Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 60/2023-T
Data da decisão: 2023-10-09  IRS  
Valor do pedido: € 242.809,14
Tema: IRS - artigo 10.º, 1, CIRS - Tributação de mais valias - Expropriação por utilidade pública.
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SUMÁRIO:

I. Do artigo 10.º, 1, CIRS, resulta um enquadramento normativo de incidência seletiva e restritiva de mais-valias tributáveis em sede de IRS — categoria G.

II. A indemnização recebida por expropriação por utilidade pública de bem imóvel não é passível de tributação em sede IRS — mais-valias — categoria G, na medida em que os elementos constitutivos não são subsumíveis ao conceito de alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis conforme postula o artigo 10.º, 1, a), CIRS.

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, José Nunes Barata e
Alexandra Iglésias, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A..., contribuinte fiscal ..., e mulher, B..., contribuinte fiscal ..., casados sob o regime da comunhão de adquiridos, portadores, respetivamente, dos Cartões do Cidadão nº ... ..., válido até 23/02/2031 e ..., válido até 03/11/2030, residentes no ..., nº ..., ...-... Ponte de Lima, notificados a 23/12/2022, pelo Ofício nº..., do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa nº ...2022... (adiante junto sob o documento nº 14), proferido pela Direção de Finanças de ... da Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), que apreciou a invocada ilegalidade deduzida contra a Liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) nº 2022..., referente ao ano de 2021, emitida pelo Serviço de Finanças de ..., notificada a 18/08/2022 através do Documento nº 2022... (cfr. documento nº 11), que considerou devido o tributo de 245.568,42 € (duzentos e quarenta e cinco mil, quinhentos e sessenta e oito euros e quarenta e dois cêntimos) e não se conformando, VÊM REQUER A PRONÚNCIA E CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA, nos termos do disposto nos artigos 2º nº 1, alínea a) e 10º, nº 1 alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante apenas e abreviadamente RJAT), 102º do Código do Processo e Procedimento Tributário (CPPT) e ainda dos artigos 1º e 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 1 de fevereiro de 2023.

A Requerente não procedeu à nomeação de arbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 22 de março de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O TAC encontra-se, desde 11 de abril de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 15 de maio de 2023.

Por despacho de 14 de julho de 2023, o TAC proferiu o seguinte despacho:

“1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito.

2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença. 

3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, até a data limite da prolação da decisão final.

4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

A Requerente no dia 16 de agosto de 2023 suscitou um incidente de habilitação dos herdeiros na sequência do óbito de B... sendo seus herdeiros A... e a única filha de ambos, C..., que deu origem ao seguinte despacho por parte deste Tribunal em 7 de setembro de 2023:

“Na sequência do requerido pela Requerente em sede de incidente de habilitação questiona-se a Requerida se tem algo a opor-se quanto ao requerido.”

A Requerida não se opôs, pelo que o processo prossegue com os herdeiros nomeados para prolação da decisão final.

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1      Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

