Sumário:
I - A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição do réu da instância, sendo tal excepção de conhecimento oficioso pelo tribunal, conforme os artigos 186, n.ºs 1 e 2, al. a), e 278, n.º 1, al. b), ambos do Código de Processo Civil, artigo 89, n.ºs 2 e 4, al. b) do CPTA e artigo 98, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT.
II - A ininteligibilidade quanto à identificação do pedido e a omissão dos factos correspondentes à identificação e caracterização dos atos tributários em causa representam factualidade essencial, por isso integrante da causa de pedir. Trata-se, além do mais, de conteúdo que, pela sua essencialidade, deve, nos termos do estabelecido no artigo 10, n.º 2, als. c) e d), do RJAT, constar necessariamente do pedido de pronúncia arbitral.
III – É inepta a petição inicial em que a Requerente não formula um pedido à luz dos fundamentos previstos no artigo 99 do CPPT, não alega factos suficientemente concretos que permitam identificar o objeto do litígio, não junta elementos de prova comprovativos de tais factos, nem expõe as razões de direito que sustentam a sua pretensão.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. A..., titular do n.º de identificação fiscal n.º ..., com domicílio fiscal na ... n.º ..., ...-... ... (doravante, Requerente), apresentou, em 04-04-2023, pedido com o teor que se passa a transcrever:
«(...)
Bom dia, venho pelo presente solicitar a vossa ajuda no esclarecimento e resolução de uma situação que me ocorreu e que passo a explicar.
Em 2018 decidimos vender a nossa casa à nossa filha pois tencionava-mos construir uma casa rés do chão num terreno urbano que possuo a 500m da minha casa, e por seu lado a minha filha queria mudar-se de Braga onde residia para Vila Nova de Famalicão onde trabalha.
Fizemos a escritura e antes que começasse a tratar da construção foi diagnosticado ao meu marido Alzheimer e Parkinson.
Perante esta nova realidade, ficou sem efeito a construção da nova habitação e falei com a minha filha para revertermos/anularmos o negócio pois não tinha possibilidade nem disponibilidade para pensar em construir uma casa.
Optei por fazer umas obras em casa para me adaptar à nova realidade, nomeadamente um quarto com casa de banho no rés do chão.
Fizemos então novamente a escritura para o nosso nome.
Este ano recebi da autoridade tributária uma carta a dizer que devo 13222,83€, referentes a mais valias da venda da minha casa pois não re-investi.
Ora se eu anulei o negócio ao comprar novamente a minha casa à minha filha, o negócio não existiu em termos práticos ficou anulado mas mesmo analisando o caso do ponto de vista fiscal o re- investimento está feito, pois para o não pagamento de mais valias refere no código do IRS que se deve adquirir outro imóvel para habitação própria, e foi o que eu fiz.
A interpretação que a a autoridade tributária esta a fazer é que ao mencionar que tem que adquirir outro imóvel, este outro refere-se a um diferente e nao o mesmo, mas se assim fosse estaria explicito na lei outro que não o mesmo.
O outro imóvel no artigo refere-se a um investimento num imóvel, para habitação própria, seja apartamento, casa, quinta, etc., outro imóvel, ou seja, não pode ser um carro, acções, certificados de aforro, etc., o re-investimento tem que ser um imóvel.
Actualmente já foi atribuído ao meu marido o certificado multi-usos, pelo que já não pago IRS mas mesmo assim as despesas são enormes conforme podem comprovar por documentos anexos.
O meu marido encontra-se no apoio diurno em ... na Santa Casa da Misericórdia, onde pago 720€/mês(de segunda a sexta das 10h as 17h), fora deslocações de cerca de 20km para cada lado, ou seja 80km dia, paralelamente para o levantar e fazer a higiene vem cá a casa o Centro de dia de ... onde pago 140€/mês (de segunda a sexta ás 8 horas).
Para além de tudo isto ainda há a questão da medicação.
Embora tenha todas estas despesas, e não seja nada fácil financeiramente gerir o dia-a-dia, com uma reforma de 720,66€ do meu marido e a minha de 1000€, entendo que é injusta e errada a leitura e interpretação da autoridade tributária.
Independentemente de tudo volto a referir que não se trata de mais valias, trata-se da anulação de um negócio.
Na prática não houve negócio só prejuízo em escrituras, registos, imposto de selo, emolumentos, etc.
Peço a vossa melhor atenção para a resolução deste caso.
(...)»
2. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).
3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 05-04-2023.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6, n.º 2, alínea a) e do artigo 11, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido.
5. Foram as partes, no mesmo dia, notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6 e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído no dia 14-06-2023.
