Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 232/2023-T
Data da decisão: 2023-09-07  IRS  
Valor do pedido: € 248.466,83
Tema: IRS. Mais-valias. Regime Transitório. Partilha da herança. Tornas. Momento da aquisição
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Decisão Arbitral

 

            Os árbitros Dr. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Catarina Gonçalves e Dr. José Nunes Barata (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do CAAD, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 14-06-2023, acordam no seguinte:

 

        

         1. Relatório

 

A...,  com o NIF ... para o efeito residente na ..., ..., ..., ...-... Lisboa, e

B..., com o NIF..., para o efeito residente na Rua ..., ..., ...-...Oeiras, (doravante designadas como “Requerentes”), vieram ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”, apresentar pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação das liquidações adicionais do seu IRS de 2021, com os números 2022..., no valor de €110.938,41, e 2022..., no valor de €140.564,14.

As Requerentes pedem ainda a restituição dos valores pagos, com juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 03-04-2023.

Os signatários comunicaram a aceitação do exercício das funções no prazo aplicável.

Em 26-05-2023, as Partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo manifestado vontade de recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT,  o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 14-06-2023.

A AT apresentou resposta, em que defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve improceder.

Por despacho de 05-09-2023, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. No dia 5 de Maio de 1987, faleceu o avô materno das ora Requerentes, C... e no dia 16 de Dezembro, também de 1987, veio a falecer a sua avó materna, D... (documentos n.ºs 3 e 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos) 
  2. Foram herdeiros dos referidos avós os seus quatro filhos, E..., F..., G..., os três tios das Requerentes, e a sua mãe, H...;
  3. A mãe das Requerentes faleceu em 10-11-1988 (documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido), tendo-lhe sucedido como herdeiros, para além das Requerentes, o seu pai, e as suas outras duas irmãs;
  4. Do conjunto de bens transmitidos para os seus herdeiros pela avó das ora Requerentes (documento nº 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, página 5, verba 24), e posteriormente por sua mãe, fazia parte o prédio misto designado por Herdade... (documento nº 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, pagina 10 Verba nº 25), sito na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ... e inscrito na matriz predial rustica da freguesia de ... sob o art.º ... e na matriz predial urbana desta freguesia sob o art.º ... (de ora em diante identificada apenas por ...);
  5. Em 20 de Setembro de 1993, foi outorgada a escritura de partilha do referido bem denominado como Herdade..., tendo o bem sido adjudicado às ora Requerentes e às suas outras duas irmãs, mediante o pagamento das correspondentes tornas aos restantes proprietários do correspondente quinhão (documento nº 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  6. No dia 8 de Abril de 2021, as ora Requerentes alienaram, por escritura notarial e pelo valor € 2.380.000,00 (dois milhões trezentos e oitenta e mil euros), a Herdade... (documento nº 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  7. Tendo, cada uma das vendedoras, incluindo, pois, cada uma das Requerentes, recebido, em resultado dessa venda, a quantia de € 595.000,00;
  8. As Requerentes não referiram esta alienação nas suas declarações anuais de IRS relativas aos rendimentos do ano de 2021, por entenderem que os ganhos obtidos não são sujeitos a IRS (documentos com os nºs 10 e 11 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos e processo administrativo);
  9. Não concordando com esta posição das Requerentes, a Autoridade Tributária e Aduaneira notificou-as para procederem à correcção das declarações Modelo 3 inicialmente entregues, o que as Requerentes não fizeram (processo administrativo);
  10. Na sequência deste entendimento, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação de IRS n.º 2022..., relativamente à Requerente A..., e a liquidação de IRS n.º 2022...,  relativamente à Requerente B..., nos valores de € 110.938,41, e € 140.564,14, respectivamente;
  11. Relativamente à Requerente A..., foi liquidado pela respectiva liquidação impugnada um imposto superior em € 110.414,08, ao que foi liquidado inicialmente com base na declaração Modelo 3  onde não foi incluída a venda da Herdade...- € 523,73 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
  12. Relativamente à Requerente B... foi liquidado pela respectiva liquidação impugnada um imposto superior em € 137.852,15, ao que foi liquidado inicialmente com base na declaração Modelo 3  onde não foi incluída a venda da Herdade..., que foi de € 2.711,99 (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
  13. As Requerentes A...  B... pagaram as quantias liquidadas nos montantes de € 110.414,08 e € 137.852,15, respectivamente (documentos n.ºs 16 e 17 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos e artigo 21.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionado);
  14. Em 31.03-2023, as Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e no processo administrativo e com base em afirmações das Requerentes cuja correspondência à realidade não foi questionada.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

 

3. Matéria de direito

 

As Requerentes foram herdeiras de sua mãe, cujo óbito ocorreu em 10-11-1988.

