Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD), Prof.ª Doutora Clotilde Celorico Palma e Dra. Sofia Ricardo Borges, designados pela Requente e pela Requerida, respectivamente, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 25-10-2023, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., LDA., sociedade comercial por quotas, com sede na Rua..., n.º ..., no Distrito de..., Concelho de ... e Freguesia de ..., ..., ..., ...-... ..., titular do NIPC ... (adiante designada apenas por «Requerente»), veio, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral, tendo em vista «a anulação da demonstração da liquidação de IVA relativamente à totalidade dos trimestres de 2020 e 2021 e aos primeiros 3 trimestres de 2022, cujo valor foi fixado em 1.214.514,95 € e, consequentemente, seja indicado que o montante global do imposto fixa-se em 297.905,90 €, anulando-se igualmente os juros e custos associados aos processos de liquidação e de execução, cujo montante ascende a 53.646,66 €, devendo ainda ser imputável à AT os juros vencidos e vincendos relativos ao depósito de caução constituído (e eventuais reforços que se venham a verificar) até efetivo recebimento dos montantes entregues, que atingem, na presente data, 21.397,17 € (vinte e um mil trezentos e noventa e sete euros e sete cêntimos), assim como deverá a AT restituir o penhor constituído de 1.112,50 € (mil cento e doze euros e cinquenta cêntimos), bem como os respectivos juros associados, até efetivo pagamento».
As liquidações impugnadas têm os n.ºs ..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., e as demonstrações de liquidação de juros compensatórios têm o mesmo número da respectiva liquidação.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 18-07-2023.
Os signatários comunicaram a aceitação do exercício das funções no prazo aplicável.
Em 06-10-2023, as Partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo manifestado vontade de recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1 alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 25-10-2023.
A AT apresentou Resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho de 01-12-2023, foi decidido dispensar a realização de reunião e alegações.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e é competente.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não há nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para apreciação desta questão:
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O objecto social da Requerente engloba actividades de "comércio, arrendamento e exploração de imóveis. Compra, construção, reconstrução, reabilitação e venda de imóveis. Mediação imobiliária. Gestão, administração, reparação e reabilitação de bens móveis e imóveis por conta de outrem ou por conta própria. Exploração de garagens e outros locais de estacionamento. Exploração de hotéis, outros locais de hospedagem e arrendamento de espaços físicos destinados a fins comerciais e ou industriais. Avaliação de bens imóveis, realizadas por conta de terceiros, com vista à compra, venda ou outro fim imobiliário. Atividades combinadas de apoio aos edifícios. Gestão de equipamentos do processamento de dados, gestão de equipamentos informáticos, gestão de equipamentos de som, imagem e multimédia. Desenvolvimento de atividades que permitem a transferência de informação de um remetente para um ou mais destinatários, de forma utilizável e nas mais variadas formas, som, imagem, texto, dados e voz, utilizando para tal meios de transmissão baseados numa única tecnologia ou na combinação de tecnologias. Aluguer de ativos tangíveis e intangíveis não financeiros de uma grande variedade de bens, máquinas e equipamentos. Guarda e armazenagem de bens, máquinas e equipamentos eletrónicos e informáticos. Desenvolvimento de atividades de engenharia e técnicas afins. Desenvolvimento de atividades de consultoria." (documento n.º 34 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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A Requerente celebrou com a sociedade comercial B..., Lda., como NIPC..., o contrato de empreitada, outorgado a 08-07-2020, que consta do documento n.º 35 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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A obra objecto do contrato de empreitada é um edifício novo, a construir em local em que não existia qualquer construção;
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O local onde foi construído o prédio está inserido em área de reabilitação urbana (ARU) da Cidade de Gaia, cuja delimitação foi aprovada por deliberações da Assembleia Municipal de Gaia, de 25-02-2016, publicitada pelo Aviso n.º 3874/2016, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 56, de 21-03-2016, e de 05-05-2020, publicitada pelo Aviso n.º 7435/2020, de 06 de Maio, publicado no Diário da República n.º 88/2020, 2.ª Série de 06-05-2020;
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Em execução do referido contrato, foi edificado o prédio, propriedade da Requerente, inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo ..., Vila Nova de Gaia (documentos n.ºs 36 e 37 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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No desenvolvimento da referida actividade, a sociedade B..., Lda., que se dedica à realização de empreitadas, emitiu, em regime de IVA em autoliquidação, as 29 facturas que constam dos documentos n.ºs 38 a 65, relativas à construção do prédio referido;
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A totalidade das facturas ascende ao montante global de € 6.110.802,39, sem IVA, conforme se refere no documento n.º 66 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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A Requerente procedeu à entrega das declarações periódicas de IVA, cujas cópias constam dos documentos n.ºs 67 a 77 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos;
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Até ao 3.º trimestre de 2022, inclusive, a Requerente autoliquidou IVA aplicando a taxa de 23% relativamente aos montantes facturados pela sociedade B..., Lda., respeitantes à construção do prédio referido;
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A partir do 4.º trimestre de 2022, a Requerente autoliquidou IVA aplicando a taxa de 6% (documentos n.ºs 80 a 83 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
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Foram realizadas inspecções tributárias à Requerente relativas aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022 e foram elaborados os relatórios que constam dos documentos n.ºs 31, 32 e 33, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, e do processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos;
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Nessas inspecções, a Requerente defendeu que deveria ter autoliquidado IVA à taxa reduzida de 6%, prevista na verba 2.23 da lista I anexa ao CIVA, o que não foi aceite pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pelos fundamentos invocados em cada um dos relatórios das inspecções tributárias, que se dão como reproduzidos;
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Em cada um dos relatórios das inspecções relativas aos anos de 2020, 2021 e 2022, em que se baseiam as liquidações, refere-se, além do mais, o seguinte:
vii.) Assim, a divergência do SP quanto às conclusões que constam do projeto de relatório que lhe foi remetido reside unicamente no facto de os Serviços de Inspeção entenderem que as obras relacionadas com empreendimento C... não constituem uma operação de reabilitação urbana e que, por consequência disso, não lhes são aplicáveis a taxa a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA.
viii.) Para sustentar o seu desacordo com o entendimento dos Serviços de Inspeção, o SP apresentou dois argumentos que passaremos a analisar.
ix.) Um desses argumentos refere que não compete à AT fazer o escrutínio sobre a classificação de determinado projeto como operação de reabilitação urbana ou não, porque essa certificação compete à Camara Municipal da área de localização do imóvel.
x.) Porém, o entendimento que AT expressa no projeto de relatório não se baseou no escrutínio de um projeto, mas sim, na verificação da existência, ou não, de todos os requisitos legalmente previstos para aplicação da verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA às respetivas obras;
xi.) Assim, chegou-se ao entendimento expresso no projeto de relatório (de que por falta de ORU aprovada para a ARU não se verificam todos os requisitos para aplicação da verba 2.23) após se ter verificado, em resultado das várias diligências realizadas, de que ainda não tinha existido a aprovação da ORU para a ARU Cidade de Gaia.
xii.) Salienta-se que até ao aviso da sua aprovação em Diário da República, meio através do qual a ORU adquire eficácia jurídica (nº 1 do artigo 191. º do DL 80/2015 de 14 de maio), existe um período de consulta pública, o qual também implica aviso em Diário da república. Ou seja, a aprovação de uma ORU implica um conjunto de fases com publicitação pública, pelo que, se já tivesse existido, os Serviços de Inspeção deveriam ter encontrado evidência da mesma em várias fontes de consulta pública, algo que não se verificou.
xiii.) A existência de ORU aprovada para a ARU onde se localiza o prédio é um dos requisitos para aplicação da verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA, conforme se pode concluir da leitura dos pontos 24. a 29. Da Informação Vinculativa 21440 (indicada pelo SP), os quais a seguir se transcrevem:
24. Efetivamente, o primeiro requisito para que determinada operação tenha enquadramento na verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA é a de que esteja em causa uma empreitada, mas exige-se, desde logo, que a empreitada seja de reabilitação urbana.
25. O preâmbulo do Decreto-lei n.º 307/2009, de 23 de outubro (1), do qual resulta que o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, estrutura, conforme já referido, as intervenções de reabilitação com base em dois conceitos fundamentais: o conceito de «área de reabilitação urbana» e o conceito de «operação de reabilitação urbana».
26. Tendo presente estes conceitos, conclui-se que a delimitação da «área de reabilitação urbana» é apenas uma das bases do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, sendo complementada com as «operações de reabilitação urbana» que correspondem à concretização do tipo de intervenções a realizar na área de reabilitação urbana. Ou seja, a simples delimitação da área de reabilitação urbana não determina, por si só, que todas as empreitadas que se realizem naquela área
estão no âmbito deste regime jurídico. Na verdade, tal interdependência resulta de todo o regime vertido no Decreto-lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, mas em particular, por exemplo, do seu artigo 15.º.
27. Com efeito, nos termos desta norma, que se reporta ao âmbito temporal da delimitação da área de reabilitação urbana, sempre que a aprovação da delimitação de uma área de reabilitação urbana não tenha lugar em simultâneo com a aprovação da operação de reabilitação urbana a desenvolver nessa área, aquela delimitação caduca se, no prazo de três anos, não for aprovada a correspondente operação de reabilitação.