6. Em 18-06-2023, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17 do RJAT). O Despacho foi notificado às partes no dia 23-06-2023.
7. A Requerida veio apresentar resposta, em 06-09-23, arguindo a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial e peticionando a absolvição da instância, conforme o disposto nos artigos 186, n.º 1, 576, n.ºs 1 e 2, 577, al. b) e 278, al. b) do CPC, subsidiariamente aplicáveis ex vi do artigo 29 do RJAT.
8. Por Despacho com data de 09-09-2023 (notificado a 11-09-2023), determinou o Tribunal Arbitral que tal Resposta fosse notificada à Requerente, para que esta, querendo, se pronunciasse, no prazo de 10 (dez) dias, sobre a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial suscitada pela Requerida. Esgotado tal prazo, a Requerente nada disse.
II – Saneamento
9. A Requerida (AT) arguiu a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, ao abrigo do artigo 186, n.º 1, al. a) do CPC, aplicável ex vi do artigo 29 do RJAT. Argumenta, em síntese, que: (i) o Requerimento apresentado pela Requerente em 04-04-2023 não tem identificação nem está assinado, desconhecendo-se o seu autor; (ii) o requerimento não identifica o ato de liquidação; (iii) não menciona quaisquer elementos de prova dos factos indicados ou aqueles que se pretende vir a produzir; (iv) não identifica as normas que o autor do requerimento entende terem sido violadas pela AT; (v) não indica o valor do pedido; (vi) não contém referência a qualquer elemento comprovativo do pagamento da taxa de arbitragem, nem à intenção de designar, ou não, árbitro; (vii) o requerimento termina com a solicitação “[d]a melhor atenção para a resolução deste caso”.
10. Alega a Requerida (AT) que não é possível “descortinar a causa de pedir”, que o pedido não obedeceu aos requisitos vertidos no artigo 10 do RJAT, pelo que, atento o preceituado no artigo 186 do CPC, conclui estar perante uma situação de “ineptidão da petição inicial”, ou seja, perante uma petição que contem “deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade”. Constituindo a ineptidão da petição inicial, geradora de nulidade, uma exceção dilatória nos termos e para efeitos do artigo 577 do CPC, a Requerida pugna, a final, pela absolvição da instância.
11. Cumpre decidir.
12. O RJAT não contém regime próprio em matéria de exceções e nulidades processuais, aplicando-se, nesta matéria, a título subsidiário, o disposto no CPPT, no CPTA e no CPC, como decorre do previsto no artigo 29, n.º 1, a), c) e e) do RJAT.
13. A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória cuja verificação conduz à abstenção de conhecimento do mérito da causa e à absolvição do réu da instância (artigo 278, n.º 1, al. b) do CPC). Trata-se de uma exceção de conhecimento oficioso, conforme preceituado no artigo 196 do CPC e também no artigo 89, n.ºs 2 e 4, al. b), do CPTA e no artigo 98, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT.
14. De acordo com o artigo 552, n.º 1, als. d) e e) do CPC, deve o Autor, na petição inicial, “expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação” e “formular o pedido”. O pedido é a pretensão ou o direito para que solicita ou requer tutela jurisdicional. A causa de pedir integra os atos ou factos jurídicos concretos de onde emerge o direito que o autor invoca ou pretende fazer valer. A petição inicial tem, portanto, de formular um silogismo que estabeleça um nexo lógico entre as suas premissas (as razões de facto e de direito explanadas) e a conclusão (o pedido). Na ausência desta exposição, o objeto do processo é inexistente ou ininteligível, não estando reunidas condições mínimas para o conhecimento do pedido (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 203848/14.2YIPRT.C1, 18-10-2016).
15. Também o artigo 10, n.º 2, als. b), c) e d) do RJAT [Pedido de constituição de tribunal arbitral], versando sobre os requisitos do pedido de constituição do tribunal arbitral, dispõe que de tal pedido consta necessariamente “a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral”, “a identificação do pedido de pronúncia arbitral, constituindo fundamentos deste pedido os previstos no artigo 99 do Código de Procedimento e Processo Tributário e, bem assim, a exposição das questões de facto e de que direito objeto do referido pedido de pronúncia arbitral” e “os elementos de prova dos factos indicados e a indicação dos meios de prova a produzir” (cf. acórdão do CAAD, processo n.º 693/2020-T, 28-09-2021).
16. Em coerência, dispõe o artigo 186 do CPC [Ineptidão da petição inicial]:
«(...)
Artigo 186.º
Ineptidão da petição inicial
1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
4 - No caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo.
