SUMÁRIO:
1 – Os lançamentos a favor da sociedade, em quaisquer contas correntes dos sócios, ficam debaixo da alçada da presunção constante do n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS.
Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Ana Teixeira de Sousa e Jónatas Machado, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO
A... S.A., sociedade com o Número Único de Identificação Fiscal e de Pessoa Colectiva..., com sede em Avenida ..., número ..., ...-... Elvas, na área territorial do serviço periférico local do Serviço de Finanças de Elvas, veio, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º todos do Decreto-Lei n.o 10/2011, de 20 de Janeiro, requerer constituição de Tribunal Arbitral com designação dos árbitros por Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, sendo o objecto de pronúncia arbitral a declaração de ilegalidade da Liquidação de Retenções na Fonte de IR n.º 2022... no montante de € 70.428,58 (setenta mil quatrocentos e vinte e oito euros e cinquenta e oito cêntimos) e correspondente Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios no montante de € 6.932,63 (seis mil novecentos e trinta e dois euros e sessenta e três cêntimos), relativas ao exercício de 2019, e da Liquidação de Retenções na Fonte de IR n.º 2022 ... no montante de € 54.830,97 (cinquenta e quatro mil oitocentos e trinta euros e noventa e sete cêntimos) e correspondente Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios no montante de € 3.978,86 (três mil novecentos e setenta e oito euros e oitenta e seis cêntimos), relativas ao exercício de 2020.
É Requerida a AT.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 12 de dezembro de 2022.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 31 de janeiro de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O TAC encontra-se, desde 20 de fevereiro de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 27 de março de 2023.
Por despacho de 22 de abril de 2023, o TAC proferiu o seguinte despacho:
“1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito.
2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença.
3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, até a data limite da prolação da decisão final.
4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.
Notifiquem-se as partes do presente despacho.”
Não houve oposição de nenhuma das partes.
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DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
II.1 Posição da Requerente
A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:
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Em cumprimento das Ordens de Serviço n.º OI2021... e n.º OI2021... a Requerente foi sujeito a um processo de inspeção tributária relativo aos exercícios de 2019 e 2020.
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Através de Ofícios datados de 08-07-2022 foi a Requerente notificada dos RIT, dos quais resultam duas correções meramente aritméticas em sede de RF-IRS, os quais se dão aqui por inteiramente reproduzidos para os devidos efeitos legais.
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As correções propostas em sede de RF-IRS têm por base a consideração como adiantamentos por conta de lucros dos montantes lançados em contas de sócios, ao abrigo do n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS.
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Tal posição foi inicialmente manifestada pela AT relativamente aos lançamentos na conta 2781019 – B... e conta 2781020 – C... .
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Para efeitos de esclarecimento relativamente à natureza dos montantes lançados nas mencionadas contas no âmbito dos procedimentos de inspeção, procederam os serviços da AT ao pedido dos respetivos elementos de suporte de forma a determinar se, efetivamente, estaríamos perante o pagamento de rendimentos de Categoria E ou, inversamente, perante pagamentos de outra natureza.
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Relativamente aos montantes lançados na conta 2781020 – C..., a Requerente concede na procedência do entendimento da AT, tendo inclusive liquidado o imposto correspondente no dia 26 de Maio de 2022, conforme Documentos n.º 5 e 6 já juntos.
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Já no que concerne à conta 2781019 – B..., atenta a factualidade subjacente, que melhor se explica de seguida, não pode a Requerente conformar- se com tal posição.
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Conforme referido no âmbito da prestação de esclarecimentos aos serviços de inspeção tributária, os lançamentos na conta 2781019, têm origem na celebração entre a Requerente e B... (doravante Rendeira) de um Contrato de Arrendamento Rural (doravante Contrato de Arrendamento) no dia 1 de Janeiro de 2018, referente a três prédios rústicos dos quais é proprietária a Requerente, e que ora se junta como Documento n.º 7.
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De acordo com o Contrato de Arrendamento, os terrenos objeto do contrato destinam-se à exploração, pela Rendeira, de “atividade agrícola, florestal ou pecuária e/ou outras atividades de produção de bens e serviços com ela conexas” (cf. cláusula 5.a do Contrato de Arrendamento).
