Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 555/2022-T
Data da decisão: 2023-09-18  IRC  
Valor do pedido: € 147.799,95
Tema: IRC. Seguros Ramo Vida. Seguros Unit-Linked. Distribuição de lucros. Discriminação entre Residentes e Não-Residentes. Art. 51.º do CIRC.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os árbitros Fernando Araújo, Árbitro Presidente, Maria Antónia Torres e Maria do Rosário Anjos, Árbitros Vogais, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I. Relatório

 

          1. A... a seguir designada por “Requerente”, sociedade de direito inglês com sede em ...,  ..., titular do número de contribuinte no Reino Unido ..., residente para efeitos fiscais em Inglaterra, com o número de identificação fiscal português ..., ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01, com as alterações subsequentes (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a seguir RJAT), apresentou, em 19 de Setembro de 2022, pedido de pronúncia arbitral, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (a seguir, Requerida ou AT), no qual peticionou a anulação das decisões de indeferimento que recaíram sobre o recurso hierárquico e a reclamação graciosa apresentados contra o acto de retenção na fonte de IRC sobre dividendos, na parte relativa ao período de tributação de 2019, bem como a anulação do próprio acto de retenção na fonte.

2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 10 de Novembro de 2022, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Em consonância com a al. c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o tribunal arbitral coletivo ficou constituído em 28 de Novembro de 2022.

 

3. No pedido de pronúncia arbitral (a seguir, petição inicial ou PI), a Requerente peticionou a anulação das decisões de indeferimento que recaíram sobre o recurso hierárquico e a reclamação graciosa apresentados contra o acto de retenção na fonte de IRC sobre dividendos, na parte relativa ao período de tributação de 2019, bem como a anulação do próprio acto de retenção na fonte, para o que invoca, em súmula, os seguintes fundamentos:

 

- A Requerente é uma companhia de seguros do ramo Vida (cf. relatório e contas de 2019 junto como doc. n.º 1 com a reclamação graciosa), registada em Inglaterra e aí residente para efeitos fiscais (cf. doc. n.º 4 junto com o recurso hierárquico), autorizada pela Prudential Regulatory Authority (“PRA”) e regulada pela Financial Conduct Authority e pela PRA.

- No âmbito da sua atividade, a A... tem vindo a investir em vários mercados internacionais, incluindo o mercado português, tendo concretizado investimentos no capital de sociedades portuguesas.

 

- No decurso dos exercícios de 2018 e 2019, e em resultado dos investimentos efetuados, os quais foram afetos a provisões técnicas, a Requerente foi beneficiária de dividendos distribuídos por entidades residentes em território português, no montante total de € 1.570.932,63, relativamente às participações detidas naquelas entidades, que, por sua vez, se encontram igualmente afetas às respetivas provisões técnicas (cf. doc. n.º 2 junto com o recurso hierárquico).

- Para o que ora releva, no decurso do período de tributação de 2019, foram colocados à disposição da Requerente lucros distribuídos por diversas sociedades residentes, para efeitos fiscais, em território português, no montante total de € 985.332,99, conforme descrito nos documentos emitidos pelas entidades custodiante e sub-custodiante (cf. doc. 3 junto com a audição prévia ao projeto de decisão da reclamação graciosa e doc. 5 do recurso hierárquico):

 

Entidade

 

Data

 

Valor bruto dos lucros (€)

 

Imposto retido na fonte (€)

Imposto final retido ao

abrigo da Convenção (€)

C... SGPS SA EUR 1.0

09/05/2019

1.410,83

211,62

211,62

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

09/05/2019

9.355,06

1.403,26

1.403,26

C... SGPS SA EUR 1.0

09/05/2019

6.567,60

985,14

985,14

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

09/05/2019

167.642,48

25.146,37

25.146,37

C... SGPS SA EUR 1.0

09/05/2019

2.485,93

372,89

372,89

C... SGPS SA EUR 1.0

09/05/2019

1,63

0,24

0,24

C... SGPS SA EUR 1.0

09/05/2019

15.526,88

2.329,03

2.329,03

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

09/05/2019

31.337,38

4.700,61

4.700,61

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

09/05/2019

19.120,53

2.868,08

2.868,08

E... EUR 1.0

15/05/2019

27.349,93

4.102,49

4.102,49

E... EUR 1.0

15/05/2019

390.487,43

58.573,11

58.573,11

E... EUR 1.0

15/05/2019

21.926,57

3.288,99

3.288,99

E... EUR 1.0

15/05/2019

90.143,22

13.521,48

13.521,48

E... EUR 1.0

15/05/2019

70.968,99

10.645,35

10.645,35

F… EUR 1.0

23/05/2019

2.543,97

381,60

381,60

G… EUR 1.0

30/05/2019

215,69

32,35

32,35

H... SA NPV

11/06/2019

10,75

1,61

1,61

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

10/09/2019

413,97

62,10

62,10

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

10/09/2019

94.944,58

14.241,69

14.241,69

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

10/09/2019

14.720,49

2.208,07

2.208,07

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

10/09/2019

610,68

91,60

91,60

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

10/09/2019

4.975,88

746,38

746,38

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

10/09/2019

11.726,55

1.758,98

1.758,98

D... SGPS SA EUR 1.0 CL B

10/09/2019

845,97

126,90

126,90

Total

 

985.332,99

147.799,94

147.799,95

 

- Conforme evidenciado no quadro acima, sobre os referidos lucros colocados à disposição da Requerente incidiu IRC, o qual foi liquidado e cobrado, a título definitivo, através do mecanismo de retenção na fonte.