Entre os bens da herança incluía-se um prédio misto que foi adjudicado às Requerentes por escritura de partilha celebrada em 20-09-1993, que estas depois venderam obtendo ganhos.

O artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, que aprovou o CIRS, estabeleceu o seguinte «regime transitório da categoria G», no que aqui interessa:

 

Artigo 5.º

Regime transitório da categoria G

1 - Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 673, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código (Redacção do Decreto-Lei n.º 141/92, de 17 de Julho)

(...)

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que apenas à parte do imóvel que foi atribuída às Requerentes no preenchimento do seu quinhão hereditário se aplica a exclusão de tributação dos ganhos decorrentes da alienação deste bem, prevista no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, e que, quanto à parte do imóvel que foi adjudicada às Requerentes mediante o pagamento de tornas, se está perante uma aquisição efectuada a título oneroso, distinguindo-se da aquisição gratuita que resulta do preenchimento do seu quinhão hereditário.

As Requerentes defendem que a totalidade dos ganhos obtidos com a venda do prédio referido devem ser abrangidos pela exclusão de tributação referida, por, em suma, os efeitos da partilha retroagirem à data da abertura da herança.

 

3.1. Questão da aplicação do regime transitório previsto o artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro

 

Esta questão de saber se está abrangida pelo regime do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, as partes de bens herdados que excedem o quinhão hereditário e foram adjudicadas a herdeiros, mediante o pagamento de tornas, após a vigência do CIRS,  tem sido controvertida na jurisprudência dos Tribunais Superiores tendo sido proferidas decisões no sentido propugnado pela Requerente e decisões no sentido defendido pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Na sequência dessas decisões contraditórias foi interposto um recurso para uniformização de jurisprudência que foi decidido pelo Pleno do Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 24-02-2021, proferido no processo n.º 05/09.6BESNT, por maioria de 109 votos contra 1.

Refere-se neste aresto, além do mais, o seguinte:

 

«A sucessão (mortis causa) corresponde ao chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais (excetuadas as que devam extinguir-se por morte do respetivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei) de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam, a qual, por determinação, expressa do art. 2031.º do Código Civil (CC), se abre no momento (dia e hora) da morte do seu autor e no lugar do seu derradeiro domicílio.

A partilha, que qualquer co-herdeiro (ou o cônjuge meeiro) tem o direito de pedir, quando quiser, após a abertura da sucessão respetiva, pode ser concretizada por acordo de todos os interessados, nas conservatórias ou por via notarial, e/ou, por meio de inventário, nos casos de desacordo, ausência ou incapacidade de facto permanente de algum dos herdeiros e de aceitação beneficiária, é o ato destinado a pôr termo, fazer cessar a indivisão de um património, em resultado da qual, dos seus diversos momentos, diligências, operações, cada interessado vem a ser encabeçado na titularidade dos bens e/ou direitos (e, sendo caso, nas dívidas) a que tem direito (ou de que é responsável), como resultado do funcionamento, aplicação, das diversas e pertinentes regras de direito das sucessões/sucessório. Entre estas, para os termos deste recurso, cumpre destacar a que se mostra inscrita no art. 2119.º do CC, sob as epígrafes, geral, dos efeitos da partilha e específica, da sua retroatividade: “Feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem prejuízo do disposto quanto a frutos” (Não se olvide, igualmente, que os efeitos da aceitação (da herança) se retrotraem ao momento da abertura da sucessão - art. 2050.º n.º 2 do CC.).