  1. Pretendem os requerentes que o Tribunal revogue e declare a ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa melhor identificada supra, que, por sua vez, apreciou a ilegalidade da Nota de Liquidação nº 2022... (correspondente à Nota de Cobrança nº 2022...), notificada a 18/08/2022, que computou em 245.568,42 € o montante de IRS devido, referente ao ano de 2021 – cfr. nota de liquidação junta sob documento nº 11,
  2. Fundamentam este pedido na respetiva ilegalidade – denegada pela decisão da reclamação graciosa - porquanto, e em síntese, as indemnizações decorrentes de expropriações por utilidade pública não são tributáveis em sede de IRS, por inexistir norma de incidência.
  3. Devendo, a final, anular-se, por ilegal, a nota de liquidação em crise, reconhecendo-se aos requerentes o direito ao reembolso do valor pago em excesso, acrescido dos juros indemnizatórios e custas, conforme adiante se explicitará.
  4. Assim, a declaração de ilegalidade do ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa, que incidiu sobre a ilegalidade da liquidação, constitui o objeto imediato do pedido, ao passo que a declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação de IRS nº 2022... relativo ao ano de 2021, constitui o objeto mediato deste pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral.
  5. Tendo por referência o ano de 2021, no dia 29/07/2022 os requerentes submeteram eletronicamente a declaração “modelo 3” de IRS, tendo inscrito no respetivo “Anexo G” (alusivo a “Mais-Valias e Outros Incrementos Patrimoniais”), os seguintes valores - cfr. Declaração de IRS (pp. 9-12 de 374), com o nº ...-...-... e código de validação nº..., que se junta como documento nº 01:
  • Data da aquisição: fevereiro de 2009;
  • Valor de aquisição: 195,29 € (cento e noventa e cinco euros e vinte e nove cêntimos);
  • Data da realização: fevereiro de 2021;
  • Valor da realização: 1 033 333,33 € (um milhão, trinta e três mil, trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos);
  • Valor de despesas e encargos: 14.024,84 € (catorze mil, vinte e quatro euros, oitenta e quatro cêntimos).
  1. O “valor da realização” que declararam nesse “Anexo G” reporta-se à indemnização que o requerente marido recebeu, enquanto expropriado, no processo litigioso de expropriação por utilidade pública nº .../21...T8VNG, que correu termos no Juízo Local Cível, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – cfr. sentença de 28/02/2022 (pp. 35-37) constante da certidão judicial eletrónica com o código de acesso ..., que se junta como documento nº 02.
  2. O dito processo adveio da expropriação por utilidade pública urgente, levada a efeito pela entidade pública expropriante “D..., S.A.”, da “parcela PS-FP-...” com a área de 84.702 m2, que integra o prédio rústico com área total de 111 860 m2, composto de Pinhal, Eucaliptal, Mato e Pastagem, sito na ..., freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ..., descrita na ... Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º .../... – cfr. certidão de registo predial (pp. 299-301), caderneta predial rústica (pág. 302) e petição inicial (pp. 306-308) constantes da certidão judicial eletrónica de 20/10/2022, com o código de acesso ..., que se junta como documento nº 03.
  3. A referida parcela “PS-FP-...” vem identificada na planta cadastral e no mapa de expropriações constante do anexo ao Despacho de Alteração da Declaração de Utilidade Pública nº 3127-B/2021, publicada a 22/03/2021, em Diário da República, II Série, parte C, p. 428-(2), disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/despacho/3127-b-2021-... - que se junta como documento nº 04.
  4. Aquele Despacho alterou, por sua vez, a Declaração de Utilidade Pública de Expropriação inicial de bens imóveis e direito a eles inerentes necessários à execução do troço do sistema do metro ligeiro do Porto da extensão da Linha Amarela-Santo Ovídio a Vila d’Este publicada sob o Despacho n.º 5922/2020, de 30 de abril, em Diário da República, 2ª Série de 29/05/2020, disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/despacho/5922-2020-... - que se junta como documento nº 05.
  5. Neste Despacho inicial decretou-se a utilidade pública na expropriação de parte do prédio rústico referido em 15º pertencente, em comum e em partes iguais, a E... e à herança indivisa aberta por óbito de F..., falecido em 14-02-2009, herança esta encabeçada, atualmente, pelos respetivos filhos e herdeiros (na sequência do decesso da respetiva viúva, G..., a 14/11/2014) (i) o ora requerente marido, A... e seus dois irmãos, (ii) H..., viúva, e (ii) I..., casado sob o regime da comunhão de adquiridos com J...– cfr. certidão de registo predial (pp. 299-301), caderneta predial rústica (pág. 302) e petição inicial (pp. 306-308) constantes do documento nº 03 e duas habilitações de herdeiros que se juntam, respetivamente, como documentos nº 06 e 07.
  6. A indemnização expropriativa total, de 6.200.000,00 €, foi fixada por sentença prolatada a 28/02/2021, que decidiu (cfr. sentença de 28/02/2021 de páginas 22 a 24 da certidão junta documento nº 02):  “(...)  homologo por sentença a transação que antecede e nos termos acordados entre os interessados (expropriante e expropriados) pela parcela com a área de 84.702 m2 melhor identificada na planta em anexo como documento n.º 1, fixa-se a favor dos expropriados a indemnização global de €6.200.000,00 euros (seis milhões e duzentos mil euros), a pagar nos termos acordados”.
  7. A aludida sentença determinou, então, a expropriação da parcela com a área de 84.702 m2 do prédio rústico identificado supra em 7º e representado na planta (página 25) constante da certidão junta como documento nº 02.
  8. A decisão judicial transitou em julgado no dia 17 de Março de 2021 – cfr. certidão (pp. 14-15) junta sob documento nº 02.
  9. A indemnização expropriativa foi paga aos expropriados no ano de 2021, por intermédio do respetivo mandatário, da seguinte forma:
  • 1.000.000,00 € (um milhão de euros), mediante transferência bancária no dia 15/03/2021 – cfr. documento nº 08;
  • 1.286.026,80 € (um milhão, duzentos e oitenta e seis mil e vinte e seis euros e oitenta cêntimos), mediante transferência bancária no dia 30/04/2021 – cfr. documento nº 09;
  • 3.913.973,20 € (três milhões novecentos e treze mil, novecentos e setenta e três euros e vinte cêntimos), pagos pelo IGFEJ no dia 13/07/2021 – cfr. notificação que se junta como documento nº 10 (pág. 338).

 