- Em concreto, o B... Sucursal em Portugal, com o número de identificação fiscal ..., atuando na qualidade de substituto tributário, em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 e no n.º 7 do artigo 94.° do Código do IRC, procedeu à retenção na fonte em sede de IRC no valor de € 147.799,95, relativo ao período de tributação de 2019, ao abrigo do disposto no Acordo para evitar a Dupla Tributação celebrado entre Portugal e o Reino Unido (“ADT”), em vigor à data do referido ato de retenção na fonte.

- Neste sentido, por considerar que foi alvo de um tratamento discriminatório face àquele que seria conferido a uma seguradora residente, para efeitos fiscais, em Portugal, à luz do Direito da União Europeia (“Direito da UE”) e respetiva jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), decidiu a Requerente deduzir Reclamação Graciosa junto da Direção de Finanças de Lisboa, a qual deu entrada a 18 de dezembro de 2020, solicitando a revogação dos atos de retenção na fonte supra, com as consequências legais devidas, designadamente o reembolso do montante global de imposto de € 235.639,89 (€ 147.799,95, no que respeita a 2019).

- Apreciada a Reclamação Graciosa em apreço, a Requerente foi notificada, a 26 de abril de 2021, do Projeto de Decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) – cf. doc. 7 junto com a audição prévia ao projeto de decisão da reclamação graciosa, no qual se propunha o respetivo indeferimento.

- Exerceu o respetivo direito de audição prévia, tendo, posteriormente, sido notificada da decisão final de indeferimento, a qual convolou em definitivo o anterior projeto (cf. doc. 1 junto com o recurso hierárquico).

- Em 02.12.2021, a Requerente deduziu recurso hierárquico e foi, em 21.06.2022, notificada da decisão final de indeferimento do recurso hierárquico (cf. doc. n.º 1).

- Não se conformando com o exposto, a Requerente deduz o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

A. POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

- O artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC, na redação à data dos factos, previa que os lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português não concorriam para a determinação do lucro tributável, desde que se verificassem determinados requisitos.

- Por seu turno, o artigo 51.º, n.º 6, do Código do IRC previa que esta dispensa de tributação fosse igualmente extensível aos rendimentos de participações sociais que tivessem sido aplicados às reservas técnicas das sociedades de seguros.

- Pelo que, na medida em que os requisitos constantes do artigo 51.º do Código do IRC se encontrassem cumpridos, as companhias de seguros residentes em território português que recebessem dividendos de entidades com sede ou estabelecimento estável em Portugal, poderiam, na prática, beneficiar de uma isenção de IRC relativamente aos dividendos distribuídos e afetos a reservas técnicas.

- Todavia, esta isenção não abrangia as companhias de seguros que, ainda que cumprissem com os requisitos do referido artigo 51.º do Código do IRC, não dispusessem de residência em território português, estando antes sujeitas a tributação por retenção na fonte à taxa de 25% nos termos do n.º 4 do artigo 94.º do Código do IRC (eventualmente, com a aplicação das taxas reduzidas previstas em Convenção para Evitar a Dupla Tributação).

- Ou seja, entidades residentes e não residentes em território português, ainda que colocadas em situações comparáveis, não gozavam do mesmo regime fiscal, o que determinaria, consequentemente, uma discriminação não compatível com o Direito da UE.

- Neste contexto, entendendo não sendo admissível tal diferença de tratamento entre entidades residentes num Estado-Membro e entidades residentes num outro Estado-Membro, a Requerente procurou demonstrar que essa discriminação é contrária ao TFUE, e, por isso, deveria ser considerada ilegal, com todas as consequências que daí advêm.

- Um dos princípios constantes da ordem jurídica europeia com maior impacto no âmbito da fiscalidade direta é o da não discriminação em razão da nacionalidade, com assento no artigo 18.º do TFUE e que se vai densificando com a conjugação das disposições relativas às liberdades europeias, ou seja, a de circulação de mercadorias, circulação de trabalhadores, estabelecimento, prestação de serviços e, aqui, sobretudo, de circulação de capitais.

- Concretamente, da conjugação do disposto no transcrito artigo 63.º do TFUE com o preceituado no artigo 18.º do TFUE, decorre a eliminação de qualquer imposição fiscal que possa obstar, dificultar ou onerar a livre circulação de capitais em razão da nacionalidade.

- Por outras palavras, o exercício pleno da liberdade de circulação de capitais, articulado com o princípio da não discriminação, impede a existência de entraves fiscais que determinem uma situação de desfavor de uma entidade não residente face a uma entidade residente quando colocadas em condições similares.