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Para efeitos de prossecução das referidas atividades, ficou convencionado em “§ Único” na página 4 do Contrato de Arrendamento que a Requerente suportaria as despesas relativas aos investimentos a realizar pela Rendeira nos imóveis locados, na medida em que as mesmas não fossem financiadas ao abrigo de processos de incentivos financeiros concedidos pelo IFAP/Ministério da Agricultura no âmbito da PAC-Política Agrícola Comum.
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Com efeito, a Rendeira apresentou uma candidatura ao apoio do investimento para a produção de vinhos de qualidade no âmbito da PAC - Política Agrícola Comum (PDR 2020) junto do IFAP no dia 23 de Julho de 2017, a qual viria a ser aprovada apenas em 26-06-2020, conforme documento de candidatura e aprovação que se juntam como Documento n.º 8.
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Assim, entre a data de apresentação e a data de celebração do Contrato de Arrendamento e a data de aprovação da candidatura, a Requerente custeou as despesas relativas ao investimento realizado nos imóveis arrendados.
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Relativamente aos montantes transferidos durante os exercícios de 2019 e 2020, os mesmos corresponderam a gastos evidenciados nas facturas registadas na contabilidade da Rendeira, que se juntam como Documentos n.ºs 9 e 10.
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Já na esfera da Requerente, o investimento realizado nos imóveis arrendados foi, de acordo com indicação pelo Revisor Oficial de Contas da Requerente, contabilizado na conta 2781019 como um crédito sobre a sócia/Rendeira, o qual será posteriormente objecto de crédito nessa mesma conta, por contrapartida de débito na conta 43 – Activos Fixos Tangíveis assim que se encontrem terminados os trabalhos sobre os imóveis arrendados, de forma a reflectir a sua verdadeira natureza de investimento.
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Da factualidade supra exposta, não restam dúvidas sobre o enquadramento dos montantes lançados na conta 2781019 –B... como sendo relativos ao investimento a realizar nos terrenos arrendados.
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Esta posição dos serviços padece de vício de ilegalidade, porquanto se baseia num critério meramente formal para manter uma presunção juris tantum, ou seja, uma presunção ilidível, para mais perante factos concretos que substanciam a operação que efectivamente subjaz aos lançamentos efectuados na conta corrente da sócia B... .
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Ou seja, a AT vem desconsiderar a prova documental e contabilística apresentada pela Requerente que impede a verificação dos factos e pressupostos base para a invocação da presunção prevista no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS.
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Não pode, por conseguinte, manter-se a decisão da AT, porquanto a mesma se encontra em pleno prejuízo da verdade material e violação do princípio da capacidade contributiva, conforme melhor se aduz de seguida.
Posição da Requerida
Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:
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A Requerente foi alvo das ações inspetivas internas n.º OI2021... e OI2021..., respeitantes aos anos de 2019 e 2020, realizadas com o objetivo de controlo de entrega de retenções na fonte de IR e Selo.
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Impugna nos presentes autos as correções efetuadas por falta de retenção na fonte e de entrega de imposto, relativos aos movimentos em conta de B... .
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No âmbito de processo de avaliação de participação em sociedade (quotas, ações) efetuada nos termos do artigo 15º do Código do Imposto do Selo (CIS), verificou-se que as contas de Outros Devedores e Credores da Requerente apresentava, relativamente a esta sócia (membro da administração), os seguintes saldos devedores:
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A conta 2782019 – B..., regista no exercício de 2019 os seguintes lançamentos:
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O documento de suporte apresentado para o lançamento efetuado na conta do sócio, a débito, identificado na coluna das observações com a), corresponde a transferências bancárias efetuadas da conta à ordem do sujeito passivo no banco BPI (IBAN n.º PT...), conforme assinalado no extrato de conta ou nos documentos comprovativos de transferências, que indicam como beneficiária a sócia B... (IBAN PT...).
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O documento de suporte apresentado para o lançamento efetuado na conta do sócio, a débito, identificado na coluna das observações com b), corresponde a “valor total das transferências para a D. B... realizadas por D..., Ld.ª, nos anos de 2017 a 2019, as quais deveriam ser feitas por esta empresa a coberto do contrato de exploração ..”, tendo como beneficiária B... .
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Da informação enviada e dos esclarecimentos prestados, verificou-se que com referência ao exercício de 2019, os mesmos não dissipavam as dúvidas existentes, porquanto não existia fatura/recibo do pagamento das rendas, não sendo apresentados elementos relevantes para o esclarecimento adequado do cálculo dos montantes envolvidos.