  • O respetivo valor global, de 6.200.000,00 €, foi repartido pelos expropriados na proporção das respetivas quotas-partes dos direitos relativos ao imóvel em causa, a saber:
  • O interessado E..., proprietário de metade indivisa do referido prédio, recebeu metade da indemnização, ou seja, 3.100.000,00 € (três milhões e cem mil euros);
  • A outra metade foi repartida, equitativamente, pelos três herdeiros identificados em 19º, titulares da herança proprietária da outra metade indivisa do prédio, recebendo, cada um, a quantia de 1.033.333,33 € (um milhão e trinta e três mil, trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos).
  • Foi esta cifra indemnizatória, de 1.033.333,33 €, que os requerentes indevidamente declararam à AT no “Anexo G” da respetiva declaração de IRS alusiva a 2021 – cfr. (pp. 9-12) documento nº 01.
  • Recebida a declaração, o Serviço de Finanças de ... notificou os requerentes a 18/08/2022, da Liquidação do IRS de 2021 nº 2022..., através da Nota de Cobrança nº 2022...- cfr. nota de liquidação que se junta como documento nº 11 (pág. 340).
  • Nessa liquidação, a Requerida computou em 245.568,42 € (duzentos e quarenta e cinco mil euros, quinhentos e sessenta e oito euros e quarenta e dois cêntimos) o montante total de IRS devido pelos impugnantes, e o dia 19/09/2022 como término do prazo de pagamento voluntário – cfr. documento nº 11.
  • A 19/09/2022 os impugnantes pagaram o valor integral exigido pela AT – cfr. comprovativo de pagamento junto como documento nº 12 (pág. 342).
  • Ora, daquele valor total pago, correspondem 242 809,14 € (duzentos e quarenta e dois mil, oitocentos e nove euros e catorze cêntimos) ao imposto devido pelas pretensas mais-valias, conforme se afere da simulação da declaração de IRS dos requerentes sem o “Anexo G”, que apurou o valor devido de apenas 2 759,28 € - correspondendo o valor reclamado à diferença entre o tributo exigido e a cifra indicada nesta simulação – cfr. documento nº 13 (pág. 344).
  • Sucede, porém, que conforme já se invocou, a referida nota de liquidação é ilegal, pois que não deveria sujeitar a IRS a indemnização expropriativa acima referida, já que não existe norma que determine a respetiva tributação, conforme adiante se demonstrará.
  • Foi com este fundamento que, a 14/12/2022, os requerentes apresentaram, no Serviço de Finanças de ..., Reclamação Graciosa contra aquele acto de liquidação, que correu termos sob o nº ...2022... na Direção de Finanças de...– cfr. reclamação graciosa e recibo de entrega juntos sob o documento nº 14.
  • A reclamação graciosa foi indeferida, por decisão notificada aos requerentes a 23/12/2022 – cfr. decisão e histórico do registo dos CTT, juntos, respetivamente, como documentos nºs 15 e 16.
  • Nesta decisão de indeferimento expresso, a AT sustentou a legalidade do acto de liquidação reclamado (cfr. ponto 15 do despacho de indeferimento), valendo-se, em síntese, dos seguintes fundamentos - cfr. “IV.  Apreciação da reclamação graciosa” da decisão junta como documento nº 15 (pp. 369-371):
  • A norma da alínea b) do nº 1 do artigo 44º do CIRS constitui um elemento sistemático que “contribui para a definição do alcance da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 10º do CIRS”;
  • A jurisprudência, judicial e arbitral, invocada pelos requerentes - que sufraga integralmente o entendimento deste - versa sobre prédios urbanos, quando o imóvel objeto de expropriação neste caso foi um prédio rústico;
  • Tais decisões constituem caso julgado apenas nos casos sobre que versam, não vinculando as partes neste dissídio.
  • Ressalvado o respeito devido, não assiste à requerida qualquer razão, como se demonstrará.
  • Conforme se disse, o montante indemnizatório indicado não carecia de ser declarado, já que não constitui produto da alienação onerosa de bem imóvel, mas antes uma indemnização por expropriação por utilidade pública, não tributável, pois que esta concreta situação não consta de nenhuma norma de incidência de IRS, mormente das relativas a mais-valias.
  • Assim, o valor indemnizatório proveniente de expropriação por utilidade pública de imóveis não é tributável a título de mais-valias, em sede de IRS.
  • Adicionalmente e para estribar a sua decisão de indeferimento da reclamação graciosa, a AT invoca que a norma do artigo 44º, nº 1, alínea b) do CIRS “desenvolve o alcance da norma da alínea a) do nº1 do artigo 10º do CIRS e concretiza a sua aplicação às transferências patrimoniais decorrentes de expropriações” – cfr. pontos 8 a 13 do Ponto “IV – Apreciação da Reclamação Graciosa” da decisão junta sob documento nº 15.
  • Por mera cautela e dever de patrocínio - para a hipótese de se entender que a indemnização expropriativa é tributável ao abrigo do artigo 44º, nº 1, alínea b) do CIRS - sempre se dirá que, se interpretada no sentido de alargar o âmbito do elenco taxativo do artigo 10º do CIRS, a referida norma é materialmente inconstitucional, porque violadora dos Princípios da Tipicidade e Legalidade Fiscal, ínsito no artigo 103º, nºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa (doravante apenas CRP), transcrito supra em 31º.

 

II.2      Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

  1. Entendem os requerentes que “as indemnizações decorrentes de expropriações por utilidade pública não são tributáveis em sede de IRS, por inexistir norma de incidência”.
  2. A AT discorda de tal entendimento, por o mesmo não decorrer do ordenamento jurídico-fiscal, como um todo.
  3. Para a interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS, concorre, sem qualquer dúvida, a alínea b) do no 1 do artigo 44.º do mesmo diploma legal, que estatui:
     

“1 – Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização: a) ...

b) No caso de expropriação, o valor de realização”.

 