- Motivo pelo qual a Requerente considerou que a retenção na fonte por si sofrida viola o disposto no TFUE, nomeadamente no que se refere ao princípio da livre circulação de capitais, o qual, conforme resulta do teor do mencionado artigo 63.º do TFUE, deve ser aplicável às relações existentes entre uma entidade residente num Estado-Membro e uma entidade residente num outro Estado-Membro.

- Faz-se notar que, em diversas decisões, o TJUE concluiu pela ilegalidade da legislação dos respetivos Estados-Membros, por existência de regimes fiscais diferenciados quanto a rendimentos obtidos por residentes e por não residentes do Estado-Membro da fonte, consubstanciando-se na não atribuição, aos sujeitos passivos não residentes, em situações comparáveis, dos benefícios concedidos aos residentes.

- Em conclusão, a posição assumida pelo TJUE tem sido a de qualificar como discriminação proibida pelo Tratado, a diferença, injustificada, de tratamento entre contribuintes residentes e contribuintes não residentes, ou seja, “[q]uando não exista qualquer diferença de situação objectiva susceptível de justificar a referida diferença de tratamento.”.

- Em resumo, à luz do princípio da livre circulação de capitais, não pode justificar-se um tratamento diferenciado, exclusivamente com base no fator diferenciador da residência da entidade beneficiária em claro desfavor da entidade não residente, o que implica necessariamente a anulação dos atos tributários, por ilegais, que concretizem tal discriminação.

- Continua a Requerente referindo o princípio do primado do Direito da EU, o qual tem um valor superior ao do direito interno dos Estados-Membros, princípio que se encontra previsto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

- De acordo como o n.º 3 daquela norma, “As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.”.

- No mesmo sentido aponta o n.º 4 do artigo 8.º da CRP que estabelece que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático”.

- Ou seja, se uma norma nacional for contrária a uma disposição da UE, é esta última que se aplica, devendo os Estados-Membros respeitar a conformidade com o direito da União Europeia, na medida em que este tem força vinculativa.

- O efeito prático do princípio do primado do Direito da UE será, pois, a não aplicação do direito nacional, ficando a força vinculativa deste suspensa. Ademais, note-se que o Direito da UE, por força da cláusula de receção automática do direito internacional, integra-se imediatamente na ordem interna dos Estados-Membros e, bem assim, que o Direito da UE originário pode ter efeito direto, ou seja, pode ser invocado diretamente pelos particulares perante o Estado ou perante outros particulares, como sucede, designadamente, com o disposto no artigo 63.º do TFUE.

- Significa isto que “[a]s normas nacionais que contrariem as disposições comunitárias com efeito directo são inaplicáveis, podendo os particulares invocar tal efeito e o juiz nacional reconhecê-lo.”.

- Assim, constituindo as disposições previstas na legislação interna portuguesa relativamente à tributação dos lucros obtidos em Portugal por sociedades que não se constituam e operem de acordo com a legislação nacional uma violação da liberdade de circulação de capitais, importa avaliar se, como sustenta a AT, esta não tem o poder de não aplicar uma norma interna incompatível com as exigências do Direito Europeu, ainda que a situação não tenha sido avaliada nas instâncias jurídicas.

- A este respeito, o artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que a atividade da AT tem de ser levada a cabo em subordinação à Constituição e à Lei e deve respeitar o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos (princípio da legalidade).

- O artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”) concretiza aquele princípio especificando que “(…) os órgãos da administração pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhe estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes foram conferidos.".

- Assim, parece claro que o princípio da legalidade abrange também a obediência aos princípios do Direito da UE, os quais, conforme já demonstrado, são parte integrante da ordem-jurídica interna dos Estados-Membros.

- Assim, quando uma norma europeia aplicável a determinada situação se apresente perfeitamente clara, não levantando qualquer questão quanto à sua interpretação, deverá verificar-se a aplicação direta na ordem jurídica do Estado-Membro – tendo em consideração o princípio jurídico segundo o qual in claris non fit interpretatio – em detrimento de eventual legislação nacional que disponha em sentido contrário à legislação da UE.

- Atento o exposto, considera a Requerente que é dever da AT aplicar o disposto no TFUE, obedecendo ao princípio da livre circulação de capitais previsto no seu artigo 63.º, o qual se encontra a ser violado.

- Posto isto, a Requerente passa à análise da legislação portuguesa, centrando-a no âmbito específico das eventuais discriminações decorrentes de normas de direito interno relativas à tributação de dividendos, por forma a aferir se as mesmas são, ou não, conformes com o Direito da UE, mormente com o princípio da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais, tal como os define o TJUE.

- A este respeito, recorda que os dividendos auferidos, no que ora releva, em 2019 pela Requerente, na sequência da detenção das participações no capital social das entidades acima mencionadas, foram sujeitos a tributação por retenção na fonte à taxa de 15%.