28. Depreende-se, portanto, que o momento em que a delimitação da área de reabilitação urbana fica consolidada é o momento em que ocorre a aprovação da operação de reabilitação urbana.
29. Deve, por esse motivo, entender-se, para efeitos de aplicação da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, que apenas estão em causa empreitadas de reabilitação urbana se as mesmas forem realizadas no quadro de uma operação de reabilitação urbana já aprovada. (Nosso sublinhado)
xiv.) Acresce referir que segundo a definição que consta da página 4 da Proposta de Alteração da Delimitação da Área de Reabilitação Urbana ARU Cidade de Gaia, apresentada em fevereiro de 2020 pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, uma ORU "corresponde à estruturação concreta das intervenções a efetuar no interior da respetiva ARU" (nosso sublinhado), pelo que, tendo por base a referida definição e todo o exposto, entende-se o requisito de ter de existir uma ORU aprovada para se considerar que determinada obra constitui uma operação de reabilitação urbana, com sendo uma medida de prevenção para se evitar que sejam realizadas operações que possam beneficiar de diversos benefícios fiscais (os quais não se esgotam na aplicação da verba 2.23 da Lista I do CIVA) sem, contudo, estarem alinhadas com os objetivos estratégicos estipulados na memória descritiva e justificativa da respetiva ARU e que não contribuam para estes ou que até os possam colocar em causa.
xv.) O segundo argumento apresentado pelo SP baseia-se no último parágrafo da certidão emitida pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia em 17 de agosto de 2022, no qual a referida entidade certifica que que as obras a realizar constituem uma operação de reabilitação urbana, ao abrigo do disposto na al. j) do art.º 2º do Regime Jurídico de Reabilitação Urbana.
xvi.) Ora, a dita Certidão Camarária na parte respeitante à ARU faz, corretamente, referência expressa de que esta foi aprovada em Assembleia Municipal e que foi publicitada em Diário da República através do Aviso nº 7435/2020 de 6 de maio, porém, quando certifica que a obra do empreendimento C... constitui uma operação de reabilitação urbana, já remete para uma norma conceptual do RJRU, a qual, se interpretada isoladamente e descontextualizada dos restantes normativos do RJRU, em particular do disposto no artigo 7.°, nº 1, alíneas a) e b), leva a crer que qualquer obra que seja realizada dentro da ARU Cidade de Gaia é uma operação de reabilitação urbana, o que inclui obras que não estejam alinhadas com os objetivos estratégicos estipulados na memória descritiva e justificativa da respectiva ARU e que não contribuam para estes ou que até os possam colocar em causa (estes objetivos constam da Proposta de Alteração da Delimitação da Área de Reabilitação Urbana ARU Cidade de Gaia, apresentada em fevereiro de 2020 pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia).
xvii.) Ou seja, nesse parágrafo, a Câmara certifica que a obra do empreendimento C... constitui uma operação de reabilitação urbana com base numa norma genérica, quando, deveria estar a classificar, ou não, a referida obra como sendo uma operação de reabilitação urbana tendo por base uma ORU que tivesse sido objeto de discussão pública, aprovada em Assembleia Municipal e publicitada em Diário da República, ou seja, a referida certificação deveria ter por base uma ORU que correspondesse à estruturação concreta das intervenções a efetuar no interior da ARU (página 4 da Proposto de Alteração do Delimitação da Área de Reabilitação Urbana ARU Cidade de Gaia, apresentada em fevereiro de 2020 pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia) e não uma norma conceptual.
xviii.) Infere-se que o recurso a uma norma conceptual só ocorre porque, conforme já foi referido no anterior ponto xi.), não se apurou no decorrer da ação inspetiva que já tenha existido a aprovação da ORU da ARU Cidade de Gaia.
xix.) Salienta-se ainda, que na sequência da apresentação por parte do SP da referida Certidão Camarária, os Serviços de inspeção solicitaram por duas vezes à Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia alguns esclarecimentos acerca do empreendimento C..., nomeadamente, para que informassem se já tinha sido aprovado para a área onde este se localiza alguma Operação de Reabilitação Urbana (ORU).
xx.) Nas duas respostas que foram recebidas, a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia refere sempre que "o local em apreço não é objeto de ORU, nos termos questionados".
xxi.) Outro elemento que é comum às duas respostas, é facto de estas trazerem sempre à colação a informação vinculativa da nº 1478, na qual a AT refere que se determinado imóvel estiver situado numa zona legalmente delimitada como área de reabilitação urbana, as respetivas obras poderão beneficiar da taxa reduzida de 6%, por se enquadrar na verba 2.23 da Lista I ao CIVA.
xxii.) Porém, conforme já foi referido no projeto de relatório, atendendo à redação do artigo 7° do RJRU à data da emissão da referida informação vinculativa, 2011-01-04, o entendimento da AT quanto a esta matéria não podia ser outro. No ponto anterior ponto ii.) consta a reprodução da redação do referido artigo 7.º e 15.º do RJRU à data da emissão da dita informação vinculativa e a redação que estes atualmente têm em resultado das alterações introduzidas pela Lei nº 32/2012 de 14 de agosto. Assim, não se pode deixar-se salientar o facto de a Câmara Municipal fazer referência em ambas as respostas a uma informação vinculativa, como mais de uma década, que se insere no período de tempo específico (anterior às alterações ao RJRU), quando existem informações vinculativas mais recentes da AT acerca da problemática da aplicação da verba 2.23 da Lista I anexa do CIVA.
xxiii.) Um outro elemento que também é comum às duas respostas da Câmara Municipal, o qual também é extensível à Certidão Camarária de 17-08-2022, resulta do facto de nenhuma informar porque se deve entender que as obras do empreendimento C..., que correspondem a obras respeitantes a uma construção nova, sem construção pré-existente, estão alinhadas com os objetivos estratégicos estipulados na memória descritiva e justificativa da ARU Cidade de Gaia, publicada em Diário da República através do Aviso nº 7435/2020 de 6 de maio.
xxiv.) Para terminar, chamamos à atenção para o que é referido nos pontos 27. e 28. da Informação Vinculativa 21440 (indicada pelo SP) atrás reproduzidos [xii.) J, ou seja, nestes é referido que sempre que a aprovação da delimitação de uma área de reabilitação urbana não tenha lugar em simultâneo com a aprovação da operação de reabilitação urbana a desenvolver nessa área, como é o caso da ARU Cidade de Gaia, aquela delimitação caduca se, no prazo de três anos, não for aprovada a correspondente operação de reabilitação, pelo que, depreende-se, que o momento em que a delimitação da área de reabilitação urbana (ARU) fica consolidada, é o momento em que ocorre a aprovação da operação de reabilitação urbana (ORU).
xxv.) Assim, em face do exposto no ponto anterior, também se depreende que para os referidos casos (em que a ORU é aprovada posteriormente à ARU), só se verificam todos os requisitos para aplicação da verba 2.23 da Lista I anexa do CIVA quando as respetivas ORU adquirirem eficácia jurídica, ou seja, no momento da sua aprovação (nº 1 do artigo 191.º do DL 80/2015 de 14 de maio).
xxvi.) Ora, quando ocorreram os factos tributários agora em análise não existia (e ainda não existe) a aprovação da ORU respeitante à ARU Cidade de Gaia, pelo que daí se infere que à data dos ditos factos tributários não se encontravam reunidos todos os requisitos necessários para aplicação da verba 2.23 da Lista I anexa do CIVA.
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A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia emitiu em 17-08-2022 uma certidão, que consta do documento n.º 78 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e é reproduzida nos relatórios das inspecções, em que se refere, além do mais, o seguinte:
D..., Diretora de Departamento de Urbanismo e Planeamento, face ao requerimento apresentado por A..., LDA, registado sob o n.º .../22, Cert .../22, certifico que o prédio onde se pretendem executar as obras de reabilitação registadas no âmbito do processo n.º .../19, se encontra localizado em área de reabilitação urbana – ARU Cidade de Gaia, sito na Travessa ..., Freguesia de ..., correspondente ao artigo matricial ... e encontra-se descrito na ... Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gala sob o n.º..., para efeitos da aplicação do IVA à taxa reduzida de 6% prevista na verba 2.23 da lista l anexa ao Código do IVA, por via da al. a) do n.º 1 do artigo 18.º.
Mais certifica que ARU Cidade de Gaia foi publicitada em Diário da República, através do Aviso n.º 7435/2020, de 06 de maio, tornando-se público que "a Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia deliberou a 05 de março de 2020, nos termos do artigo 13.º do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, na sua redação atual, aprovar a proposta da Câmara Municipal relativa à Alteração da Delimitação da Área de Reabilitação Urbana (ARU) da Cidade de Gaia, por ajustamento aos limites da ARU Valadares e da ARU Devesas, ARU esta que havia sido aprovada pela Assembleia Municipal em 25 de fevereiro de 2016, conforme Aviso n.º 3874/2016, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 56, de 21 de março de 2016. Mais se torna público que o ato de aprovação da alteração e os elementos que acompanham o projeto de alteração da delimitação da Área de Reabilitação Urbana 'Cidade de Gaia' por ajustamento aos limites da ARU Valadares e da ARU Devesas podem ser consultados nas páginas eletrónicas do município (www.cm-gala.pt e www.gaiurb.pt)".
Certifica ainda que as obras a realizar, constituem uma operação de reabilitação urbana, ao abrigo do disposto na al. j) do art.º 2.º do Regime Jurídico de Reabilitação Urbana.