  1. É, pois, inequívoco que a tributação de mais-valias decorrentes de expropriações de bens imóveis foi expressamente prevista pelo legislador.
  2. Sendo questionável a técnica legislativa utilizada, não deixa de ser clara a conclusão de deverem ser tributadas as mais-valias geradas pelo pagamento de indemnizações determinadas por expropriações cujo montante seja superior ao valor de aquisição dos imóveis (naturalmente corrigido de acordo com o disposto no artigo 50.º do mesmo código).
  3. Quanto à alegação de que a expropriação não está abrangida pela norma de incidência do art. 10º, n.º 1, alínea a), do CIRS, importa, pois, à luz do disposto no n.º 1 do art.º 11.º da LGT, interpretar aquele preceito legal no contexto do ordenamento jurídico onde está inserido e, especificamente, no seio do CIRS.
  4. E, desde logo, nesse exercício de hermenêutica, o disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 44.º do CIRS que, sob a epígrafe “Valor de realização”, estipula:
    “1 – Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização:
  1. ... ...
  2. No caso de expropriação, o valor de realização”.
  1. Ora, se o valor de realização constitui uma das variáveis que concorrem no cálculo da mais-valia, então a respetiva previsão só faz sentido, perante uma base de incidência que enquadre a expropriação dentro do âmbito de incidência das mais-valias.
  2. Ou seja, não é defensável a regra que anteveja o modo de cálculo de um valor de realização, sem qualquer correspondência a uma determinada mais-valia.
  3. Alega ainda o requerente que não ocorreu qualquer alienação onerosa de imóvel, invocando a suposta natureza não translativa, mas antes, segundo sustenta, indemnizatória, do instituto da expropriação.
  4. Não lhe assiste razão,
  5. A putativa circunstância de estarmos perante uma indemnização, não exclui a possibilidade de incidência de imposto, em abstrato, dos montantes pagos à Requerente.
  6. Bastará pensar nos casos previstos na norma do artigo 9°, n.º 1 alínea b), do CIRS.
  7. Nem, tão pouco, a hipótese de um contribuinte receber um determinado montante derivado de uma indemnização, exclui que a situação tenha origem num ato translativo.
  8. É, nesse sentido, que uma análise sistemática ao CIRS, dispõe sobre a incidência dos montantes auferidos a título de expropriação.
  9. Posto que, integrando a expropriação uma alienação onerosa, a tributação do montante indemnizatório – contrapartida da mesma – não viola os Princípios da Legalidade Tributária nem da Tipicidade Fiscal.
  10. Assim como não viola o art. 103.º, nos 2 e 3, nem o art. 165.º, no 1, al. i), ambos da CRP.
  11. Não tendo havido qualquer recurso à analogia, tanto mais que, reiteramos a expropriação é uma forma de alienação onerosa, não havendo, portanto, qualquer lacuna.
  12. Pelo que, em face do exposto, e da letra e espírito da lei em vigor, bem andou a AT ao emitir a liquidação oficiosa aqui contestada.

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

 