- Ora, o n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRC previa, à data dos factos que “[o]s lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC com sede ou direcção efectiva em território português não concorrem para a determinação do lucro tributável, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

a)        O sujeito passivo detenha directa ou directa e indirectamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, uma participação não inferior a 10 % do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas;

b)        A participação referida no número anterior tenha sido detida, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à distribuição ou, se detida há menos tempo, seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período;

c)         O sujeito passivo não seja abrangido pelo regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º;

d)        A entidade que distribui os lucros ou reservas esteja sujeita e não isenta de IRC, do imposto referido no artigo 7.º, de um imposto referido no artigo 2.º da Directiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de Novembro, ou de um imposto de natureza idêntica ou similar ao IRC e a taxa legal aplicável à entidade não seja inferior a 60 % da taxa do IRC prevista no n.º 1 do artigo 87.º;

e)         A entidade que distribui os lucros ou reservas não tenha residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças. (sublinhado da Requerente).

- Por outro lado, o n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC estabelecia que “[o] disposto no[s] n.o[s] 1 [e 2] é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, à parte dos rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros (…).” (destaque da Requerente).

- Ora, nos termos do n.º 1 e do n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC, para que os dividendos de fonte portuguesa obtidos por uma companhia de seguros residente não fossem tributados, seria necessário, quanto à entidade distribuidora dos dividendos, que esta estivesse sujeita e não isenta de IRC, requisito este que se encontra, de facto, cumprido por todas as entidades que procederam à distribuição de dividendos à Requerente (e acima melhor identificadas).

Por seu turno, quanto à sociedade beneficiária do rendimento (i.e., companhia de seguros), impunha-se, tão só, que esta não estivesse abrangida pelo regime de transparência fiscal e que as participações sociais estivessem afetas às reservas técnicas não sendo imputáveis aos tomadores de seguros.

- Ora, exceção feita à residência em território português, também a Requerente preenchia todos os requisitos de cuja verificação dependia a aplicação do regime da eliminação da dupla tributação económica previsto no artigo 51.º do Código do IRC.

- A Requerente alega não estar, e nunca ter estado, submetida ao regime de transparência fiscal, sendo que detinha, no momento em que lhe foram colocados à disposição os referidos lucros, as participações sociais nas entidades acima referidas afetas às respetivas reservas técnicas e não imputáveis a tomadores de seguros.

- Em suma, no momento da ocorrência dos factos tributários que deram origem à prática dos atos ora sindicados, encontravam-se verificados, com exceção da residência em território português da entidade beneficiária dos dividendos (ou seja, a Requerente), todos os requisitos de que depende a aplicação do n.º 1 do artigo 51.º do Código do IRC.

- Pretende com esta argumentação a Requerente demonstrar que se a A... fosse, à data dos factos, residente em território português, sempre seriam aqueles rendimentos passíveis de não concorrerem para a base da formação do seu lucro tributável.

- Pelo que, se a A... fosse residente em território português, o montante total de € 147.799,95 referente a dividendos recebidos e afetos às reservas técnicas não teria sido sujeito a tributação em 2019.

- Tal facto é, no entender da Requerente, resultado do constrangimento decorrente de ela se encontrar estabelecida fora do território nacional, todavia residente em território da União Europeia, onde, como se viu, prevalece o princípio da livre circulação de capitais, entendendo a Requerente que não existem, pois, in casu, razões objetivas que justifiquem um tratamento fiscal diferente para contribuintes residentes e não residentes.

- Refere ainda a Requerente que, na decisão proferida pelo STA no Processo n.º 1502/12-30, de 31 de outubro de 2014, em que A... era, à data, igualmente reclamante no âmbito de um processo para reembolso de IRC indevidamente retido com base na ilegalidade da legislação portuguesa constante do Código do IRC, que previa um regime de tributação dos dividendos distinto para entidades residentes e para entidades não residentes, o STA julgou ilegais aqueles atos de retenção na fonte, com base no princípio da livre circulação de capitais (na sua vertente de não discriminação) e do primado do Direito da UE, ambos postulados pelo TFUE e pela CRP.

- Sustenta, em síntese, a Requerente que o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IRC, alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS, alínea c) n.º 1 e n.º 5 do artigo 94º e no n.º 4 do artigo 87.º, ambos do Código do IRC, bem como os n.º 1 e n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC, consubstanciam uma tributação discriminatória das entidades não residentes, que é contrária ao disposto no artigo 63.º do TFUE e, como tal, os atos praticados ao seu abrigo, como sucede com os ora contestados, devem ser anulados.

- Deste modo, por forma a reestabelecer a igualdade entre a tributação efetiva sofrida pela Requerente e as demais entidades residentes em Portugal em idênticas circunstâncias, e no estrito cumprimento do Direito da UE, requer que lhe seja reembolsado o montante retido em excesso correspondente aos lucros que lhe foram distribuídos provenientes de participações detidas em sociedades residentes em Portugal no decurso de 2019.

- Subsidiariamente, e estando em causa uma questão de interpretação de Direito da União Europeia que assume relevância para o presente litígio, entende a Requerente que deverá submeter-se a respetiva interpretação ao Tribunal de Justiça da União Europeia, competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretação dos Tratados e dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União (cf. artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).

