Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 794/2022-T
Data da decisão: 2023-10-20  IVA  
Valor do pedido: € 5.612,00
Tema: IVA; transmissão intracomunitária de bens; insuficiência de fundamentação.
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DECISÃO ARBITRAL

Processo n.º 794/2022-T

 

SUMÁRIO:

A fundamentação do ato tributário tem de ser suficiente, clara e congruente, o que implica que, pela completude, nitidez e precisão dos motivos de facto e de direito apresentados, sem contradição ou inconsistência, ou seja, sem invocação de razões de facto ou de direito que entre si se desdizem ou se revelam incompatíveis ou incoerentes, seja compreensível para um destinatário médio, possibilitando a apreensão do percurso cognoscitivo e valorativo seguido para a prática do ato de liquidação.

 

I. Relatório[1]

 

a) Partes e pedido de pronúncia arbitral

 

1. A..., S.A., com sede na ..., Lotes ... a ..., ...-... ..., com o número de identificação de pessoa coletiva ... (a seguir, a Requerente), apresentou, em 26.12.2022, em conformidade com os artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), pedido de pronúncia arbitral (a seguir abreviadamente PI), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (a seguir, Requerida ou AT), no qual peticiona a anulação da decisão de indeferimento que recaiu sobre a reclamação graciosa n.º ...2022... e dos atos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.ºs ... (19/01) ... (19/02), ... (19/03), ... (19/04), ... (19/05), ... (19/06), ... (19/07), ... (19/08), ... (19/09), ... (19/10), ... (19/11) e ... (19/12), e, como consequência da anulação dos atos de liquidação de IVA e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, o reembolso de crédito de IVA, bem como o pagamento dos juros indemnizatórios devidos desde a data da decisão de indeferimento do pedido de reembolso até à data de emissão da respetiva nota de crédito a favor da Requerente.

 

b) Constituição do Tribunal Arbitral

 

2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o signatário, que aceitou o encargo e a cuja designação as partes não apresentaram recusa.

 

3. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 28.02.2023.

 

4. O Tribunal foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.3), encontram-se devidamente representadas e a cumulação de pedidos é admissível (art. 3.º, n.º 1 do RJAT).

 

c) Progressão processual

 

5. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente peticionou que seja declarada a ilegalidade e consequente anulação da decisão de indeferimento da indicada reclamação graciosa e dos mencionados atos de liquidação de IVA referentes ao ano de 2019, que determinaram a desconsideração de crédito de imposto no valor de €5.612,00, com base nos seguintes fundamentos:

a) de acordo com o Relatório de Inspeção Tributária (RIT), “o reembolso solicitado na DP de 2021 05 apenas é afetado pelas correções efetuadas nos períodos de 2019 09 e seguintes porque nos períodos de 2017 09 e 2019 08 foram solicitados e concedidos à sociedade outros reembolsos de IVA (de 330.000 € e 400.000 €, respetivamente) cujo valor é superior ao crédito de imposto apurado nesses períodos", pelo que, em face da referida citação do Relatório, as correções expressas naquele mesmo Relatório deveriam ser materializadas através da emissão de atos de liquidação de IVA referentes aos períodos de 2019 09 e seguintes e não, como foi, através da emissão de atos de liquidação de IVA referentes a períodos anteriores, pois, “se o crédito de imposto referente aos períodos de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019 foi já objeto de reembolso no período de Agosto de 2019, não podia a Autoridade Tributária vir agora corrigir o crédito fiscal declarado e reembolsado naqueles mesmos períodos de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019” (arts. 21.º a 23.º da PI);

b) não restam dúvidas de que os atos de liquidação referentes aos períodos de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019 aqui também em apreço não podem encontrar sustentação no Relatório Final, uma vez que tais atos dizem respeito a correções que, de acordo com o mesmo Relatório, deveriam ser concretizadas nos períodos de 2019 09 e seguintes, ou seja, “para efeitos de concretização das referidas correções, impunha-se à Autoridade Tributária emitir atos de liquidação referentes aos referidos períodos de 2019 09 e seguintes, conforme a própria Autoridade Tributária reconhece no Relatório Final” (arts. 24.º e 25.º da PI);

c) os atos de liquidação anteriores a Setembro de 2019 carecem em absoluto de falta de fundamentação, uma vez que não encontram suporte em nenhum Relatório de Inspeção ou noutro documento de fundamentação que tenham por objeto o crédito de imposto apurado naqueles anos (art. 26.º da PI);

d) a fundamentação constante do Relatório Final de Inspeção, é absolutamente incongruente, ao referir, por um lado, que "o reembolso solicitado na DP de 2021 05 apenas é afetado pelas correções efetuadas nos períodos de 2019 09 e seguintes porque nos períodos de 2017 09 e 2019 08 foram solicitados e concedidos à sociedade outros reembolsos de IVA", e ao proceder, por outro lado, a períodos anteriores a Setembro de 2019, emitindo os atos de liquidação aqui em apreço, com implicações no reembolso solicitado na declaração periódica de 202105 (art. 29.º da PI);

e) para além do mais, o valor do crédito de imposto total desconsiderado para o ano de 2019, apurado nos atos de liquidação aqui em apreço, não corresponde ao valor que foi apurado no Relatório de Inspeção Tributária, pois o valor de crédito total desconsiderado no ano de 2019, apurado nas liquidações referentes aos períodos de Agosto e de Dezembro de 2019 (nas quais se procede, na respetiva linha 9.4, ao corte/desconsideração do reembolso), corresponde a € 5.612 enquanto, de acordo com o relatório de inspeção que alegadamente sustenta os referidos atos de liquidação, o valor de crédito de imposto a desconsiderar/cortar no ano de 2019 seria de apenas € 2.365,37, conforme quadro constante da página 20 do Relatório (arts. 30.º e 31.º da PI);

f) “em face da referida diferença de valores registados nas liquidações e no relatório, impercetível de compreender por um contribuinte comum, não pode o valor do crédito a desconsiderar de acordo com aqueles atos de liquidação encontrar sustentação no relatório de inspeção” pelo que “não restam dúvidas de que os atos de liquidação aqui em apreço, e a decisão da reclamação graciosa que os confirmou, estão inquinados de vício de forma, por falta de fundamentação, devendo ser anulados em conformidade (cf. artigo 163.º do Código de Procedimento Administrativo)” (arts. 37.º e 38.º da PI);

g) caso assim não se entenda, deve-se concluir que os atos de liquidação em apreço e a decisão que recaiu sobre a respetiva reclamação graciosa são anuláveis por “o procedimento de inspeção que terá alegadamente dado origem aos atos de liquidação aqui impugnados teve por objeto períodos relativamente aos quais havia já sido emitido reembolso por parte da Autoridade Tributária” (art. 40.º da PI);

h) “tendo o crédito de imposto apurado nos períodos de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019 sido já objeto de reembolso no ano de 2019, nunca poderia, como é óbvio, a inspeção efetuada para averiguação do pedido de reembolso formulado na Declaração periódica de Maio de 2021 ter por objeto aquele crédito apurado naqueles períodos de janeiro de 2019 a Agosto de 2019”, pois “o crédito de imposto declarado naqueles períodos de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019 tinha-se já esgotado no reembolso efetuado através da declaração periódica apresentada com referência a Agosto de 2019” (arts. 44.º e 45.º da PI);

i) “se a Autoridade Tributária pretendia sindicar o crédito de imposto declarado nos períodos de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019 deveria ter efetuado um procedimento de inspeção específico relativamente ao reembolso realizado na sequência do pedido de reembolso formulado através da declaração periódica de 2019 08”; “Nunca o poderia fazer através da análise ao pedido de reembolso formulado na declaração periódica de 202105, porquanto este pedido não tinha por base os créditos declarados nos períodos de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019, conforme aliás reconhecido pelos próprios Serviços de Inspeção no Relatório Final de Inspeção” – “Trata-se, pois, de um evidente erro no âmbito e na fundamentação do procedimento de inspeção tributária que inquina aquele procedimento, e todos os atos subsequentes - incluindo os atos de liquidação aqui impugnados-, de vício de ilegalidade” (arts. 46.º a 48.º da PI);

j) “os atos de liquidação de IVA aqui em apreço procederam à materialização das correções ao crédito de imposto apurado nos períodos de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019, as quais não podiam ter sido efetuadas no âmbito da inspeção para análise do pedido de reembolso de IVA solicitado na declaração periódica do mês de Maio de 2021, uma vez que o crédito de imposto aí em causa não dizia respeito àqueles períodos de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019 (que já havia sido objeto de reembolso)” (art. 49.º da PI);

k) em face do exposto, “deverão os atos de liquidação impugnados e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra os mesmos ser anulados, por vício de ilegalidade do procedimento de inspeção de que emanam, em conformidade com o artigo 163.º do Código de Procedimento Administrativo” (art. 52.º da PI);