(...)»
17. A isto acrescem duas notas, com respaldo na lei processual civil, na jurisprudência e na doutrina processualista.
18. A primeira passa por não confundir a ineptidão da petição inicial, geradora de nulidade de todo o processo, com a insuficiência ou imprecisão da petição inicial, à qual o julgador pode e deve obviar através de um despacho convite ao aperfeiçoamento (artigos 590, n.º 4 do CPC). Cumpre notar, porém, que só deve haver lugar a tal convite quando estejam em causa insuficiências ou imprecisões que possam ser resolvidas com esclarecimentos, aditamentos ou correções, ou seja, “anomalias que não ponham em causa, em absoluto, o conhecimento da questão jurídica e a decisão do seu mérito, mas que possam facilitar que este conhecimento e decisão sejam realizados de forma mais eficaz” (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 203848/14.2YIPRT.C1, 18-10-2016; e acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 4138/18.0T8MTS-A.P1, 21-10-2019).
19. A segunda tem que ver com o disposto no n.º 3 do artigo 186 do CPC, na parte em que aí se dispõe que, ainda que os factos essenciais alegados sejam insuficientes, se a ré contestar, decorrendo da contestação que interpretou convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pelo Autor e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, não procede a arguição de ineptidão da petição inicial que eventualmente seja arguida.
20. Entende o Tribunal arbitral que a exceção dilatória por ineptidão da petição inicial deve proceder por falta e ininteligibilidade do pedido e da causa de pedir (artigo 186, n.º 1, al. a) do CPC). Com efeito, a Requerente não formula nenhum pedido no Requerimento apresentado em 04-04-2023, nem indica os respetivos fundamentos à luz do artigo 99 do CPPT, limitando-se a pedir a “melhor atenção” para a resolução do caso. Acresce que tão-pouco é claro se o que está em causa, no entender da Requerente, é a ilegalidade do ato de liquidação, ou a sua inconveniência, atenta a complexa situação financeira em que alegadamente se encontra. Depois, a Requerente não alega factos suficientemente concretos que permitam identificar o objeto do litígio, nem expõe as razões de direito que sustentam a sua pretensão. Alega, por um lado, que o negócio jurídico de venda do imóvel nunca existiu e que o mesmo foi “anulado”, para de seguida alegar que tal negócio jurídico afinal existiu, dele tendo resultado uma mais-valia. A requerente não indica a data em que teve lugar a venda do imóvel (apenas o ano), não indica a data em que teve lugar a alegada reaquisição, não junta documentos comprovativos destes negócios jurídicos nem de que o imóvel em causa se destina à habitação própria e permanente do sujeito passivo. Faz-se alusão a uma “interpretação” da AT, mas não se esclarece a que disposições normativas se reporta tal exercício hermenêutico.
21. Finalmente, a Requerida (AT), notificada para apresentar resposta, limitou-se a arguir a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, revelando-se incapaz de interpretar convenientemente a petição inicial e os pedidos ou de impugnar expressamente o que foi alegado pela Requerente.
22. Tudo a demonstrar que se dão por verificadas deficiências “de carácter substancial, que irremediavelmente” comprometem “a finalidade da petição inicial” (ANTUNES VARELA, SAMPAIO e NORA e Miguel BEZERRA, Manual de Processo Civil, 1985, Coimbra Editora, p. 244). A ineptidão da petição inicial gera a nulidade de todo o processo e, enquanto exceção dilatória procedente, determina a absolvição da Requerida da instância (artigos 576, n.º 3 e 577, al. b) do CPC, juntamente com o artigo 89, n.º 4, al. b) do CPTA e com o artigo 98, n.º 1, al. a) do CPPT, subsidiariamente aplicáveis ex vi do artigo 29 do RJAT).
III – Decisão
Termos em que o Tribunal Arbitral decide:
-
Julgar procedente, por provada, a exceção dilatória da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, e absolver a Requerida (AT) da instância;
-
Condenar a Requerente no pagamento das custas do presente processo.
IV – Valor do processo
Em conformidade com o disposto no artigo 306, n.º 2 do CPC, no artigo 97-A, n.º 1, al. a) do CPPT [« 1- Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende (...)]», e no artigo 3, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [«O valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário»], fixa-se o valor do processo em €13.621,43, sem contestação da Autoridade Tributária.
V – Custas
Nos termos do disposto nos artigos 12, n.º 2 e 22, n.º 4 do RJAT, no artigo 4, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em €918,00, a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Porto, 04 de outubro de 2023.
Marta Vicente
(Árbitro singular)