Com apoio nesta imposição, legislativa, do efeito retroativo da partilha, a doutrina dominante, bem como, a jurisprudência maioritária, tem afirmado, há longo tempo, a natureza, preponderantemente, declarativa (e não constitutiva ou translativa) da partilha de bens, no sentido de que “se limita a determinar ou materializar os bens que compõem o quinhão hereditário de cada herdeiro na herança até então indivisa, quinhão esse adquirido com a aceitação, cujos efeitos retroagem ao momento da abertura da sucessão”. Por outras palavras, não existindo reservas em afirmar que, enquanto uma herança permanecer indivisa (não for objeto de liquidação e partilha) (Por força do art. 2101.º n.º 2 do CC, “Não pode renunciar-se ao direito de partilhar, mas pode convencionar-se que o património se conserve indiviso por certo prazo, que não exceda cinco anos; é lícito renovar este prazo, uma ou mais vezes, por nova convenção”. Ver, ainda, art. 2074.º do mesmo compêndio legal.), cada um dos herdeiros, somente, é titular de um direito a uma quota-parte (ideal) de uma massa de bens, constituindo um património autónomo, e não de um direito, subjetivo, sobre cada um dos bens integrantes da mesma, já, por efeito da partilha, o herdeiro torna-se titular, em pleno, dos direitos que lhe couberem, sendo, se a herança integrar a propriedade de bens imóveis, a partir de então, que, conforme (na proporção) lhe forem atribuídos, passa a ser proprietário de cada um deles e, nessa qualidade, pode exercer os direitos correspondentes. Relativamente à aquisição do direito de propriedade (de coisas corpóreas), é preciso ter, sempre, presente, ainda, o princípio de que o mesmo se adquire, entre outros modos, por sucessão mortis causa, no momento da sua abertura (Artigos 1316.º e 1317.º alínea b) do Código Civil (CC).); e não pelo modo de partilha.

Não se nos colocando nenhuma entropia em, deste modo, entender, quando se trata do preenchimento certo (rigorosa e aritmeticamente, correspondente à quota-parte de cada interessado) dos quinhões hereditários, também, no âmbito tributário, em cédula de IRS (mais-valias/regime transitório), julgamos ser de adoptar e retirar consequências (especificamente, sobre o momento da aquisição), da mera natureza declarativa da partilha, nas situações, como a presente, em que um herdeiro preenche o seu quinhão em medida excedente, com concreta expressão monetária, do que, no confronto com os direitos dos demais, lhe era devido, por lei.

Obviamente, é verdade que o excesso de quinhão hereditário, para efeitos tributários, como, paradigmaticamente, sucede, na atualidade, com o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), consubstancia uma realidade equiparada às transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis, pelo que, está sujeito a tal tributo, “O excesso da quota-parte que ao adquirente pertencer, nos bens imóveis, em acto de divisão ou partilhas, bem como a alienação da herança ou quinhão hereditário;” (Cf. art. 2.º n.º 5 alínea c) do CIMT.). Contudo, desta norma de incidência, não podemos, como no acórdão recorrido, retirar suporte para afirmar e concluir « … que, não obstante o carácter declarativo da partilha, para efeitos tributários, ela assume-se como facto constitutivo na parte em que as adjudicações excedam o valor do quinhão hereditário, ou seja, no referente a bens e direitos que passem para a titularidade dos herdeiros além dos necessários ao preenchimento dos respectivos quinhões. …, “na parte que excede a quota hereditária, o herdeiro não adquire por efeito da sucessão, antes realiza uma aquisição a título oneroso. «Esta diferença, sujeita a tornas, é suficiente para concretizar a onerosidade da transmissão nesta parte, a qual reveste a natureza de uma verdadeira compra e venda, assim não reportando os seus efeitos ao momento da abertura da sucessão e antes se devendo ter por concretizada a aquisição da respectiva propriedade no momento da celebração do contrato, no caso concreto a escritura de partilha lavrada em … (cfr. artigos 408 e 1317, alínea a), do C.Civil)».