l) caso ainda assim não se entenda, no que concerne às correções relativas à aplicação da isenção nas transmissões intracomunitárias, prevista no artigo 14.º, n.º 1, alínea a), do RITI, na ausência de uma norma legal que imponha um tipo de prova em específico, deverão os montantes declarados pela Requerente como isentos ao abrigo do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias​ (RITI), gozar de presunção de veracidade, dando-se tal facto como provado e sendo o respetivo crédito de imposto reconhecido, em conformidade com o disposto no Artigo 75.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT) (art. 66.º da PI);

m) ainda que assim não se entenda, “deveria ter sido a própria Autoridade Tributária, ao abrigo do princípio do inquisitório e da busca da verdade material, ínsito no Artigo 58.º da LGT, a prover no sentido da obtenção oficiosa dessas mesmas declarações junto dos adquirentes ou agentes transitários”, a qual, não obstante lhe ter sido facultada a listagem dos adquirentes e agentes transitários, e respetivos contactos, relativamente aos quais não se logrou obter as referidas declarações, ao arrepio do referido princípio do inquisitório, “avançou com as correções relativamente aos valores respeitantes a estas operações, o que inquina, desde logo, de ilegalidade os atos de liquidação aqui em apreço, por violação do princípio do inquisitório” (art. 67.º a 69.º da PI);

n) não obstante todo o exposto, “a Requerente logrou apresentar, em sede de inspeção tributária, documentação que atesta o efetivo transporte dos bens com destino a um Estado Membro, designadamente declarações dos transitários responsáveis pela expedição dos bens, declarações de expedição ("CMR"), e declarações dos adquirentes dos bens que atestam a receção dos mesmos - declarações FCR (Certificado de Receção do Transitário)”, conforme “Documento 6 que, pelo seu volume, se protesta juntar” e “sem prejuízo da presunção de veracidade de que goza a declaração da REQUERENTE de que os valores aqui em causa estavam isentos de IVA, as declarações FCR serão suficientes para atestar que os bens foram efetivamente expedidos pela REQUERENTE, não lhe podendo ser exigido (até porque deixou a partir desse momento de ter qualquer obrigação e controlo sobre os bens) prova de que aqueles bens chegaram efetivamente ao destino” (arts. 70.º e 75.º da PI).

A Requerente requereu ainda que “o acima exposto também deverá produzir efeitos quanto ao ato de indeferimento do pedido de reembolso, na medida em que se trata de um ato em clara relação de prejudicialidade com os atos de liquidação aqui em apreço”, pelo que, pronunciando-se o Tribunal “no sentido da anulação dos atos de liquidação de IVA aqui em apreço - o que se requer e deseja - deverá determinar, de igual modo, a anulação do ato de indeferimento do pedido de reembolso na parte correspondente” (arts. 85.º e 92.º da PI).

Peticionou, por fim, a Requerente, “tendo em conta as ilegalidades cometidas nos atos de liquidação aqui sindicados e, bem assim, no âmbito do procedimento de Reclamação Graciosa”, “que lhe deverá ser reconhecido o direito a juros indemnizatórios sobre a quantia a reembolsar, contados, à taxa de 4%, desde a data da decisão de indeferimento do pedido de reembolso até à data em que venha a ser emitida a respetiva nota de crédito a favor da Requerente” (art. 99.º da PI).

Como prova testemunhal, a Requerente indicou a sua Diretora Financeira, Dr. B....

 

6. A AT, ao abrigo do n.º 1 do artigo 17.º do RJAT, juntou aos autos o procedimento administrativo (a seguir PA) e apresentou resposta (a seguir abreviadamente R.), em que pediu a improcedência do peticionado e a sua absolvição do pedido, alegando o seguinte:

a) para além das vendas efetuadas no mercado interno, o sujeito passivo teve valores significativos de transmissões intracomunitárias de bens, que beneficiaram da isenção de imposto prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do RITI, bem como ainda exportações, apesar de estas apresentarem valores mais reduzidos, verificando-se que o “tipo de operações praticadas, aliadas ao facto de ter tido aquisições em que suporta IVA à taxa normal (nomeadamente investimentos de valor significativo, embalagens, serviços de transporte, pagamentos a cadeias de hipermercados relativas a campanhas) faz com que a empresa tenha sistematicamente uma situação de crédito de imposto e tenha solicitado diversos reembolsos ao longo dos anos (nos anos mais recentes solicitou reembolsos nas declarações periódicas de 201309, 201605, 201709 e 201908), sendo que o último pedido de reembolso que foi objeto de análise pela inspeção tributária foi na declaração do período 201605” (arts. 14 e 15 da R.);

b) “Para além das confirmações e validações, contabilísticas, de faturação e declarativas, bem como dos cruzamentos efetuados na base de dados da AT, foi solicitado à Requerente, relativamente às transmissões intracomunitárias de bens efetuadas, os elementos de prova necessária à isenção, conforme determinado no ofício circulado n.º 30218/2020 de 03/02”; “Não tendo sido apresentados os ditos elementos, não foi possível presumir o transporte intracomunitário dos bens” (arts. 16 e 17 da R.);

c) “não tendo sido comprovada a expedição ou transporte dos bens pelo vendedor, conforme requisito da alínea a) do n.º 1 do art.º 14º do RITI, para que pudesse ser conferida a isenção do imposto, mantiveram-se as correções efetuadas” (art. 19 da R.);

d) a fundamentação é um conceito relativo, que varia consoante o tipo legal de ato administrativo em concreto, havendo que entender a exigência legal em termos hábeis, dada a funcionalidade do instituto e os objetivos essenciais a prosseguir (arts. 21 a 26 da R.);

e) “a decisão ora colocada em crise pela Autora encontra-se plenamente fundamentada e espelha o procedimento administrativo que a antecede”; “A sucinta fundamentação constante da decisão sub judice é a decorrência lógica e cronológica do procedimento administrativo encetado pela Autora e cujas conclusões e fundamentos foram regular e oportunamente notificados”; “No caso vertente, a fundamentação é suficientemente clara e inequívoca, tanto mais que a Requerente não só demonstra, em face dos argumentos por si explanados ao longo do seu articulado, ter cabalmente compreendido o quadro fáctico e legal em que assentou a decisão da Requerida, já que tenta rebater, ponto por ponto, toda a sua atuação, como na realidade também já havia cabalmente compreendido o mesmo quadro fáctico e legal em sede graciosa” (arts. 27 a 30 da R.);

f) caso se venha a propugnar pela insuficiência da fundamentação, sempre cabia à Requerente solicitar a emissão da certidão prevista no artigo 37.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e, não tendo “usado daquela faculdade conferida pela lei, forçoso se torna concluir que os atos sub judice continham todos os elementos necessários à sua cabal compreensão e que o apregoado vício de que padecia ficou sanado” (arts. 32 e 34 da R.);

g) a prova do transporte intracomunitário é a principal condição substantiva necessária à aplicação da isenção em IVA às transmissões intracomunitárias de bens estabelecida no artigo 14.º, n.º 1, a), do RITI e para fazer face ao risco de fraude nestas operações, através do artigo 45.º-A do referido Regulamento, passaram a prever-se regras específicas que presumem o transporte intracomunitário, seja ele da responsabilidade do vendedor ou do adquirente dos bens, as quais foram reproduzidas no Ofício-Circulado n.º 30218/2020, de 3 de fevereiro (arts. 41 e 42 da R.);

h) a Requerente poderia, o que não fez quanto a algumas daquelas transmissões que lhe concederam crédito de imposto, ter apresentado prova cabal a assegurar a efetiva transmissão de bens para outros Estados-membros, o que validaria assim, ante a AT, o seu direito ao reembolso dos seus inputs, pelo que, não o tendo feito, deve concluir-se como no procedimento inspetivo e, depois, como na reclamação graciosa, no sentido de ser negado o direito ao reembolso que reclama no presente pedido arbitral (arts. 47 e 48 da R.);

i) no que se refere à ilegalidade invocada pela Requerente de que os créditos dos anos de 2017, 2018 e parte de 2019, já tinham sido validados pela AT, e como tal tinham sido concedidos e, por isso, não poderia a AT verificar a legitimidade dos mesmos, na sequência do pedido de reembolso do período 202105, isso não corresponde à realidade, uma vez que aqueles créditos foram concedidos automaticamente, atendendo à matriz de risco, mas não haviam sido objeto de análise em procedimento inspetivo, inexistindo “qualquer impedimento legal da AT em abrir procedimento para os períodos anteriores, com vista a analisar os créditos de imposto que foram gerados naqueles períodos”, porque, nos termos do artigo 22.º, n.º 11 do Código do IVA (CIVA), os pedidos de reembolso dão origem ao procedimento de aferição, pela AT, do direito ao crédito reclamado pelos sujeitos passivos, o que não contende com o facto de reembolsos que hajam sido deferidos automaticamente não possam, posteriormente, ser objeto de correção, caso se verifiquem incoerências ou ilegalidades” (arts. 49 a 52 da R.);

j) “Nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 3 da LGT: «Em caso de ter sido efetuada qualquer dedução ou crédito de imposto, o prazo de caducidade é o do exercício desse direito.»”; “no caso em apreço, verificou-se que o crédito de IVA apurado na declaração periódica de maio de 2021 teve a sua origem em anos anteriores, tendo sido relevante a análise desses períodos pretéritos para aferir da legitimidade daquele crédito de 2021, tendo apenas a inspeção procedido à inspeção do período de junho de 2016”; “As irregularidades detetadas nos períodos de junho a dezembro de 2016 têm repercussão na declaração periódica de janeiro de 2017 e posteriores, razão pela qual foi proposta a correção no valor de € 10.351,10, sempre por respeito ao teor do artigo 45.º, n.º 1, 3 e 4 LGT” (arts. 53, 54 e 55 da R.).