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Da análise do exposto, dos elementos enviados e da informação constante das declarações fiscais da Requerente, indo de encontro à determinação do n.º 4 do artigo 6.º do CIRS, foi considerado que os rendimentos não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargo social.
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Porquanto, com o devido respeito, os procedimentos efetuados pela Requerente não têm coerência nem racional económico, uma vez que a empresa afeta recursos para o investimento e a arrendatária fica com os subsídios e com os lucros, sendo que um negócio desta natureza só ocorre porque a arrendatária também é uma das sócias.
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Em suma, não existindo fatura/ recibo do pagamento das rendas e não tendo sido apresentados quaisquer elementos relevantes para o esclarecimento adequado da situação, apenas se podem configurar as quantias recebidas como uma distribuição de lucros ou adiantamento por conta dos lucros e enquanto tal sujeitos a incidência de IRS.
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SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
O processo não enferma de nulidades.
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Fundamentação
IV.1. Matéria de facto
Factos dados como provados
Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:
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A Requerente foi alvo das ações inspetivas internas n.º OI2021... e OI2021..., respeitantes aos anos de 2019 e 2020, realizadas com o objetivo de controlo de entrega de retenções na fonte de IR e Selo.
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Impugna nos presentes autos as correções efetuadas por falta de retenção na fonte e de entrega de imposto, relativos aos movimentos em conta de B... .
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No âmbito de processo de avaliação de participação em sociedade (quotas, ações) efetuada nos termos do artigo 15º do Código do Imposto do Selo (CIS), verificou-se que as contas de Outros Devedores e Credores da Requerente apresentava, relativamente a esta sócia (membro da administração), os seguintes saldos devedores:
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A conta 2782019 – B..., regista no exercício de 2019 os seguintes lançamentos:
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O documento de suporte apresentado para o lançamento efetuado na conta do sócio, a débito, identificado na coluna das observações com a), corresponde a transferências bancárias efetuadas da conta à ordem do sujeito passivo no banco BPI (IBAN n.º PT50...), conforme assinalado no extrato de conta ou nos documentos comprovativos de transferências, que indicam como beneficiária a sócia B... (IBAN PT50...).
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O documento de suporte apresentado para o lançamento efetuado na conta do sócio, a débito, identificado na coluna das observações com b), corresponde a “valor total das transferências para a D. B... realizadas por D..., Ld.ª, nos anos de 2017 a 2019, as quais deveriam ser feitas por esta empresa a coberto do contrato de exploração ..”, tendo como beneficiária B... .
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A conta 2781019 – B..., regista no exercício de 2020 os seguintes lançamentos:
Factos dados como não provados
Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, e em factos não questionados pelas partes.
Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
IV. 2. Matéria de Direito
A questão discutida nos presentes autos prende-se com o enquadramento, a título de rendimento de capitais (categoria E), ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, alínea h) e n.º 4 do artigo 6.º, ambos do Código do IRS, de um conjunto de dispêndios efetuados pela Requerente, nos períodos de 2019 e 2020, que, segundo a Requerida, pertencem à esfera individual dos sócios.
A Requerente opõe-se a esta correção invocando que a Requerida não demonstrou, como lhe incumbia, de acordo com o estatuído nos artigos 74.º e 75.º da LGT, os pressupostos de aplicação da presunção consagrada no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS, fundando-se, unicamente e de forma insuficiente, na conclusão alcançada pela Requerida da indedutibilidade fiscal dos dispêndios, à face do preceituado no artigo 23.º do Código do IRC.
Estão em causa as correções propostas em sede de RF-IRS que têm por base a consideração como adiantamentos por conta de lucros dos montantes lançados em contas de sócios, ao abrigo do n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS. Tal posição foi inicialmente manifestada pela AT relativamente aos lançamentos na conta 2781019 –B... e conta 2781020 – C... .
Neste âmbito, importa compulsar as normas de incidência, nos segmentos com relevo para a apreciação da questão suscitada:
“Artigo 5.º do Código do IRS
Rendimentos da categoria E
1 – Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.
2 – Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:
[…]
h) Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º;
[…]”
“Artigo 6.º do Código do IRS
Presunções relativas a rendimentos da categoria E
[…]
4 – Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.
[…]”
“Artigo 23.º do Código do IRC
Gastos e perdas
1 – Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.