- A questão a submeter ao TJUE, nesse reenvio prejudicial, seria a seguinte:

“O artigo 63.º TFUE, relativo à livre circulação de capitais, opõe-se a um regime fiscal como o que está em causa no litígio no processo principal, constante do artigo 51.º, n.º 1, do Código do IRC, que prevê a não tributação dos dividendos recebidos por sociedades com sede ou direção efetiva em território português, ao passo que as sociedades residentes fiscais fora do território português já não podem beneficiar dessa não tributação, ficando sujeitas a uma retenção na fonte definitiva?”.

 

B. POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

4. A Requerida, na sua resposta, invoca o seguinte:

 

- Na descrição da situação fáctica, a Requerente indica que, no âmbito da sua atividade, tem vindo a investir em vários mercados internacionais, incluindo o mercado nacional, tendo concretizado investimentos no capital de sociedades portuguesas, mas não identifica claramente se os investimentos em ações de sociedades residentes em território português, geradoras dos dividendos tributados por retenção na fonte, estão associados a contratos de seguros do ramo vida, em que o risco corre por conta da seguradora ou se estão afetos a produtos financeiros com as características próprias dos produtos unit-linked, cujo risco financeiro é do tomador.

 

- Ora, ao defender-se a tese de que o disposto nos números 1 e 6 do artigo 51.º do Código do IRC dá origem a uma tributação discriminatória das entidades não residentes, torna-se imprescindível identificar se os investimentos em ações de sociedades residentes fiscais em Portugal estão a representar provisões técnicas do seguro de vida com participação nos resultados, ou afetos a contratos em que o risco de seguro é suportado pelo tomador de seguro ou de outro tipo de contratos.

 

- É que a Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, alterou a redação do n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC dada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, com vista a clarificar que o benefício fiscal aí consagrado exclui os rendimentos de participações sociais, recebidos por seguradoras e mútuas de seguros, afetas às provisões técnicas, direta ou indiretamente imputáveis aos tomadores de seguros, nomeadamente os auferidos no quadro de contratos unit-linked.

 

- Com efeito, o n.º 6 do artigo 51.º passou a estatuir o seguinte:

«6 – O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, à parte dos rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das mútuas de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades (...).»

 

- Pode, agora, afirmar-se que o regime de tributação em IRC dos rendimentos das participações sociais afectas aos contratos excluídos do n.º 6 do artigo 51.º, está em sintonia com os normativos contabilísticos aplicáveis, conforme resulta do artigo 50.º (redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13/07), cujo n.º 1 estabelece que:

«Concorrem para a formação do lucro tributável os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor aos activos que estejam a representar provisões técnicas do seguro de vida com participação nos resultados, ou afectos a contratos em que o risco de investimento é suportado pelo investidor

 

- Ora, sublinha a Requerida, in casu, o desconhecimento sobre o tipo e características dos produtos a cujas provisões técnicas estão afetos os investimentos em ações das sociedades residentes em Portugal, impede que se determine se os dividendos teriam enquadramento no n.º 6 do artigo 51.º, caso fossem obtidos por sociedades residentes, bem como se a Requerente foi sujeita a tributação no Reino Unido sobre os dividendos, e se exerceu o direito ao crédito de imposto indireto, previsto no n.º 1) do artigo 22.º da Convenção para evitar a dupla tributação.

 

- Sendo certo que a prova de tal factualidade cabe à Requerente, tal como determinam as regras sobre a repartição do ónus da prova, constantes do artigo 74.º, n.º 1, da LGT e 342.º do Código Civil.

 

- A Requerida reitera que a norma do n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC, com a redação em vigor desde 2016, deixou de abranger os investimentos associados a contratos com determinadas caraterísticas, entre os quais produtos unit linked, deixando assim os dividendos distribuídos a sociedades de seguros e das mútuas de seguros com residência fiscal Portugal de aproveitar o mecanismo da eliminação da dupla tributação económica.

 

- Portanto, se as ações das sociedades listadas no artigo 8.º do PPA estão afetas a provisões técnicas destes produtos, não faz sentido a inclusão daquela norma na fundamentação do pedido, insistindo a Requerida que a prova sobre a natureza e características dos produtos a que se encontram indexados os investimentos nas participações sociais que geraram os dividendos, cabe à Requerente, e a mesma não foi apresentada.

 

- Estranha, assim, a Requerida que seja invocada a violação ao princípio de não discriminação e a verificação de desconformidade da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, com fundamento no disposto nos números 1 e 6 do artigo 51.º, sem cuidar primeiro de se esclarecer se as sociedades seguradoras e mútuas de seguros residentes fiscais em Portugal e as agências gerais de seguradoras estrangeiras, bem como os estabelecimentos estáveis de sociedades residentes noutro Estado membro da União Europeia e do Espaço Económico Europeu que sejam equiparáveis, poderiam aproveitar do regime de eliminação da dupla tributação económica aplicável aos dividendos.

 

- A Requerida recorda também, quanto à aplicação do princípio da não discriminação que a Requerente pretende ver aplicado, que o artigo 65°, n.º 1, alínea a), do TFUE prevê que «[o] disposto no artigo 63° [TFUE] não prejudica o direito de os Estados-Membros [...] aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido».