 

7. Por despacho de 27.04.2023, o Tribunal Arbitral, atendendo a que a Requerente protestou juntar aos autos um documento n.º 6, mas que não o concretizou até à resposta da Requerida, a quem assistia o direito de se pronunciar, em exercício do contraditório, sobre o referido documento (cfr. art. 16.º, al. a) do RJAT), notificou a Requerente para proceder, no prazo de 10 dias, à sua junção.

Por requerimento de 06.06.2023, a Requerente veio declarar que: “No que diz respeito ao Documento 6 que a Requerente protestou juntar na petição inicial, e que não logrou juntar no prazo entretanto concedido (...) tendo em consideração o seu significativo volume”, entende “que o mesmo não se afigura decisivo para a boa decisão da causa, tendo em consideração que tal documento corresponde aos comprovativos de expedição que foram juntos em sede de inspeção e de reclamação graciosa e que deverão constar, aliás, do processo administrativo tributário que foi junto pela entidade Requerida ao presente processo arbitral”.

No mesmo requerimento, a Requerente prescindiu da inquirição da testemunha arrolada, declarando que “a mesma constitui prova meramente acessória dos factos em apreço, não se revelando fundamental para a descoberta da verdade material”.

 

8. Por despacho arbitral de 19.06.2023, o Tribunal Arbitral, verificando não mais ser necessária a organização de audiência para produção de prova testemunhal e que o processo não carecia da definição de trâmites processuais específicos, ao abrigo do disposto na al. c) do art. 16.º e do n.º 1 do art. 19.º do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis consagrados pelos arts. 6.º e 130.º do CPC, aplicável ex vi al. e) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT, dispensou a realização da reunião a que alude o art. 18.º do RJAT e notificou as partes para alegações sucessivas, o que foi concretizado unicamente pela Requerente conforme peça processual de 03.07.2023, na qual replicou às alegações da resposta da Requerida e reiterou, no essencial, o exposto na PI.

Por último, por despacho de 16.08.2023, foi prorrogado, nos termos do art. 21.º, n.º 2 do RJAT, o prazo para a emissão da decisão arbitral, que ficou fixado em 28.10.2023.

 

II. Thema decidendum

 

9. O thema decidendum respeita à legalidade das liquidações de IVA relativas ao ano de 2019 e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra elas deduzida, constituindo as causas de pedir (em relação de subsidiariedade) do pedido de anulação dos atos impugnados as seguintes:

i) a falta de fundamentação dos atos de liquidação de IVA por ausência de sustentação no Relatório de Inspeção Tributária;

ii) o vício do procedimento inspetivo por o procedimento de inspeção que terá dado origem aos atos de liquidação ter tido por objeto períodos relativamente aos quais havia já sido emitido reembolso por parte da Autoridade Tributária pelo que as correções materializadas ao crédito de imposto apurado nos períodos de Janeiro a Agosto de 2019 não podiam ter sido efetuadas no âmbito da inspeção para análise do pedido de reembolso de IVA solicitado na declaração periódica de 2021 05;

iii) a violação da presunção de veracidade das declarações do contribuinte nos termos do art. 75.º, n.º 1 da LGT, por, na ausência de uma norma legal que imponha um tipo específico de prova, os montantes declarados como isentos ao abrigo do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), do RITI, devem gozar de presunção de veracidade, sendo o respetivo crédito de imposto reconhecido;

iv) a violação do princípio do inquisitório e da busca da verdade material previsto no art. 58.º da LGT, dado que deveria ter sido a própria Autoridade Tributária, munida do seu jus imperi, a prover no sentido da obtenção oficiosa das declarações junto dos adquirentes ou agentes transitários, tendo, para o efeito, sido facultado aos serviços de inspeção a listagem dos adquirentes e agentes transitários, e respetivos contactos;

v) a errónea aplicação da isenção nas transmissões intracomunitárias prevista no artigo 14.º, n.º 1, alínea a), do RITI por “vício de ilegalidade do entendimento da entidade Requerida que considerou a documentação apresentada pela REQUERENTE como não apta a demonstrar a expedição dos bens para outro Estado Membro” (citação retirada das alegações da Requerente).

 

10. A ordem do conhecimento pelo Tribunal dos vícios do ato impugnado encontra-se regulada pelo art. 124.º do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, als. a) e c) do RJAT, que determina que, “[n]a sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação” (n.º 1 do art. 124.º), sendo que, em cada um dos grupos, a apreciação é feita pela seguinte ordem: “no primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos”; “no segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público, ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior” (cfr. als. a) e b) do n.º 2 do art. 124.º).

Estando em causa nestes autos vícios conducentes à anulação dos atos controvertidos, cabe aplicar o disposto na al. b) do n.º 2 do art. 124.º do CPPT, que impõe que, quando o impugnante indica uma ordem de conhecimento dos vícios, estabelecendo entre eles uma relação de subsidiariedade (vd. o art. 101.º do CPPT que prevê que: “O impugnante pode arguir os vícios do ato impugnado segundo uma relação de subsidiariedade”), o Tribunal deve seguir a prioridade indicada. Como se afirmou no acórdão do STA de 18.6.2014, proc. n.º 01942/13, “sempre que o impugnante estabeleça uma ordem de precedência do conhecimento dos vícios geradores de anulabilidade é essa ordem que deve ser seguida pelo juiz, não lhe sendo permitido alterá-la, assim como não lhe é permitido alterar a ordem do conhecimento dos vícios geradores de nulidade ou de inexistência, que se encontra legalmente estabelecida”.

Verifica-se, como se adiantou, que a Requerente estabeleceu uma relação de subsidiariedade no conhecimento dos vícios invocados (cfr. art. 101.º do CPPT) como o evidenciam as referências constantes dos arts. 40.º (“Ainda que se entenda que os atos de liquidação se encontram devidamente fundamentados no relatório de inspeção notificado à REQUERENTE, no que não se concede, sempre se deverá concluir...”), 53.º (“Caso, ainda assim não se entenda, deverão os referidos atos ser anulados com os fundamentos que a seguir se indicam”), 67.º (“Ainda que assim não se entenda, o que por mero dever de cautela se concebe sem conceder, sempre deveria ...”) e 70.º (“Não obstante todo o exposto, sempre se deverá referir que...”), da PI (cfr. ainda as afirmações análogas constantes das alegações da Requerente: “Ainda que se entenda não haver falta de fundamentação relativamente aos atos de liquidação referentes aos períodos de Janeiro a Agosto de 2019 – o que por mero dever de cautela se concebe sem conceder”; “ainda que se considere que a Autoridade Tributária atuou sempre a coberto da legalidade no âmbito do procedimento que conduziu à emissão dos atos de liquidação em apreço – no que não se concede”), pelo que há que apreciar os vícios pela ordem estabelecida pela Requerente que foi enunciada no ponto antecedente.

A relação de subsidiariedade implica que a eventual procedência de um vício indicado como prioritário pelo Requerente prejudica o conhecimento das restantes questões que foram suscitadas somente para o caso da não procedência do vício antecedentemente alegado.

Posto isto, cumpre, então, proferir decisão.

 

III. Decisão da matéria de facto e sua motivação

 

11. Examinadas as alegações formuladas nas peças processuais das partes e a prova documental produzida, quer a que foi apresentada com a PI, quer a que resulta do procedimento administrativo (PA) junto aos autos (constituído pelos ficheiros denominados PA__compressed+(3), relativo ao procedimento de inspeção tributária, a seguir PA-IT, e PA_RG_...2022..._compressed, relativo ao procedimento de reclamação graciosa, a seguir PA-RG), o Tribunal julga provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:

 

I. A Requerente é uma sociedade comercial cuja atividade consiste na transformação de produtos da pesca e congelados em conservas e patés (CAE Principal 10203 – Conserv. Prod. Pesca e Aquic. em azeite, Óleos Veg. e Out.), no embalamento e comercialização das conservas e patés das suas marcas próprias e na sua produção para serem comercializados com as marcas dos clientes, encontrando-se enquadrada no regime normal mensal em sede de IVA (cfr. RIT, ponto II.3).

II. Na declaração periódica de maio de 2021 (202105), na qual foi apurado um crédito de imposto de €234.701,05, a Requerente solicitou o reembolso do montante de €210.000,00 (facto não controvertido – arts. 11 da PI e 6 e 9 da R.).