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

  1. Tendo por referência o ano de 2021, no dia 29/07/2022 os requerentes submeteram eletronicamente a declaração “modelo 3” de IRS, tendo inscrito no respetivo “Anexo G” (alusivo a “Mais-Valias e Outros Incrementos Patrimoniais”), os seguintes valores - cfr. Declaração de IRS (pp. 9-12 de 374), com o nº ... e código de validação nº..., que se junta como documento nº 01:
  • Data da aquisição: fevereiro de 2009;
  • Valor de aquisição: 195,29 € (cento e noventa e cinco euros e vinte e nove cêntimos);
  • Data da realização: fevereiro de 2021;
  • Valor da realização: 1 033 333,33 € (um milhão, trinta e três mil, trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos);
  • Valor de despesas e encargos: 14.024,84 € (catorze mil, vinte e quatro euros, oitenta e quatro cêntimos).
  1. O “valor da realização” que declararam nesse “Anexo G” reporta-se à indemnização que o requerente marido recebeu, enquanto expropriado, no processo litigioso de expropriação por utilidade pública nº .../21...T8VNG, que correu termos no Juízo Local Cível, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – cfr. sentença de 28/02/2022 (pp. 35-37) constante da certidão judicial eletrónica com o código de acesso..., que se junta como documento nº 02.
  2. O dito processo adveio da expropriação por utilidade pública urgente, levada a efeito pela entidade pública expropriante “D..., S.A.”, da “parcela PS-FP-...” com a área de 84.702 m2, que integra o prédio rústico com área total de 111 860 m2, composto de Pinhal, Eucaliptal, Mato e Pastagem, sito na ..., freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ..., descrita na ... Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º .../... – cfr. certidão de registo predial (pp. 299-301), caderneta predial rústica (pág. 302) e petição inicial (pp. 306-308) constantes da certidão judicial eletrónica de 20/10/2022, com o código de acesso..., que se junta como documento nº 03.
  3. A referida parcela “PS-FP-...” vem identificada na planta cadastral e no mapa de expropriações constante do anexo ao Despacho de Alteração da Declaração de Utilidade Pública nº 3127-B/2021, publicada a 22/03/2021, em Diário da República, II Série, parte C, p. 428-(2), disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/despacho/3127-b-2021-... - que se junta como documento nº 04.
  4. Aquele Despacho alterou, por sua vez, a Declaração de Utilidade Pública de Expropriação inicial de bens imóveis e direito a eles inerentes necessários à execução do troço do sistema do metro ligeiro do Porto da extensão da Linha Amarela-Santo Ovídio a Vila d’Este publicada sob o Despacho n.º 5922/2020, de 30 de abril, em Diário da República, 2ª Série de 29/05/2020, disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/despacho/5922-2020-... - que se junta como documento nº 05.
  5. Neste Despacho inicial decretou-se a utilidade pública na expropriação de parte do prédio rústico referido em 15º pertencente, em comum e em partes iguais, a E... e à herança indivisa aberta por óbito de F..., falecido em 14-02-2009, herança esta encabeçada, atualmente, pelos respetivos filhos e herdeiros (na sequência do decesso da respetiva viúva, G..., a 14/11/2014) (i) o ora requerente marido, A... e seus dois irmãos, (ii) H..., viúva, e (ii) I..., casado sob o regime da comunhão de adquiridos com J...– cfr. certidão de registo predial (pp. 299-301), caderneta predial rústica (pág. 302) e petição inicial (pp. 306-308) constantes do documento nº 03 e duas habilitações de herdeiros que se juntam, respetivamente, como documentos nº 06 e 07.
  6. A indemnização expropriativa total, de 6.200.000,00 €, foi fixada por sentença prolatada a 28/02/2021, que decidiu (cfr. sentença de 28/02/2021 de páginas 22 a 24 da certidão junta documento nº 02):  “(...)  homologo por sentença a transação que antecede e nos termos acordados entre os interessados (expropriante e expropriados) pela parcela com a área de 84.702 m2 melhor identificada na planta em anexo como documento n.º 1, fixa-se a favor dos expropriados a indemnização global de €6.200.000,00 euros (seis milhões e duzentos mil euros), a pagar nos termos acordados”.
  7. A aludida sentença determinou, então, a expropriação da parcela com a área de 84.702 m2 do prédio rústico identificado supra em 7º e representado na planta (página 25) constante da certidão junta como documento nº 02.
  8. A decisão judicial transitou em julgado no dia 17 de Março de 2021 – cfr. certidão (pp. 14-15) junta sob documento nº 02.
  9. A indemnização expropriativa foi paga aos expropriados no ano de 2021, por intermédio do respetivo mandatário, da seguinte forma:
  • 1.000.000,00 € (um milhão de euros), mediante transferência bancária no dia 15/03/2021 – cfr. documento nº 08;
  • 1.286.026,80 € (um milhão, duzentos e oitenta e seis mil e vinte e seis euros e oitenta cêntimos), mediante transferência bancária no dia 30/04/2021 – cfr. documento nº 09;
  • 3.913.973,20 € (três milhões novecentos e treze mil, novecentos e setenta e três euros e vinte cêntimos), pagos pelo IGFEJ no dia 13/07/2021 – cfr. notificação que se junta como documento nº 10 (pág. 338).
  1. O respetivo valor global, de 6.200.000,00 €, foi repartido pelos expropriados na proporção das respetivas quotas-partes dos direitos relativos ao imóvel em causa, a saber:
  2. O interessado E..., proprietário de metade indivisa do referido prédio, recebeu metade da indemnização, ou seja, 3.100.000,00 € (três milhões e cem mil euros);
  3. A outra metade foi repartida, equitativamente, pelos três herdeiros identificados em 19º, titulares da herança proprietária da outra metade indivisa do prédio, recebendo, cada um, a quantia de 1.033.333,33 € (um milhão e trinta e três mil, trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos).
  4. Foi esta cifra indemnizatória, de 1.033.333,33 €, que os requerentes indevidamente declararam à AT no “Anexo G” da respetiva declaração de IRS alusiva a 2021 – cfr. (pp. 9-12) documento nº 01.
  5. Recebida a declaração, o Serviço de Finanças de ... notificou os requerentes a 18/08/2022, da Liquidação do IRS de 2021 nº 2022 ..., através da Nota de Cobrança nº 2022... - cfr. nota de liquidação que se junta como documento nº 11 (pág. 340).
  6. Nessa liquidação, a Requerida computou em 245.568,42 € (duzentos e quarenta e cinco mil euros, quinhentos e sessenta e oito euros e quarenta e dois cêntimos) o montante total de IRS devido pelos impugnantes, e o dia 19/09/2022 como término do prazo de pagamento voluntário – cfr. documento nº 11.
  7. A 19/09/2022 os impugnantes pagaram o valor integral exigido pela AT – cfr. comprovativo de pagamento junto como documento nº 12 (pág. 342).
  8. Ora, daquele valor total pago, correspondem 242 809,14 € (duzentos e quarenta e dois mil, oitocentos e nove euros e catorze cêntimos) ao imposto devido pelas pretensas mais-valias, conforme se afere da simulação da declaração de IRS dos requerentes sem o “Anexo G”, que apurou o valor devido de apenas 2 759,28 € - correspondendo o valor reclamado à diferença entre o tributo exigido e a cifra indicada nesta simulação – cfr. documento nº 13 (pág. 344).
  9. A 14/12/2022, os requerentes apresentaram, no Serviço de Finanças de ..., Reclamação Graciosa contra aquele ato de liquidação, que correu termos sob o nº ...2022... na Direção de ...– cfr. reclamação graciosa e recibo de entrega juntos sob o documento nº 14.
  10. A reclamação graciosa foi indeferida, por decisão notificada aos requerentes a 23/12/2022 – cfr. decisão e histórico do registo dos CTT, juntos, respetivamente, como documentos nºs 15 e 16.
  11. Nesta decisão de indeferimento expresso, a AT sustentou a legalidade do acto de liquidação reclamado (cfr. ponto 15 do despacho de indeferimento), valendo-se, em síntese, dos seguintes fundamentos - cfr. “IV.  Apreciação da reclamação graciosa” da decisão junta como documento nº 15 (pp. 369-371).

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

IV.2.A. Quanto ao thema decidendum

 

A questão que constitui o thema decidendum[2] centra-se em saber se existe ou não existe no CIRS norma de incidência real que inclua, no âmbito da tributação das mais-valias, os ganhos resultantes de expropriação.

As mais-valias constituem incrementos patrimoniais integrando os rendimentos da categoria G (art.º 9.º, 1, a), CIRS), definidas conforme estabelecido no art.º 10.º, idem.

O citado art.º 10.º, CIRS, tem o seguinte teor, para o que aqui interessa:

“Artigo 10.º

Mais-valias

1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário;

(...)

3 - Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes:

a) Nos casos de promessa de compra e venda ou de troca, presume-se que o ganho é obtido logo que verificada a tradição ou posse dos bens ou direitos objeto do contrato;

b) Nos casos de afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida pelo seu proprietário, o ganho só se considera obtido no momento da ulterior alienação onerosa dos bens em causa ou da ocorrência de outro facto que determine o apuramento de resultados em condições análogas;

(...)