Como o acima exposto deixa antever, a partilha, na nossa perspetiva, tem, sempre e univocamente, natureza declarativa e não, destacadamente, translativa, em particular, do direito de propriedade sobre imóveis, pelo que, em conformidade, qualquer aquisição, que por ela se materialize, tem de, independentemente da data da concretização/formalização do negócio jurídico (de partilha), retroagir ao dia e hora da abertura da correspondente sucessão por morte. Ademais, muito menos acolhemos o entendimento de que a partilha possa ter uma natureza, digamos, mista, bígama, nas situações, como a que nos ocupa, em que um herdeiro adquire (é encabeçado) em bens cujo valor, com tradução monetária, excede o do seu quinhão hereditário, isto é, declarativa e com a aquisição a ser reportada ao momento da morte do de cuius, quanto ao preenchimento certo da sua quota-parte na massa de bens a partilha e translativa (compra e venda), em relação à aquisição excedentária (da sua quota-parte), considerando-se esta efetivada na data da partilha (Nas palavras, pertinentes, do acórdão fundamento: “(…) A impugnante adquiriu o bem que vendeu no momento em que ocorreu o decesso da pessoa de quem o herdou, sem que tal sofra qualquer alteração por a partilha da herança ter decorrido em momento posterior, ou pela circunstância de nessa partilha lhe ter cabido o bem cujo valor excedia a sua quota hereditária. (…) O momento de aquisição do imóvel é um e um único, o momento da morte do autor da sucessão, sendo a partilha apenas uma forma de distribuir os bens pelos herdeiros em conformidade com a lei, a vontade do de cujus e os interesses dos herdeiros, em preenchimento dos respectivos quinhões hereditários, sempre, em todas as situações, com efeitos retroagidos àquele momento inicial da sucessão hereditária.”).

Efetivamente, por um lado, o art. 2119.º do CC, estatui que feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem qualquer destrinça dos que preenchem ou excedem o respetivo quinhão (quota-parte da universalidade de bens e direitos constitutivos da herança) (Com esta disposição legal visou o legislador “evitar hiatos na titularidade das relações jurídicas que são objeto da sucessão. De modo que há uma única transmissão, a sucessória, e não transmissões entre co-herdeiros”. Nas palavras do acórdão fundamento: ). Outrossim, um negócio jurídico de partilha de bens não é confundível com o contrato (nominado) de compra e venda, pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (Artigo 874.º segs. do CC.), porquanto, desde logo, quanto a este último, o pagamento de tornas (forma privativa e específica de, numa partilha, o herdeiro que recebe bens/direitos em excesso cobrir a diferença - de valor monetário - aos demais) não tem a natureza de preço (correspondente à parte excedente, por exemplo, de uma parcela de um imóvel), mas sim, consubstancia uma forma de compensação, aos outros herdeiros/interessados, pelo excesso de quota-parte.

Neste ponto, cumpre questionar se razões como a afirmativa de que o “objecto de tributação é eminentemente económico e não jurídico”, podem levar-nos a infletir, no sentido do precedente pronunciamento.

Hodiernamente, a tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, bem como, a promoção da(s) justiça social, igualdade de oportunidades e necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, impondo-se-lhe que respeite os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material. Por outro lado, não é questionável que, nas situações de dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, se deve atender à substância económica dos factos tributários (Cf., arts. 5.º e 11.º n.º 3 da Lei Geral Tributária (LGT).). Porém, não obstante a sinalização e recurso, pelo legislador, a conceitos que projetam uma matriz com particular atenção e valoração de aspetos respeitantes à vertente económica das realidades sujeitas a tributação (relações jurídico-tributárias), temos de pensar e operar o direito tributário numa ordem jurídica global, integrada, estabelecendo as pontes necessárias e adequadas, com os demais ramos do direito, para ser alcançado um resultado equilibrado, no sentido de capaz de satisfazer os fins, gerais e abstratos, da tributação, sem criar discriminações de cariz circunstancial, dirigido a certos e determinados movimentos com repercussões económico-financeiras, a coberto de uma pretensa legitimação derivada da maior coleta de impostos. Em suma, a tributação (e, em especial, o respetivo controle judicial), sem prejuízo da atenção que tem de devotar aos aspetos económicos das realidades sobre que pretende incidir, não pode, em casos contados, assumir uma atitude autista e obnubilar os contributos doutrinários, consensuais para a esmagadora maioria, conformadores e explicativos de institutos jurídicos, conceitos, características privativas, de outros complexos normativos, do nosso ordenamento jurídico, com ligações ao direito tributário.»