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Na sequência de pedidos de informação efectuados pela Autoridade Tributária e Aduaneira à Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, esta prestou, em 06-12-2022, as informações (idênticas) que constam dos anexos 19 dos relatórios das inspecções referentes aos anos de 2020, 2021 e 2022, cujos teores se dão como reproduzidos, em que se refere, além do mais, o seguinte:
No seguimento do ofício 2022..., referente à emissão de certidão para efeitos de aplicação do IVA à taxa reduzida de 6% prevista na verba 2.23 da lista I anexa ao Código do IVA, por via da alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do aludido diploma legal, na sequência da realização de obras na ..., Freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., cabe esclarecer o seguinte:
"Se existe para a área em que se insere a Rua .../ ...(freguesia de ...) alguma Operação de Reabilitação Urbana; Na afirmativa, solicita-se que identifiquem o Diário da República em que foi publicado o Aviso da sua aprovação por parte da Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia."
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O local em apreço não é objeto de ORU, nos termos questionados, não obstante, ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de Outubro, "A delimitação de uma área de reabilitação urbana confere aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos o direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável, sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural".
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Ora, o faseamento do procedimento tendente à definição dos moldes da reabilitação urbana, admitindo que o município comece por efetuar uma simples delimitação da área a sujeitar à operação de reabilitação urbana, remetendo para um momento posterior a aprovação da operação de reabilitação urbana.
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O que verdadeiramente se pretendeu, com esta alteração, foi promover, o mais antecipadamente possível, a reabilitação de edifícios e frações em área de reabilitação urbana pelos seus proprietários (mesmo antes da aprovação de uma operação de reabilitação para a mesma), já que a delimitação daquela área tem como efeitos a definição, pelo município, dos benefícios fiscais associados aos impostos municipais sobre o património, designadamente o imposto municipal sobre imóveis (IMI) e o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), nos termos da legislação aplicável e a concessão aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos do direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável, sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural (artigo 14.º).
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Ou seja, tendo presente que um regime assente em programação municipal (programação material, temporal e financeira das intervenções) poderia demorar tempo, o legislador veio dar um sinal aos proprietários: de que se avançarem com intervenções de reabilitação podem vir a beneficiar com isso.
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Mais, neste particular, atente-se na interpretação adotada pelos serviços da Administração Tributária em procedimento de informação vinculativa, proc. n.º 1478, segundo a qual as empreitadas de reabilitação urbana gozam de uma taxa reduzida de IVA a 6% desde que as mesmas se realizem numa área territorialmente delimitada pelo município nos termos do Decreto-Lei n.º 307/2009, como áreas de reabilitação urbana, o que parece apontar para a suficiência da mera delimitação desta área sem necessidade dos passos posteriores.
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Em todo o caso, na medida em que: - o que decorre da aludida informação vinculativa da AT é que "a delimitação das zonas de reabilitação urbana, nos termos do Decreto-Lei nº 307/2009, de 23 de Outubro, cabe aos respectivos Municípios, pelo que o sujeito passivo deve obter a informação, junto do Município (...), acerca da possibilidade do imóvel em questão se encontrar, ou não, dentro de uma zona legalmente delimitada de reabilitação urbana." - o regime evolui no sentido de permitir fasear o procedimento de reabilitação urbana facilitando (e potenciando), logo num primeiro momento, precisamente o recurso a apoios e benefícios fiscais;
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Até à data em que foi prestada e informação que antecede não foi aprovada pela Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia qualquer operação de reabilitação urbana abrangendo a área em que foi construído o edifício referidos nos autos;
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Na sequência das inspecções referidas a Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo como pressuposto a aplicação da taxa de IVA de 23% às facturas relativas à empreitada referida nos autos, emitiu as seguintes liquidações de IVA e juros compensatórios, relativas aos 4 trimestres de 2020 e 2021 e os 3 primeiros trimestres de 2022: n.ºs ..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., e as respectivas demonstrações de liquidação de juros compensatórios, que constam dos documentos n.ºs 1 a 11 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos;
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A Requerente não pagou as quantias liquidadas;
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Para cobrança coerciva das quantias liquidadas, a Autoridade Tributária e Aduaneira instaurou as execuções fiscais que se referem nos documentos n.ºs 13 a 30 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos;
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Se tivesse sido aplicada nas liquidações a taxa de 6% teria sido apurado o valor global de IVA de € 297.905,90 em vez do montante de € 1.214.514,95 que foi apurado (documento n.º 79 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, que não é questionado);
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Em 07-12-2022, foi prestada caução, por depósito, no montante de € 860.094,86, para substituir o arresto do prédio referido (documento n.º 87 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 29-06-2023, a AT, relativamente aos processos de execução fiscal referidos, constituiu penhor de direito de crédito da Requerente no montante de € 1.112,50 (documento n.º 88 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 14-07-2023, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.
Não há controvérsia sobre os factos relevantes para a decisão a causa.
3. Matéria de direito
A Requerente celebrou com a sociedade comercial A B..., Lda., um contrato de empreitada tendo por objecto a edificação por esta de um prédio, em local em que não havia qualquer construção, situado em área de reabilitação urbana (ARU).
Sendo a Requerente sujeito passivo de IVA, as facturas relativas às obras englobadas no contrato foram emitidas sem liquidação de IVA, sendo a Requerente que, depois, efectuou a autoliquidação, aplicando a taxa de 23%, nas declarações periódicas de IVA que apresentou, entre o 1.º trimestre de 2020 e o 3.º trimestre de 2022, inclusive.
Nas inspecções realizadas relativamente a cada um daqueles anos de 2020, 2021 e 2022, a Requerente defendeu que deveria ter sido aplicada a taxa de 6%, o que não foi aceite pela Autoridade Tributária e Aduaneira, por não existir operação de reabilitação urbana (ORU) aprovada para o local onde foi construído o prédio.
É de notar que a Requerente faz várias referências à inspecção relativa ao ano de 2019, juntando mesmo o respectivo relatório, mas é inequívoco que não discute a legalidade de qualquer liquidação referente ao ano de 2019, mas apenas as referentes aos 4 trimestres de 2020 e 2021 e aos 3 primeiros trimestres de 2022 (documentos n.ºs 1 a 11 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, que indica como actos cuja anulação pretende).
Por outro lado, embora a Requerente faça referências ao 1.º trimestre de 2023, e tenha juntado ao pedido de pronúncia arbitral a declaração respeitante a esse período e a respectiva liquidação (documentos n.ºs 81 e 83), não indica essa liquidação como sendo um dos actos impugnados.
Por isso, apreciar-se-á apenas a legalidade das liquidações referentes aos anos de 2020, 2021 e 2022.
3.1. A questão que é objecto do processo e as posições das Partes
No artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do CIVA prevê-se a aplicação da taxa de 6% «para as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista I anexa».
Na referida «Lista I - Bens e serviços sujeitos a taxa reduzida» inclui-se a verba 2.23 em que se refere, na redacção da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (vigente em 2020, 2021 e 2022):
2.23 - Empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico, realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional.
A Requerente aplicou a taxa normal de 23%, prevista na alínea c) do n.º 1 daquele artigo 18.º, nas autoliquidações que efectuou com base nas facturas relativas à empreitada de construção do prédio referido nos autos, mas, no decurso das inspecções realizadas aos anos de 2020, 2021 e 2022, defendeu que seria de aplicar a taxa reduzida prevista naquela verba 2.23.
A Autoridade Tributária e Aduaneira não aceitou o entendimento da Requerente pelo seguinte, em suma:
– as obras em causa não constituem uma operação de reabilitação urbana;
– é requisito da aplicação da taxa reduzida prevista na verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA a existência de ORU aprovada;
– até ao aviso da sua aprovação em Diário da República, meio através do qual a ORU adquire eficácia jurídica (nº 1 do artigo 191. º do DL 80/2015 de 14 de maio), existe um período de consulta pública, o qual também implica aviso em Diário da República;
– a delimitação da «área de reabilitação urbana» é apenas uma das bases do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, sendo complementada com as «operações de reabilitação urbana» que correspondem à concretização do tipo de intervenções a realizar na área de reabilitação urbana;
– tal interdependência resulta de todo o regime vertido no Decreto-lei n. º 307/2009, de 23 de outubro, mas em particular, por exemplo, do seu artigo 15.º, em que se prevê que a delimitação da ARU caduca se, no prazo de três anos, não for aprovada a correspondente operação de reabilitação;
– depreende-se, portanto, que o momento em que a delimitação da área de reabilitação urbana fica consolidada é o momento em que ocorre a aprovação da operação de reabilitação urbana;
– a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia certifica que a obra do empreendimento C... constitui uma operação de reabilitação urbana com base numa norma genérica, quando, deveria estar a classificar, ou não, a referida obra como sendo uma operação de reabilitação urbana tendo por base uma ORU que tivesse sido objeto de discussão pública, aprovada em Assembleia Municipal e publicitada em Diário da República, ou seja, a referida certificação deveria ter por base uma ORU que correspondesse à estruturação concreta das intervenções a efetuar no interior da ARU;
– nas respostas aos pedidos de esclarecimentos apresentados pela Autoridade Tributária e Aduaneira para apurar se já tinha sido aprovado para a área onde este se localiza alguma Operação de Reabilitação Urbana (ORU), a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia refere sempre que "o local em apreço não é objeto de ORU, nos termos questionados";
– a informação vinculativa da nº 1478 reporta-se a uma redacção anterior do artigo 7.º do RJRU;
– quando a ORU não é aprovada concomitantemente com a ARU, só se verificam todos os requisitos para aplicação da verba 2.23 da Lista I anexa do CIVA quando as respetivas ORU adquirirem eficácia jurídica, ou seja, no momento da sua aprovação (nº 1 do artigo 191. 0 do DL 80/2015 de 14 de maio);
– quando ocorreram os factos tributários agora em análise não existia (e ainda não existe) a aprovação da ORU respeitante à ARU Cidade de Gaia.