4 - O ganho sujeito a IRS é constituído:

a) Pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso, nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1.”

 

Ora, sobre o tema em discussão (a indemnização gera um "incremento patrimonial" resultante de uma "alienação onerosa" para efeitos do citado art.º 10.º, CIRS?), as partes têm posições diametralmente opostas.

O SP considera que o IRS não incide objetivamente sobre as indemnizações decorrentes de procedimentos de expropriação de utilidade pública.

Para a Requerente, apesar de o CIRS acolher um conceito de rendimento acréscimo, este conceito é limitado na medida em que não são, por motivos de escolha legislativa e praticabilidade, tributados todos os acréscimos patrimoniais ou todas as mais-valias realizadas pelos contribuintes. Desta forma, a norma dos artigos 9.º e 10.º, ambos do CIRS, é uma norma de incidência fechada, isto é, apenas são tributáveis os ganhos referentes aos bens e negócios ali mencionados.

Concatenando os artigos 9.º e 10.º, CIRS, as mais-valias decorrem de ganhos obtidos com a alienação ou a transmissão onerosa. Acontece que a expropriação não pode ser considerada uma forma de alienação. Expropriação por utilidade pública é uma forma de extinção do direito de propriedade seguida da aquisição originária do bem a favor da entidade pública. A expropriação por utilidade pública importa a extinção de todos os direitos (de natureza real, obrigacional ou pessoal) que existam sobre o bem objecto da expropriação e a constituição, simultânea ou concomitantemente, e por via de aquisição originária, de um novo direito real na esfera jurídica da entidade beneficiária dessa expropriação — cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (“TRC”) de 30 de Junho de 2009, processo 574/08.8TBCVL.C1.

Conclui que, assim sendo, não ocorrendo qualquer ato de transmissão ou qualquer incremento patrimonial na esfera do sujeito passivo, não deve ocorrer qualquer tributação em sede de IRS.

Por sua vez, a AT entende que a expropriação encontra-se abrangida pela norma de incidência do art. 10.º, 1, a), CIRS.

Chama à colação do disposto no art. 44.º, 1, b), CIRS, que, sob a epígrafe “Valor de realização”, estipula: “1 – Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização: (...) b) No caso de expropriação, o valor de realização”, para defender que se o valor de realização constitui uma das variáveis que concorrem no cálculo da mais-valia, então a respetiva previsão só faz sentido perante uma base de incidência que enquadre a expropriação dentro do âmbito de incidência das mais-valias.

Depois sustenta-se no preâmbulo do CIRS, ao esclarecer a inclusão da transmissão onerosa da propriedade de um imóvel, no domínio de incidência do IRS: "Alarga-se a tributação a ganhos não sujeitos ao actual imposto de mais-valias, tais como os gerados pela transmissão onerosa de qualquer forma de propriedade imóvel".

De acordo com a AT, e para reforçar a sua argumentação, a regra 17.ª do art. 12.º, 4, CIMT, estatui que, para efeitos de IMT, o valor tributável dos bens expropriados por utilidade pública é o montante da indemnização ou, caso esta seja estabelecida por acordo, será o correspondente ao valor da indemnização ou o correspondente ao VPT do bem, consoante o que for maior. E a parte final do parágrafo 1 do art. 19.º do CIMSISSD, vigente à data da entrada em vigor do CIRS, cominava que o valor dos bens expropriados por utilidade pública para efeitos de sisa seria o montante da indemnização, salvo se esta tivesse sido estabelecida por acordo ou transação.

Ciente das diferentes fontes normativas para a qual apela, a AT questiona, pois, que se a expropriação é considerada como transmissão onerosa, para efeitos de IMT, qual a razão para, no mesmo ordenamento jurídico-tributário e no mesmo hiato temporal, não ter essa mesma natureza, para efeitos de IRS?

Daí que a AT conclui que a tributação de mais-valias decorrentes de expropriações de bens imóveis foi expressamente prevista pelo legislador e está abrangida pela norma de incidência do art. 10.º, CIRS.

Posto isto, efetivamente, a questão central que se coloca é a de saber que incremento patrimonial assim como que alienação onerosa pressupõe e consagra o art. 10.º, CIRS.

Vejamos.

Tradicionalmente, uma mais valia corresponde a uma valorização ocorrida em bens ou direitos, um ganho de carácter ocasional ou fortuito que se gera na esfera do proprietário alienante, sem que tal se verifique no contexto do desenvolvimento de uma atividade empresarial. Revela uma capacidade contributiva, o que justifica a respetiva sujeição a imposto — cf. Paula Rosado Pereira, Manual de IRS, II edição, Almedina, 2019, p. 204.

A mais-valia corresponde a um ganho, ou seja, é uma diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição de um mesmo bem ou direito.

O CIRS não nos faculta uma definição de mais-valias. Assim, na ausência de uma definição, o CIRS procede a uma enumeração casuística dos ganhos sujeitos a tributação como mais-valias.

A tributação das mais-valias no contexto do IRS revela a adoção, por este imposto, da conceção do "rendimento-acréscimo", embora atenuada pelo princípio da realização.

As mais-valias integram a categoria G — incrementos patrimoniais —, prevista no artigo 9.º, CIRS.