III. Com base na Ordem de Serviço n.º OI2021... (ano 2019), foi realizada ação de inspeção, de âmbito parcial em sede de IVA, por motivo de controlo do pedido de reembolso de IVA, do que resultou, após notificação do projeto de Relatório de Inspeção e do exercício do direito de audição prévia com junção de documentos, conforme docs. a fls. 80 e 89 e seguintes do PA-IT, o Relatório de Inspeção Tributária (RIT), notificado pelo ofício n.º..., datado de 17 de Novembro de 2021 (junto como doc. n.º 4 à PI e a fls. 117 e seguintes do PA-IT), que se dá por integralmente reproduzido, e de que se destacam, no que aqui releva, os seguintes excertos essenciais relativamente às correções de “IVA- imposto em falta” respeitantes ao exercício de 2019:

- “No seguimento dos atos inspetivos verificaram-se as correções e infrações que de seguida se sintetizam (...):

IVA – Imposto em falta (correções aritméticas) (...)

 

Considerando que apenas as correções dos períodos de 201909 e posteriores irão ter influência no montante do reembolso em apreciação (as relativas aos períodos anteriores irão dar origem a uma liquidação adicional no período 201908), propõe-se o deferimento parcial do reembolso de IVA de 210.000,00 € que foi solicitado na declaração periódica do período de 202105 pelo valor de 182.288,98 €.”;

- “A presente ação inspetiva visou a análise do pedido de reembolso de IVA no montante de 210.000€ solicitado pelo sujeito passivo na declaração periódica (DP) do mês de maio de 2021, na qual o sujeito passivo apurou um crédito de imposto de 234.701,05 € (o valor do crédito de imposto considerado em processo automático decorrente da liquidação da DP foi de 234.749,13 €).

Por se ter verificado que o crédito de IVA teve início em períodos de imposto anteriores, foram emitidos os despachos externos n° D12021... (2016-2019) e n° D12021... (2020 e 2021) no sentido de analisar a legitimidade do referido crédito.”;

- “Para além das vendas no mercado interno, teve também valores significativos de transmissões intracomunitárias de bens, que beneficiaram da isenção de imposto prevista na alínea a) do n° 1 do art° 14° do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias (RITI). As transmissões intracomunitárias de bens representaram 8,2% do volume de negócios em 2017, 9,3% em 2018 e 2019 e 14,2% em 2020 e tiveram como principais países de destino a Finlândia, Dinamarca, Suécia e Espanha.

No período analisado as exportações têm um peso mais reduzido no total das vendas e destinaram-se a países tão distintos como Angola, Austrália, China, Suíça, Ucrânia, Estados Unidos ou Canadá, entre outros.

O tipo de operações praticadas aliadas ao facto de ter tido aquisições em que suporta IVA a taxa normal (nomeadamente investimentos de valor significativo, embalagens, serviços de transporte, pagamentos a cadeias de hipermercados relativas a campanhas, etc) faz com que a empresa tenha sistematicamente uma situação de crédito de imposto e tenha solicitado diversos reembolsos ao longo dos últimos anos (nos anos mais recentes solicitou reembolsos nas DP's de 201309, 201605, 201709 e 201908), sendo que o último pedido de reembolso que foi objeto de análise pela inspeção tributária foi na DP de 201605.

Na DP de maio de 2021 solicitou mais um reembolso de 210.000 €, tendo-se procedido à análise da legitimidade do crédito apresentado para o período de junho de 2016 a maio de 2021 (inclusive).”;

- “Pela análise dos SAFT's de faturação foi possível identificar vendas com os seguintes descritivos às quais foi aplicada a taxa intermédia de IVA de 13% prevista na alínea b) do n° 1 do Código do IVA (CIVA):

Código do Produto Descritivo do Produto

85971 "DOCE MELAO 4×25GR DOCES DA QUINTA"

85981 "DOCE MELAO 25GR DOCES DA QUINTA CX/100*

85976 "TOMATE NAT TRITURADO 24x22GR MANNA PK24"

Os bens e serviços sujeitos à taxa intermédia de imposto estão taxativamente elencados na Lista II anexa ao CIVA, que atualmente não contempla qualquer verba relativa a frutas e frutos ou produtos hortícolas 1.

Por outro lado, na Lista I anexa ao CIVA (bens e serviços à taxa reduzida), a subcategoria "1.6 - Frutas, legumes, produtos hortícolas e algas" apenas inclui frutas no estado natural ou desidratadas e legumes e produtos hortícolas frescos ou refrigerados, secos ou desidratados ou congelados.

Quer o doce de melão quer o tomate triturado são ambos produtos processados (pertencendo o tomate à categoria de fruto), pelo que também não têm cabimento na verba 1.6 da referida Lista I à qual se aplica a taxa reduzida de IVA, devendo a sua venda estar sujeita à taxa normal de imposto de 23% (cf. alínea c) do n°1 do art.° 18° do CIVA).

Assim, propõem-se as seguintes correções em sede de IVA (falta de liquidação de imposto) resultantes da incorreta aplicação da taxa intermédia de imposto (no anexo 1 apresenta-se a lista detalhada das faturas e valores em causa):

(...)

 

- “A isenção de IVA nas transmissões intracomunitárias de bens está prevista no artigo 138º da Diretiva nº 2006/112/CE (Diretiva IVA) e, em termos de legislação nacional, na alínea a) do nº 1 do artº 14° do RITI (Regime do IVA nas Transmissões Intracomunitárias), segundo a qual têm de ser cumpridas as seguintes duas condições para que tais operações possam beneficiar desta isenção, a primeira relativa ao circuito físico dos bens e a segunda à identidade e identificação do adquirente:

1 - que os bens objeto da transmissão sejam expedidos ou transportados pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, a partir do território nacional para outro Estado-Membro com destino ao adquirente; e

2 - que o adquirente se encontre registado para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado noutro Estado-Membro, que tenha utilizado o respetivo número de identificação para efetuar a aquisição e aí se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens.

Adicionalmente, a Diretiva (UE) 2018/1910 do Conselho, de 4 de dezembro de 2018, que veio regular a isenção de IVA prevista no artº 138º da Diretiva IVA, aditou o parágrafo 1-A ao referido artº 138°, segundo o qual esta isenção não se aplica caso o fornecedor não tenha cumprido a obrigação relativa à submissão da Declaração Recapitulativa ou da declaração apresentada não constem as informações corretas relativas a essa entrega.

A não verificação de qualquer dos requisitos anteriormente enumerados determinará a não aplicação da isenção e a obrigação para o fornecedor de liquidar imposto sobre as operações efetuadas.”;

- “Com a introdução do art.º 45º A do Regulamento de Execução (UE) 282/2011 do Conselho de 15 de março (em vigor desde 1 de janeiro de 2020), passaram a estar taxativamente definidos os termos em que se considera verificada a presunção relativa à expedição ou transporte dos bens para efeitos da transmissão intracomunitária de bens. Para tal, e conforme previsto na alínea a) e da subalínea ii) da alínea b) do n°1 do já citado artigo 45°-A, o vendedor tem que estar "...na posse de, pelo menos, dois elementos de prova não contraditórios a que se refere o n.º 3, alínea a), emitidos por duas partes independentes uma da outra, do vendedor e do adquirente, ou de qualquer um dos elementos a que se refere o n.º 3, alínea a), em conjunto com qualquer um dos elementos de prova não contraditórios a que se refere o nº 3, alínea b), que confirmem o transporte ou a expedição emitidos por duas partes independentes uma de outra, do vendedor e do adquirente". No caso do transporte dos bens ser por conta do adquirente, acresce ainda uma declaração escrita do adquirente.

Para poder beneficiar da isenção de IVA nas transmissões intracomunitárias de bens, o vendedor deve assegurar-se que tem na sua posse os documentos necessários e suficientes para que, à luz da legislação em vigor e cumpridos os demais requisitos legais, possa provar que relativamente a uma determinada operação se verifica a presunção relativa à expedição ou transporte dos bens. Cabe ao vendedor fazer essa prova.

Caso o vendedor não possua os elementos de prova exigidos pelo art° 45°-A do Regulamento de Execução para que possa beneficiar da presunção relativa à expedição ou transporte dos bens nas transmissões intracomunitárias posteriores a 01-01-2021, cabe-lhe a ele demonstrar por outros meios de prova, perante as autoridades fiscais, que a condição relativa ao transporte dos bens se encontra cumprida e que os bens foram efetivamente transportados do território nacional para outro Estado membro.

Relativamente à A... e ao reembolso aqui em análise, os documentos comprovativos da isenção de IVA nas transmissões intracomunitárias de bens realizadas entre junho de 2016 e maio de 2021 foram solicitados através de notificação pessoal efetuada em 28/07/2021, na pessoa de C... (administrador da sociedade).