No presente processo, a Requerente defende, em suma:
– sendo que a empreitada desencadeada pela requerente se insere na Área de Reabilitação Urbana da cidade de Gaia, é de se aplicar a taxa de 6%, por se enquadrar no ponto 2.23 da Lista I, ex vi do artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA;
– há informações vinculativas no sentido de bastar a integração do imóvel numa ARU, não sendo necessário que tenha sido aprovada uma ORU;
– no conceito amplo de reabilitação urbana, onde se assume uma visão holística e integrada do conjunto de elementos que constituem o tecido urbano, insere-se indubitavelmente a reabilitação do edificado, mas não se esgota com este factor;
– a construção de novos empreendimentos, sem pré-existência, enquadra-se no conceito de reabilitação urbana, desde que vise a revitalização e o desenvolvimento da zona delimitada, devendo ser atribuídos os respetivos benefícios fiscais;
– e este entendimento é igualmente verificado pelos municípios, que são a entidade responsável pela validação, como sucede nos presentes autos;
– a requerente aceita a utilização do método da afetação real e a percentagem de dedução indicada pela AT, de 11,56%, mas não aceita o montante do IVA, por entender que deveria ter sido aplicável o IVA à taxa de 6 % e aplicada a percentagem relativa ao método da afetação real sobre tal valor, e não sobre o valor do IVA calculado à taxa de 23 %.;
– resulta do cálculo efetuado para cada período que a AT, ao proceder corretamente à liquidação do IVA à taxa de 6%, deveria ter apurado o montante global de 297.905,90 €, em detrimento dos apresentados 1.214.514,95 €;
No presente processo, a Autoridade Tributária e Aduaneira mantém a posição assumida nos relatórios das inspecções, dizendo ainda o seguinte, em suma:
– o dissídio assenta unicamente na discórdia acerca da necessidade de existência de ORU para efeitos de aplicação da taxa reduzida de IVA a empreitadas realizadas em ARU;
– as correções inspetivas também incidiram sobre o método de dedução de IVA utilizado, mas não existe contestação no que respeita a tal matéria;
– não se questiona o facto de a redação da verba só fazer referência direta à ARU, no entanto, discorda-se do entendimento que a Requerente lhe faz, porquanto, na interpretação da Lei, não deve o intérprete cingir-se unicamente “à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil – CC);
– um dos elementos a ter em conta na tarefa de interpretação é o elemento histórico, de onde se pode descortinar a occasio legis, isto é, o conjunto de circunstâncias que justificam o aparecimento da Lei com as soluções e conteúdo que tem;
– se a ARU define a área e os objetivos estratégicos da reabilitação urbana, a ORU é o instrumento de pormenor através do qual o município define em concreto as intervenções a efetuar na ARU, bem como as restrições ao que nesta se pode fazer;
– à face da redacção inicial do Decreto-Lei n.º 307/2009 de 23 de Outubro, a aprovação de uma ARU implicava sempre a aprovação de uma ORU, pelo que o legislador não terá sentido a necessidade de fazer qualquer referência à ORU no texto da verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA, em vigor desde o início de 2009;
– com as alterações àquele diploma introduzidas pela Lei n.º 32/2012, de 14 de Agosto, deixou de ser assim, pois determinou-se que uma ARU caducava se a respetiva ORU não fosse aprovada no prazo de três anos;
– não seria adequado permitir a atribuição de benefícios fiscais e financeiros e empreitadas com base na ARU, que se desconhece se ficarão caducas ou não passados três anos após a respetiva aprovação e publicitação, como é o que se verifica no presente caso;
– considerando que o legislador introduziu alterações ao diploma no sentido de fazer a validade da ARU depender da existência de ORU, conclui-se, de forma clara, que não era sua intenção fazer a aplicação da taxa reduzida depender unicamente da existência de empreitada localizada em ARU;
– no caso em apreço, o próprio município reconhece a inexistência de ORU.
3.2. Apreciação da questão
Embora a Requerente alegue sobre a possibilidade de a taxa reduzida prevista na verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA ser aplicada a construção de prédios novos, tal não é objecto de controvérsia, reconhecendo a AT que apenas há «discórdia acerca da necessidade de existência de ORU para efeitos de aplicação da taxa reduzida de IVA a empreitadas realizadas em ARU».
Está assente, assim, que se está perante uma empreitada que tem por objecto a construção de um edifício em área delimitada como sendo de reabilitação urbana, e que não havia uma ORU aprovada para o local em que o prédio foi construído.
A única questão a apreciar é, pois, a de saber se a aplicação da taxa reduzida prevista na verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA depende da existência de uma ORU aprovada para o local, inserido em ARU, onde é realizada a empreitada.
Desde logo, constata-se que o teor literal da verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA, que, no que aqui interessa, limita a aplicação da taxa reduzida a «empreitadas de reabilitação urbana ... realizadas em imóveis ... localizados em áreas de reabilitação urbana», aponta no sentido de que não basta que os imóveis se localizem em área de reabilitação urbana. Na verdade, se se pretendesse aplicar a taxa reduzida a todas as empreitadas realizadas em imóveis localizados em área de reabilitação urbana, decerto se utilizaria uma expressão deste tipo e não se incluiria, antes, uma referência às «empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico».
Por isso, tendo de se presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, é de concluir que não basta, para a aplicação da verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA, que a empreitada se reporte a um imóvel localizado em área delimitada como sendo de reabilitação urbana.
Assim, importa apurar o que constitui uma «empreitada de reabilitação urbana».
A verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA não define o conceito de «empreitada de reabilitação urbana» e remete para o conceito de «reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico», pelo que aquele conceito de «empreitada de reabilitação urbana» tem de ser preenchido com base no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de Outubro (RJRU), que é o «diploma específico» sobre esta matéria.
No entanto, o RJRU não define o conceito de «empreitada de reabilitação urbana», mas apenas o conceito de «reabilitação urbana», e, quando alude a «empreitada», relaciona-a com uma «operação de reabilitação urbana» (artigo 56.º).
Este diploma, na alínea j) do seu artigo 2.º, define «Reabilitação urbana» como «a forma de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infra-estruturas urbanas, dos equipamentos e dos espaços urbanos ou verdes de utilização colectiva e de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios».
A necessidade de a construção se integrar no âmbito de uma «intervenção integrada de reabilitação urbana de uma área», para se considerar abrangida pelo regime de reabilitação urbana, é corroborada pelos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 8.º do RJRU, de que resulta que, tanto a «operação de reabilitação urbana simples» como a «operação de reabilitação urbana sistemática» consistem «numa intervenção integrada de reabilitação urbana de uma área» e que, em ambos os casos, as operações «são enquadradas por instrumentos de programação, designados, respectivamente, de estratégia de reabilitação urbana ou de programa estratégico de reabilitação urbana».
Esta característica de a «reabilitação urbana» consubstanciar uma «intervenção integrada sobre o tecido urbano existente» obsta, desde logo, a que possa ser enquadrada em tal conceito qualquer construção de edifício novo não inserido num «conjunto articulado de intervenções visando, de forma integrada, a reabilitação urbana de uma determinada área», isto é, que não se integre numa «operação de reabilitação urbana», à face da definição deste conceito que fornecem a alínea h) do artigo 2.º e o artigo 8.º RJRU.
Relativamente à reabilitação urbana em áreas de reabilitação urbana, o artigo 7.º do RJRU estabelece o seguinte:
Artigo 7.º
Áreas de reabilitação urbana
1 - A reabilitação urbana em áreas de reabilitação urbana é promovida pelos municípios, resultando da aprovação:
a) Da delimitação de áreas de reabilitação urbana; e
b) Da operação de reabilitação urbana a desenvolver nas áreas delimitadas de acordo com a alínea anterior, através de instrumento próprio ou de um plano de pormenor de reabilitação urbana.
2 - A aprovação da delimitação de áreas de reabilitação urbana e da operação de reabilitação urbana pode ter lugar em simultâneo.
3 - A aprovação da delimitação de áreas de reabilitação urbana pode ter lugar em momento anterior à aprovação da operação de reabilitação urbana a desenvolver nessas áreas.
4 - A cada área de reabilitação urbana corresponde uma operação de reabilitação urbana.
Como decorre do teor literal do n.º 1 deste artigo 7.º a reabilitação urbana em áreas de reabilitação urbana resulta, cumulativamente, da aprovação da delimitação de áreas de reabilitação urbana e da aprovação de uma operação de reabilitação urbana a desenvolver nas áreas delimitadas, através de instrumento próprio ou de um plano de pormenor de reabilitação urbana.