 

Na parte decisória deste aresto, em que de uniformiza a jurisprudência, refere-se o seguinte:

«na aplicação do regime transitório, da categoria G, do IRS, previsto no art. 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30 de novembro, nos casos de ganhos (mais-valias) decorrentes da alienação, a título oneroso, de prédios urbanos, rústicos e/ou mistos, o momento que releva, como o da aquisição dos bens ou direitos envolvidos, incluindo na parte em que, eventualmente, exceda o(s) quinhão(ões) hereditário(s), é o dia e hora da morte do(s) de cuiús»

 

É inequívoco, assim, que a jurisprudência foi uniformizada no sentido defendido pela Requerente, sendo aplicável o regime transitório previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88  aos ganhos obtidos com a alienação onerosa de bens objecto de  partilha de herança, desde que o momento da morte do autor da herança tenha ocorrido antes da entrada em vigor do CIRS, mesmo que os bens adquiridos excedam o quinhão hereditário.

Assim, apesar de ser discutível o sentido da jurisprudência uniformizada (como se vê, desde logo, pelo douto voto de vencido), o facto de este acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo ter sido proferido com 10 votos a favor e 1 contra leva a concluir que se está perante jurisprudência que se poderá considerar consolidada, para efeitos do n.º 3 do artigo 284.º do CPPT, pelo menos enquanto não for alterada consideravelmente a composição do Pleno, como vem sendo jurisprudência corrente do Supremo Tribunal Administrativo.

Visando o regime legal dos recursos para uniformização de jurisprudência obstar a que se produzam decisões jurisdicionais divergentes sobre as mesmas questões de direito, assim concretizando "uma interpretação e aplicação uniformes do direito" (artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil), postulada pelo princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), os tribunais arbitrais, como tribunais que julgam em 1.ª instância, devem aplicar a jurisprudência uniformizada, quando não se entrevê, com objectividade, a possibilidade de ela ser alterada, como já fez o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 04-07-2021, proferido no processo n.º 077/17.0BEPDL.

Aliás, em matéria tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira está obrigada a rever as suas orientações genéricas quando conflituam com acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo [artigo 68.º-A, n.º 4,  alínea b] da LGT], o que revela uma acentuada intenção legislativa de implementação da jurisprudência uniformizada.

Pelo exposto, aplicando esta jurisprudência uniformizada, conclui-se que as liquidações impugnadas enfermas de vícios de violação de lei, por erro de interpretação do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, conjugado com o artigo 2119.º do Código Civil.

Estes erros justificam a anulação das liquidações impugnadas, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

4. Restituição de quantia paga indevidamente e juros indemnizatórios

 

         As Requerentes pagaram as quantias liquidadas e pedem a sua restituição com juros indemnizatórios..

         De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».

         Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

         O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

         Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

         Como o pagamento de juros indemnizatórios depende de existir quantia a reembolsar, insere-se no âmbito das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar se há direito a reembolso e em que medida.

         Cumpre, assim, apreciar os pedidos de restituição da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.

         Na sequência da anulação das  liquidações, cada uma das Requerentes tem direito a ser reembolsada da quantia que indevidamente suportou que são de € 110.414,08 quanto à Requerente e A..., e de € 137.852,15, quanto à Requerente B... .

         No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

 Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

         No caso em apreço, conclui-se que há erros nas liquidações imputáveis aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, pois foi esta que as elaborou por sua iniciativa.

         Os juros indemnizatórios devem ser contados desde as datas em que cada uma das Requerentes efectuou o pagamento da liquidação respectiva, até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

5. Decisão

 

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1.  Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2.  Anular liquidações adicionais com os números 2022... e 2022..., com os valores de € 110.938,41 e € 140.564,14, respectivamente;
  3. Julgar procedentes os pedidos de restituição das quantias pagas e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente A... a quantia de € 110.414,08 e à Requerente B... que quantia de € 137.852,15;
  4.  Julgar procedente os pedidos de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los a cada uma das Requerentes calculados sobre a quantia que lhe deve ser reembolsada e nos termos indicados no ponto 4 deste acórdão.

 

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 248.466,83, correspondente à soma dos valores das liquidações que as Requerentes pretendem que sejam anulados, que são indicados pelas Requerentes sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

6. Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, a cargo da Requerida.

 

 

Lisboa, 07-09-2023

Os Árbitros

 

 

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

 

 

(Catarina Gonçalves)

 

 

 

 

(José Nunes Barata)