Existem muitas faturas para as quais não foram exibidos quaisquer documentos comprovativos do transporte dos bens do território nacional com destino ao outro Estado Membro e relativamente aos exercícios de 2020 e 2021 existem também muitas situações em que os documentos apresentados não são suficientes para que se possa presumir a expedição ou transporte de bens, nos termos do que está previsto no art.° 45°-A do Regulamento de Execução (UE) 282/2011 do Conselho de 15 de março. Nos anexos 2, 3, 4, 5, 6 e 7 ao presente relatório estão identificadas essas faturas por anos.”;

- “Mesmo que assim não fosse, estas operações [faturas relativas a 2020 e 2021 que aqui não importa considerar], bem como as restantes faturas identificadas nos anexos 2 a 7, não poderiam beneficiar da isenção da alínea a) do n° 1 do art.º 14º do RITI, dado que não foram apresentadas as provas necessárias e suficientes para que, à luz da legislação em vigor, se possa considerar comprovada a expedição ou transporte dos bens para o outro Estado Membro.

Consequentemente, encontra-se em falta a liquidação do imposto pelo fornecedor nos termos da alínea a) do n° 1 do artigo 1° do CIVA, tendo-se apurados os seguintes valores de IVA em falta pela aplicação das taxas reduzida, intermédias e normal de IVA previstas no n° 1 do artigo 18° do CIVA (nos anexos 2 a 7 do presente relatório consta o detalhe das faturas e a repartição do respetivo valor tributável por taxas de IVA aplicáveis): (anexos e quadros alterados na sequência do exercício do direito de audição)” (...)

;

- “III.1.4. Total do valor do IVA apurado em falta (...)

Do que foi referido nos pontos III.1.1., III.1.2. e III. 1.3 deste capítulo, propõem-se as seguintes correções meramente aritméticas em sede de IVA (falta de liquidação de imposto): (...)

 

Considerando que apenas as correções dos períodos de 201909 e posteriores irão ter influência no montante do reembolso em apreciação (as relativas aos períodos anteriores irão dar origem a uma liquidação adicional no período 201908 uma vez que nesse período o crédito apurado após as correções agora propostas é inferior ao reembolso solicitado e concedido na DP de 201908), propõe-se o deferimento parcial do reembolso de IVA que foi solicitado na declaração periódica do período de 202105 pelo valor de 182.288.98 € que corresponde ao crédito apurado na DP de 202105 resultante do processamento da correspondente DP (crédito de 234.749,13 €) corrigido com o reporte que havia sido considerado do período 201908 no montante de 302,90 € e as correções propostas para os períodos de 201909 a 202105 cujo valor acumulado totaliza 52.157,25 € (182.288,98 = 234.749.13 - 302,90 - 52.157,25)”;

- “Com efeito, o que foi proposto no Projeto de Relatório foi que a DP de 2017 01, na qual foi considerada a dedução de um reporte de períodos anteriores no montante de 131.831,46 € (campo 61 da DP), tivesse, para além das correções efetivamente referentes a janeiro de 2017, uma correção de - 10.351,10 € relativa a crédito de IVA de períodos anteriores indevidamente deduzido.

Em resposta aos argumentos apresentados no ponto I do direito de audição parece ainda de referir que o reembolso solicitado na DP de 2021 05 apenas é afetado pelas correções efetuadas nos períodos de 2019 09 e seguintes porque nos períodos de 2017 09 e 2019 08 foram solicitados e concedidos à sociedade outros reembolsos de IVA (de 330.000 € e 400.000 €, respetivamente) cujo valor é superior ao crédito de imposto apurado nesses períodos com as correções propostas no Projeto de Relatório, o que faz com que, nesses períodos de imposto (2017 09 e 2019 08), houvesse lugar a liquidações adicionais de IVA.”;

- “Acontece que em relação a muitas transmissões intracomunitárias de bens efetuadas nos anos de 2016 a 2019, que beneficiaram de isenção de IVA, o sujeito passivo não logrou apresentar (nem antes da elaboração do Projeto de Relatório nem em direito de audição) quaisquer meios de prova da saída dos bens do território nacional para outro Estado-Membro, nem os meios de prova elencados no Ofício Circulado nº 30009 nem outros. Por conseguinte, relativamente a tais operações deverão ser mantidas as correções que haviam sido propostas no Projeto de Relatório, por não terem sido comprovados os pressupostos da isenção de IVA do art.º 14°, n°1 al a), do RITI (correções constantes no capítulo III. 1.3. do relatório).

Em direito de audição foram apresentados documentos novos relativos a muitas transmissões intracomunitárias de bens efetuadas nos anos de 2016 a 2019 (operações elencadas nos anexos 8 a 11 do presente relatório). nomeadamente a identificação de algumas faturas posteriormente anuladas e a disponibilização de meios de prova que, à luz da legislação em vigor à data, permitem comprovar a saída dos bens do território nacional com destino a outro Estado-Membro (e, como tal, poderão as mesmas beneficiar de isenção de IVA), ficando sem efeito as correspondentes correções que haviam sido propostas no Projeto de Relatório e que estão resumidas nos quadros seguintes (o capítulo III.1.3 do relatório foi alterado em conformidade): (...)”.

 

IV. No âmbito da inspeção em causa foram solicitados à Requerente, relativamente às transmissões intracomunitárias de bens efetuadas, os documentos comprovativos da isenção de IVA prevista no artigo 14.º, n.º 1, alínea a), do RITI, conforme notificação pessoal de 28.07.2021, a fls. 15 do PA-IT, tendo a Requerente procedido à apresentação de declarações FCR (Certificado de Receção do Transitário) ou de declarações T2L em relação a diversas (mas não a todas) as transmissões faturadas (cfr. reconhecimento constante dos arts. 60.º e 61.º da PI, bem como indicações constantes do RIT nos termos acima transcritos).

V. A Requerente, no âmbito do exercício do direito de audição, apresentou uma listagem dos adquirentes e agentes transitários com os respetivos contactos, relativamente aos quais não logrou obter as declarações indicadas no ponto antecedente, conforme doc. n.º 5 à PI que corresponde ao documento 3 anexo à exposição para efeitos de direito de audição constante a fls. 89 e segs. do PA-IT.

VI. Na base das correções meramente aritméticas em sede de IVA promovidas pelo RIT em relação ao exercício de 2019 com o valor total de €2.365,37 (cfr. RIT, I.1. e citações constantes do ponto III), a Requerente foi objeto das liquidações de IVA n.ºs ... (19/01) ... (19/02), ... (19/03), ... (19/04), ... (19/05), ... (19/06), ... (19/07 ... (19/08), ... (19/09), ... (19/10), ... (19/11) e ... (19/12), juntas agregadamente como doc. n.º 2 à PI, das quais resultou a desconsideração do crédito de IVA apurado pela Requerente nas suas declarações periódicas, no montante total de €5.612, conforme quadro abaixo:

LIQUIDAÇÃO

PERÍODO

CRÉDITO DESCONSIDERADO ACUMULADO

19/01

3.201,06

19/02

3.356,68

19/03

3.518,94

19/04

3.705,23

 …

19/05

3.968,36

19/06

4.170,31

19/07

4.314,65

19/08

Total reembolso indeferido (linha 9.4 -corte do reembolso)

4.572,40

19/09

490,48

19/10

829,27

19/11

904,07

19/12

Total reembolso indeferido (linha 9.4 - corte do reembolso)

1.039,60

VII. Nos documentos de notificação das referidas liquidações adicionais consta o seguinte: “Fica notificado da correção efetuada ao valor do excesso a reportar existente na conta corrente de IVA, nos termos aqui indicados e com os fundamentos constantes do relatório de inspeção que lhe foi enviado. Esta correção foi feita nos termos do art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 229/95, de 11 de setembro e repercute-se para os períodos de imposto seguintes”.

VIII. Foi emitida, através do documento n.º ..., de 24.01.2022, decisão de deferimento parcial do pedido de reembolso de IVA formulado pela Requerente na declaração periódica de IVA referente ao mês de Maio de 2021, em que foi solicitado o reembolso do montante de €210.000,00 de um invocado crédito de imposto total de €234.749,13, tendo sido determinado o reembolso do montante de €182.288,98, com indicação de correções efetuadas no valor de €27.711,02 por motivo de “Visita da fiscalização” (cfr. o doc. n.º 3 à PI, que se dá por reproduzido).

 IX. A Requerente apresentou em 14.04.2022, relativamente às liquidações de IVA indicadas no ponto VI, a reclamação graciosa com o n.º ...2022..., conforme doc. constante a fls. 1 e seguintes do PA-RG, que se dá por reproduzido.

X. A referida reclamação graciosa n.º ...2022... foi indeferida por despacho de 09.09.2022, conforme notificação pelo Ofício n.º ..., de 09.09.2022 junto como doc. n.º 1 à PI e a fls. 242 e segs. do PA-RG, que se dá aqui por reproduzido, o qual se sustentou em Informação que, numa parte remete para o RIT, designadamente para a apreciação do direito de audição nele constante, e noutra parte aditou, no essencial, o seguinte:

- “Após o encerramento da ordem de serviço (procedimento inspetivo), foi elaborado o competente documento de correção (DC) n.º ..., relativo ao ano de 2019, com a imputação dos montantes de correções evidenciados no RIT.

