ao nível do momento em que se formaram os valores evidenciados nas respetivas rubricas, nem como foram apurados os valores evidenciados em resultados líquidos que, no exercício de 2017, ascenderam a cerca de € 142.995,25 positivos, que é um valor superior ao montante das prestações suplementares.”.

  1. Pela Ordem de Serviço n.º OI2022... da Direção de Finanças de Lisboa, foi aberto em nome da Requerente um procedimento de inspeção de natureza externa, de âmbito parcial, em sede de IRC, ao resultado do Grupo declarado no âmbito do RETGS), referente ao exercício de 2018 (pág. 7 do PA).
  2. Em consequência das correções meramente aritméticas ao resultado declarado pela sociedade B..., SA, foi corrigido o resultado fiscal do grupo, nos seguintes termos (pág. 28 do PA):
  3. A Requerente foi notificada da demonstração da liquidação de IRC n.º 2022..., de 2022-11-28 e da demonstração de acerto de contas n.º 2022... referentes ao exercício de 2018, de que resultou a valor a pagar de € 184 924,76, com data limite de pagamento voluntário em 2023-01-17 (cópias juntas à PI).
  4. Na falta de pagamento da liquidação de IRC identificada, foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ...2023..., no âmbito do qual, tendo em vista a sua suspensão, a Requerente prestou garantia bancária (cópia junta à PI como Doc. n.º 1).
  5. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 17 de março de 2023 (cfr. registo do CAAD).

 

B. Factos não provados:

Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

C. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada:

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos ao PPA e ao PA, bem como das posições assumidas pelas Partes nos respetivos articulados.

 

 

III.2 DO DIREITO

  1. A questão a apreciar e decidir.
    1. Síntese da posição das Partes.

A questão a decidir nos presentes autos, tal como é recortada pela Requerente, consiste em saber se a menos-valia decorrente da cessão de créditos abaixo do respetivo valor nominal em simultâneo com a venda das participações sociais da sociedade devedora, com sede em Angola, numa opção de desinvestimento no mercado angolano do grupo económico de que faz parte, é ou não dedutível para efeitos do apuramento do lucro tributável e se a dedutibilidade dessa menos-valia está dependente da verificação dos requisitos previstos no artigo 41.º, do CIRC, ou da prévia constituição de perda por imparidade.

 

A Requerente defende que a opção pelo desinvestimento no mercado angolano com a consequente alienação a uma empresa independente dos créditos que detinha sobre empresa de direito angolano, contemporânea da venda da participação social que na mesma detinha uma outra sociedade do mesmo grupo, motivada pelas restrições cambiais impostas pelo Governo de Angola, que não permitiam a transferência das divisas necessárias ao pagamento das dívidas da sociedade angolana às empresas do grupo suas fornecedoras de serviços, deve ser entendida como ato de gestão cuja bondade e oportunidade não cabe à Requerida sindicar.

 

Justifica ainda aquela opção pelo desinvestimento no mercado angolano com o facto de a atividade operacional da empresa angolana vir a exigir o sucessivo reforço dos capitais próprios, já negativos, através da realização de prestações suplementares, sem que, face às restrições cambiais existentes em Angola, houvesse retorno significativo do investimento, antes exigindo uma excessiva alocação de recursos financeiros.

 

Considera a Requerente que se, por um lado, a Autoridade Tributária e Aduaneira não põe em causa a existência da perda, que se encontra devidamente escriturada, documentada e comprovada com o contrato de cessão de crédito, por outro, não pode aquela perda ser havida como respeitante a créditos incobráveis, por não se encontrarem reunidos os pressupostos a que se refere o artigo 41.º, do Código do IRC, antes sendo uma menos-valia realizada, decorrente da alienação onerosa de um instrumento financeiro e, como tal, uma perda dedutível,  nos termos do artigo 23.º, n.º 2, alínea l) do mesmo Código.

 

Por seu turno, a Requerida defende a manutenção do ato tributário impugnado, por considerar que o mesmo decorre de uma correta aplicação do direito aos factos.

 

Entende a Requerida que, não obstante a cessão de créditos por valor inferior ao seu valor nominal, cuja onerosidade não põe em causa, seja um ato de gestão relativamente ao qual a AT não deve pronunciar-se, as repercussões no apuramento do resultado tributável de IRC do exercício de 2018, por via da sua consideração como custos, justificam o seu escrutínio por parte da AT.

 

Esse escrutínio passou pela análise ao balanço das contas da sociedade angolana para os exercícios de 2017 e de 2018 e pela verificação de que:

  1. no exercício de 2018, a empresa devedora tinha contas a receber no montante de € 325 661,00 e disponibilidades no montante de € 392 588,30;
  2. nos exercícios de 2017 e de 2018 o valor das prestações suplementares ascendia a cerca de € 115 150,00;
  3. no exercício de 2017 a mesma empresa registou um resultado transitado negativo de € 411 513,00 e um resultado do exercício de cerca de € 142 995,25;
  4. as contas a pagar ascendiam a € 983 944,85, em 2017 e a € 1 033 176,37, em 2018.