[…]”
“Artigo 71.º
Taxas liberatórias
1 - Estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28 %:
a) Os rendimentos de capitais obtidos em território português, por residentes ou não residentes, pagos por ou através de entidades que aqui tenham sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento e que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada;
(…)”
Não há qualquer dúvida[2] de que o n.º 4 do art.º 6.º do CIRS estabelece uma presunção de rendimentos da categoria E. Recordemos a disposição.
“4. Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.”
Uma presunção é uma ilação que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. No caso vertente, tira-se de um facto conhecido – o lançamento a favor da sociedade, em quaisquer contas correntes dos sócios, quando esse lançamento não resulte de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais – um outro facto cuja existência se desconhece – a distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros.
Como não pode deixar de ser, o art.º 73.º da Lei Geral Tributária muito claramente determina que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. O Tribunal Constitucional tem admitido a não inconstitucionalidade da utilização de presunções para determinar a matéria colectável desde que seja permitida a sua ilisão, em obediência ao princípio da igualdade, que exige que a imposição de obrigações de impostos seja feita segundo a capacidade contributiva de cada um.
Forçoso para o juízo de admissibilidade deste tipo de presunções é que se permita ao contribuinte a sua ilisão, ou seja, a demonstração de que, mau grado a verificação do facto conhecido, o facto desconhecido não ocorreu. Quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz, sendo porém, no caso das presunções ilidíveis, dada a oportunidade de demonstração do contrário a quem por ela é prejudicado.
Em matéria de incidência tributária, como se viu, as presunções são necessariamente ilidíveis e a sua ilisão pode fazer-se, por regra, nos termos do disposto no art.º 64.º n.º 1 do CPPT: “O interessado que pretender ilidir qualquer presunção prevista nas normas de incidência tributária deverá para o efeito, caso não queira utilizar as vias da reclamação graciosa ou impugnação judicial de acto tributário que nela se basear, solicitar a abertura de procedimento contraditório próprio”. Todavia não pode desta norma inferir-se, em termos necessários, que a ilisão da presunção pode ser feita por qualquer meio quando a lei, em certos casos, explicita quais os meios de prova que poderão ser usados para afastá-la. É que o n.º 5 do art.º 6.º do CIRS expressamente refere que as presunções estabelecidas nesse artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira. Se, nestes casos, qualquer meio de prova fosse possível, não teria qualquer efeito útil aquela disposição. Se o legislador elaborou uma norma específica para o efeito tal tem de ser interpretado no sentido de não se pretender que a ilisão possa fazer-se por qualquer meio de prova.
Contudo, este juízo apertado no que à ilisão da presunção respeita, não dispensa uma exigência prévia. A base da presunção deve imperativamente ser provada com os correspondentes factos dela integradores sob pena de a causa ser decidida em sentido desfavorável à parte onerada com esse ónus, ou seja à AT, e, perante tal falta, o resultado que com a presunção judicial se visava obter não pode dar-se por alcançado, ou seja e no caso, que o tal lançamento em conta corrente do sócio, corresponde a distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros. O mesmo é dizer que para se dar como provado o facto desconhecido é imperioso que demonstre o facto conhecido. Só assim se autoriza a pretendida ilação.
Ora, os factos integradores da presunção, no caso vertente, são estes:
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A existência de fluxos financeiros;
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O registo em conta corrente de sócios; e
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Que o dito registo não resulte de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
E é isso que sucede:
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Conforme referido no âmbito da prestação de esclarecimentos aos serviços de inspeção tributária, os lançamentos na conta 2781019, têm origem na celebração entre a Requerente e B... (doravante Rendeira) de um Contrato de Arrendamento Rural (doravante Contrato de Arrendamento) no dia 1 de Janeiro de 2018, referente a três prédios rústicos dos quais é proprietária a Requerente.
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De acordo com o Contrato de Arrendamento, os terrenos objeto do contrato destinam-se à exploração, pela Rendeira, de “atividade agrícola, florestal ou pecuária e/ou outras atividades de produção de bens e serviços com ela conexas” (cf. cláusula 5.a do Contrato de Arrendamento).
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Para efeitos de prossecução das referidas atividades, ficou convencionado em “§ Único” na página 4 do Contrato de Arrendamento que a Requerente suportaria as despesas relativas aos investimentos a realizar pela Rendeira nos imóveis locados, na medida em que as mesmas não fossem financiadas ao abrigo de processos de incentivos financeiros concedidos pelo IFAP/Ministério da Agricultura no âmbito da PAC-Política Agrícola Comum.