A necessidade desta dupla aprovação de uma delimitação e de uma operação com ela conexa ressalta do uso da conjunção «e» que separa as duas alíneas do n.º 1 deste artigo 7.º.
O n.º 4 do mesmo artigo corrobora esta interpretação ao estabelecer que «a cada área de reabilitação urbana corresponde uma operação de reabilitação urbana».
Ora, como resulta do artigo 7.º, n.ºs 2 e 3, do RJRU, «a aprovação da delimitação de áreas de reabilitação urbana e da operação de reabilitação urbana pode ter lugar em simultâneo» ou aquela delimitação pode preceder esta operação, podendo mesmo suceder, nos termos do artigo 15.º do mesmo diploma, que caduque a delimitação da área de reabilitação urbana «se, no prazo de três anos, não for aprovada a correspondente operação de reabilitação», como pertinentemente refere a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo.
Isto é, não existe uma situação legal de “reabilitação urbana” se não for aprovada uma “operação de reabilitação urbana”, como se conclui no acórdão de 14-08-2023, proferido no processo arbitral n.º 93/2023-T.
Por isso, o mero licenciamento de uma construção através de empreitada, em local inserido numa área de reabilitação urbana, sem que haja a prévia aprovação de uma operação de reabilitação urbana nessa área, não permite qualificar uma empreitada como sendo de «empreitada de reabilitação urbana» em «área de reabilitação urbana», para efeitos da verba 2.23 referida.
Assim, como bem se conclui na decisão arbitral de 31-07-2023, proferida no processo n.º 3/2023-T, «uma interpretação fundada nos elementos sistemático e teleológico, não contrariada pelo elemento gramatical, aponta no sentido de que o legislador pretendeu estender a taxa reduzida às empreitadas alinhadas com os desígnios da reabilitação urbana (a tal “intervenção integrada no tecido urbano”), que serão aquelas realizadas em imóveis situados em áreas de reabilitação urbana para as quais já tenha o município feito recair uma programação estratégica, capaz de lhe conferir visão de conjunto».
Por outro lado, como resulta dos artigos 16.º e 17.º do RJRU, «as operações de reabilitação urbana são aprovadas através de instrumento próprio ou de plano de pormenor de reabilitação urbana», da competência da assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal, que contenham, cumulativamente, «a definição do tipo de operação de reabilitação urbana» e «a estratégia de reabilitação urbana ou o programa estratégico de reabilitação urbana, consoante a operação de reabilitação urbana seja simples ou sistemática», o que obsta a que se possa concluir pela existência de uma operação de reabilitação urbana decorrente de uma mera certificação, como a que se refere na matéria de facto fixada, efectuada por uma câmara municipal, manifestando o seu entendimento de que a construção consubstancia uma «operação de reabilitação urbana».
Pelo exposto, é de concluir que o conceito de «empreitada de reabilitação urbana» em área de reabilitação urbana só é preenchido quando as obras a realizar se reportam a imóvel localizado em área delimitada como sendo de reabilitação urbana e no âmbito de uma «operação de reabilitação urbana», aprovada nos termos do artigo 16.º do RJRU.
É certo que a alínea b) do artigo 14.º do RJRU, a que a Requerente alude, estabelece que «a delimitação de uma área de reabilitação urbana (...) confere aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos o direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável, sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural», o que permite concluir que haverá potencialmente efeitos decorrentes da mera delimitação da ARU.
Mas, esta norma não se aplica à situação da Requerente, pois, como decorre do seu texto, reporta-se apenas aos proprietários e titulares de outros direitos sobre edifícios e fracções, o que não era o caso da Requerente, pois a obra objecto do contrato de empreitada é um edifício novo, a construir em local em que não existia qualquer construção.
Assim, no caso em apreço, não tendo sido aprovada qualquer «operação de reabilitação urbana» para o local em que foi construído o prédio, é de concluir que a Autoridade Tributária e Aduaneira tem razão ao recusar a aplicação da taxa reduzida prevista na verba 2.23. da Lista I anexa ao CIVA.
Pelo exposto, tem de concluir-se que as liquidações impugnadas têm fundamento legal, pelo que não se justifica a sua anulação.
Improcedendo o pedido de anulação das liquidações, improcedem os consequentes pedidos de pagamento de juros e custas associados aos processos de liquidação e de execução e de restituição de penhor.
4. Decisão
Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
-
Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 992.765,38, valor indicado pela Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 12-12-2023
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(relator)
(Clotilde Celorico Palma)
(vencida, conforme declaração junta)
(Sofia Ricardo Borges)
Voto de vencida
1. Considerações prévias
A matéria em apreço, sendo muito específica e, admitindo, revestindo-se de alguma complexidade, tem sido objecto de sucessivas interpretações contraditórias por parte da AT e da jurisprudência arbitral, tendo a norma em apreço, inclusive, sido recentemente alterada de forma a acolher uma certa interpretação acolhida pela AT.
Com todo o respeito pelo Relator do presente Acórdão, que é muito, não nos podemos rever no sentido da decisão pelos motivos que passamos a expor e que, em linhas gerais, se poderão sintetizar de acordo com as seguintes linhas de orientação:
a) O RJRU contempla um conceito amplo de reabilitação urbana, prevendo expressamente a concessão de benefícios fiscais;
b) O conceito de reabilitação urbana constante da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, à data dos factos, acolhe tal conceito amplo de reabilitação urbana, abrangendo, nomeadamente, construção nova e casos de existência de ARU sem ORU;
c) São dados como provados na situação controvertida o facto de a construção se inserir em área de recuperação urbana aprovada e de a Câmara Municipal de Gaia, ter reconhecido expressamente, em documento emitido para o efeito, que “… as obras a realizar, constituem uma operação de reabilitação urbana, ao abrigo do disposto na al. j) do art.º 2.º do Regime Jurídico de Reabilitação Urbana.”
Vejamos, pois com mais detalhe o que acabámos de afirmar.
2. O RJRU e o CIVA contemplam um conceito amplo de reabilitação urbana
Em nosso entendimento, o conceito de reabilitação urbana constante da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, à data dos factos, acolhe um conceito amplo de reabilitação urbana, abrangendo, nomeadamente, construção nova e casos de existência de ARU sem ORU.
Desde logo, é nosso entendimento, partilhando o sentido da fundamental doutrina consagrada neste contexto, tal como expressámos in “O conceito de reabilitação urbana para efeitos da aplicação da taxa reduzida do IVA”, Revista Electrónica da Associação Fiscal Portuguesa, Março de 2023, que o conceito de reabilitação urbana não se confina exclusivamente à reabilitação do edificado existente, e nessa medida, as operações de reabilitação urbana incluirão novas edificações, não deixando por esse facto de ser subsumíveis no conceito legal de reabilitação urbana constante do RJRU.
Podendo ter por objecto, não apenas imóveis, mas espaços urbanos, encontramos no novo RJRU a susceptibilidade do conceito de reabilitação urbana compreender a edificação nova numa área vazia ou devoluta, desde que as operações de reabilitação urbana que se integrem em áreas delimitadas de reabilitação urbana.
Em termos de enquadramento geral vejamos quais os requisitos exigidos legalmente à data dos factos para efeitos de concessão do benefício em causa. Como se salienta no Processo n.º 137/2022-T, de 22 de Julho de 2022, no qual participámos como Árbitra Adjunta, “Em sede do IVA, a verba 2.23 da Lista I anexa ao Código, prevê que são sujeitas à taxa reduzida do imposto: "as empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico, realizadas em imóveis ou espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (...) delimitadas nos termos legais, ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional." Face ao transcrito resultam, como condições para subsunção à previsão normativa: i) Tratar-se de uma empreitada de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico. ii) Deve, a empreitada de reabilitação urbana, localizar-se em área de reabilitação urbana (...) delimitadas nos termos legais.
Estão em causa duas questões distintas que importa analisar.
A primeira diz respeito ao conceito de “empreitada de reabilitação urbana”, tal como definida em diploma específico. Importa começar por analisar o conceito de “empreitada”. Assim, e na ausência de uma definição de empreitada no ordenamento jurídico fiscal, vale, de harmonia com o artigo 11.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (LGT), a noção afirmada no artigo 1207.º do Código Civil, segundo o qual é “o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço”.
Esta noção é secundada pela AT que, no § 9 da ficha doutrinária no processo n.º 13835, entende ser “essencial, portanto, que o mesmo [contrato de empreitada] tenha por objeto a realização de uma obra, feita segundo determinadas condições, por um preço previamente estipulado, um trabalho ajustado globalmente e não consoante o trabalho diário”.
Por outro lado devemos ainda apurar o conceito de “reabilitação urbana”. Para o efeito deve ser convocado o Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, que aprovou o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (“RJRU”).
Nos termos do artigo 2.º, alínea j), do RJRU, reabilitação urbana corresponde à “forma de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infraestruturas urbanas, dos equipamentos e dos espaços urbanos ou verdes de utilização coletiva e de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios”.