Na sequência do tratamento deste DC, foram emitidas liquidações adicionais (as quais o SP fez questão de juntar ao pedido), sendo os montantes destas coincidentes com os constantes no RIT.

Atente-se a título de exemplo, que na linha 3 das liquidações adicionais, o "valor da correção" corresponde ao valor do mesmo período que consta do RIT (vide pág 3 - Capítulo I - Conclusões da Ação de Inspeção), correspondendo o total das correções aritméticas ao total desconsiderado para o ano de 2019 (€2.365,37).

No entanto, estas liquidações não originaram montantes a pagar relativamente a cada um destes períodos (com exceção do período 1908 com a liquidação efetiva de € 7092,15, dado o reembolso recebido de € 400.000,00) mas tão só a não consideração do montante do excesso a reportar para o período seguinte, dado que não existia "valor a cobrar adicionalmente", por existirem pagamentos disponíveis em conta corrente (vide linha 8 das liquidações adicionais).

Consta como fundamentação constante das notificações das liquidações de IVA o texto "Liquidação efetuada com base em correção efetuada pelos Serviços de Inspeção Tributária".

Refere o n° 2 do artigo 77° da LGT que a fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo conter as disposições legais, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.

Realce ainda para o n° 1 do artigo 63° do RCPITA, que prevê que os atos tributários que resultem do RIT poderão fundamentar-se nas suas conclusões.

Por outro lado, foram solicitados "diversos reembolsos ao longo dos últimos anos (nos anos mais recentes solicitou reembolsos nas DP's de 201309, 201605, 201709, 201908), sendo que o último pedido de reembolso que foi objeto de análise pela inspeção tributária foi na DP de 201605". (vide 4° parágrafo pág 7 do RIT). (...)

Assim, ao contrário do alegado pelo reclamante, relativamente ao preenchimento dos pressupostos que fundamentam e justificam as correções apuradas, encontram-se os mesmos devidamente descritos no RIT, em consonância com a realidade dos factos, sendo que nas notificações das liquidações adicionais reclamadas, se encontra a fundamentação adequada e necessária, pelo que o pedido não deverá merecer deferimento relativamente a quaisquer destas liquidações”.

- “a) A partir de 1 de janeiro de 2020, a aplicação da isenção prevista na alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° do RITI, passou a estar dependente da verificação do NIF do adquirente no VIES, da entrega da declaração recapitulativa de IVA pelo fornecedor, passando os meios de prova a serem detidos pelo fornecedor dos bens que comprovem a expedição dos bens do território nacional com destino a um sujeito passivo de outro Estado Membro, dois elementos não contraditórios emitidos por entidades independentes do fornecedor e do adquirente, e adicionalmente, uma declaração emitida pelo adquirente, quando seja este a efetuar o transporte, a entregar ao fornecedor até ao décimo dia do mês seguinte ao da entrega dos bens;

b) Os elementos de prova aceites são os constantes no art.º 45.º-A do Regulamento de Execução (UE) 2018/1912 do Conselho de 04 de dezembro de 2018, conforme instruções veiculadas através dos ofícios-circulados n° 30218 de 03 de fevereiro de 2020, n.º 30225 e n.º 30226 de 02 de outubro de 2020 e n.º 30231 de 28 de janeiro de 2021 todos da Direção de Serviços do IVA;

c) Da análise a toda a documentação que compõe o processo, e conforme devidamente detalhado/explicado nos capítulos III (DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS) e IX (DIREITO DE AUDIÇÃO) do Relatório de Inspeção Tributária (RIT), os serviços de inspeção desta Direção de Finanças, concluíram que parte das isenções declaradas, relativas a exportações e transmissões intracomunitárias de bens, não foram devidamente comprovadas, apurando-se assim a falta da prestação tributária, decorrente da falta de liquidação do IVA correspondente;

d) Decorrente do procedimento inspetivo realizado foram efetuadas liquidações oficiosas de acordo com o RIT, devidamente notificado ao sujeito passivo”;

- “Concluindo, face às alegações apresentadas pela reclamante, sem que os argumentos apresentados permitam alterar as conclusões retiradas do RIT e remetendo-se a apreciação aqui feita para aquele relatório, nomeadamente no capítulo III - onde os pressupostos que fundamentam e justificam as correções efetuadas se encontram devidamente explanados e capítulo IX- conclusões finais após exercício da audição prévia (nota: tendo o SP exercido o direito de audição, no âmbito do procedimento inspetivo, no qual teve a oportunidade de se pronunciar sobre as propostas de correção que lhe foram notificadas no projeto de relatório, aquele não acrescentou factos nem argumentos que alterassem substancialmente o anteriormente analisado e relatado pelo que foi o projeto de relatório convertido em relatório final de inspeção), encontrando-se em falta a comprovação de parte das isenções declaradas, e mostrando-se corretas as liquidações acima identificadas, parece-me que o presente pedido não deverá proceder, pelo que deverão manter-se as liquidações aqui reclamadas”.

 

12. Não se descortinam, em face da factualidade dada como provada, factos alegados relativamente aos quais assuma relevância para a resolução da causa a sua individualização como não provados.

 

13. A convicção do Tribunal na base da decisão da matéria de facto resultou, como se indica acima a propósito de cada um dos pontos do probatório, do reconhecimento de factos alegados ou do seu carácter não controvertido, das informações fácticas objetivas que são reportadas no RIT (vd. art. 76.º, n.º 1 da LGT e art. 115.º, n.º 2 do CPPT) e do exame dos documentos apresentados pela Requerente e dos constantes do processo administrativo junto pela Requerida especificados nos correspondentes números da factualidade provada.

 

IV. Do Direito

 

14. Conforme acima descrito nos n.ºs 5 e 9 e apreciado no n.º 10, a Requerente estabeleceu na sua PI uma relação de subsidiariedade quanto aos vícios imputados aos atos impugnados (cfr. art. 101.º do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, als. a) e c) do RJAT), pelo que, em conformidade com a al. b) do n.º 2 do art. 124.º do CPPT, cabe apreciar prioritariamente a questão suscitada de falta de fundamentação dos atos de liquidação de IVA relativos aos períodos de 2019.

 

IV.1. Falta de fundamentação

 

15. Alega a Requerente, como acima se sumariou no n.º 5, alíneas a) a f), que as liquidações de IVA referentes aos períodos de Janeiro de 2019 a Agosto de 2019 não têm sustentação na fundamentação do Relatório Final de Inspeção Tributária, pois dizem respeito a correções que, de acordo com o mesmo Relatório, deveriam ser concretizadas nos períodos de 2019 09 e seguintes e, para além disso, o valor do crédito de imposto total desconsiderado para o ano de 2019, apurado nos atos de liquidação em apreço, não corresponde ao valor que foi apurado no Relatório de Inspeção Tributária, pois o valor de crédito total desconsiderado no ano de 2019, apurado nas liquidações realizadas, corresponde a €5.612 enquanto, de acordo com o RIT, o valor de crédito de imposto a desconsiderar no ano de 2019 seria de apenas €2.365,37, conforme quadro constante da página 20 do Relatório.

Conclui, assim, a Requerente, que os atos de liquidação em apreço, e a decisão da reclamação graciosa que os confirmou, estão inquinados de vício de forma, por falta de fundamentação.

A Requerida, como acima se deu conta no n.º 6, alíneas d) a f), depois de invocar que “a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) tem uniformemente vindo a entender que a fundamentação do ato é um conceito relativo que varia conforme o tipo de ato e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal compreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do ato, ou seja, quando o destinatário possa conhecer as razões que levaram o autor do ato a decidir daquela maneira e não outra”, o que exemplifica com acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 13.04.2000, 28.10.1998 e de 25.05.1993, sustenta, embora sem específica referência a qualquer enunciado do RIT ou de outra documentação, que a decisão sub judice encontra-se cabalmente fundamentada, uma vez que espelha fielmente a realidade do procedimento administrativo que o antecedeu, sendo a sucinta fundamentação decorrência lógica e cronológica do procedimento administrativo encetado pela Requerente e cujas conclusões e fundamentos foram regular e oportunamente notificados.

Observa ainda a Requerida que, a propugnar-se a insuficiência da fundamentação, sempre cabia à Requerente solicitar a emissão da certidão prevista no artigo 37.º do CPPT e, não tendo “usado daquela faculdade conferida pela lei, forçoso se torna concluir que os atos sub judice continham todos os elementos necessários à sua cabal compreensão e que o apregoado vício de que padecia ficou sanado”.

 

16. É sabido que a fundamentação do ato tributário é uma exigência constitucional e legal que se mostra consagrada no art. 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (: “Os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”), nos arts. 152.º e 153.º do Código do Procedimento Administrativo (prevendo este último artigo no seu n.º 1 que: “A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituem, neste caso, parte integrante do respetivo ato” e no seu n.º 2 que: “Equivale à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato”) e no art. 77.º da LGT (em cujos n.ºs 1 e 2 se determina que: “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária” e que: “A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”).