 

- Refere a Requerida que o TJUE tem declarado que esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita, o que implica que não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar onde residam ou do Estado-Membro onde invistam os seus capitais será automaticamente compatível com o TFUE.

 

- Aliás, continua, a própria derrogação prevista no artigo 65. °, n.º 1, alínea a), do TFUE é limitada pelo disposto no n.º 3 desse mesmo artigo, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo [63.° TFUE]».

 

- Para distinguir as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65. °, n.º 1, alínea a) das discriminações proibidas pelo artigo 65. °, n.º 3, a jurisprudência do TJUE tem referido que é necessário que a diferença de tratamento diga respeito a situações não comparáveis objetivamente, ou que se justifique por razões imperiosas de interesse geral.

 

- Entende ainda a Requerida que, se se considerar que, apesar das dúvidas apontadas para estabelecer um padrão de comparabilidade na forma de tributação dos dividendos pagos por sociedades residentes a sociedades seguradoras residentes e a sociedades seguradoras não residentes, as circunstâncias em que ocorre a obtenção dos rendimentos são comparáveis, importa, então, averiguar se a diferença de tratamento encontra justificação na repartição dos poderes tributários consagrados numa convenção para evitar a dupla tributação.

 

- A convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre Portugal e o Reino Unido permite ao Estado da fonte dos dividendos a tributação limitada dos rendimentos (in casu, 15%) desde que o beneficiário residente do outro Estado esteja sujeito a imposto nesse outro Estado «por tais dividendos» (cfr. artigo 10.º, n.º 2 da CDT), cabendo ao Estado da residência a eliminação da dupla tributação, nos termos do n.º 1) do artigo 22º n4:

4 - O Reino Unido concede aos seus residentes o direito à dedução no imposto do Reino Unido «do imposto português pagável por força da legislação de Portugal e de acordo com a presente Convenção, quer directamente, quer por dedução, sobre os lucros, rendimentos ou ganhos tributáveis de fontes situadas em Portugal, excluído, no caso de dividendos, o imposto pagável relativamente aos lucros de que aquelas foram distribuídos, será deduzido do imposto do Reino Unido calculado sobre os lucros, rendimentos ou ganhos tributáveis em relação aos quais o imposto português for calculado

 

- Ou seja, aquilo que seria aparentemente uma restrição à livre circulação dos capitais poderá ser justificada, se vigorar uma neutralização por uma convenção bilateral para evitar a dupla tributação celebrada entre o Estado da fonte dos dividendos e o Estado de residência da sociedade beneficiária.

 

- Lembra a Requerida que a jurisprudência do TJUE (V., acórdãos C-17/14, ACT Group Litigation C-374/04, Amurta, C-379/05, Comissão/Espanha, C-487/08 e Société Génerale C-17/14) tem, em diversas ocasiões, reiterado que não se pode excluir que um Estado-Membro consiga garantir o cumprimento das suas obrigações resultantes do Tratado através da celebração de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação com outro Estado-Membro, considerando que: «Para esse efeito, é necessário que a aplicação de semelhante convenção permita compensar os efeitos da diferença de tratamento decorrente da legislação nacional. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que só no caso de o imposto retido na fonte nos termos da legislação nacional poder ser imputado no imposto devido noutro Estado-Membro até ao montante da diferença de tratamento decorrente da legislação nacional é que desaparece a diferença de tratamento entre os dividendos distribuídos a sociedades estabelecidas noutros Estados-Membros e os dividendos distribuídos às sociedades residentes»

 

- Aliás, tem sido entendimento do Supremo Tribunal Administrativo (V., acórdãos de acórdão do Pleno, de 9/7/2014, proc. nº 1435/12 e de 08/02/2017, proferido no processo n.º 0678/16), alicerçado na jurisprudência do TJUE, que o tratamento discriminatório e a restrição à circulação de capitais não se verifica quando pode funcionar o mecanismo de neutralização do imposto previsto na Convenção celebrada entre Portugal e aquele país para evitar a dupla tributação, dado que «só no caso de o imposto retido na fonte nos termos da legislação nacional poder ser imputado no imposto devido noutro Estado Membro até ao montante da diferença de tratamento decorrente da legislação nacional é que a diferença de tratamento entre os dividendos distribuídos a sociedades estabelecidas noutros Estados-Membros e os dividendos distribuídos às sociedades residentes desaparece».

 

- A Requerida faz notar que, no respeitante à questão de saber se o IRC pago sobre os dividendos pagos por sociedades residentes em Portugal à Requerente pode ser deduzido ao imposto incidente sobre tais rendimentos no Reino Unido, ficando, assim, os efeitos da diferença de tratamento no país da fonte neutralizados, não é possível dar resposta por se ignorar o regime de tributação dos dividendos aplicável no país de residência. No entanto, diz a Requerida não descortinar no argumentário da Requerente qualquer alusão a uma eventual impossibilidade de dedução do imposto retido em Portugal sobre os dividendos ao imposto devido no Reino Unidos sobre tais rendimentos.