Este conceito de “reabilitação urbana” – conceito amplo, sublinhe-se - é distinto de outros conceitos, igualmente previstos no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana. Temos presente, em especial, o conceito de “reabilitação de edifícios”, previsto na alínea i) do mesmo artigo 2.º. Este último corresponde à “forma de intervenção destinada a conferir adequadas características de desempenho e de segurança funcional, estrutural e construtiva a um ou a vários edifícios, às construções funcionalmente adjacentes incorporadas no seu logradouro, bem como às frações eventualmente integradas nesse edifício, ou a conceder-lhes novas aptidões funcionais, determinadas em função das opções de reabilitação urbana prosseguidas, com vista a permitir novos usos ou o mesmo uso com padrões de desempenho mais elevados, podendo compreender uma ou mais operações urbanísticas.” Face a esta definição, poder-se-ia considerar que a empreitada sub judice dizia respeito à “reabilitação de um edifício” e não a “reabilitação urbana”. Na verdade, o mesmo artigo 2.º define, na alínea h), “operação de reabilitação urbana” como o “conjunto articulado de intervenções visando, de forma integrada, a reabilitação urbana de uma determinada área” (e não, note-se, de edifícios). Porém, esta distinção, que resulta do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de Outubro (RJRU), não foi considerada pelo legislador na verba 2.23 da lista I anexa ao Código do IVA.
Recorde-se que esta verba 2.2.3 abrange as “Empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico, realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (…)” (sublinhado nosso).
Por outras palavras, o legislador quis abranger, na verba 2.23, as empreitadas de reabilitação urbana realizadas em imóveis localizados em áreas de reabilitação urbana. Acresce que, como vimos, a noção ampla de “reabilitação urbana” abrange, no segmento final da definição legal prevista no RJRU (também) as obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios.
Ora foi dado como provado que a (…) celebrou com a (…9, em 3 de junho de 2019, um Contrato de Empreitada relativo a obras de alteração no interior do edifício e conservação da fachada – (…) pelo que, face ao exposto, este contrato não pode deixar de ser qualificado como uma “empreitada de reabilitação urbana”, para efeitos do disposto na verba 2.23. da lista I anexa ao Código do IVA.
Consequentemente, o contrato de empreitada sub judice não pode deixar de ser considerado como um contrato de empreitada de reabilitação urbana.
Com efeito, e como foi dado como provado, as obras realizadas ao abrigo do contrato de empreitada tiveram em vista uma renovação e beneficiação geral do edifício para que o mesmo, com décadas de utilização, fosse dotado das condições técnicas e de segurança (e.g. deteção e proteção contra incêndios) exigidas pelas leis e regulamentos em vigor para o seu uso normal. Aqui chegados está ainda por determinar se, no caso sub judice, foi respeitado o segundo segmento da verba 2.23, isto é, se a empreitada de reabilitação urbana está localizada em área de reabilitação urbana delimitada nos termos legais. Vejamos. Conforme dado como provado, o edifício está localizado na Área de Reabilitação Urbana de Lisboa (“ARU”), conforme o Aviso da Câmara Municipal de Lisboa n.º 8391/2015, publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 148, de 31 de julho de 2015, e o mapa obtido junto dos serviços camarários. Não subsiste, portanto, qualquer dúvida de que o edifício está localizado em área de reabilitação urbana delimitada nos termos legais, estando por isso verificado o segundo segmento da verba 2.23. da lista I anexa ao Código do IVA.
Coloca-se ainda uma outra questão relativa à interpretação da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, uma vez que a Requerida AT entende que a sua aplicação está dependente de comunicação prévia e respetiva aprovação de licenciamento pelo município ou entidade gestora.
Invoca, para o efeito, o disposto no artigo 44.º, n.º 1 do RJEU, de harmonia com o qual a execução de uma reabilitação urbana fica sujeita a licenciamento e admissão de comunicação prévia de operações urbanísticas e autorização de utilização, inspeções, vistorias e cobrança de taxas. A esta luz, a Requerida AT infere que, para que uma empreitada de construção civil em imóvel localizado numa ARU seja suscetível de enquadramento na verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA, e, portanto, tributada à taxa reduzida de IVA, constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 18º do CIVA, é necessário, que a apreciação e aprovação do respetivo pedido de licenciamento, nos termos do artigo 4.º do RJUE, seja efetuada pela respetiva câmara municipal (ou entidade gestora, no âmbito de poderes delegados, de acordo com o disposto no RJUE). Este argumento não é procedente. Com efeito, esta alegação da Requerida AT não pode deixar de se considerar como uma inferência ou uma dedução, que não está suportada no texto da verba 2.23 da lista I anexa ao Código do IVA. Na verdade, em nenhum segmento da verba 2.23 se determina que, tendo em vista a aplicação da taxa reduzida de IVA, seja necessário que a apreciação e aprovação do respetivo pedido de licenciamento seja efetuada pela respetiva câmara municipal, nos termos do artigo 4.º do RJUE.
Em rigor estão em causa matérias distintas: (a) a (eventual) aplicação de uma taxa reduzida de IVA a empreitadas de reabilitação urbana situadas área de reabilitação urbana e (b) o processo de licenciamento de obras de reabilitação urbana.
A primeira, de natureza fiscal, abrange a situação sub judice e convoca a interpretação da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, sabendo-se que esta interpretação não pode deixar de ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil).
A segunda, de natureza jurídico-urbanística, está relacionada com a necessidade de submeter a apreciação e aprovação do respetivo pedido de licenciamento a execução de uma obra de reabilitação urbana. Ora o legislador tributário não previu – porque não quis - na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, a obrigação de a aplicação da taxa reduzida de IVA a empreitadas de reabilitação urbana pressupor a prévia apreciação e aprovação do respetivo pedido de licenciamento por parte da entidade competente. Tal hipótese não encontra o mínimo suporte na lei, pelo que o seu acolhimento no atual contexto violaria o princípio da legalidade tributária, maxime da tipicidade tributária, previsto no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Não pode, por isso, proceder a alegação da Requerida AT segundo a qual, para que uma empreitada de construção civil em imóvel localizado numa ARU seja suscetível de enquadramento na verba 2.23 da Lista I Anexa ao CIVA, é necessário que a apreciação e aprovação do respetivo pedido de licenciamento, seja efetuada pela respetiva câmara municipal (ou entidade gestora, no âmbito de poderes delegados, de acordo com o disposto no RJUE), nos termos do artigo 4.º do RJUE (Regime jurídico da urbanização e edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro). “
2.1 Aplicação a construção nova
Tal como expressamente os subscritores da decisão do colectivo concluem no Processo n.º 404/2022-T, de 30 de Janeiro de 2023, “A verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA remete para o conceito de «reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico», pelo que o conceito tem de ser preenchido à face do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de Outubro (RJRU), que é o «diploma específico» sobre esta matéria.
Este diploma, na alínea j) do seu artigo 2.º, define «Reabilitação urbana» como «a forma de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infra-estruturas urbanas, dos equipamentos e dos espaços urbanos ou verdes de utilização colectiva e de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios».
A Autoridade Tributária e Aduaneira interpreta esta definição com o sentido de que «a reabilitação urbana abrange a demolição de estruturas, pelo que a menção "Obras de construção" inserida no conceito de reabilitação urbana, contempla necessariamente a construção de um edifício num prédio urbano devoluto ou construção após demolição integral de uma construção preexistente, tal significa que há uma obra de construção, se o edifício estiver em ruína física».
No entanto, não resulta desta definição que a construção de novos edifícios esteja excluída do conceito de «reabilitação urbana», como bem se refere no Parecer junto aos autos:
«Na medida em que a reabilitação urbana ocorre dentro de uma ARU, para a qual deve ser aprovada uma ORU, é a área daquela que deve ser tomada como referência para a determinação do sentido do respetivo conceito, o que significa, se partirmos dele, que se bem que na sua globalidade (isto é, para a totalidade da ARU e da ORU que para ela for aprovada ⎯ assumida esta como uma intervenção integrada isto é, a intervenção constituída por várias operações urbanísticas devidamente articuladas entre si ⎯ a reabilitação urbana pressuponha a manutenção do património urbanístico e imobiliário, tal não significa, muito pelo contrário, que não se admitam, nessas áreas, operações de nova construção, de demolição ou de substituição de edifícios por outros ⎯ por isso se refere a lei à “manutenção substancial” no todo ou em parte (e não à manutenção integral) do património urbanístico e imobiliário (e não dos edifícios). E por isso se refere, também, à modernização daquele património (e não apenas dos edifícios isolados), designadamente por via de distintas operações (onde se inclui expressamente a nova construção e a demolição).
Portanto, na ARU, podem ser admitidos vários projetos, nada impedindo que em determinados espaços estes projetos correspondam à construção de novos edifícios, noutros espaços à demolição de edifícios existentes e noutros, ainda, à substituição de edifícios (obsoletos ou menos adequados para os usos pretendidos) por edifícios material e funcionalmente distintos: fundamental é que parte substancial do tecido urbano da ARU (da totalidade da sua área de abrangência) seja mantido, o que deve ser salvaguardado na ORU, em especial nos seus instrumentos estratégicos (estratégia ou programa estratégico de reabilitação urbana, consoante a ORU seja, respetivamente, simples ou sistemática).
(...)
Assim, o conceito de reabilitação urbana, apesar de assentar na conservação substancial do edificado (globalmente considerada a ARU) admite todo um conjunto de intervenções que tanto pode consistir na alteração e na demolição do existente, em especial quando destinado a ser substituído por novos edifícios destinados aos mesmos usos ou a novos usos, desde que pretendidos pela (alinhados com a) estratégia em vigor.”