Na base destas disposições legais, entende-se (vd., entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 07.06.2017, proc. n.º 0723/15, e de 21.06.2017, proc. n.º 068/17) que a fundamentação do ato tributário tem de ser clara, suficiente e congruente, o que envolve que, pela nitidez e precisão dos motivos de facto e de direito apresentados, sem contradição ou inconsistência, o que ocorre sempre que são invocados juízos de facto ou de direito que entre si se desdizem ou se revelam incompatíveis ou incoerentes, seja compreensível para um destinatário médio, possibilitando a apreensão do percurso cognoscitivo e valorativo seguido para a prática do ato de liquidação.

O cumprimento destes requisitos de motivação tem de ser apreciado em face dos contornos legais e materiais do ato e da situação sub judice porquanto, como o Supremo Tribunal Administrativo tem uniformemente afirmado (vd., por exemplo, o acórdão de 02.02.2022, proc. n.º 03014/11.1BEPRT), a fundamentação do ato tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de ato e as circunstâncias do caso concreto, relevando a verificação de que um destinatário normal consegue aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido para a decisão, e, portanto, conhecer as razões por que o autor do ato decidiu como decidiu e não de forma diferente.

 

17. No caso em juízo, a fundamentação dos atos de liquidação de IVA relativos ao ano de 2019 que importa considerar para a apreciação do vício de forma a este respeito invocado é a que resulta do texto do RIT descrito no ponto n.º III do probatório. Prescreve, aliás, o art. 63.º, n.º 1 do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) que: “Os atos tributários ou em matéria tributária que resultem do relatório poderão fundamentar-se nas suas conclusões, através da adesão ou concordância com estas, devendo em todos os casos a entidade competente para a sua prática fundamentar a divergência face às conclusões do relatório”.

Assim, é a fundamentação do RIT descrita no ponto n.º III do probatório que serve de suporte às liquidações de IVA sindicadas e que foi por elas apropriada, como o manifesta o facto provado n.º VII, em que se reporta que nos documentos de notificação das referidas liquidações adicionais consta: “Fica notificado da correção efetuada ao valor do excesso a reportar existente na conta corrente de IVA, nos termos aqui indicados e com os fundamentos constantes do relatório de inspeção que lhe foi enviado”. Trata-se, por outro lado, da fundamentação contemporânea e contextual à prática dos indicados atos tributários, sabendo-se que não assume relevância a fundamentação a posteriori – a fundamentação ou a remissão para documentos que a contenham tem de integrar-se no próprio ato e ser dele contemporânea.

Ora, quando se confrontam os motivos de facto e de direito que sustentam no Relatório de Inspeção Tributária as liquidações de IVA respeitantes ao ano de 2019, observa-se que aí se declara o seguinte (vd. as transcrições constantes do facto provado n.º III):

- “Considerando que apenas as correções dos períodos de 201909 e posteriores irão ter influência no montante do reembolso em apreciação (as relativas aos períodos anteriores irão dar origem a uma liquidação adicional no período 201908), propõe-se o deferimento parcial do reembolso de IVA de 210.000,00 € que foi solicitado na declaração periódica do período de 202105 pelo valor de 182.288,98 €”;

- “Considerando que apenas as correções dos períodos de 201909 e posteriores irão ter influência no montante do reembolso em apreciação (as relativas aos períodos anteriores irão dar origem a uma liquidação adicional no período 201908 uma vez que nesse período o crédito apurado após as correções agora propostas é inferior ao reembolso solicitado e concedido na DP de 201908), propõe-se o deferimento parcial do reembolso de IVA que foi solicitado na declaração periódica do período de 202105 pelo valor de 182.288.98 € que corresponde ao crédito apurado na DP de 202105 resultante do processamento da correspondente DP (crédito de 234.749,13 €) corrigido com o reporte que havia sido considerado do período 201908 no montante de 302,90 € e as correções propostas para os períodos de 201909 a 202105 cujo valor acumulado totaliza 52.157,25 € (182.288,98 = 234.749.13 - 302,90 - 52.157,25)”;

- “Em resposta aos argumentos apresentados no ponto I do direito de audição parece ainda de referir que o reembolso solicitado na DP de 2021 05 apenas é afetado pelas correções efetuadas nos períodos de 2019 09 e seguintes porque nos períodos de 2017 09 e 2019 08 foram solicitados e concedidos à sociedade outros reembolsos de IVA (de 330.000 € e 400.000 €, respetivamente) cujo valor é superior ao crédito de imposto apurado nesses períodos com as correções propostas no Projeto de Relatório, o que faz com que, nesses períodos de imposto (2017 09 e 2019 08), houvesse lugar a liquidações adicionais de IVA”.

Perante estas afirmações, não se consegue alcançar a motivação das liquidações adicionais de IVA efetuadas em relação aos períodos de Janeiro a Agosto de 2019, cuja emissão é inconsistente com aquelas indicações do RIT, segundo as quais as correções propugnadas se concretizariam através da emissão de atos de liquidação de IVA referentes aos períodos de 2019 09 e seguintes. Assiste, pois, razão à Requerente quando assinala a falta de fundamento daquelas liquidações no RIT por este afirmar que as correções se concretizam nos períodos de 2019 09 e seguintes e a incoerência que resulta de se declarar que “o reembolso solicitado na DP de 2021 05 apenas é afetado pelas correções efetuadas nos períodos de 2019 09 e seguintes porque nos períodos de 2017 09 e 2019 08 foram solicitados e concedidos à sociedade outros reembolsos de IVA”, mas de se proceder a correções aos períodos de Janeiro a Agosto de 2019, emitindo os correspondentes atos de liquidação.

Por outro lado, verifica-se manifesta incongruência entre os valores de crédito de imposto desconsiderado que são objeto dos atos de liquidação de IVA respeitantes ao exercício de 2019 e os valores que são apresentados no RIT. Com efeito, neste último, como se vê das transcrições realizadas no ponto n.º III do probatório, refere-se que as correções meramente aritméticas em sede de IVA para o ano de 2019 são no total de €2.365,37, mas o valor do crédito de imposto desconsiderado no ano de 2019 por força das liquidações realizadas nos diversos períodos mensais monta a €5.612,00 conforme se deu como provado no n.º VI do probatório. Dado que o que se lê no RIT (cfr. n.º III do probatório) sobre o deferimento parcial do reembolso do IVA solicitado de €182.288.98 é que “corresponde ao crédito apurado na DP de 202105 resultante do processamento da correspondente DP (crédito de 234.749,13 €) corrigido com o reporte que havia sido considerado do período 201908 no montante de 302,90 € e as correções propostas para os períodos de 201909 a 202105 cujo valor acumulado totaliza 52.157,25 € (182.288,98 = 234.749.13 - 302,90 - 52.157,25)” não são percetíveis as razões dessa divergência no ano de 2019.

Muito embora, como se disse, não assuma relevância, quando não acompanhada de revogação e prática de um novo ato, a fundamentação sucessiva ou a posteriori para aferir a respetiva suficiência e congruência, sempre se acrescente que as declarações, a este respeito, recolhidas pela decisão de indeferimento da reclamação graciosa (cfr. ponto n.º X) também não se mostram clarificadoras mediante cabal e específica explicação dos diversos valores em causa (“a título de exemplo, que na linha 3 das liquidações adicionais, o "valor da correção" corresponde ao valor do mesmo período que consta do RIT (vide pág 3 - Capítulo I - Conclusões da Ação de Inspeção), correspondendo o total das correções aritméticas ao total desconsiderado para o ano de 2019 (€2.365,37)”; “No entanto, estas liquidações não originaram montantes a pagar relativamente a cada um destes períodos (com exceção do período 1908 com a liquidação efetiva de € 7092,15, dado o reembolso recebido de € 400.000,00) mas tão só a não consideração do montante do excesso a reportar para o período seguinte, dado que não existia "valor a cobrar adicionalmente", por existirem pagamentos disponíveis em conta corrente (vide linha 8 das liquidações adicionais)”.

Importa recordar que o já citado art. 77.º, n.º 2 da LGT exige que a fundamentação, para além das disposições legais aplicáveis, deve conter a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo. Não pode, pois, ser transposto para o sujeito passivo o encargo de procurar detetar e identificar os elementos e dados necessários à efetiva justificação do concreto conteúdo decisório, designadamente na sua vertente quantitativa, das liquidações realizadas.

Justamente, em face do teor da fundamentação constante do RIT, cabe reconhecer que falece uma conexão lógica e precisa com os concretos atos de liquidação impugnados e as correções por eles concretizadas.

Os atos de liquidação sindicados não surgem, pois, como a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação no RIT, não possuindo um nexo de adequação entre si, antes se verificando insuficiência e contradição entre os fundamentos mobilizados e a decisão adotada.