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Com efeito, a Rendeira apresentou uma candidatura ao apoio do investimento para a produção de vinhos de qualidade no âmbito da PAC - Política Agrícola Comum (PDR 2020) junto do IFAP no dia 23 de Julho de 2017, a qual viria a ser aprovada apenas em 26-06-2020.
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Assim, entre a data de apresentação e a data de celebração do Contrato de Arrendamento e a data de aprovação da candidatura, a Requerente custeou as despesas relativas ao investimento realizado nos imóveis arrendados.
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Relativamente aos montantes transferidos durante os exercícios de 2019 e 2020, os mesmos corresponderam os gastos evidenciados nas faturas registadas na contabilidade da Rendeira.
Ou seja, temos fluxos financeiros originados por um contrato de arrendamento (1), registados em conta de sócios (2) e que não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais (3).
Acresce que tanto a Requerente como a Requerida aceitam a existência dos registos contabilísticos que constam dos livros da sociedade. Não há, pois, qualquer litígio quanto ao registo existente. O litígio reside na interpretação que desse registo e da lei pode fazer-se. É esse o ponto que cumpre a este tribunal arbitral dilucidar.
Como foi já dito, temos de interpretar a norma do n.º 4 do art.º 6.º do CIRS nos termos gerais de direito. O CIRS não pode ser interpretado como se fosse aquilo que não é. E manifestamente o CIRS não é um tratado de contabilidade. O pensamento legislativo que ditou a formulação normativa parece ser este: os lançamentos a favor da sociedade, em quaisquer contas correntes dos sócios ficam debaixo da alçada da presunção. Este problema só aparentemente é contabilístico. É sobretudo um problema jurídico.
Se o legislador, de forma abrangente, refere quaisquer contas correntes, não deixa de aludir a contas correntes. Temos de surpreender o significado do conceito de contas correntes, porque na verdade, resulta da lei que não estarão em causa todas as contas, mas apenas as contas correntes. Uma conta corrente de sócio será aquela em que se registam, correntemente, os débitos e créditos frequentes, habituais, com determinadas pessoas, sejam eles fornecedores, clientes, ou, no caso que nos importa, na sua qualidade de sócios. Ou seja, sempre teremos de analisar a situação substancial, a concreta transação, para percebermos se o registo contabilístico se mostra adequadamente feito, se reflete, com inteireza e verdade, a operação que se pretende registar.
No caso vertente, os lançamentos contabilísticos referentes foram feitos na seguinte conta:
Ora, no entender deste tribunal arbitral, relativamente aos registos contabilísticos que vimos de analisar, é claro que deve prevalecer o entendimento de que houve uma distribuição de lucros ou um adiantamento por conta de lucros, pelo que temos de dar razão plena à Requerida.
A distribuição do ónus da prova e disciplina das presunções no direito tributário está sujeita ao regime que consta dos artigos 73.º e 74.º da LGT e acompanha até o regime geral do direito português; quem afirma determinado facto tem o ónus de o provar (74.º-1) e as presunções admitem sempre prova em contrário (73.º).
No caso dos autos a Requerente aponta a realização de movimentos que não sob a forma de lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, mas está claro o inverso, ou seja que independentemente da situação substantiva associada ao contrato de arrendamento – que é estritamente um problema da acionista da Requerente – houve lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros comprovados pela existência de fluxos financeiros, registados em conta corrente de sócios, não resultando de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
Clarifique-se, contudo, sobre o caso dos autos, que este juízo nada tem a ver com a convicção deste Tribunal de que as operações económicas subjacentes se reconduziram a esquemas abusivos para obtenção de ganho fiscal, sendo que em todo o caso, a fundamentação deveria recair no artigo 38.º, n.º 2 da LGT e não no art.º 23.º do Código do IRC.
Há, pois, pelo exposto, que concluir que a liquidação é plenamente legal por concretizadora da presunção constante do n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS, não havendo que anular o ato praticado.
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DECISÃO
Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:
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Julgar totalmente improcedente o presente pedido arbitral, com as legais consequências;
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Condenar a Requerente em custas.
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Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 124.974,67, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
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Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 3.060,00, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 19 de outubro de 2023.
Os Árbitros,
(Guilherme W. d’Oliveira Martins)
(Ana Teixeira de Sousa)
(Jónatas Machado)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.