Assim, é de considerar errado o primeiro fundamento invocado na decisão da reclamação graciosa, em que é afirmado que a «reabilitação urbana, contempla necessariamente a construção de um edifício num prédio urbano devoluto ou construção após demolição integral de uma construção preexistente, tal significa que há uma obra de construção, se o edifício estiver em ruína física».” (o bold é nosso).
Neste sentido veja-se nomeadamente, as Professoras Paula Oliveira e Dulce Lopes in “Reabilitação urbana em ARUS sem ORUS: que conceito de reabilitação e que benefícios fiscais em matéria de IVA”, Questões Atuais de Direito Local, n.º 13, Janeiro/Março 2017, pp. 33 e 35, “Do que afirmamos não temos dúvidas, atento o regime legal em vigor, que o conceito de reabilitação urbana, quando a mesma ocorre em áreas de reabilitação urbana (cujo regime, como referimos, não se basta com a mera delimitação da ARU), é um conceito amplo.
(…)
Assim, o conceito de reabilitação urbana, apesar de assentar na conservação substancial do edificado, admite todo um conjunto de intervenções que tanto pode consistir na alteração e na demolição do existente como, até, em operações de nova urbanização e edificação.” (o bold é nosso) .
Note-se que a ratio legis subjacente à introdução do artigo 14.º no RJUR consistiu precisamente em deixar claro que os benefícios são concedidos com a delimitação da ARU, estipulando-se para o efeito expressamente o seguinte:
“Artigo 14.ºº
Efeitos
A delimitação de uma área de reabilitação urbana:
a) Obriga à definição, pelo município, dos benefícios fiscais associados aos impostos municipais sobre o património, designadamente o imposto municipal sobre imóveis (IMI) e o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), nos termos da legislação aplicável;
b) Confere aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos o direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável, sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural.”
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Este artigo foi inserido precisamente para, de forma, clara e expressa, deixar explícito que os benefícios são conferidos com a delimitação da ARU, sendo com esta conferidos os benefícios que devem ser definidos pelo Município.
Tal como as Professoras Paula Oliveira e Dulce Neves salientam, in op. cit. pp. 40 e 41, “Uma coisa é certa, o legislador veio expressamente aliar a delimitação de uma ARU à concessão de benefícios fiscais, ao determinar no art. 14.º que a delimitação de uma área de reabilitação urbana: “a) Obriga à definição, pelo município, dos benefícios fiscais associados aos impostos municipais sobre o património, designadamente o imposto municipal sobre imóveis (IMI) e o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), nos termos da legislação aplicável; b) Confere aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos o direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável, sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural.
Note-se, para que conste, que o legislador é claro ao determinar que os benefícios fiscais e apoios à reabilitação urbana são conferidos aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos, indiciando que tais benefícios e apoios apenas podem ser mobilizados quando, à data da delimitação da ARU, tais edifícios ou frações já existam e não quando se trate de edifícios e frações a construir. Um conceito limitado de reabilitação urbana, é certo, mas que pode bem justificar -se no facto de com a mera delimitação da ARU ainda não estar definida a ORU a concretizar nem a sua programação, estando, por isso, o processo de reabilitação numa fase inicial. Em todo o caso, é o próprio art.º 14.º, alínea b), que reconhece aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos o direito de acesso a apoios e incentivos fiscais e financeiros, nos termos estabelecidos na legislação aplicável, o que nos remete para essa legislação .”
No mesmo sentido veja-se, nomeadamente, Daniel Bobus Radu, “Reabilitação Urbana na Acepção do IVA: Nota Metodológica, Cadernos IVA 2023, Almedina, Novembro de 2023 e Duarte Lima Mayer, “A taxa reduzida de IVA em áreas de reabilitação urbana para obras novas: o caso de Lisboa”, Questões Atuai s de Direito Local n.º 24 Outubro / Dezembro 2019.
2.2 Aplicação dos benefícios em caso de ARU sem ORU
Apurar se é possível conceder os benefícios em causa bastando a existência de uma ARU sem ORU importa, naturalmente, proceder a uma cuidadosa interpretação das normas controvertidas e, igualmente de forma cuidadosa, subsumir os factos em apreço.
Desde logo, no que toca ao elemento literal, importa desde logo salientar, que, distintamente do que se verifica em sede de concessão dos benefícios a que se refere o n.º 4 do artigo 71.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), que podem ser mobilizados quando estejam em causa encargos suportados pelo proprietário, com a reabilitação de imóveis, localizados em áreas de reabilitação urbana e recuperados nos termos das respectivas estratégias de reabilitação e no n.º 5 do mesmo artigo, a verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA não utiliza, não contém, nem emprega, em nenhum momento, o conceito de “operação de reabilitação urbana” e muito menos refere ou remete para qualquer certificação pela Câmara Municipal a “consubstanciar” tal operação.
Mas importa atender à respectiva ratio legis. Sendo um dado público que tal regime foi elaborado pelo Professor Doutor Carlos Baptista Lobo, concluímos claramente que, em conformidade com os elementos histórico, teleológico e sistemático da interpretação das normas, o conceito acolhido é intencionalmente amplo, abrangendo construção nova e não exigindo aprovação de ORU (veja-se neste sentido, Vídeo Conferência IVA e Reabilitação Urbana, dos Colégios da Especialidade dos Impostos sobre o Consumo e sobre o Património da Ordem dos Contabilistas Certificados e da Associação Fiscal Portuguesa, ocorrida a 7 de Março de 2023, disponível em https://www.afp.pt/calendario/764-webinar-iva-e-reabilitacao-urbana
Neste mesmo sentido veja-se nomeadamente, as Professoras Paula Oliveira e Dulce Lopes, op. cit., pp. 30 e 31 – “ Com a Lei n.° 32/2012, de 14 de agosto, veio permitir -se (mas não impor-se) que a decisão complexa (traduzida num conjunto de decisões parcelares ou preliminares anteriormente referidas) seja faseada, procedendo-se, primeiro, à identificação dos concretos limites físicos da área a sujeitar à operação de reabilitação urbana (arts. 7.º, n.º 3, e 13.º), apenas depois se aprovando essa operação (art. 16.º), aprovação que integrará, para além da definição do tipo de operação a realizar (simples ou sistemática), também a estratégia ou programa estratégico a prosseguir ( 9).
Pretendeu-se, com esta alteração, promover, o mais antecipada mente possível, em área de reabilitação urbana, a reabilitação de edifícios e frações pelos seus proprietários (mesmo antes da aprovação da correspetiva operação de reabilitação urbana), já que a delimitação daquela área tem como efeitos a definição, pelo município, dos benefícios fiscais associados aos impostos municipais sobre o património, designadamente o imposto municipal sobre imóveis (IMI) e o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), nos termos da legislação aplicável, bem como a concessão aos proprietários e titulares de outros direitos , ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela com pretendidos do direito de acesso ao s apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável , sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural.”
Para a final, as autoras concluírem a p. 45, que o benefício pode ser concedido sem existência de ORU - “Entendemos, como resultado da melhor ponderação dos vários interesses em confronto, que se pode interpretar o referido benefício constante do Código do IVA como extensível a intervenções que, estando integradas em áreas de reabilitação urbana, não prejudicam (ou potenciam) os objetivos estratégicos antecipados aquando da delimitação destas áreas. Achamos até adequado que assim seja, na medida em que, se assim se entender, não são apenas os municípios que têm de abdicar de receitas fiscais ( já que aqueles de que estes beneficiam , IMI e IMT, têm necessariamente de ser definidos aquando da delimitação da ARU ), fazendo também impender esse "encargo " sobre o Estado .
Tal como conclui Catarina Belim no seu voto de vencida de 1 de Março de 2023 no Processo 295/2022 T, de 1 de Março de 2023, “… inexiste na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA (norma específica e de âmbito nacional aplicável ao caso concreto) exigência legal de certificação por parte da Câmara de que um determinado projeto ou empreitada consubstancia uma operação de reabilitação urbana;”
Mais, como conclui, verifica-se ainda violação do princípio da proporcionalidade, dado que, “35. A decisão impugnada, confirmada pela decisão vencedora, acarreta, por fim, um grave precedente: o de permitir introduzir por via administrativa regras de incidência e de taxa de imposto com as quais os contribuintes não podem, expetavelmente, contar.
36. Neste contexto, existem situações em que a lei especificamente determina que cabe às Câmaras Municipais certificar benefícios fiscais.
37. Tal acontece no caso dos benefícios do IMI e IMT em que é a própria lei que refere (artigo 45.º do EBF): “cabendo à câmara municipal competente ou, se for o caso, à entidade gestora da reabilitação urbana comunicar esse reconhecimento [da intervenção de reabilitação] ao serviço de finanças da área da situação do edifício ou fração”.
38. Nestes casos os contribuintes sabem com o que contar e podem modelar a sua conduta de forma a obter o reconhecimento da Câmara quanto à intervenção de reabilitação.
39. Mas se quanto ao IMI e IMT o legislador quis expressamente prever esse reconhecimento para as Câmaras Municipais, já não o fez quanto ao IVA,
deduzindo-se que o preenchimento da Verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA depende dos meios gerais de interpretação e de prova (pois esta verba é omissa quanto a reconhecimentos de Câmaras).