 

Face aos supracitados elementos da contabilidade da sociedade angolana, alega a Requerida não se poder conclui que, apesar de apresentar um capital próprio negativo nos exercícios de 2017 e de 2018, aquela não dispusesse de meios financeiros suficientes para solver a dívida para com a sociedade objeto do procedimento inspetivo.

 

Alega ainda a AT que, ao questionar fundadamente os gastos contabilizados, cabe ao sujeito passivo o ónus da prova da ligação do custo à atividade empresarial, nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT), por estar em causa um facto constitutivo do direito à dedução invocado pelo contribuinte e que, no caso concreto em análise, “não se encontra comprovada pela Requerente que a elevada perda incorrida serviu para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC, que foi incorrida no âmbito, por força da atividade empresarial e no interesse da sociedade “B...” e não no interesse de outrem, mormente do Grupo em que se encontra integrada”.

 

  1. Apreciação.
    1. Do ónus da prova.

Quer a Requerente, quer as restantes sociedades que integram o grupo económico de que aquela é a sociedade dominante, entre as quais a sociedade objeto do procedimento de inspeção tributária em que foram efetuadas as correções técnicas na origem da liquidação de IRC impugnada, estão, por determinação legal, obrigadas a possuir contabilidade organizada de acordo com a normalização contabilística em vigor, em que todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos (cfr. o artigo 123.º, do Código do IRC), de modo a permitir o apuramento do lucro tributável, segundo o modelo da dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade acolhido pelo artigo 17.º, do Código do IRC.

 

Assim sendo, a contabilidade das empresas, organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, beneficia da presunção de veracidade contida no n.º 1 do artigo 75.º, da LGT, presunção que apenas cessa se verificada alguma das situações previstas no n.º 2 daquele artigo 75.º, designadamente, se “as declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo” ou se “o contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária (…)”.

 

No caso concreto dos autos, a sociedade inspecionada contabilizou na Conta SNC 6878 – Outros Gastos e Perdas, a perda decorrente da cessão, por valor inferior ao seu valor nominal, dos créditos que detinha sobre uma sociedade com sede em Angola, perda que qualificou como mais-valia dedutível, nos termos do artigo 23.º, n.º 2, alínea l), do Código do IRC.

 

O referido lançamento contabilístico encontra-se documentado com o contrato de cessão de créditos, cuja existência não é questionada pela AT, através do qual a sociedade credora, conjuntamente com outras cinco sociedades de capital português, cederam a totalidade dos seus créditos sobre a empresa angolana a uma terceira sociedade portuguesa, por valor inferior ao respetivo valor nominal, dividindo proporcionalmente entre si o montante total da alienação desses créditos.

 

No âmbito do procedimento de inspeção tributária, a sociedade justificou a opção de alienação dos seus créditos sobre a empresa angolana por montante inferior ao do respetivo valor nominal, com a “manifesta incapacidade da sociedade angolana de solver as suas dívidas e a dificuldade em transferir divisas para o estrangeiro”, motivada pelas restrições cambiais então existentes em Angola.

 

Não obstante os esclarecimentos prestados pela sociedade, designadamente quanto às políticas monetárias e cambiais prosseguidas pelo Governo de Angola, na génese da incapacidade financeira da empresa angolana para solver as dívidas para com as sociedades portuguesas suas fornecedoras, a Autoridade Tributária e Aduaneira, apesar de não contestar a situação descrita, promoveu correções ao resultado fiscal por ela declarado, com reflexos no apuramento do lucro tributável do grupo liderado pela Requerente, ao não aceitar a dedução da perda decorrente das menos-valias contabilizadas.

 

A tal propósito, considera a Requerida que o ónus da prova de que a perda incorrida para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC “incide sobre o sujeito passivo, por estar em causa um facto constitutivo do direito à dedução invocado (nos termos do disposto no art. 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária) ”.

 

O tema da repartição do ónus da prova tem sido abundantemente tratado pela jurisprudência dos tribunais superiores, sendo de relevar a que dimana do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo (Pleno da Secção do Contencioso Tributário) em 27 de fevereiro de 2019, no processo n.º 01424/05.2BEVIS 0292/18, no qual, na esteira de anteriores arestos do mesmo Supremo Tribunal, ficou consignado que:

 

 “(…) cabe à AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, como factos constitutivos de tal direito, em termos daquele princípio da legalidade, segundo a sua atual compreensão, entendido não como mero limite à atividade da administração, mas como fundamento de toda a sua atividade.

(…)

Na verdade, embora a regularidade formal da escrita constitua presunção da sua veracidade - estendida aos seus elementos de apoio (art. 75º da LGT) -, tal presunção cessa no caso da existência de indícios sérios de que as operações escrituradas se não realizaram. Daí que, como se disse, provando a AT a existência de indícios sérios e credíveis de que tais operações não são verdadeiras, cabe ao contribuinte o ónus da prova da veracidade das mesmas”.

(…)

“(…) a lei não exige senão “indícios fundados”, ou seja, não impõe à Administração a “prova provada” de que por detrás dos documentos não está a realidade que normalmente refletem e comprovam, basta-se com indícios fundados para fazer cessar a presunção a favor do contribuinte. E a este, desprovido do escudo protetor da presunção, não resta senão demonstrar a veracidade dos seus elementos contabilísticos, e respetivos suportes, destarte posta em crise, face àqueles “fundados indícios”.