 

- E assim, tendo em conta que a Requerente não explicita, nem prova, se as participações sociais que deram origem aos dividendos pagos por sociedades residentes em Portugal estão, ou não, afetas a produtos com características que excluiriam os dividendos do disposto nos números 1 e 6 do artigo 51.º do Código do IRC, bem como o regime de tributação a que se encontra sujeita no Reino Unido, entende a Requerida que não estão reunidas as condições necessárias para concluir que se está perante um tratamento fiscal discriminatório de uma entidade não residente susceptível de colidir com a liberdade de circulação de capitais.

 

- Conclui a Requerida que os atos tributários impugnados não padecem de qualquer erro ou vício, pelo que devem manter-se na ordem jurídica.

 

5. Por despacho arbitral de 19 de Janeiro de 2023, e tratando-se de questões que são essencialmente de direito, e dado que não foi requerida qualquer prova testemunhal, dispensou-se a reunião do artigo 18º do RJAT, solicitando-se às partes a apresentação, querendo, de alegações escritas, o que ambas fizeram, em 3 de Fevereiro e 16 de Fevereiro de 2023.

Por Despachos de 4 de Maio e de 17 de Julho de 2023, foram sucessivamente prorrogados os prazos para prolação da decisão final do processo.

 

6. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, em conformidade com o preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, na alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º, na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e do n.º 1 do artigo 11.º, todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão devidamente representadas (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03).

O processo não enferma de nulidades e não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

II. QUESTÕES A DECIDIR

 

7.           O objeto fulcral do litígio concerne à legalidade do acto de retenção na fonte de IRC em Portugal, sobre dividendos recebidos pela Requerente dos investimentos que concretizou no capital de sociedades portuguesas, relativos ao período de tributação de 2019.

8. A resolução de todas estas questões pressupõe o apuramento e fixação da factualidade relevante, o que se passa a realizar.

 

III. Fundamentação de Facto

 

A. Factos provados

 

9. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1.          A Requerente é uma seguradora do ramo vida com residência fiscal no Reino Unido e sem estabelecimento estável em território português.
  2. A Requerente comercializa seguros de capitalização unit-linked, como ela informa na p. 2 da Reclamação Graciosa:

 

  1. Essa comercialização de seguros de capitalização unit-linked era, no ano de 2019, o negócio-base da A... (pp. 30/400 e 216/400 do PA):

 

  1. Fez diversos investimentos no capital de empresas portuguesas, dos quais recebeu dividendos resultantes de participações afectas a provisões técnicas.
  2. No decurso dos exercícios de 2018 e 2019, e em resultado dos investimentos efetuados, a Requerente foi beneficiária de dividendos distribuídos por entidades residentes em território português, no montante total de € 1.570.932,63, relativamente às participações detidas naquelas entidades.

 

  1. Em 2019, foram colocados à disposição da Requerente lucros distribuídos por diversas sociedades residentes para efeitos fiscais em território português, no montante total de € 985.332,99.
  2. O B... Sucursal em Portugal, atuando na qualidade de substituto tributário, procedeu à retenção na fonte em sede de IRC no valor de € 147.799,95, relativo ao período de tributação de 2019, ao abrigo do disposto no Acordo para evitar a Dupla Tributação celebrado entre Portugal e o Reino Unido em vigor à data do referido ato de retenção na fonte.
  3. Pretendendo a Requerente que lhe fosse reconhecido o direito à não tributação em IRC dos dividendos auferidos em 2019, respeitantes a investimentos em ações de sociedades residentes fiscais em território português, apresentou Reclamação Graciosa a 18 de Dezembro de 2020, indeferida por Despacho de 14 de Setembro de 2021; e interpôs Recurso Hierárquico em 2 de Dezembro de 2021, o qual foi igualmente indeferido por Despacho de 30 de Abril de 2022.
  4. Em 19 de Setembro de 2022, a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

B. Factos não Provados

 

10. Com relevo para a decisão da causa em face das alegações das partes, o Tribunal julga como não provada a seguinte factualidade:

 

  1. Não ficou provado qual o regime de tributação dos dividendos aplicável no país de residência da Requerente, nomeadamente se existe ou não a possibilidade de dedução do imposto retido em Portugal sobre os dividendos ao imposto devido no Reino Unidos sobre tais rendimentos.

 

C. Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

11. Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo.

Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).

Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

12. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

IV. Do Mérito. Fundamentação de Direito

 

13. A questão sub judice prende-se com a legalidade do acto de retenção na fonte de IRC em Portugal, sobre os dividendos recebidos pela Requerente, seguradora residente fiscal no Reino Unido, dos investimentos que concretizou no capital de sociedades portuguesas, relativos ao período de tributação de 2019.