40. Permitir, como faz a decisão aqui confirmada, introduzir, por via administrativa, condições formais que não estão previstas na lei, para além de permitir a criação, por via administrativa, de regras de incidência e de taxa de imposto reservadas a atos de lei (lei ou decreto-lei) nos termos do artigo 103.º da CRP viola, frontalmente, a adequação e proporcionalidade do que pode ser exigido a um contribuinte que agiu como um “bom pai de família”.
41. Resulta dos autos que durante décadas a Requerida bastou-se com uma certidão emitida pela Câmara de que o imóvel estava localizado na ARU (Área de Reabilitação Urbana), para legitimar a aplicação da taxa reduzida contida na verba 2.23 aqui em discussão (não obstante tal certidão não ser exigida pelo Código do IVA ou outra legislação complementar era já emitida pelas Câmaras Municipais a pedido dos contribuintes, para satisfazerem o solicitado pela AT). São dezenas as informações vinculativas publicadas neste sentido.
42. Resulta ainda de uma consulta ao site da Câmara Municipal de Lisboa – elemento público e notório – que a prática da Câmara à data dos factos (e do presente voto de vencido) é a emissão desta certidão ARU.
43. Quanto a esta certidão é mesmo referido, na presente data, no site da Câmara de Lisboa que:
“Para efeitos de aferição da aplicação da taxa reduzida de IVA pela Autoridade Tributária, a Câmara Municipal de Lisboa emite uma certidão de localização de operação urbanística em Área de Reabilitação Urbana.”
44. Resulta dos autos que o contribuinte em questão agiu como um “bom pai de família” documentando a empreitada com os elementos contratuais, faturas e urbanísticos ao seu dispor e obtendo a certidão ARU emitida, na data dos factos, pela Câmara Municipal.
45. A 2ª certificação exigida pela Requerida quanto à operação de reabilitação urbana é um requisito recente exigido pela administração tributária quanto a uma norma cuja redação permanece a mesma desde 2008, ou seja, uma norma cuja redação é a mesma pelo menos há 13 anos.
46. Nada mudou na lei.
47. Não mudou a sua redação.
48. O que mudou foram as condições impostas pela administração tributária para permitir o benefício da taxa reduzida (mas não é à administração, mas sim ao legislador nacional que compete tal atribuição).
49. Tanto assim é que, na altura em que este voto de vencido é escrito, a própria Câmara Municipal de Lisboa se viu compelida a emitir despacho a reiterar que apesar da lei não fazer depender de qualquer verificação municipal que a operação urbanística se subsume no conceito de reabilitação urbana previsto no RJRU, a Câmara passará a emitir, a pedido dos contribuintes, para satisfazerem o solicitado pela AT, a partir de 18.02.2023, declarações que atestem a localização de determinada operação urbanística em ARU e que a mesma se integra numa operação de reabilitação urbana simples ou sistemática (Despacho nº 35/P/2023, publicado no Boletim Municipal da Câmara Municipal de Lisboa nº 1514 – 1º Suplemento de 23 de fevereiro de 2023, pontos 11 a 15).
50. Nesse despacho, a Câmara Municipal de Lisboa refere que:
“11 - Os cidadãos têm vindo a requerer à Câmara Municipal de Lisboa declaração da localização em ARU, por tal constituir exigência da Autoridade Tributária.”
51. A 2ª certificação exigida pela Requerida quanto à operação de reabilitação urbana não é, à data dos factos, exigida por lei nem prática camarária como resulta dos elementos aqui produzidos.
E se perante uma redação da norma que não muda há 13 anos é exigido, no final de uma década, por via administrativa, uma nova certificação e burocracia não prevista na lei, nem existente na prática camarária, tal exigência deve entender-se por desproporcional e desrazoável (violadora do artigo 266.º n.º 2 da CRP) na medida em que os contribuintes só podem modelar a sua conduta com o que podem contar: a letra da lei e a confiança nas instituições, no caso a AT.”
3. Conclusão
Compulsados os factos vemos que:
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Como é dado como provado, “O local onde foi construído o prédio está inserido em área de reabilitação urbana (ARU) da Cidade de Gaia, cuja delimitação foi aprovada por deliberações da Assembleia Municipal de Gaia, de 25-02-2016, publicitada pelo Aviso n.º 3874/2016, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 56, de 21-03-2016, e de 05-05-2020, publicitada pelo Aviso n.º 7435/2020, de 06 de Maio, publicado no Diário da República n.º 88/2020, 2.ª Série de 06-05-2020”;
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Tal como é igualmente dado como facto provado, “A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia emitiu em 17-08-2022 uma certidão, que consta do documento n.º 78 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e é reproduzida nos relatórios das inspecções, em que se refere, além do mais, o seguinte:
“D..., Diretora de Departamento de Urbanismo e Planeamento, face ao requerimento apresentado por A..., LDA, registado sob o n.º .../22, Cert .../22, certifico que o prédio onde se pretendem executar as obras de reabilitação registadas no âmbito do processo n.º .../19, se encontra localizado em área de reabilitação urbana – ARU Cidade de Gaia, sito na ..., Freguesia de ..., correspondente ao artigo matricial ... e encontra-se descrito na ... Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gala sob o n.º ..., para efeitos da aplicação do IVA à taxa reduzida de 6% prevista na verba 2.23 da lista l anexa ao Código do IVA, por via da al. a) do n.º 1 do artigo 18.º.
Mais certifica que ARU Cidade de Gaia foi publicitada em Diário da República, através do Aviso n.º 7435/2020, de 06 de maio, tornando-se público que "a Assembleia Municipal de Vila Nova de Gaia deliberou a 05 de março de 2020, nos termos do artigo 13.º do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, na sua redação atual, aprovar a proposta da Câmara Municipal relativa à Alteração da Delimitação da Área de Reabilitação Urbana (ARU) da Cidade de Gaia, por ajustamento aos limites da ARU Valadares e da ARU Devesas, ARU esta que havia sido aprovada pela Assembleia Municipal em 25 de fevereiro de 2016, conforme Aviso n.º 3874/2016, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 56, de 21 de março de 2016. Mais se torna público que o ato de aprovação da alteração e os elementos que acompanham o projeto de alteração da delimitação da Área de Reabilitação Urbana 'Cidade de Gaia' por ajustamento aos limites da ARU Valadares e da ARU Devesas podem ser consultados nas páginas eletrónicas do município (www.cm-gala.pt e www.gaiurb.pt)".
Certifica ainda que as obras a realizar, constituem uma operação de reabilitação urbana, ao abrigo do disposto na al. j) do art.º 2.º do Regime Jurídico de Reabilitação Urbana.”;
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No caso concreto a própria Câmara Municipal de Vila Nova e Gaia, aquando da delimitação da ARU onde está inserido o imóvel atribuiu o benefício da taxa reduzida do IVA conforme se poderá consultar em https://www.portaldahabitacao.pt/web/guest/consulte-as-aru#/arusInfo
Ora, certamente que, tratando-se a Câmara Municipal de Gaia como a entidade competente para efeitos da delimitação da ARU em conformidade com os objectivos estratégicos antecipados aquando da delimitação destas áreas, é nossa convicção, baseada nas regras da experiência e em presunção assente em critérios de normalidade, que se encontram reunidos os pressupostos de aplicação da taxa reduzida do IVA à construção em apreço, conforme interpretação que partilhamos.
Do exposto decorre ainda, com clareza, que os próprios subscritores da decisão vencida entram em contradição nos seus fundamentos, nomeadamente com decisões anteriores que subscreveram, concretamente no Processo nº 404/2022-T, onde expressamente concluem que não resulta da definição de obra de reabilitação urbana para efeitos da concessão da taxa reduzida do IVA ora em apreço “que a construção de novos edifícios esteja excluída do conceito de «reabilitação urbana»”
Ora, a pp 20. da presente decisão, afirmam os mesmo signatários que “É certo que a alínea b) do artigo 14.º do RJRU, a que a Requerente alude, estabelece que «a delimitação de uma área de reabilitação urbana(...) confere aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos o direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável, sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultura», o que permite concluir que há efeitos decorrentes da mera delimitação da ARU.
Mas, esta norma não se aplica à situação da Requerente, pois, como decorre do seu texto, reporta-se apenas aos proprietários e titulares de outros direitos sobre edifícios e fracções, o que não era o caso da Requerente, pois a obra objecto do contrato de empreitada é um edifício novo, a construir em local em que não existia qualquer construção.»”. (o bold é nosso). Ora, se por um lado, admitem a aplicação da taxa reduzida a obra nova, bem como a existência de efeitos fiscais decorrentes da “mera delimitação” da ARU, acabam por parecer concluir em sentido contrário, ao enfatizarem para o efeito que não estamos perante “proprietários e titulares de outros direitos sobre edifícios e fracções”, precisamente por estarmos perante uma construção…
Termos de acordo com os quais, com todo o respeito pela decisão do colectivo, entendemos que a mesma padece de erro de direito -entrando inclusive em contradições e com orientações anteriormente defendidas pelos mesmos signatários, na utilização dos fundamentos principais-, na medida em que:
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Conclui que para o enquadramento da empreitada como “empreitada de reabilitação urbana” é exigida aprovação de ORU, requisito que não é exigido pela lei; e,
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Desconsidera os elementos apresentados pelo Requerente e publicamente disponíveis que demonstram o reconhecimento pela Câmara Municipal de Gaia o enquadramento da empreitada em causa no conceito de empreitada de reabilitação urbana definido no RJRA.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2023
A Árbitra
Clotilde Celorico Palma