 

Revertendo para o caso dos autos e como decorre dos elementos juntos aos mesmos, máxime, da Resposta da entidade Requerida, a AT não carreou, como lhe competia, “indícios fundados” que permitissem afastar a dedutibilidade fiscal da menos-valia refletida na contabilidade do sujeito passivo.

 

Limita-se a Requerida a apontar para o facto de os créditos por aquele detidos sobre a sociedade angolana terem sido cedidos “por um valor tão reduzido face ao seu valor real (por 2,4% do valor dos créditos), sem que tenha sido apresentada qualquer justificação para tal, a não ser tratar-se de “«uma decisão de gestão»”, para concluir que “a operação revestiu contornos de liberalidade” e que “não se encontra comprovada pela Requerente que a elevada perda incorrida serviu para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC, que foi incorrida no âmbito, por força da atividade empresarial e no interesse da sociedade «B... » e não no interesse de outrem, mormente do Grupo em que se encontra integrada”.

 

Ora, na verdade, o sujeito passivo apresentou como justificação para a cessão de créditos, nas condições em que ocorreu, a situação monetária e cambial à data vigente em Angola, com a consequente dificuldade na transferência de divisas para pagamentos ao exterior, o que a AT não contesta.

 

Em tal situação, não se pode confundir o valor nominal de um crédito com o seu valor real, pois se aquele é o que resulta do valor pelo qual foi constituído – no caso, o crédito cedido resultou de serviços faturados à empresa angolana (cfr. os artigos 10 e 11 da Resposta da AT) –, o seu valor real depende das condições de mercado, afigurando-se plausível que a impossibilidade de a empresa angolana solver as suas dívidas comerciais, por motivos atinentes ao mercado cambial do país da sede, tenha levado à desvalorização daqueles ativos financeiros e à opção de desinvestimento naquele mercado por parte do Grupo de que a Requerente é a sociedade dominante, quer através da cedência dos referidos créditos, quer, concomitantemente, da participação social na sociedade devedora.

 

Nem se poderá, com segurança, afirmar que a alienação daqueles créditos não tenha servido o escopo empresarial da sociedade credora, ao permitir recuperar, ainda que parcialmente, o crédito de que era detentora, evitando o arrastar de uma situação sem solução previsível no curto prazo e permitindo, assim, a alocação dos seus recursos à manutenção da sua fonte produtora.

 

Não tendo a AT demonstrado “indícios fundados” de que a supracitada cedência de créditos foi efetuada “no interesse de outrem, mormente do Grupo em que [a sociedade credora] se encontra integrada”, não especificando em que consistiria esse interesse alheio ou qual ou quais as sociedades do grupo concretamente beneficiadas e não provando (nem sequer alegando) qualquer relação especial entre o cedente e o cessionário dos referidos créditos, será de concluir estar-se perante uma perda real e não meramente potencial, a qualificar como menos-valia, nos termos do disposto o artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC e, como tal, enquadrável na previsão  ao artigo 23.º, n.º 2, alínea l) do mesmo Código, dedutível na determinação do lucro tributável.

 

A falta de fundamentação material quanto aos pressupostos de atuação da AT justifica, nos termos do artigo 163.º, do Código do Procedimento Administrativo, a anulação da liquidação impugnada, prejudicando o conhecimento das demais questões colocadas pelas Partes.

 

  1. Indemnização por prestação de garantia indevida

O processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 – primeira parte, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), devendo entender-se incluídos na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os poderes que, na impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários.

 

Nos termos do n.º 1 do artigo 171.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), a indemnização por prestação indevida de garantia tendo em vista a suspensão da execução fiscal deverá ser requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda, no caso, o presente processo arbitral.

Sendo manifesto que a liquidação impugnada padece de erro sobre os pressupostos de direito a justificar a sua anulação, com a consequente extinção da execução fiscal instaurada para cobrança coerciva da prestação tributária indevidamente liquidada, deve a Requerente ser indemnizada pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia, nos termos do artigo 53.º, da LGT.

 

 

IV. DECISÃO

Com base nos fundamentos enunciados supra, decide-se em, julgando procedente o pedido de pronúncia arbitral:

  1. Declarar a ilegalidade da liquidação de IRC nº 2022..., e demonstração do acerto de contas n.º 2022..., no montante de € 184 924,76, referentes ao exercício do ao de 2018, que se anulam;
  2. Condenar a Requerida no pagamento de indemnização por prestação indevida de garantia, pela quantia a determinar em execução do presente julgado anulatório.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 184 924,76 (cento e oitenta e quatro mil, novecentos e vinte e quatro euros e setenta e seis cêntimos).

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 3 672,00 (três mil, seiscentos e setenta e dois euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique-se.

 

08 de outubro de 2023.

Os Árbitros,

 

 

 

Rui Duarte Morais

(Presidente)

 

 

Manuel Alberto Soares

(Vogal)

 

 

 

Mariana Vargas

(Vogal)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º, do D.L. n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.