Nesta base, não é possível considerar que as liquidações sindicadas resultem de uma motivação suficiente, clara, não obscura ou ambígua, e congruente, consistente num processo lógico, coerente e apropriado, apto a sustentar uma conexão de conformidade dos atos de liquidação sindicados com a fundamentação objeto do RIT.           

Ora, uma fundamentação insuficiente, não clara e incongruente equivale a falta de fundamentação, como se conclui da conjugação do art. 77.º, n.º 1 e 2 da LGT, do art. 99.º, alínea c) do CPPT e do art. 153.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo.

 

18. Perante o exposto, há que referir seguidamente que é patente a falta de razão da alegação da Requerida de que cabia à Requerente solicitar a emissão da certidão prevista no artigo 37.º do CPPT, pelo que, não tendo “usado daquela faculdade conferida pela lei, forçoso se torna concluir que os atos sub judice continham todos os elementos necessários à sua cabal compreensão e que o apregoado vício de que padecia ficou sanado”.

O n.º 1 do art. 37.º do CPPT prevê que: “Se a comunicação da decisão em matéria tributária não contiver a fundamentação legalmente exigida, a indicação dos meios de reação contra o ato notificado ou outros requisitos exigidos pelas leis tributárias, pode o interessado, dentro de 30 dias ou dentro do prazo para reclamação, recurso ou impugnação ou outro meio judicial que desta decisão caiba, se inferior, requerer a notificação dos requisitos que tenham sido omitidos ou a passagem de certidão que os contenha, isenta de qualquer pagamento”.

Esta disposição reporta-se às irregularidades da notificação relativas a um ato que conterá presumivelmente os elementos exigidos por lei, não aos vícios próprios e intrínsecos do ato notificado suscetíveis de impugnação. Fundamentação do ato e notificação da fundamentação não são elementos coincidentes, implicando a ausência da primeira vício de forma suscetível de conduzir à anulação do ato e a falta da segunda uma irregularidade suscetível de sanação pelo mecanismo do art. 37.º do CPPT.

Ora, na situação sub judice depara-se com uma deficiência formal, por falta de fundamentação suficiente, clara e congruente, dos atos sindicados, não a uma irregularidade da notificação, pelo que o art. 37.º do CPPT não encontra aplicação in casu para os efeitos invocados pela Requerida.

 

19. Impõe-se, em conclusão, afirmar que as liquidações de IVA do ano de 2019 sindicadas nestes autos, por insuficiência e incongruência das razões apresentadas no RIT para o respetivo conteúdo, bem como a decisão de reclamação graciosa que as manteve,  padecem do vício alegado de falta de fundamentação, o que implica a sua ilegalidade (arts. 99.º, al. c) do CPPT e 77.º, n.º 1 da LGT).

Em consequência, julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral e decreta-se, nos termos do art. 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT, a anulação das liquidações de IVA impugnadas, e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que as manteve, por verificação do vício formal de falta da fundamentação legalmente exigível (arts. 268.º, n.º 3 da CRP, 77.º, n.º 1 da LGT e 99.º, al. c) do CPPT).

 

20. Julgando-se procedente o vício alegado prioritariamente de falta de fundamentação, fica prejudicado o conhecimento dos demais vícios de violação de lei invocados (artigo 608.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT) que foram suscitados pela Requerente a título subsidiário.

Subsiste, tão só, a necessidade de apreciar o pedido da Requerente (vd. supra n.º 5) de que, em consequência da anulação das liquidações de IVA sindicadas, “lhe deverá ser reconhecido o direito a juros indemnizatórios sobre a quantia a reembolsar, contados, à taxa de 4%, desde a data da decisão de indeferimento do pedido de reembolso até à data em que venha a ser emitida a respetiva nota de crédito a favor da Requerente”.

 

IV.2. Juros indemnizatórios

 

21. Nos termos do art. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, a “decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários”: “a) Praticar o ato tributário legalmente devido em substituição do ato objeto da decisão arbitral; b) Restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito; c) Rever os atos tributários que se encontrem numa relação de prejudicialidade ou de dependência com os atos tributários objeto da decisão arbitral, designadamente por se inscreverem no âmbito da mesma relação jurídica de imposto, ainda que correspondentes a obrigações periódicas distintas, alterando-os ou substituindo-os, total ou parcialmente; d) Liquidar as prestações tributárias em conformidade com a decisão arbitral ou abster-se de as liquidar”. Na decorrência do assim determinado, estabelece o n.º 5 deste art. 24.º que: “É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Prescreve, a este respeito, o art. 43.º, n.º 1 da LGT que: “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

22. Pois bem, constitui jurisprudência uniformizada que, quando os atos tributários são anulados por vícios de forma (incompetência do autor do ato, vício procedimental, falta de fundamentação, ou equivalente), não são devidos juros indemnizatórios, nos termos e para os efeitos do artigo 43.º n.º 1 da LGT.

Assim se afirmou expressamente nos acórdãos de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo de 30.09.2020, proc. n.º 02009/18.9BALSB, de 04.11.2020, proc. n.º 037/19.6BALSB e de 21.06.2023, proc. n.º 011/23.8BALSB:

há muito que o STA sufraga o entendimento, formulado com base na letra do artigo 43.º, n.º 1 da LGT, de que os juros indemnizatórios apenas podem ser atribuídos ao sujeito passivo que tenha satisfeito uma obrigação tributária que venha a ser anulada com fundamento em “erro imputável aos serviços”, designadamente, por erro na aplicação do direito. É só neste caso, segundo a interpretação firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo, que se gera uma efetiva lesão na esfera jurídica do sujeito passivo, decorrente da imposição do cumprimento de uma obrigação tributária que se vem a apurar ser contrária ao direito e que, por isso, deve ser patrimonialmente reparada através do pagamento de juros indemnizatórios.

Já quando os atos tributários são anulados por vícios de forma (incompetência do autor do ato, vício procedimental ou falta de fundamentação, para referir alguns exemplos) não fica demonstrado que tenha sido exigida ao sujeito passivo o cumprimento de uma obrigação materialmente contrária à lei (ou seja, que não era devida), mas apenas que essa obrigação não foi determinada ou calculada em conformidade com as normas legais e, por essa razão, a mera restituição do que foi pago é suficiente para tornar indemne o sujeito passivo.

Mais, nos casos em que existam razões atendíveis (fundamentos que suportem a violação de um direito de natureza substantiva) para que o sujeito passivo cujo tributo anulado com fundamento em vício de forma se não deva considerar indemnizado pela mera restituição dos valores que tenha pago, pode sempre utilizar-se a ação de responsabilidade civil para obter a reparação dos respetivos danos.

Lembre-se, por fim, que o Tribunal Constitucional, confrontado com a antes mencionada interpretação do n.º 1 do artigo 43.º da LGT sufragada pela jurisprudência do STA, decidiu, no acórdão n.º 203/2013,“[N]ão julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 43.º e 100.º, ambos da Lei Geral Tributária, segundo a qual não são devidos juros indemnizatórios, em execução de decisão anulatória da liquidação de tributo, quando a anulação do ato tributário se funde em ilegalidade de natureza orgânico-formal”.

É, pois, esta interpretação do n.º 1 do artigo 43.º da LGT que uma vez mais se confirma e reitera”.

 

Especificamente em relação à anulação do ato tributário com fundamento no vício formal de falta de fundamentação pode citar-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28.11.2018, proc. n.º 087/18.0BALSB em que se uniformizou jurisprudência com o seguinte enunciado:

 

O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT, derivado de anulação de um ato de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse ato está afetado por erro - sobre os pressupostos de facto ou de direito - imputável aos serviços, de que tenha resultado pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido; se a anulação de um ato de liquidação for baseada unicamente em vício formal de falta de fundamentação tal não implica a existência de erro de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, pelo que inexiste, nesse caso, direito a juros indemnizatórios”.

 

Na decorrência desta jurisprudência, que se impõe observar, como a anulação acima decretada dos atos sindicados resultou da verificação de vício de forma por preterição do direito à fundamentação, não há lugar à condenação da Requerida em juros indemnizatórios, nos termos e para os efeitos do art. 43.º, n.º 1 da LGT.

 

V. Decisão

 

Termos em que se decide:

  1. julgar procedente o pedido objeto da presente pronúncia arbitral e, em consequência, anular, por falta de fundamentação, os atos tributários sindicados, com as legais consequências;
  2. julgar prejudicadas as demais questões de ilegalidade suscitadas nos autos;
  3. julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida em juros indemnizatórios;
  4. condenar a Requerida nas custas processuais.

 

VI. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do CPPT, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, fixa-se ao processo o valor de €5.612,00 (cinco mil seiscentos e doze euros), que constitui a importância indicada no pedido de pronúncia arbitral como objeto da impugnação das liquidações de IVA sindicadas.

 

VII. Custas

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, dada a procedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

 Notifique-se.

 

Lisboa, 20 de Outubro de 2023.

 

O Árbitro

 

 

 

(João Menezes Leitão)

 

 



[1] Respeita-se a ortografia resultante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, tendo sido atualizada, em conformidade, a grafia constante das citações efetuadas.