No entanto, é o artigo 10.º, 1, CIRS, que prevê um elenco taxativo de ganhos que constituem mais-valias para efeitos de tributação, desde que não sejam considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais. Este normativo constrói uma incidência seletiva, bastante restritiva, do qual resulta a tributação de uma mais-valia.

Incidência seletiva significa, desde logo, que resulta de uma opção legislativa pela consagração de um elenco restritivo de ganhos tributáveis como mais-valias na categoria G face a um universo bastante mais amplo de ganhos potencialmente relevantes.

Com efeito, o conjunto de bens ou direitos cujo transmissão nervosa gera mais-valias tributáveis, enquadráveis na categoria G de rendimentos, é bastante limitada. Este poderia, em termos abstratos, ser definido de forma bastante mais ampla do que aquela que se encontra previsto no artigo 10.º, 1, CIRS. Contudo, razões de funcionamento e fiscalização do imposto tornam desadequada a atribuição de relevância fiscal a um conjunto muito alargado de situações suscetíveis de gerarem mais valias tributadas — cf. Paula Rosado Pereira, idem, p. 207-208.

Devido a isto, houve a preocupação de delinear a norma de incidência das mais-valias de forma a incluir apenas determinadas situações — vg., as que geram ganhos mais frequentes, em que os valores económicos envolvidos sejam relevantes.

Isto é, nem todo o ganho pode ser tributado como uma mais-valia, para efeitos da categoria G. Ou, dito de outra forma, ocorrem ganhos que não são tributáveis para efeitos da categoria G.

Perante este cenário, importa agora perceber melhor que alienação onerosa e que incremento patrimonial está o artigo 10.º, 1, a), CIRS, a pressupor.

Tenhamos em conta a decisão arbitral proferida no âmbito do processo 291/2019-T[3], que igualmente seguimos de perto.

O primeiro facto gerador de mais-valias imobiliárias é a alienação (a transmissão)  onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (artigo 10.º, 1, a), CIRS).

No Código do IRS não surge um conceito próprio de transmissão. Portanto, importa considerar o direito civil.

Transmissão consiste na alienação como a transmissão do direito de propriedade sobre um bem ou a constituição de um direito real que o onere — Ana Prata, Dicionário Jurídico, Morais Editores, 1978, pp. 38. Interessa, pois, agora verificar se a expropriação pode ser reconduzida à alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.

O direito de propriedade está consagrado no artigo 62.º, 1, CRP.

Nos termos do artigo 1305.º, CCiv., o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas. Porém, o direito de propriedade não é absoluto. O n.º 2 do referido preceito constitucional admite a sua limitação através da requisição e da expropriação por utilidade pública. 

O Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de setembro, na versão atualmente em vigor, prevê no artigo 1.º que “Os bens imóveis e os direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública compreendida nas atribuições, fins ou objeto da entidade expropriante, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização (...)”.

A justa indemnização, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 23.º do referido Código, “ (...) não visa compensar o benefício alcançado pela entidade expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data.” (o negrito é nosso).

O recurso à expropriação só se justifica depois de esgotados os meios de aquisição pelo direito privado, salvo em casos de urgência ou outras situações particulares, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Código das Expropriações. 

A expropriação é considerada como uma restrição ou limitação de direito público ao direito de propriedade. De acordo com Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 9.ª ed., Coimbra Editora, 1972, p. 996, devido à conveniência do Estado de utilizar determinados imóveis para prosseguir um fim específico de utilidade pública a expropriação extingue os direitos subjetivos constituídos sobre eles. No mesmo sentido ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal I, (reimp), Manuais da Faculdade de Direito de Lisboa, 1981, p. 88, salienta que a expropriação representa a extinção imediata de um direito na esfera do expropriado.   

Relativamente ao expropriado, a expropriação acarreta a extinção do seu direito de propriedade plena. Concomitantemente são constituídos novos direitos reais na esfera jurídica do beneficiário da expropriação. Assim, a expropriação não implica a transferência de direitos reais sobre imóveis, pois ela é a causa extintiva desses direitos — José Osvaldo Gomes. Expropriações por Utilidade Pública, Lisboa, Texto Editora, 1997, pp. 11.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Administrativo teve ocasião de se pronunciar, por diversas vezes, na vigência do Código de Imposto de Mais-Valias, no sentido de que a relação jurídica da expropriação não é subsumível no conceito de transmissão onerosa — acórdão do STA, de 19-06-1996, proc.o n.o 015056, relator Juiz Conselheiro Rodrigues Pardal; Acórdão do STA, de 17-01-1996, proc.o n.o 019846, relator Juiz Conselheiro Rodrigues Pardal; Acórdão do STA, de 15- 11-1990, proc.o n.o 005769, relator Juiz Conselheiro Girão Cardoso, acórdão do TRC, de 30 de Junho de 2009, processo 574/08.8TBCVL.C1.

Em face ao exposto, resulta que a expropriação não equivale a uma alienação onerosa do direito de propriedade, resultante do normal exercício do direito de o proprietário alienar o bem, mas antes numa privação forçada do direito de propriedade com a inerente extinção dos direitos reais sobre os imóveis. Nesse contexto o pagamento de uma indemnização ao expropriado não configura um preço de aquisição pelo bem, mas o ressarcimento do prejuízo criado pela expropriação. 

Concluindo como as doutas decisão que seguimos, o valor da indemnização por expropriação de utilidade pública não é passível de enquadramento no art. 10.º, 1, a), CIRS, como ganho proveniente de uma alienação onerosa de direitos reais.