14. Então vejamos. Estabelece o artigo 51º do IRC, redacção vigente no ano de 2019:

 

Artigo 51.º

Eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos

 

1 - Os lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português não concorrem para a determinação do lucro tributável, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

a) O sujeito passivo detenha direta ou direta e indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, uma participação não inferior a 10 % do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas; (Redação da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março)

b) A participação referida no número anterior tenha sido detida, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à distribuição ou, se detida há menos tempo, seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período; (Redação da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março)

c) O sujeito passivo não seja abrangido pelo regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º;

d) A entidade que distribui os lucros ou reservas esteja sujeita e não isenta de IRC, do imposto referido no artigo 7.º, de um imposto referido no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, ou de um imposto de natureza idêntica ou similar ao IRC e a taxa legal aplicável à entidade não seja inferior a 60 % da taxa do IRC prevista no n.º 1 do artigo 87.º;

e) A entidade que distribui os lucros ou reservas não tenha residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.

(…)

6 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, à parte dos rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros (…)

 

15. Estabelece assim o artigo 51º do IRC, no seu nº 6, que a isenção de tributação sobre lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC residentes para efeitos fiscais em Portugal, se aplica, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, aos rendimentos de participações sociais, obtidos por seguradoras, desde que essas participações estejam (i) afetas a provisões técnicas das sociedades de seguros e (ii) não respeitem a produtos unit linked (contratos em que o risco de seguro é suportado pelo tomador de seguro).

16. Ora, alega a Requerente que esta norma lhe deveria ter sido aplicada, isentando assim de retenção na fonte os dividendos recebidos, sob pena de se considerar alvo de um tratamento discriminatório face àquele que seria conferido a uma seguradora residente para efeitos fiscais em Portugal, à luz do Direito da União Europeia (“Direito da UE”) e respetiva jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”).

17. É, assim, necessário, e antes de avançar para uma eventual existência de discriminação, concluir se, de facto, o nº 6 do artigo 51º do CIRC se aplicaria à Requerente caso ela fosse residente para efeitos fiscais em Portugal.

18. Vejamos: a norma prevê que os dividendos sejam obtidos por uma entidade seguradora, o que é o caso da Requerente; exige ainda que os dividendos sejam relativos a participações afectas a provisões técnicas dessa entidade seguradora, provisões essas que, no entanto, não respeitem a produtos denominados “unit linked”, ou seja, a produtos em que o risco é assumido pelo tomador do seguro. É este último, assim, um requisito essencial à aplicação da isenção prevista no nº 6 do artigo 51º.

19. Ora, demos como provado que a Requerente não cumpria este requisito. Ou seja, demos como provado que os dividendos que foram sujeitos a retenção na fonte em Portugal eram relativos a participações sociais afectas a provisões técnicas de produtos “unit linked”.

20. Essa prova consta da informação fornecida pela própria Requerente à Requerida, e confirma-se pelas contas também juntas ao processo. Mais: tendo tido a oportunidade de provar o contrário do que era alegado pela Requerida, a Requerente não o fez.

21. Sendo assim, entende este Tribunal que o nº 6 do artigo 51º do CIRC é inaplicável ao caso concreto, e sê-lo-ia ainda que a Requerente fosse uma entidade seguradora residente em Portugal.

22. Não há, portanto, discriminação, não existindo um tratamento diferenciado da Requerente face a uma entidade residente, para efeitos fiscais, em Portugal.

23. Quanto ao pedido de que este tribunal submeta questões ao TJUE em sede de processo de reenvio prejudicial, ele tem que ser indeferido por um princípio de limitação processual dos actos e por uma questão de conhecimento prejudicado: assentando o pedido num pressuposto de facto que demos por não-verificado, tendo-se provado, pelo contrário, uma circunstância que o exclui, daí decorre que a Requerente não poderia usufruir em qualquer circunstância do regime em causa, pelo que é inútil conferir se essa interpretação é compatível com o Direito da União Europeia.

Não cabe a este Tribunal veicular ao TJUE questões que não têm aplicação ao caso em apreço nem são pertinentes para o julgamento da causa, por estar afastada a possibilidade de a Requerente, ou qualquer outro sujeito passivo na posição objectiva da Requerente, seja ele residente em Portugal ou em qualquer Estado-Membro da União Europeia, beneficiar do regime, por não verificação de um requisito objectivo desse regime, indiferentemente aplicável a residentes e a não-residentes. Fica assim prejudicado, por ser inútil, o conhecimento desta questão.

24. Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil, nomeadamente as referentes à devolução do imposto e aos juros indemnizatórios – art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo na ordem jurídica os actos de retenção na fonte e as decisões de indeferimento dos pedidos de Reclamação Graciosa e de Recurso Hierárquico apresentados contra eles;
  2. Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira do pedido formulado;
  3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

VI. Valor do Processo

 

Fixa-se, em conformidade com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, no art. 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do CPPT, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o valor do processo em €147.799,95 (cento e quarenta e sete mil setecentos e noventa e nove euros e noventa e cinco cêntimos), que constitui a importância do imposto que foi indicada como objeto de impugnação.

 

VII. CUSTAS

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €3.060, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 18 de Setembro de 2023

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

(Fernando Araújo)

 

A Árbitro vogal

 

(Maria Antónia Torres)

 

A Árbitro vogal

 

 

(Maria do Rosário Anjos)