Além disso, a expropriação também não se integra nas situações previstas nas restantes alíneas do artigo 10.º, CIRS.

Acresce ainda que o enquadramento que fizemos de considerar as mais-valias no âmbito de uma incidência seletiva e restritiva, tributáveis na categoria G, restringe a tributação aos factos elencados no artigo 10.º, 1, CIRS. Este normativo não contempla expressamente a expropriação.

Considerando que, face ao disposto no artigo 11.º, 1, LGT, e artigo 9.º, 2, CCiv, a interpretação tem de ter o mínimo de correspondência com a letra da lei, e considerando ainda que a incidência dos tributos não pode recorrer a analogia, mais reforçada resulta a conclusão de que o artigo 10.º, 1, a), CIRS, não abrange o valor da indemnização por expropriação de utilidade pública[4], sendo que concordamos com a Requerente ao mencionar que qualquer interpretação contrária seria materialmente inconstitucional.

Ainda um último ponto.

Conforme verificamos, a AT considera, em defesa da sua posição interpretativa, o art. 44.º, 1, b), CIRS, sob a epígrafe “Valor de realização”, que reza: “1 – Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização: (...) b) No caso de expropriação, o valor de realização”, para defender que o valor de realização constitui uma das variáveis que concorrem no cálculo da mais-valia. Correto.

Com efeito, a expropriação vem expressamente mencionado no CIRS a propósito do "valor de realização".

No entanto, como é manifestamente visível, da leitura do artigo 44.º, 1, b), CIRS, o que dele resulta é que o preceito não é uma norma de incidência tributária, antes visa apenas determinar a matéria tributável. Isto é, a norma citada postula uma das variáveis que se tem de considerar para efeito de cálculo das mais-valias. Mas falta o resto, isto é, falta uma norma que enquadre a expropriação dentro do âmbito de incidência das mais-valias, uma norma expressa que a prescreva.

Amarrado que está o intérprete à normatividade vigente, não pode este consagrar putativas linhas legislativa-tributárias arredadas da positividade. Portanto, manifesto é que tem de se dar razão à Recorrente quanto ao que peticiona, nesta parte, e declarar ilegal o indeferimento do pedido de reclamação e, consequentemente, o ato de liquidação em apreciação.

  

IV.2.B. Quanto ao pedido de reembolso de quantia indevidamente paga

 

A Requerente formula um pedido de reembolso do IRS indevidamente pago bem como o pagamento dos juros indemnizatórios.

É jurisprudência uniforme — maxime, cf. Ac. 630/2014-T, CAAD — que de acordo com disposto no art. 24.º, 1, b), RJAT "a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito».

E continua o citado Ac.: "Com efeito, apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (arts. 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

Sendo processualmente viável apreciar o pedido de juros indemnizatórios será necessariamente também possível apreciar o pedido de reembolso da quantia indevidamente paga, cujo montante é factor de determinação do montante dos juros indemnizatórios.

Assim, à semelhança do que sucede com os tribunais tributários em processo de impugnação judicial, este Tribunal Arbitral é competente para apreciar os pedidos de reembolso da quantia paga e de pagamento de juros indemnizatórios.

Ficou dado como provado (art. 110.º, 7, CPPT, ex vi, art. 29.º, RJAT, e art 16.º, e), RJAT) que a Requerente pagou a quantia liquidada acima identificada.

Consequentemente, determino que a AT reembolse a Requerente do valor de liquidação de IRS indevidamente pago, porque não devido, conforme fundamentação já expedida supra.

 

IV.2.C. Quanto aos juros indemnizatórios

 

Determina o art. 24.º, 5, RJAT que "“é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, e 100.º, LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Neste caso, e uma vez que foi apresentada reclamação graciosa e houve indeferimento expresso por parte da AT, ficou demonstrado que houve erro imputável aos serviços.

Assim sendo, o contribuinte tem direito a juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido. Quanto aos juros de mora, só serão devidos se for excedido o prazo de execução espontânea que recai sobre a AT ­— cf. art. 175.º, 1, 3, CPTA —, sem prejuízo do disposto no art. 100.º, LGT, e 61, 5, CPPT, no sentido que não se admite a cumulação de juros relativamente ao mesmo período (cf. Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, in Guia da Arbitragem Tributária, 3.ª edição Almedina 2017, p. 235).

  1. DECISÃO

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente o pedido de anulação do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa nº ...2022..., proferido pela Direção de Finanças de ... da Autoridade Tributária e Aduaneira, consequentemente confirmando a ilegalidade deduzida contra a Liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) nº 2022..., referente ao ano de 2021, emitida pelo Serviço de Finanças de ..., notificada a 18/08/2022 através do Documento nº 2022...;
  2. Julgar procedente o pedido de reembolso de quantia a apurar, bem como os respetivos juros indemnizatórios, calculados à taxa legal, nos termos do art. 61.º, CPPT, condenando a Autoridade Tributária a efetuar o respetivo pagamento à Requerente;
  3. Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

  1. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 242.809,14, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

  1. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 4.284,00, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido principal foi totalmente procedente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 9 de outubro de 2023.

 

Os Árbitros,

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

 

(José Nunes Barata)


 

(Alexandra Iglésias)

 


 

 

 

 

 

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[2] E seguindo de perto a decisão n.º Processo nº 273/2022-T, disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPageSize=100&listOrder=Sorter_data&listDir=DESC&id=6796.

[4] Na mesma linha, cf. a decisão arbitral 803/2019-T, disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPageSize=100&listPage=4&id=4900.